Medo na Mídia - uma visão distorcida da violência

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E BIBLIOTECONOMIA CURSO DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA RENATA DE SOUZA PRADO MEDO NA MÍDIA: UMA VISÃO DISTORCIDA DA VIOLÊNCIA. Goiânia 2006

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Monografia da minha conclusão do curso de Publicidade em 2006, em que relacionei a cultura do medo com o discurso apropriado pela mídia e tendo como pano de fundo os atentados terroristas de 11 de Setembro.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E BIBLIOTECONOMIA

CURSO DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA

RENATA DE SOUZA PRADO

MEDO NA MÍDIA:

UMA VISÃO DISTORCIDA DA VIOLÊNCIA.

Goiânia

2006

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RENATA DE SOUZA PRADO

MEDO NA MÍDIA:

UMA VISÃO DISTORCIDA DA VIOLÊNCIA.

Monografia apresentada à Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia, como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Publicidade e Propaganda, pela Universidade Federal de Goiás. Orientador: Prof. Dr. Magno Medeiros.

Goiânia

2006

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RENATA DE SOUZA PRADO

MEDO NA MÍDIA:

UMA VISÃO DISTORCIDA DA VIOLÊNCIA.

Folha de Aprovação

Monografia apresentada à Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia, como requisito

parcial para a obtenção do grau de bacharel em Comunicação Social, com habilitação em

Publicidade e Propaganda, pela Universidade Federal de Goiás.

Aprovado em ___ de ____________de _____

Banca Examinadora

__________________________

Orientador

Professor Dr. Magno Medeiros

__________________________

Professor convidado

__________________________

Professor convidado

Goiânia

2006

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A todos que fizeram do medo o maior entrave de uma vida feliz.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, amigo desde os tempos de Rádio e TV, paciente e

interessado em meu trabalho. Aos amigos, preocupados em me passar

nomes de livros e que me suportaram esse ano. Ao Eros, interessado

até demais, sempre cobrando capítulos e resultados. Ao Nivaldo, que

me comprou alguns livros e me distraiu quando foi preciso.

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“Não existe terror no estrondo, apenas na antecipação dele”.

Alfred Hitchcock

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RESUMO

Este trabalho trata da convergência de três pontos principais, mostrando como o medo da

violência é retratado pela mídia. Com o objetivo de mostrar que a violência vista na mídia

corresponde mais a uma tendência ao exagero nas estatísticas do que a verdade em si,

causando medo exacerbado dos crimes – manipulação dos fatos essa fruto de interesses de

quem comanda as redes de televisão e também do governo – surgiu a proposta de uma

reflexão sobre alguns casos. Foram utilizadas amostras da programação televisiva de dois

países, Estados Unidos e Brasil, pela expressiva presença tanto de uma cultura do medo e da

violência, quanto a ocorrência desta em si, representada em cada país de uma forma diferente.

Nos Estados Unidos, o enfoque é nos noticiários e propagandas em geral, depois do período

de 11 de Setembro, em que um ataque terrorista mudou o enfoque da mídia para esse tipo de

violência. No Brasil, o enfoque é para a violência urbana, mais particularmente à forma como

é vista a questão das armas de fogo num referendo realizado no ano de 2005, além de um caso

recente envolvendo o crime organizado. Nos dois casos, verifica-se que é predominante a

visão de uma ideologia do medo, com a simples transmissão de informações, em ritmo

acelerado e exagerado, fazendo crer que a ocorrência da criminalidade é maior do que a

realidade mostra, causando grande insegurança na população. Por trás dessa visão, figuram

elementos de poder, já que a situação em geral é geradora de alienação. Esta por sua vez, faz

com que não haja um debate efetivo, e não exista principalmente envolvimento da sociedade

com um problema do qual ela própria é vítima e responsável. O medo acaba por não dar

espaço para um caminho de saída, que é a discussão e a proposição de reformas que

diminuiriam os índices de violência e intolerância.

Palavras-chave: medo, cultura, política, sociedade, Brasil, Estados Unidos, mídia, televisão,

noticiários, propaganda, ideologia, armas de fogo, terrorismo.

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ABSTRACT

This work is about the covergence of three principal matters, showing how the fear of

violence is pictured by the media. With the purpose to show that the violence seen in media

corresponds more to a tendency to exaggeration than the reality itself, causing exacerbated

fear of crimes – manipulation of facts itself consequence of interests of who is in charge of

television networks and also the government – built the purpose of a reflection over some

cases. It’s been utilized samples of television schedule of two countries, United States and

Brazil, by the massive presence of a culture of fear and violence, as much as the ocorrency of

this one, represented in each country by different ways. In the United States the focus is in the

news and advertisement in general, after the period of September 11th, when a terrorist attack

changed the way that the media sees this kind of violence. In Brazil, the focus goes to urban

violence, more specifically in how the firearms issue was seen in a referend occured in the

year of 2005, and a recent case evolving organized crime. In both cases, is verified a

predominant vision of a fear ideology, with simple transmission of information, in an

accelerated and exagerated rythm, making believe that the occurency of criminality is bigger

than the reality shows, causing great unsafeness in population. Beyond this vision, figure

elements of power, since the situation in general causes alienation. This, by its turn, makes

that doesn’t exist an effective discussion, and there isn’t an envolvment of society with a

problem that itself is a victim and responsible at the same time. The fear ends by not giving

space for a way out, which is the discussion and the proposal of reforms that would decrease

the numbers of violence and intolerance.

Key-words: fear, culture, polithics, society, Brazil, United States, media, television, news,

propaganda, ideology, firearms, terrorism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................9

1 O DESVENDAR DO MEDO........................................................................................ 12

1.1 COMO O CORPO REAGE AO MEDO....................................................................... 13

1.2 DIFERENTES TIPOS DE MEDO............................................................................... 14

1.3 SUBJETIVANDO O MEDO........................................................................................ 16

1.4 MEDO E VIOLÊNCIA................................................................................................ 18

1.4.1 Um capítulo especial na violência: o terrorismo...................................................... 20

2 A HISTÓRIA COMEÇA NA CULTURA ..................................................................... 23

2.1 AMERICAN WAY OF LIFE PARA O MUNDO........................................................... 24

2.2 CULTURA DA POBREZA E DA DIFERENÇA........................................................... 28

3 MÍDIA TELEVISIVA: QUEM MANDA AFINAL ...................................................... 32

3.1 NOTICIÁRIOS E PROPAGANDA NA TV ................................................................... 35

3.2 MÍDIA E VIOLÊNCIA ................................................................................................ 38

