O Publico Moderno e a Fotografia

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    TEXTOS sEtatraduoacompanhaoartigo"Retratodeumafacevelada:Baudelaireea fotografia"publicadoRevista FACOM n. 17. So Paulo: Faculdade de Comunicao da FAAP, 2007. Partimos do textooriginalde Baudelaire publicado pela revista francesa tudes Photographiques, com comentrios dePaulLouisRoubert(nVI.Paris:SocitFranaisedePhotographie,mai1999,pp.2232).

    O pblico moderno e a fotografiaCartaaoSr.DiretordaRevuefranaisesobreoSalode1859[20/06/1859]

    CharlesBaudelaire,1959[Traduoecomentrios:RonaldoEntler,2007]

    MeucaroMorel,sehouvessetempoparadivertilo,euoconseguiriafacilmentefolheandoocatlogoefazendoumapanhadodetodosost tu losridculosetemaspatticosquetmaambiodeatrairnossosolhos.Esseoespritofrancs.Tentarsurpreenderatravsdeestratgiasestranhasarteemquestoograndeinstrumentodepessoasquenosonaturalmentepintores.Porvezes,massemprenaFrana,essevcioatingeatmesmohomensquenoestodesprovidosdetalento,masqueodesonramatravsdeumaespciedemisturaadltera.Eupoderiafazerdesfilarsobseusolhosot tu locmicomaneiradosvaudevillistas[1],ot tu loapelativoaoqualfaltaapenasopontodeexclamao,ot tu lotrocadilho,ot tu loprofundoefilosfico,ot tu loenganador,out tu loarmadilha,dogneroBrutus,LargueCsar[2]!Ohestirpeincrdulaepervertida!dizNossoSenhor,atquandoestareientrevs?Atquandovossuportarei?[3]Efetivamente,essaestirpe,art istaepblico,temtantafnapinturaquetentaincessantementedisfarlaedarlheuminvlucrocomoumremdioamargodentrodeumacpsuladeacarequeacar,grandeDeus!Eulheapontareiapenasdoist tu losdetelasque,alis,nochegueiaver:AmoreGibelotte[4]!Comoacuriosidadeviraimediatamenteapetite,nomesmo?Eutentocombinarintimamenteessasduasidias,aidiadeamoreaidiadeumcoelhoesfoladoefeitopicadinho.Nomefoipossvelsuporqueaimaginaodeumpintortenhachegadoaopontodecombinarumaljava,asaseumavenda[5]sobreocadverdeumanimaldomsticorealmente,aalegoriaseriademasiadamenteobscura.Maisqueisso,creioqueot tu lofoicompostosegundoareceitadeMisantropiaeArrependimento[6].Ot tu loverdadeiroseriaento:Pessoasapaixonadascomendogibelotte.Agora,soelesjovensouvelhos,umoperrioeumacostureirinhaoumesmouminvlidoeumavagabundasobumcaramanchoempoeirado?Seriaprecisotervistooquadro.Monrquico,CatlicoeSoldado! Estedogneronobre,dogneropaladino,umit inerriodeParisaJerusalm (Chateaubriand,perdo![7]Ascoisasmaisnobrespodemsetransformaremmeiosdecaricatura,easpalavraspolt icasdeumgovernante,emmunioparaaprendizesdearte).Essequadrospodeserarepresentaodealgumquefaztrscoisasaomesmotempo,batalha,comunga,eassisteaopetitlever[8]deLuisXIV.Sertalvezumguerreirotatuadocomfloresdelis[9]eimagensdedevoo?Masparaquecomplicar?Digamossimplesmentequeesseummeiodecomoo,prfidoeestril.Oquehdemaisdeplorvel,queoquadro,pormaisesquisitoqueparea,talvezsejabom.AmoreGibelottetambm.Semfalardeumexcelenteepequenogrupodeesculturascujonmeroinfelizmentenoguardei,equandoeuquissabermaissobreotema,reliinsistenteeinfrutiferamenteocatlogo.Enfim,vocteveagenerosidadedemeinformarquesechamavaSempreeJamais.Eumesentisinceramenteaflitoaoverqueumhomemtalentosocult ivouinutilmenteumenigmadesset ipo[10].

