Paulo Arantes - Fim de Linha Ou Marco Zero - A Crise de 2005

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    O filsofo Paulo Arantes analisa a crise poltica em 2005

    Fim de linha ou marco zero?O filsofo Paulo Arantes analisa a crise poltica em 2005

    Paulo Eduardo Arantes

    Um retrato do Brasil em 2005 revelaria uma sociedade derrotada e pior, desmoralizada. A esquerda era o personagemque faltava para a composio final desse quadro. No considero excessivo o juzo feito no calor da hora, verdadesegundo o qual vivemos neste ano a maior derrota da esquerda em toda a histria do pas.

    Em 1964, uma linha poltica equivocada foi sepultada por um golpe militar, no contexto dramtico da Guerra Fria, dandoincio ao declnio do ciclo comunista da esquerda brasileira. Um erro estratgico lastreado por um pas em movimento,confrontado com a tarefa histrica de democratizar e no limite socializar um pacto desenvolvimentista de raizconservadora, embora modernizante. Coisas da vida numa sociedade antagnica, quer dizer, uma reviravolta na luta declasses logo retomada pelas vrias dissidncias comunistas.

    Com seus muitos erros e raros acertos, o Partido Comunista finalmente saiu da vida para entrar na histria do Brasil.Ainda no sabemos se poderemos dizer o mesmo do PT em todo o caso muito cedo, pois essa formidvel mquinapoltica parece ter pela frente uma longa sobrevida de prosperidade eleitoral.

    A derrota maior de agora se deu pela pior das formas: sem combate e por adeso prvia ao programa do inimigo. Da adesmoralizao, dessas da qual ningum se recupera. Como se diz na gria de hoje: nessa no entramos nem sairemosna moral. Trata-se de uma questo poltica da maior importncia, nada a ver com moralismo. No h transformao socialem profundidade sem construo de uma hegemonia (antes de tudo, capacidade de direo intelectual e moral).

    Sindicalismo e Governo

    A imploso espetacular do lulismo, que encerrou o ciclo PT na esquerda brasileira e marcou para sempre o fatdico anode 2005, no se deveu a um simples caso de corrupo alis, bem marginal, nos dois sentidos. O partido foi se tornandoum partido de si mesmo. Para isso, foi girando em falso, como todas as burocracias, na medida em que suas basessociais foram derretendo ao sol da reestruturao produtiva do capitalismo.

    Lula caiu em tentao, no por defeito de fabricao, mas porque a classe operria perdeu seu poder de veto. A CUTganhou um ministrio, no entanto, antes de falar em peleguismo ou sindicalismo de Estado o que no falso - bomlembrar que uma pesquisa recente no ABC (regio metropolitana de So Paulo). O resultado mostrou que ostrabalhadores que ainda se encontram l, no s apiam a poltica econmica atual e o ciclo anterior de privatizaes, como

    no querem o Estado por perto na hora de negociar com os patres. Justo o aparelho estatal que, bem ou mal em algummomento, entrou em campo para assegurar uns poucos direitos, ao estabelecer que compra e venda de fora detrabalho no um contrato mercantil.

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    Portanto, todo cuidado pouco ao se falar em luta de classes a propsito da derrocada do governo Lula: quais oscampos em confronto e como se distribuem neles os protagonistas clssicos? Enquanto a burguesia poltica quer acabea do presidente, a burguesia econmica conspira para preserv-la. Mesmo assim, ambas esto de acordo emdemonstrar, no mnimo, a incompetncia do povo pobre do pas em criar um partido de massa por conta prpria, emorganizar-se com classe atravs de sua luta emancipatria.

    No campo popular, o capitalismo dominante empurrou os gestores sindicais dos grandes fundos de penso na direo dobloco monopolizador da riqueza social. Ficaram na condio de megainvestidores interessados em polticas de juros e desecuritizao da dvida pblica (lei de responsabilidade fiscal includa). Por isso, a posio do ncleo dirigente do PT ,sem dvida. uma posio de classe, s que esto do outro lado da fratura que rachou o pas em dois pacotes. A crise podeser entendida como um enorme contratempo, enfrentado por um vestibulando que disputa o ingresso na atualaristocracia capitalista do pas - na condio de baixo clero ou pequena nobreza, claro.

    A perda de direitos

    Tambm bom no esquecer que os movimentos sociais deixaram os trabalhadores do setor pblico falandosozinhos. Com isso, foram atropelados pela assim chamada reforma da Previdncia, mais um episdio da mesmaconformao do capitalismo rentista brasileiro, no caso, franqueando s instituies financeiras privadas o acesso poupanacompulsria dos assalariados. Dependendo do ngulo pelo qual se observa o teatro de operaes, no qual vem se travandoa luta poltica desde a inaugurao do governo Lula, ora nos deparamos com perdedores atirando em perdedores, oracom uma disputa feroz pelo acesso ao fundo pblico entre os vrios integrantes do bloco superior e suas respectivasclientelas polticas.