3.3 COMO FUNCIONA LÁ E COMO FUNCIONA AQUI ................................................ 39

4 VIOLÊNCIA URBANA E GLOBAL: ARMAS DE FOGO E TERRORISMO ............ 43

4.1 TRAGÉDIA AMERICANA EM 11 DE SETEMBRO .................................................... 45

4.2 BRASIL: GUERRILHA URBANA ............................................................................... 50

4.2.1 A grande questão das armas de fogo: sim ou não? .................................................. 52

4.2.2 PCC: terrorismo ou guerrilha? ............................................................................... 57

CONCLUSÃO ................................................................................................................. 60

REFERÊNCIAS.............................................................................................................. 63

ANEXOS ......................................................................................................................... 66

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INTRODUÇÃO

A idéia inicial desta monografia surgiu há mais ou menos dois anos, em decorrência

do cenário político mundial. Muito se fala em cultura do medo, e como os Estados Unidos

representavam bem esse papel. Depois dos ataques terroristas de 11 de Setembro, em Nova

Iorque e Washington, a nação se sentiu frágil perante tal forma de violência. Mais

impressionante foi o papel da mídia perante o fato, quando o assunto em todos os noticiários,

não apenas locais, mas mundiais, era um só: o medo. Interessante foi verificar também a

manifestação dessa cultura disseminada pela mídia também no Brasil, e que, depois do ano de

2001, ano em que ocorreram os ataques, ficou mais explícito.

A tendência geral era responsabilizar a mídia pelos medos auferidos, e usá-la para

disseminar informações e alavancar a opinião pública a respeito disso ou daquilo. Mas, a

partir de algumas leituras iniciais e algumas análises, percebia-se que agir de tal forma era

agir de acordo com o senso comum. Isso porque se começa a perceber que, por trás de mídia,

sempre há política e interesse, principalmente se o assunto em foco é a violência, fenômeno

social que mais atrai público aos meios de comunicação. Um produtor de uma rede de TV dos

Estados Unidos, perguntado se preferia fazer uma reportagem sobre um afogamento ou um

homem armado aterrorizando a vizinhança, não pensou um segundo em preferir a segunda

opção.1

A partir daí surgiu o interesse em atestar essa presença da cultura do medo na mídia

num caso óbvio, que seria o dos Estados Unidos, e de um caso menos aclamado, porém

recorrente, que seria o do Brasil. Cada um sofre em seu momento histórico atual um tipo

diferente de violência, mas pode-se perceber uma certa semelhança no enfoque que a

televisão dá a cada caso, e a reação da população a isso tudo, principalmente quando se

começa a levar em conta a veracidade destes fatos, que é quando surge a dúvida principal, que

é o desejo de determinar se tais informações que a TV passa obedecem a qual nível de

verossimilhança, e aos interesses de quem essa mídia está submetida. O medo e as estatísticas

da criminalidade estão de acordo com a realidade? No que isto afeta os cidadãos?

A reflexão proposta para o desenvolvimento desta monografia é um tema urgente, que

deve ser avaliado sob um ângulo científico, e à luz não apenas de senso comum ou do que os

governantes acham que é melhor para sua nação. Valores como liberdade do indivíduo, de

expressão, direito à privacidade, estão cedendo lugar a um estado de vigília doentio, big

1 Trecho do documentário Tiros em Columbine, do diretor Michael Moore, 2001, Dog Eat Dog Productions.

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brothers que nos espionam a cada passo. Já não se pode mais sair para a noite com os amigos,

ou jantar com a namorada com a mesma paz de outrora, não porque a violência está em todos

os lugares e horários, mas o medo dela dificilmente nos abandona.

Sobre a questão americana, já existe uma grande quantidade de material escrito, mas

nem tudo se abriga na claridade de uma visão científica coerente e nítida, muitas vezes se

baseando em senso comum, ou se tratando de meras críticas ao governo daquele país. No

Brasil, os dados da violência são poucos e não há quase incentivo principalmente às pesquisas

de vitimização, responsáveis pelo fornecimento de números confiáveis sobre a violência

urbana. Abrindo caminho para esse tipo de discussão, acredita-se estar estimulando não só a

produção de dados atuais, mas também convidando sociedade, e num plano mais distante, a

mídia a reflexões mais profundas, que busquem efetivamente uma solução viável e eficiente

para a violência, que é um problema tão grave no país.

A busca pela verdade no discurso da televisão torna-se muito importante à medida em

que esta é extremamente importante como instrumento formador de opinião. Aqui, deve-se

levar em conta que cada telespectador é diferente, tem vivências próprias, e reterá cada

informação de maneira diversificada. Mas ao mesmo tempo, deve-se levar em consideração

também o fato de que a maioria da população que assiste à televisão possui renda mais baixa e

não possui muito estudo, fatores que vulnerabilizam o espectador e o deixam mais suscetível à

manipulação. Muitas vezes, esse público pode estar sentindo medo de uma violência que nem

sequer chega perto da realidade, e para manter a liberdade de cada cidadão, é extremamente

necessário desmascarar estatísticas.

Parte-se então para a delineação dos objetos de estudo para que se cheguem a

conclusões plausíveis, e para isso é bastante importante trabalhar com a abrangência exata,

para que haja coerência nos resultados. Não é possível trabalhar exatamente com a mesma

amostra de violência no Brasil e nos Estados Unidos, pois estes são países que se encontram

em momentos históricos bastante diferentes, cada um com suas particularidades sociais e

econômicas, inclusive com manifestações de violência diferentes, e modelos de mídia

televisiva diferentes. O ponto em comum será a abordagem comunicacional, que, nos dois

casos, estará voltada para a televisão, mais especificamente os noticiários e a propaganda.

Nos Estados Unidos, principalmente por causa dos últimos acontecimentos

envolvendo a data do 11 de Setembro, o terrorismo será a manifestação de violência

abordada. Os medos dos cidadãos norte-americanos geralmente envolvem vários aspectos da

violência, mas para uma análise eficaz e concisa, esse será o prisma escolhido. A partir da

observação de alguns noticiários e propagandas americanas referentes ao terrorismo, poderá

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ser percebido como o medo é infligido aos cidadãos, e quem está nos bastidores de tal

produção de informação. Comparativamente, o Brasil não sofreu ameaças recentes de

terrorismo, portanto aqui será traçado um paralelo somente com relação às medidas tomadas

logo após os atentados de 11/9, das quais algumas acabaram sendo implantadas aqui.

Com relação ao Brasil, que sofre mais com a violência urbana traduzida em assaltos,

homicídios e outras formas ainda, o enfoque estará voltado para a questão das armas de fogo.