    Peodesculpasportermedivertidoporalgunsinstantesmaneiradospequenosjornais.Mas,aindaquea temtica lhepareaumpouco frvola,noentanto,examinandoa bem,voc encontrar nela um sintoma deplorvel. Para resumir de um modo paradoxal, eulhes perguntaria, a voc e a esses meus amigos que so mais instrudos que eu nahistriadaarte,seogostopelo tosco,ogostopeloespirituoso (quesoamesmacoisa)existiram em outros tempos. Se Apartamento para alugar[11] e outras concepesrebuscadas surgiramem todasaspocaspara incitaromesmoentusiasmo.SeaVenezade Veronese e de Bassan foram afligidas por esses logogrifos, se os olhos de JulesRomain, de Michelangelo, de Bandinelli foram assombrados por semelhantesmonstruosidades pergunto, em resumo, se o Sr. Biard eterno e onipresente comoDeus. No creio nisso, e considero essas honras como uma graa especial concedida estirpefrancesa.Queseusartistasinoculamnelaogosto,verdadequeelaexigedelesque lhe supram tal necessidade, tambm no menos verdadeiro pois se o artistaembruteceopblico,estelhepagabemporisso.Sodois termoscorrelativosqueagemumsobreooutrocomigualeficincia.Admiremostambmcomquerapidezmergulhamosna via do progresso (entendo por progresso a progressiva desapario da alma e oprogressivo domnio damatria), e que propagaomaravilhosa se faz todos os dias dahabilidadeordinria,aquelaquesepodeadquiriratravsdapacincia.

    Nestepas,apinturanaturalista,assimcomoopoetanaturalista,quaseummonstro.Ogosto exclusivo pelo Verdadeiro (to nobre quando limitado a suas verdadeirasaplicaes),nestecaso,oprimeesufocaogostopeloBelo.Ondeseriaprecisoverapenaso Belo (eu penso numa bela pintura, e podese facilmente adivinhar o que estouimaginando), nosso pblico busca apenas o Verdadeiro. Ele no artista, naturalmenteartistafilsofo,talvezengenheiro,amantedeanedotas instrutivas,tudoquesequeira,mas jamais espontaneamente artista. Ele sente, ou melhor, ju lga sucessivamente,analit icamente. Outros mais favorecidos sentem de imediato, de uma s vez,

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    analit icamente. Outros mais favorecidos sentem de imediato, de uma s vez,sinteticamente.

    Havia pouco, eu falava de artistas que buscavam surpreender o pblico. O desejo desurpreenderedesersurpreendidobastante legt imo. It isahappiness towonder, "afelicidadede ser surpreendido"mas tambm, it is ahappiness todream , " a felicidadede sonhar"[12]. Se for necessrio conferir o t tu lo de artista ou de amante das belasartes, a questo de saber por quais procedimentos se deseja criar ou sentir surpresa.Se o Belo sempre surpreendente, seria absurdo supor que o que surpreendente sempre belo.Ora, nosso pblico, que particularmente incapaz de sentir a felicidade dafantasia e da admirao (um sintoma das almas pequenas) quer ser surpreendido pormeiosestranhosarte,eosartistasobedientesseconformamaessegostoelesqueremchocar,causarespanto,pasmarporestratagemasindignos,porquesabemqueopblicoincapazdeseextasiardiantedatticamaisespontneadaverdadeiraarte.