    A crise catrtica de 2005 revelou que o teatro nada mais que o prprio Estado, gozando da centralidade estratgicade nico protagonista em campo, em torno do qual orbitam o que restou das classes fundamentais (hoje em aceleradoprocesso de eroso). Um Estado ps-desenvolvimentista quase ia dizendo, ps-nacional , que se constituiu em agncia

    suprema de regulao dos novos mercados, aos quais fornece, sobretudo, segurana jurdica nada a ver com direitos egarantias constitucionais que continuam em vigor, porm em estado de suspenso. o principal operador da plataformade valorizao financeira em que se converteu a jurisdio poltica administrativa chamada Brasil, da qual extrai os recursosexigidos pelas camadas rentistas associadas.

    Um Estado ps-moderno, porm idntico ao velho Estado patrimonial estudado por Raimundo Faoro. Fortalecidoinclusive pelas megaprivatizaes, por ele mesmo subsidiadas e politicamente controladas por uma competente rede devasos comunicantes com os grandes negcios corporativos. Tudo se passa como se todos os setores sua voltavivessem da renda oriunda da posse de algum monoplio da minerao aos bancos, passando pela nossa conhecidaprevidncia complementar, sem falar na indstria do ensino superior privado e por a afora. A atmosfera mafiosa familiar, inclusive com a demarcao de territrios e negcios de fachada.

    Quis o destino que o lulismo-petismo fosse surpreendido no momento em que competentemente, como um verdadeiropartido ps-desenvolvimentista, se empenhava na engenharia de um patrimonialismo social-democrata, alternativa,alis, contemplada pelo prprio Faoro, que tambm antecipara a mgica besta das polticas sociais compensatrias.

    O governo que no governa

    No processo, o PT cometeu um erro pelo qual ainda no terminou de pagar. Na tima sntese de Chico de Oliveira eLaymert Garcia: como se governa para o mercado, a poltica consiste em no ter nenhuma poltica, s gesto. Quer dizer,servir ao mercado sem a pretenso de monopolizar no plano poltico estatal a intermediao dos seus interesses.

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    Foi aqui que o neo-patrimonialismo petista extrapolou. Ter que reabrir o balco para todos os corretores,compartilhando os canais estatais onde se encontram o submundo dos negcios privados e os operadores do rentismopoltico. Logo voltaremos normalidade, nela includo o detalhe da disputa eleitoral. Essa outra formalidade que ofabuloso ano de 2005 mostrou sair barato, como porcentagem da evaso do capital corporativo que volta na forma decompra de polticas pblicas uma leizinha de biossegurana aqui, outra lei de falncia acol, um leilozinho deprovncia petrolfera etc.

    Em resumo bem resumido, o fim de linha da corroso conjunta das classes fundamentais, gravitando por intermdiodos seus respectivos aparelhos partidrios em torno de um Estado concentrado na tarefa exclusiva de extorquir ariqueza produzida, paradoxalmente por uma sociedade assustadoramente empobrecida e, por isso mesmo, controladapor polticas focalizadas de administrao de suas zonas de vulnerabilidade e risco.

    J o marco zero ficar na dependncia da esquerda social sobrevivente se reencontrar, num outro cenrio de lutade outras classes, com os desclassificados do capital que se debatem numa outra arena. Desta forma, disput-la comos irmos antagonistas do novo bloco histrico, que no por acaso as submetem e manipulam como outrora o senhoriatocolonial disciplinava a massa inorgnica abandonada ao deus-dar da mais negra espoliao.

    Sobre a Frana

    Quem acompanhou com a devida ateno uma outra grande imploso ocorrida neste mesmo ano recheado decatstrofes sociais entre outras, o abandono dos pobres de New Orleans -, os subrbios incendirios francesesardendo durante duas inteiras semanas, talvez encontre matria para reflexo e comparao. A seguinte observao de um especialista em questes urbanas e nas novas segregaes espaciais, ocupacionais e raciaisque retalharam as conurbaes ingovernveis de hoje: desde a insurreio dos operrios parisienses em 1848, asrevoltas de classe giravam em torno do espao de trabalho. No entanto, a rebelio das periferias francesas, onde se

    acumulam desemprego, racismo e desespero, veio confirmar a percepo de que a cidade definitivamente conflagradapassou a desempenhar o papel detonador antes reservado s fbricas.

    Uma liderana clssica do marxismo revolucionrio francs, depois de lembrar que a revolta dos subrbios seapresentava em ordem dispersa da violncia, recomeada do mesmo ponto noite aps noite, admitiu que em outrostempos o movimento operrio seria uma alternativa a essas exploses de fria social. S que hoje, no por acaso,entrara calado e sara mudo de toda a crise, com estado de emergncia decretado e tudo.

    Quem

    Paulo Eduardo Arantes doutor em Filosofia pela Universidade de Nanterre (Paris X) e lecionou no Departamento deFilosofia da USP de 1968 a 1998 (quando se aposentou). Publicou, entre outros livros, Zero Esquerda (Conrad, 2004).

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