O ponto de partida principal será a campanha de propaganda pela frente parlamentar que

apóia a posse e o porte de armas de fogo no referendo realizado em 2005 sobre a decisão de

comercializar ou não armas de fogo, ou como era mais conhecida popularmente, a “campanha

do não”. Ver-se-á como as técnicas de persuasão de tal campanha buscaram atrair votos por

recursos que incitaram o medo na população. Eventualmente poderão surgir casos de

cobertura jornalística do referendo, mas todos serão meramente complementares. À parte, será

analisada também a recente cobertura da mídia televisiva referente à organização criminosa

da cidade de São Paulo, conhecida como PCC, Primeiro Comando da Capital, e como não só

a mídia, mas a própria organização foi capaz de transformar a rotina de uma cidade no que se

refere ao medo.

O objetivo principal deste trabalho, então, é tecer uma análise a respeito da violência

em cada um dos casos, de acordo com a sua respectiva abordagem na televisão. Cada

elemento observado à parte, poderá dar uma direção sobre qual caminho tomar na caminhada

rumo à proposição de estratégias eficazes no combate à violência. Não se sabe ao certo definir

quem são os verdadeiros culpados, e quem deve agir em prol da proteção da sociedade com

relação ao medo, mas quanto mais esta se encontrar próxima da verdade, mais segura ela

poderá estar de suas próprias convicções a respeito da violência.

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1 O DESVENDAR DO MEDO.

“Don’t want to be an American idiot. Don’t want a nation under the new media.

Can you hear the sound of hysteria? The subliminal mind fuck America”.

(American Idiot – Green Day)1

O medo é um dos sentimentos latentes no homem, assim como prazer, amor e vários

outros com os quais ele já nasce. Motivado principalmente por situações de risco, dá aos seres

vivos, não apenas humanos, condições de se protegerem contra qualquer ameaça que abale

sua integridade física e/ou psicológica. Necessário à sobrevivência enquanto instinto, é

ridicularizado pela sociedade, que reserva a covardia para punir aqueles que não são capazes

de lidar com o sentimento.

O historiador francês Jean Delumeau, que trata da história do medo, e mais

especificamente de sua manifestação no período da Idade Média, mostra a dificuldade que a

sociedade sempre teve em apresentar o medo por meio de sua história, sempre o subjugando

aos pobres e fracos, e disfarçando-o sob o escudo do heroísmo para não ridicularizar nobres,

fidalgos e toda a gente pertencente a uma estirpe mais bem sucedida:

“Por que esse silêncio prolongado sobre o papel do medo na história? Sem dúvida, por causa de uma confusão mental amplamente difundida entre medo e covardia, coragem e temeridade. Por uma verdadeira hipocrisia, o discurso escrito e a língua falada – o primeiro influenciando a segunda – tiveram por muito tempo a tendência de camuflar as reações naturais que acompanham a tomada de consciência de um perigo por trás das falsas aparências de atitudes ruidosamente heróicas.” (DELUMEAU, 1996, p. 13)

1 “Não quero ser um americano idiota./ Não quero uma nação sob o controle da nova mídia./ Você pode ouvir o som da histeria?/ A mente subliminar acaba com a América.” (Tradução da autora) – American Idiot, música do grupo americano Green Day que faz crítica à cultura histérica e alienada dos Estados Unidos.

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Mas o medo é fato, e por várias razões, desde o perigo que um animal peçonhento

representa a uma criança, quanto ao terror causado por homens-bomba, as pessoas se

previnem de alguma forma. Ainda citando Delumeau (1996, p. 12), quando descreve as

proteções utilizadas nas cidades antigas em que “quatro grossas portas sucessivas, uma ponte

sobre um fosso, uma ponte levadiça não parecem excessivas para proteger contra qualquer

surpresa uma cidade de 60 mil habitantes”, vemos muita semelhança com os dias atuais, em

que pessoas urbanas se trancam em condomínios fechados, com guaritas, seguranças armados,

cães e qualquer espécie possível de proteção; e constatamos que tudo isso é fruto do medo.

A mitologia também tem tratado do medo, e uma das histórias vem do povo hindu:

“No princípio este universo não era nada senão o Si-próprio na forma de um homem. Ele olhou em volta e viu que não havia nada além de si mesmo, de maneira que seu primeiro grito foi: ‘Sou Eu!’, e daí surgiu o conceito ‘eu’. Então ele teve medo. Mas considerou: ‘Como não há ninguém aqui além de mim mesmo, o que há para temer? Em conseqüência disso o medo desapareceu” (UPANISHADS, 1987, p. 33-34)

Este é um mito da origem do mundo segundo os upanishads, livro sagrado dos hindus.

O Si-próprio se refere ao conceito de self de que o pensamento junguiano tratava, ocorrendo

então a separação do ego ao todo, e por isso o medo, pois quando há esta separação o homem

se sente desprotegido, e logo tem medo.

1.1 COMO O CORPO REAGE AO MEDO

O susto e todas as manifestações ligadas ao medo desencadeiam no corpo humano

reações físicas e psicológicas que variam a cada indivíduo. Reafirmando, o medo é

necessidade, é um dentre vários fatores essenciais para a sobrevivência humana. Segundo

Michel Echenique Isasa (2006), “o medo é uma interrupção súbita do processo de

racionalização”, portanto não há formas de que alguém haja normalmente quando está com

medo. As pupilas se dilatam, ocorre uma grande descarga de adrenalina, que deixa o corpo

preparado para a fuga ou para o combate. Mas, ainda assim, o medo não é a reação em si, e

sim o alerta de que algo não vai bem. Justamente por isso, o medo se transforma em algo

dúbio, que ao invés de livrar do perigo, age como armadilha, que conduz no sentido contrário,

de colocar a vida em risco.

Para melhor entender essa dicotomia, o autor afirma que “o medo como sensação é

uma parada súbita de todos os processos de motivação, ou seja, além de interromper os

processos de racionalização, o medo cria uma parada súbita da motivação” (Ibid., 2006). Aí

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reside o perigo de reagir incorretamente ao medo, já que nesta entrega, a pessoa não se sente

motivada a lutar por sua vida, e com tantos bloqueios hormonais e psicológicos, ela é vencida

pelo medo. Exemplo disso, foi quando, no ataque terrorista de 11 de Setembro nos Estados

Unidos, pessoas se jogavam pelas janelas do World Trade Center, numa entrega à morte,

inconscientes de que o ato que praticavam não lhes traria sobrevivência.