    Nestes dias deplorveis, produziuse uma nova indstria que muito contribuir paraconfirmara idioticedafquenelasetem,eparaarruinaroquepoderiarestardedivinono esprito francs. Essamultido idlatra postulou um ideal digno de si e apropriado sua natureza, isso est claro. Em matria de pintura e de escultura, o Credo atual dopovo, sobretudo na Frana (e no creio que algum ouse afirmar o contrrio) este:"Creionanaturezae creio somentenanatureza (h boas razes para isso). Creio que aarteenopodeseroutracoisaalmdareproduoexatadanatureza(umgrupotmidoe dissidente reivindica que objetos de carter repugnante sejam descartados, como umpenicoouumesqueleto). Assim, omecanismoquenos oferecer um resultado idntico natureza ser a arte absoluta". Um Deus vingador acolheu as splicas desta multido.Daguerre foi seu Messias. E ento ela diz a si mesma: "Visto que a fotografia nos dtodas as garantias desejveis de exatido (eles crem nisso, os insensatos), a arte afotografia. A partir desse momento, a sociedade imunda se lana, como um nicoNarciso,contemplaodesuaimagemtrivialsobreometal.Umaloucura,umfanatismoextraordinrio se apodera de todos esses novos adoradores do sol. Estranhas aberraesse produzem.Associando e reunindo homens desajeitados emulheres desavergonhadas,afetados como os aougueiros e as lavadeiras no carnaval, pedindo a seus heris quecontinuemafazersuascaretasdecircunstnciapelotemponecessriotomada,elesselisonjeiam de oferecer cenas, trgicas e graciosas, da histria antiga. Algum escritordemocratadeveteravistoummodo,combaixocusto,derestitu iraopovoogostopelahistriaepelapintura,cometendoassimumduplosacrilgio, insultandoadivinapinturaeaartesublimedoator.Poucotempodepois,milharesdeolhosvidossevoltavamparaoorifciodoestereoscpio,comoumafrestaparaoinfin ito.Oamorpelaobscenidade,que to vivaz no corao natural do homem quanto o amor por si mesmo, no deixouescapar to bela ocasio para satisfazerse. E que no se diga que se trata de crianasque retornam da escola e encontram nessas besteiras seus prazeres pois elasdeslumbraramatodos.Euouviumabelasenhora,umamulherdaaltasociedade,nodamdia, responder queles que discretamente lhe escondiam imagens desse t ipo, zelandoporseupudor:Mostremetudo,nohnadademasiadoforteparamim.Juroterouvidoisso, mas quem acreditar? Veja voc que se trata de mulheres grandiosas! disseAlexandreDumas.Ehoutrasaindamaiores! disseCazotte.Como a indstria fotogrfica foi o refgio de todos os pintores fracassados, demasiadomaldotados ou preguiosos para acabar seus estudos, esse deslumbramento universalteve no somente o carter de cegueira e imbecilidade, mas tambm, a cor de umavingana.Que uma to estpida conspirao, dentro da qual, como em todas as outras,encontramos os perversos e os equivocados, possa vencer demaneira absoluta, eu noacredito, ou pelo menos no gostaria de acreditar mas estou convencido de que oprogresso mal aplicado da fotografia muito contribuiu, como alis todo progressopuramente material, para o empobrecimento do gnio artst ico francs, j to raro. AFatuidade moderna rugir forte, far roncar todas as flatulncias de sua obesapersonalidadevomitartodosossofismasindigestosqueumafilosofiarecentelheserviuatqueseempanturrasse,oquetornaevidentequeaindstria,irrompendosedentrodaarte, tornase suamaismortal in imiga, e que a confuso de funes impede que ambasrealizemseuspotenciais.Apoesiaeoprogressosodoisambiciososqueseodeiamdeumdioinstintivo,equandoseencontramnomesmocaminho,necessrioqueumsirvaaooutro. Se for permitido fotografia substituir a arte emqualquer umade suas funes,ela logo ser totalmente suplantada e corrompida, graas aliana natural queencontrar na tolice da multido. preciso ento que ela retorne ao seu verdadeirodever,queodeseraservadascinciasedasartes,amaishumildedasservas,comoaimprensa e a estenografia, que nem criaram e nem suplantaram a literatura. Que elaenriquearapidamenteolbumdoviajanteedevolvaaseusolhosaprecisoquefaltavaa sua memria, que ela ornamente a biblioteca do naturalista, amplie os animaismicroscpicos,oumesmo, que ela acrescente ensinamentos s hipteses do astrnomo,que ela seja enfim a secretria e o guardanotas de quem quer que precise, em suaprofisso, de uma absoluta preciso material, at a, nada melhor. Que ela salve doesquecimentoasrunasdecadentes,oslivros,asestampaseosmanuscritosqueotempodevora,ascoisaspreciosascuja forma irdesaparecerequepedemum lugarnoarquivode nossa memria, ela ter nossa gratido e ser ovacionada. Mas se lhe for permitidousurpar o domnio do impalpvel e do imaginrio, de tudo aquilo que apenas tem valorporqueohomemlheacrescentaalma,ento,quedesgraaanossa!

    Seiquemuitosmediro:Adoenaquevocacabadeexplicaraqueladosimbecis.Quehomemdignodonomedeartistaequediletanteverdadeiroconfundiuumdiaaarte comaindstria?Euseie,noentanto,perguntareiporminhavezseeleacreditanocontgioentre o bem e o mal, na ao das multides sobre o indivduo, e na obedinciainvoluntria, forada,do indivduomultido.Queoartistaaja sobreopblico,equeopblico reaja sobre o artista, uma lei incontestvel e irresist vel no mais, os fatos,terrveistestemunhos,sofceisdeconhecerpodemosconstatarodesastre.Diaadia,aarteperdeorespeitopor simesma, seprosternadianteda realidadeexterior, eopintorsetornacadavezmais inclinadoapintar,nooquesonha,masoquev.Entretanto,

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    setornacadavezmais inclinadoapintar,nooquesonha,masoquev.Entretanto,umafelicidadesonhar,umaglriaexprimiroquesesonha,masoquedirei?Vocaindaconheceessa felicidade?Afirmaroobservadordeboa fquea invasoda fotografiaeagrande loucura industrialnoestejam ligadas a esse resultado deplorvel? Ser possvelsuporqueumpovo,cujosolhossehabituaramaconsiderarosresultadosdeumacinciamaterial como produtos do belo, no ter, ao largo de certo tempo, particularmentediminuda sua faculdade de julgar e de sentir o que h de mais etreo e de maisimaterial?

    COMENTRIOS:

    1Vaudev ille umtipodecomdia teatra lpopular,surgidanaFranaemmeadosdosculoXVIII ,e quesedifundiupe lomundonosculoXIX.

    2Brutus, lcheCsar" umacomdiaescr ita por JosephBernardRosier,em1849.Apesarda aparente re ferncia histr ica do ttulo, Brutus , nessa pea, apenas um co quemordeumporte irochamadoCsar.

    3CitaoaoEvangelhodeMateus,Cap.XVII,V.17.

    4 Ttulo de uma obra de Ernest Se igneurgens, exposta no Salo. G ibe lotte um prato daculinr ia francesa,espcie defr icassdecoe lhopreparadocomv inhobranco.

    5 Baudela ire imagina ironicamente uma obra a legr ica com e lementos que aparecem emcertas representaes do Amor como personagem mtico (Cupido) : a a ljava, suporte emqueascarregaasf lechas,asase,porvezes,umavendaemseusolhos.

    6PeadeAugustvonKotzebue,de1790, tidopora lgunshistor iadorescomoprecursoradomelodrama.Baudela ire sere fere,provave lmente,litera lidadedaspa lavrasimplicadas.

    7 Baudela ire faz re ferncia aos cavale iros (por vezes chamados de paladinos) queacompanhavamCarlosMagnonascruzadas.Emseguida,ape laaChateaubriand,autorde "Ognio do cr istianismo" (1802) que, na contracorrente do iluminismo, busca resgatar o va lormorale estticodasaesligadastradioehistr ia docr istianismo.

    8 Pr imeira etapa de um pomposo cer imonia l de despertar do re i, envolvendo uma vastahierarquiadefuncionr iose sditos,querea lizamumaseqnciadepequenastarefas.

    9Figuraher ldicausadarecorrentementepararepresentardamonarquiafrancesa.

    10Nacartaenv iada aNadar em16/05/1859,Baudela ire tambmcomenta estas esculturascomempolgao,ape landoaoamigoparaquetentasseobterinformaessobreottulo.

    11QuadrodeFranoisAugusteB iard,sucessonoSalode1844.Cf.Roubert.

    12 As frases em ingls so extra das do conto "More lla", de Edgar A llan Poe. Com este"mas tambm", Baudela ire quer provave lmente dizer "mas no esqueamos tambm". Maisadiante, Baudela ire voltar a fa lar da "fe lic idade de sonhar", a seu ver, escassa em seutempo.