Reafirmando o medo como sensação, e não como reação, Delumeau (1996, p.23) diz:

“No sentido estrito e estreito do termo, o medo (individual) é uma emoção-choque, freqüentemente precedida de surpresa, provocada pela tomada de consciência de um perigo presente e urgente que ameaça, cremos nós, nossa conservação. Colocado em estado de alerta o hipotálamo reage por uma mobilização global do organismo, que desencadeia diversos tipos de comportamentos somáticos e provoca sobretudo modificações endócrinas. [...] Essa descarga é em si uma reação utilitária de legítima defesa, mas que o indivíduo, sobretudo sob o efeito das agressões repetidas de nossa época, nem sempre emprega com discernimento.”

Pode ser um bocado difícil, mas as pessoas que assumem o medo acabam sempre

agindo da forma mais correta, e para ilustrar, um assalto de carro à mão armada torna-se um

bom exemplo. Tem muito mais chances de sair ilesa a vítima que se mantém calma, não reage

e obedece às ordens do assaltante. Freqüentemente visitam as manchetes de jornais, notícias

de indivíduos que, desesperados, gritaram, choraram ou reagiram de qualquer forma, e por

isso, pagaram com a própria vida, fugindo de maneira irracional do medo que os assolou

naquele momento.

“Essas atitudes destoam completamente do chamado ‘instinto de sobrevivência’, e isso não é pelo medo, e sim porque as pessoas querem fugir dele. O desejo que temos quando acontece um fenômeno desse tipo é que alguém nos pegue no colo e que não sintamos mais nada. Nessas situações, as pessoas querem fugir e, por isso, acabam fazendo tolices. Em contrapartida, as pessoas que assumem o medo, mas o assumem conscientemente, acabam fazendo as coisas certas. As maiores causas de acidentes e de mortes é o comportamento que temos perante o medo, e não ele em si.” (ISASA, 2006)

1.2 DIFERENTES TIPOS DE MEDO

Fobias, pânicos, angústias, síndromes, são formas de classificar determinados medos.

Se existem muitos fatores que ameaçam a integridade de um indivíduo, então é normal que

vários “medos” também se manifestem. Alguns são mais importantes para o estudo da

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violência, e são estas definições a que este tópico se aterá. É importante considerar também

uma escala crescente da manifestação do medo, do indivíduo para a sociedade.

Nem todos os medos são justificáveis, como por exemplo, as fobias, que são medos

“exacerbados, desproporcionais e não justificados em relação a um objeto, como por exemplo,

o medo de centopéia, de água, de lugares altos, fechados, abertos (agorafobia), de automóveis,

de trânsito, de dirigir, etc.” (SILVA, 2006). As fobias geralmente nascem de grandes

situações de stress, traumas, ou ainda quando uma pessoa se depara pela primeira vez com o

desconhecido, e são perfeitamente tratáveis. O pânico é semelhante em escala às fobias, com a

diferença de que o objeto do qual se sente medo simplesmente não pode ser identificado, e

pode ser tratado com terapia ou medicamentos. Ainda segundo Silva (Ibid.):

“Este estado emocional desencadeia uma série de sintomas corporais indicando que um grande perigo invisível se aproxima: o medo paralisante, a transpiração excessiva, taquicardia, ‘acessos de angústia tão intensos que dão freqüentemente ao sujeito a viva impressão de estar morrendo ou enlouquecendo, ainda que lhe pareçam estranhos e inexplicáveis em relação às circunstâncias de sua vida psíquica consciente’.”

Distingue-se ainda o medo da angústia, outrora tidos pela psicologia clássica como a

mesma coisa. Reações mais imediatas e de curta duração dizem respeito mais freqüentemente

ao medo, como temor, pavor, espanto, terror; e sensações mais persistentes como melancolia,

ansiedade e inquietação, correspondem à angústia. Novamente aqui, como no caso das fobias

e dos pânicos, o primeiro corresponde ao que se confronta e nomeia, e o último, ao

desconhecido, tornando-a mais difícil de suportar. Também distinguem-se pela persistência de

um levar a outro, quando o excesso de medo leva à angústia, e esta leva a males maiores,

como à neurose e à psicose. Diz Delumeau:

“Medos repetidos podem criar uma inadaptação profunda em um sujeito e conduzi-lo a um estado de inquietação profunda gerador de crises de angústia. Reciprocamente,um temperamento ansioso corre o risco de estar mais sujeito aos medos do que um outro.” (1996, p.25)

Todas essas definições de medos diferentes se aplicam inicialmente a uma escala

individual, considerando cada organismo separadamente. Mas também não se pode excluir os

medos coletivos, em que esse agrupamento de indivíduos gera medos maiores, grupais, e que

podem tender a tomar de conta de grande parte de sociedades, até mesmo de várias delas

inteiras. A autora Luzia Fátima Baierl (2004, p. 20) intitula esse comportamento de “medo

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social” e o associa à violência urbana principalmente, e no qual podemos claramente

vislumbrar essas definições de medo, do que é tangível, e do que é desconhecido:

“A violência urbana tem ampliado o que denominamos medo social. Medo esse construído socialmente e que afeta a coletividade. Trata-se do medo utilizado como instrumento de coerção por determinados grupos que submetem pessoas aos interesses deles.[...] Ameaças reais, vindas de sujeitos reais, são contrapostas a ameaças potenciais típicas do imaginário singular coletivo, produzido pelos índices perversos do crescimento da violência nas cidades.[...] Os sentimentos generalizados são de insegurança, ameaça, raiva, ódio, medo e desesperança”.

1.3 SUBJETIVANDO O MEDO

O medo tem várias formas de entendimento, não apenas como instinto de

sobrevivência e reações químicas e físicas corporais. Num plano filosófico, o medo deve ser

considerado paixão, pelo fato de dar sentido à existência da alma, assim como outras paixões.

Objeto de estudo de autores como Kierkegaard, que o abordou como desespero humano, e

também Espinosa, num de seus cadernos Ethica, esteve presente em obras famosas como

Macbeth e Otelo, de Sheakspeare, e vários outros ainda que o consideraram como paixão, e

que com isso mostraram um pouco dos efeitos do medo na alma e na psique humanas.

Nas contradições filosóficas, o medo se opõe à coragem, conflitando aí, segundo

Marilena Chauí (1995), as paixões alegres e as tristes, que se contrabalançam. Mas conforme

dito anteriormente, mesmo no plano filosófico, o medo não é uma finalidade, e sim uma

causa, e está associada ao mal, que causa o medo. Este gera sentimentos, entre eles a culpa,

tão perigosa para o indivíduo, quando há deslocamento. O mal externo, quando há reflexão,

desloca-se para o interior, para que o indivíduo tenha medo de si mesmo e personifique o mal,

gerando culpa e loucura.

Na externalização do medo, ocorre também deslocamento para os outros, de quem se

passa a ter medo. A paixão oposta nesse caso é a segurança, que se identifica com a “ordem e

suscita o pavor quanto a tudo que pareça capaz de destruí-la internamente” (CHAUÍ, 1995,

p.41), e continua sendo ambígua pelo fato de gerar reações tão distintas, quando o indivíduo

geralmente age ao contrário do que deveria, e numa nova releitura, segundo a autora opondo o

medo não à coragem, mas à prudência.

Corroborando o fato de que são as paixões que movem a alma humana, Marilena

Chauí faz uso de algumas teorias de Espinosa, que classificam o medo como paixão, e que

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estas em maior ou menor intensidade, ampliam ou diminuem a capacidade de existir do corpo

e da alma:

“Ódio, medo, inveja, ambição e remorso são, talvez, as emoções mais violentas e agitadas que experimentamos, mas porque são paixões nascidas da tristeza, são também os afetos mais enfraquecedores do conatus (direito natural). Ontologicamente, portanto, as paixões mais fortes virão da alegria enquanto as mais fracas se originarão da tristeza”. (Idem, p. 55)

Paixão triste, o medo então nunca poderá ser extinto, podendo ser apenas diminuído

pela presença de outras paixões, maiores a ele. Da condição de mortal do homem, e dessa

interdependência de outras paixões, o medo nasce de forma articulada, nascendo o que a

autora chama de “sistema do medo”. O funcionamento deste sistema baseia-se na existência

do medo, de seus opostos e das conseqüências geradas para a alma humana. A esperança

contrapõe-se ao medo, mas os dois são sentimentos provenientes de situações incertas. O

desenrolar de tais sensações gera desespero, no caso do medo, e segurança, no caso da

esperança, mas neste caso, não restam mais dúvidas. Estas duas paixões vêm como

conseqüência quando há a certeza da ocorrência de algo. E por fim, advêm o remorso e o

contentamento, que também se relacionam com medo e esperança, mas com relação a algo

que aconteceu no passado, inesperadamente. No caso particular do remorso, remontamos ao

deslocamento que causa a culpa, e que personaliza definitivamente o mal no indivíduo.

O sistema do medo não se refere então ao presente, mas a algo que ficou no passado,

ou a expectativas do que ocorra no futuro, sendo constituído o presente de paixões passadas e

futuras, e que gera crenças e vícios mortais na mobilização das paixões, como por exemplo, a

superstição associada à alienação, e conseqüentemente, segundo o conceito de Marilena

Chauí, em outra de suas obras, ideologia (CHAUÍ, 1991). Diz ainda Espinosa (1822 apud

CHAUÍ, 1995, p.61) que “tão grande é o medo que ensandece os homens. A origem da

superstição, que a alimenta e conserva é, pois, o medo”.

Depois de um entendimento sobre as manifestações físicas e psíquicas do medo, torna-

se necessário entendê-lo como instrumento, que altera personalidades, produz reações em

massa, e principalmente, é objeto de controle, se considerarmos o medo social. Este, na

maioria das vezes quando provoca inibições e paralisações no indivíduo, impede-o de pensar,

e principalmente de tomar providências. Isso deixa o agressor numa posição muito vantajosa,

em que a vítima estará plenamente suscetível a seus comandos. Ou em caso contrário, quando

o medo provoca reações racionais, pode ser um instrumento de mudança e revolução,

servindo de incentivo e motivação para conseguir algo em favor da sobrevivência.

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18

Essa fabricação do medo no plano social é inevitável e vital para a construção das

sociedades, segundo Delumeau:

“Porque é impossível conservar o equilíbrio interno afrontando por muito tempo uma angústia incerta, infinita e indefinível, é necessário ao homem transforma-la e fragmentá-la em medos precisos de alguma coisa ou de alguém. ‘O espírito humano fabrica permanentemente o medo’ para evitar uma angústia mórbida que resultaria na abolição do eu. É esse processo que reencontraremos no estágio de uma civilização. Em uma seqüência longa de traumatismo coletivo, o Ocidente venceu a angústia ‘nomeando’, isto é, identificando, ou até ‘fabricando’ medos particulares”. (1996, p. 26)

1.4 MEDO E VIOLÊNCIA

Além disso, e logicamente, o medo está intrinsecamente ligado à violência. Esta pode

dizer respeito a vários tipos de atitude, dependendo de fatores jurídicos, sociais, variando

também de comunidade a comunidade. A mais abrangente definição de violência vem do

autor Yves Michaud (1989, p. 10-11):

“Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais”.

Passando agora ao contexto urbano, a sociedade está cada dia mais amedrontada com

assaltos, assassinatos, seqüestros, estupros e várias outras formas de agressão ao indivíduo e à

coletividade. Estando estes dois elementos desta maneira atados, relaciona-se facilmente o

medo também à agressividade, um dos “componentes” emocionais dos seres humanos.

Freud, na década de 20, já tratava do assunto ao introduzir o conceito de instinto de

morte na obra “Além do princípio do prazer”, e vários outros autores a citam como uma

característica “inata em todo o reino animal” (LORENZ 19[?] apud DELUMEAU, 1996,

p.27). Freud trata, mais especificamente, das pulsões de vida opostas às pulsões de morte,

ligadas ao superego e ego, convivendo num eterno contrabalanceamento necessário para a

sobrevivência e a afirmação do indivíduo na sociedade. Mais ainda, alguns autores defendem

a idéia de que a linha divisória entre humanidade e bestialidade é extremamente tênue, como é

o caso de Muniz Sodré e Raquel Paiva (2002):

“É partindo da analogia platônica entre homens e animais com e sem chifres que Sloterdijk descreve o processo civilizatório como uma lenta extirpação dos chifres

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19

(simbolização da natureza selvagem ou animalesca) rumo a uma domesticação que, levemente arranhada, exporia uma subcutânea animalidade. Daí, sua insistência a respeito do fenômeno da monstruosidade como característico da humanidade atual, citando o apocalipse atômico e as experiências genéticas”.

Isso também fica claro na seguinte seqüência:

“Nesta figuração (as regras sociais abandonadas pelo homem) – no limite, uma fantasia de reversibilidade entre homem e bicho – torna-se tensa a zona de fronteira entre humanidade e animalidade. O corpo investe-se de uma lógica própria, que não coincide em termos absolutos com os ditames do espírito, elaborados pelas regras culturais. [...] capaz de redundar em crueldade – característica ao mesmo tempo humana e animal. Derrida é taxativo a respeito: ‘A crueldade não é exclusiva do homem, como se costuma afirmar. Um animal pode ser cruel. Onde há vida, há crueldade. A crueldade é constitutiva da vida, do amor.’.”2 (Ibid., p. 61-62)

A violência e a agressividade seriam então inerentes ao homem, sendo parte de suas

vidas, e até sendo algo em que eles sentem certa quantidade de prazer, e aí relacionando isso

ao medo surge o conceito que alguns psiquiatras nomeiam de objetivação, em que o homem

não sendo vítima da violência, contenta-se com a posição de observador, ou como observa

Delpierre (19[?] apud DELUMEAU, 1996, p. 30), “o homem [...] encontra prazer em

escrever, ler, ouvir, contar histórias de batalhas. Assiste com certa paixão às corridas

perigosas, às lutas de boxe, às touradas. O instinto combativo deslocou-se para o objeto”.

Num contexto social, fica clara essa associação entre medo e violência, a partir dos

momentos que novas formas de sociabilidade são criadas, levando a conseqüências como o

isolamento, e várias outras modificações no comportamento de indivíduos, comunidades e

outros grupos. A agressividade neste caso está diretamente ligada ao grau de segregação,

marginalização e privação dos indivíduos, situações traduzidas em pobrezas, carências,

convívio familiar arruinado e outros fatores desagregadores. Essa ligação de violência a medo

cria também ações discriminatórias ineficientes no combate à violência nas grandes cidades,

como a segregação em favelas, e a grande disparidade econômica e social criando medo de

alguns grupos por outros.

“A estrutura arquitetônica da cidade é alterada. As pessoas constroem prisões para proteção e defesa da vida e de seu patrimônio. Criam-se desde os mais simples até os mais sofisticados sistemas de segurança e de proteção de patrimônios e da própria vida: desde altas tecnologias, blindados, sensores eletrônicos, câmeras escondidas que vigiam espaços, até o conjunto de seguros de casa, carro e de vida. A população mais empobrecida, moradora dos bairros periféricos e das favelas, para proteger-se e defender-se, dá carta branca aos grupos organizados e quadrilhas vinculadas ao

2 DERRIDA, 2001 apud SODRÉ; PAIVA, 2002, p. 62.

Page 21: Medo na Mídia - uma visão distorcida da violência

20

mundo da contravenção e ao tráfico de drogas em troca de segurança e proteção.” (BAIERL, 2004, p.62)

Na esfera social, é impossível a extirpação da violência, pois é uma característica

existente no homem, independentemente de quaisquer fatores, e segundo alguns autores,

inclusive necessária para o desenvolvimento social do homem. Estudos mostram que “a

realidade cotidiana da violência difere sensivelmente das representações que fazemos dela e

dos discursos ideológicos ou míticos que sustentamos sobre ela” (MICHAUD, 1989, p.98)

Todo esse comportamento reflete como se reage perante o medo da violência, sem que

efetivamente se faça algo útil a respeito. Relembrando o que foi dito anteriormente sobre a

imprudência perante o medo, a sociedade corre para o lado contrário do que deveria, como

realça Isasa (2006):

“Nossa cultura não só não nos preparou para enfrentar o medo, mas também nos ensinou a ter medo dele, e, por isso, reagimos mal. Por um processo cultural diferente, nós encararíamos o medo de uma forma diferente e teríamos reações naturais. Essas reações naturais trabalham a favor do instinto de sobrevivência, tanto do corpo quanto da mente, como também da psique humana.”

1.4.1 Um capítulo especial na violência: o terrorismo

De cinco anos para cá, virou o assunto do momento. Vários livros foram lançados,

entrevistas foram concedidas, e só a menção da palavra causa furor na população civil. Toda a

euforia é justificável, já que um dos maiores atos terroristas – a destruição das torres do World

Trade Center, na cidade de Nova Iorque – ocorreu. Ao contrário do que muitos pensam, a

intimidação pelo terror não é novidade, e acontece no mundo pelo menos desde a Revolução

Francesa, num período em que a monarquia decidiu amedrontar os revolucionários sans-

cullottes.

Particular forma de violência, enquadrada por Yves Michaud (1989) entre outras

formas de agressão, juntamente com o “poder de cima”, responsável principalmente pela

manutenção da ordem, o terrorismo encontra várias definições, que variam segundo muitos

aspectos, um deles a ideologia e os interesses de quem se manifesta. Para simplificar, o que

pode parecer um ato terrorista no Brasil, pode ser um ato de defesa de soberania para os norte-

americanos. Uma definição interessante e neutra do termo parte do autor Noam Chomsky

(2003, p.72-73), como sendo o terrorismo “o uso deliberado da violência ou a ameaça do seu

Page 22: Medo na Mídia - uma visão distorcida da violência

21

uso para atingir objetivos de natureza política, religiosa ou ideológica através da intimidação,

coerção ou pela implantação do medo”.

O terrorismo é, sem dúvida, a maneira mais radical de reivindicação e de atração da

opinião pública, e seja em atos isolados ou numa grande catástrofe, é sempre inegável o seu

efeito político, ideológico, econômico e ainda em outras tantas áreas. A maior novidade

acerca desta forma de violência é a proporção que tem tomado ultimamente, com tantos novos

recursos à disposição, como armas químicas e biológicas de destruição em massa letais, e

armas de fogo e explosivos de todas as maneiras que se possa imaginar, gerando um

verdadeiro “marketing da guerra”, com efeitos devastadores, como a “atomização do campo

social, o desaparecimento da vida pública, a desconfiança e o medo entre os cidadãos, o recuo

angustiado sobre si mesmo.” (MICHAUD, 1989, p.58).

Antes, com ataques tímidos, agora, com número tão grandes de vítimas, o que

preocupa é justamente o caráter de fanatismo que o movimento terrorista, principalmente nos

países árabes adquiriu. O que assusta é principalmente o fato de esta ser uma guerra travada

sem fronteiras definidas, e o fator-surpresa como principal causador de medo na população.

Não se sabe o que e onde será o próximo alvo, e mais, os civis agora participam da guerra

como as principais vítimas. Numa entrevista, a especialista americana Martha Crenshaw

(2006, p.101) descreveu bem esse sentimento:

“O que preocupa é a existência de um sentimento jihadista mais amplo, mais emocional do que político, baseado em um desejo de provocar muitas mortes sem se interessar pelas consequências. A origem desse sentimento está na busca por vingança como uma forma de superar a humilhação que alguns muçulmanos sentem em países ocidentais”.

Prova de que a postura tanto do terrorismo quanto do terrorista mudou é a afirmação

que Yves Michaud (1989, p. 33) faz, e que hoje é perfeitamente contestada, de que “os

terroristas tem tão pouca vontade de morrer quanto suas vítimas”. Hoje o que se vê são

homens-bomba fanáticos, por quem a causa e os fins justificam a morte plenamente. A

lavagem cerebral que acomete esses indivíduos é chamada por Roque Theophilo (2006) de

contágio mental, que consiste num “fenômeno psicológico cujo resultado é a aceitação

involuntária de certas atitudes, opiniões e crenças”. Indivíduos com nada a perder, com

origem humilde, sem muito estudo, e outras características deficientes são o principal alvo do

contágio mental, de cuja mídia pode ser um instrumento bastante proveitoso em sua

propagação.

Page 23: Medo na Mídia - uma visão distorcida da violência

22

Essas pessoas, exceto no caso de psicopatas, tem exata noção do que estão fazendo,

não distinguem inocentes de inimigos, apenas uma causa justa, que merece todo aquele

esforço, e que farão o possível para que suas metas sejam atingidas. Há casos inclusive de

líderes extremamente carismáticos e convincentes, que arrastam consigo grandes multidões no

cumprimento de seus propósitos, como foi Hitler e como várias pessoas afirmam ser o próprio

Osama bin Laden.

Os movimentos terroristas não são exclusivos do Oriente Médio. Existem movimentos

como o ETA, e o IRA3 na Europa, que apesar de inoperantes hoje, já causaram sua parcela de

destruição anteriormente. Ainda que não declaradamente, muitos pesquisadores consideram

nações como os Estados Unidos praticantes de terrorismo, com suas ofensivas que matam

milhares de civis ainda hoje, e num passado não muito distante, causaram destruição total,

como no fim da Segunda Guerra Mundial, com as bombas de Hiroxima e Nagasaki.

O fato é que essa forma particular de violência é muito temida pelo seu alto poder de

destruição, pelas motivações e características do povo que tem feito utilidade dela, e

principalmente, pelos meios de destruição de massa que estão nas mãos de Estados com

governos e organizações terroristas.

3 Exército de Libertação Basca e Exército Republicano Irlandês, grupos terroristas que atuam na Espanha e na Irlanda, respectivamente.

Page 24: Medo na Mídia - uma visão distorcida da violência

23

2 A HISTÓRIA COMEÇA NA CULTURA.

“Maybe I am the faggot América. I’m not a part of a redneck agenda. Now everybody do the propaganda.

And sing along to the age of paranoia.” (American Idiot – Green Day)1

Um povo representa claramente a sua cultura. Religião, alimentação, danças, folclore,

maneiras de lidar com estrangeiros, tudo isso varia em cada país e região do mundo. Nesta

monografia, a política será tratada como uma parte da cultura, já que várias daquelas são

determinadas pelo modo como os países lidam com forças tanto internas, quanto externas.

A cultura não vem apenas de hábitos e tradições cultivados, mas também de

experiências adquiridas ao longo da história de cada nação. Pode ser capaz de mostrar a sua

força em outros territórios, como acontecem em vários festivais de cultura ao redor do mundo,

em que países, com pequenas amostras de dança e culinária, satisfazem a curiosidade de

pessoas, bem como demonstram e mantêm viva a chama de suas origens.

De uma maneira menos inocente, uma cultura pode estar carregada de ideologia, como

no caso do american way of life, estilo de vida norte-americano tão carregado de valores

capitalistas, e difundido por todo o restante do mundo, sendo inclusive considerado fator de

deculturação por vários estudiosos.

Neste estudo, serão abordadas duas formas bastante particulares e diferentes de

cultura, no caso de Estados Unidos e Brasil. Uma imersão nas formas de vida e convivência,

bem como alguns dados sobre os dois países se tornarão bastante úteis na compreensão da

problemática do medo e de formas particulares de violência em cada um dos países.

1 “Talvez eu seja a América enfadonha./ Eu não sou parte de uma rotina caipira./ Agora todos fazem a propaganda./ E cantam em favor da era da paranóia.” (Tradução da autora).

Page 25: Medo na Mídia - uma visão distorcida da violência

24

2.1 AMERICAN WAY OF LIFE PARA O MUNDO

Tudo começou em 1776, no dia 04 de Julho, quando os norte-americanos se

declararam livres da Inglaterra, depois de uma guerra que havia durado dois anos. A partir

daí, sempre às custas de muita luta, esse povo se desenvolveu até se tornarem a maior

potência econômica, bélica, cultural e política do mundo. Alguns países podem até exportar

grandes marcas e modas, mas apenas os Estados Unidos puderam mandar para fora o pacote

completo, um verdadeiro estilo de vida, sem dúvida alguma, encantador.

A América do Norte foi colonizada por alguns ingleses fugitivos de origem cristã

protestante, e este espírito moralista e conservador sempre fez parte do caráter do povo

americano. Tanto nos acontecimentos históricos, como no caso das “Bruxas de Salém”, em

que várias mulheres foram queimadas vivas em fogueiras por defenderem pensamentos

liberais, quanto no discurso dos políticos quase sempre, a predestinação divina sempre se fez

presente.

“A inspiração divina é um elemento constante na história dos Estados Unidos – ou, pelo menos, nos discursos de seus dirigentes, que, mais de uma vez utilizaram-na para justificar a expansão das fronteiras do país e, mais tarde, a adoção de políticas imperialistas. [...] Ou seja, os americanos estão convencidos de que têm a missão a eles dada por Deus de espalhar pelo mundo a civilização e a liberdade, exatamente da maneira como foram postas em prática nos Estados Unidos.” (FUSER, 2006, p.29)

Além do discurso da predestinação divina, o que se observa principalmente desde a

Primeira Grande Guerra, por parte dos políticos, é um discurso autoritário, muitas vezes

desrespeitador e de certa forma terrorista, contra os inimigos. Fosse combatendo os russos

comunistas, ou o Oriente Médio, ou ainda nas batalhas expansionistas, como aconteceu na

emancipação de parte do México e territórios a oeste, esses recursos ideológicos sempre

foram uma grande arma em favor dos Estados Unidos.

Com relação ao povo norte-americano, estes já passaram por grandes experiências. De

períodos de grande prosperidade, como na época do baby-boom pós Segunda Guerra Mundial,

e crises que assolaram o país, como a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, em 1929,

sempre foi um povo bastante comprometido com a política de seu país. Na maioria das vezes

bastante patrióticos e apoiadores de guerras e conflitos na qual seu país esteja envolvido,

embora realmente não se preocupem muito com isso, e raramente parecem ter algum

conhecimento mais aprofundado da real situação de seu território.

Page 26: Medo na Mídia - uma visão distorcida da violência

25

Esse americano médio, chamado em território próprio de John Doe, ou “Zé Mane”, é

“religioso, glutão de fast-food e viciado em esportes que quase ninguém pratica além de suas

fronteiras, e mora no interior do país, a no máximo 20 minutos de distância de um

supermercado Wal-Mart.” (MAXIMILIANO, 2006, p. 34). Vários dos que hoje são costumes

em outros países, tiveram início nos Estados Unidos, como o hábito de ir a shoppings centers,

assistir a jogos da NBA2, ou ainda, fazer refeições num McDonald’s próximo.

Com uma política sempre expansionista, a América sempre tentou fazer de sua cultura,

a cultura do restante do mundo. Na maioria das vezes, certos aspectos como alimentação e

vestuário podem ser assimilados sem muitos problemas, assim como também é o caso da TV

americana, que exporta para o restante do mundo formatos prontos de séries; o cinema

hollywoodiano, que lota salas de exibição no mundo inteiro; sendo o caso da música também.

Partindo para torrentes mais políticas, as relações nem sempre são assim tão amigáveis

quanto nos intercâmbios culturais. Os Estados Unidos têm uma política claramente

unilateralista e intervencionista. Prova principal e incriminatória disso, é o fato de o país usar

sempre seu poder de veto em entidades e resoluções internacionais, para se resignar de

compromissos que poderiam trazer benefícios à coletividade dos países, em favor de políticas

que beneficiam os próprios Estados Unidos. Exemplo recente disso foi a recusa do presidente

George W. Bush em assinar o Protocolo de Kyoto, que reduziria drasticamente a emissão de

poluentes na atmosfera terrestre. “Os Estados Unidos assumiram de vez o papel da

‘superpotência’ – com poderio econômico e principalmente bélico – e do Império, já que

passou a decidir sozinho pelo destino do mundo.” (BORGES, 2006, p.11)

Um ponto alto de discussões na política norte-americana é também o partidarismo

operante no país. Os partidos republicano e democrata vieram da cisão de um partido único de

empresários, que se dividiram entre conservadores e liberais, mas que no final das contas não

tinham pontos de vista assim tão divergentes:

“A chegada dos democratas em 1961 deu a muitos observadores a impressão de que havia ocorrido uma grande mudança. Mas neste caso houve apenas a chegada, no sentido superficial do termo, de uma nova geração. Eisenhower e Dulles haviam formado suas idéias segundo as de Woodrow Wilson e segundo os debates à volta da Primeira Guerra Mundial, modificando-as apenas um pouco sob a influência dos acontecimentos que culminaram com a Segunda Guerra Mundial.” (CRUNDEN, 1994, p.300)

Pelo fato de existirem apenas dois partidos, e estes apresentarem mais semelhanças do

que diferenças, muitas das propostas para o país em termos de intervencionismo e melhor 2 Liga que organiza os jogos de basquete nos Estados Unidos.

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26

relação com outros blocos de países acabam não sendo muito diferenciadas. A partir daí uma

certa característica do americano médio torna-se mais compreensível, que é a forma como lida

com a violência.

A história norte-americana é repleta de conflitos, e na maioria das vezes a violência e a

agressão estiveram presentes. Foi assim na guerra das províncias do norte contra as do sul, na

conquista do oeste, em que tribos indígenas inteiras foram dizimadas, e também sempre foi

assim na forma como o país lida com seus inimigos externos, como exemplos clássicos, a

Guerra do Vietnã e a bomba atômica lançada sobre o Japão ao fim da Segunda Guerra

Mundial. Não só a história, mas o próprio cidadão americano exerce uma espécie de “culto à

violência”. As estatísticas provam isso, sendo que os Estados Unidos são o país com maior

porte de armas de fogo do planeta, existindo até um nome especial para os viciados em armas

de fogo, os gun nuts (malucos do gatilho). É também o país com mais execuções por pena de

morte, e também com a maior população carcerária.

“Os comentaristas de esporte adoram usar linguagem de guerra ao descrever o que acontece nos campos. Para o americano, quanto mais violência em jogo e comida na arquibancada, maior é a diversão. [...] A polícia americana é, proporcionalmente, a que mais dispara armas de fogo e mata em diligências ou perseguições. Para completar, nos Estados Unidos existe uma arma e meia para cada americano vivo e uma em cada 200 pessoas vai passar algum tempo na cadeia.” (MAXIMILIANO, 2006, p. 34-35)

Mas em termos de cultura, a América tem vivido uma mudança gigantesca, e isso tem

afetado todos os aspectos da vida tanto dos cidadãos, quanto da política, quanto nas relações

externas dos Estados Unidos. Nunca se falou tanto em cultura do medo, quanto desde os

ataques terroristas de 11 de setembro na cidade de Nova Iorque. Mas esse não é um fenômeno

relativamente novo, já que o medo sempre foi considerado uma forma de manter a ordem, e

principalmente nos Estados Unidos, parece ser um recurso usado abundantemente. Prova

disso, são os milhões que o setor das relações públicas movimenta nos Estados Unidos. Mais

exatamente, algo em torno de um bilhão de dólares ao ano, segundo Noam Chomsky (2003, p.

20), e que são usados para manter a opinião pública sob controle.

Um exemplo bem claro disso é a época denominada macartismo na história americana.

Numa época em que o socialismo e o comunismo ameaçavam a integridade do capitalismo

ocidental, o senador Joseph McCarthy, membro do comitê de atividades anti-americanas

promoveu uma verdadeira caça às bruxas, quando todos os simpatizantes do comunismo

foram perseguidos. Durante os anos da Guerra Fria, o medo tomou conta da população,

juntamente com a total falta de liberdade política e de expressão. Segundo Crunden (1994, p.

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27

292), “meteram medo ao povo americano com visões de pequenos Hitlers e Stalins surgindo

por toda a parte, a não ser que a América interviesse para interromper uma série de

‘Muniques’.”

Pois parece que o medo tem mesmo permeado o cotidiano dos americanos, porque

desde então várias medidas têm sido tomadas para proteger todos do terror, inclusive um

alerta colorido de terrorismo, como se fosse uma escala Richter3 que mede o perigo que os

cidadãos estão correndo com relação a atividades terroristas. Destas decisões tomadas a partir

de 2001, após os ataques terroristas, talvez a mais significativa e impactante tenha sido a Lei

Patriótica. Uma curiosidade é que esta lei foi aprovada sem ter sido sequer lida por nem

metade dos membros do congresso.

“Os direitos individuais nos Estados Unidos, país cuja Constituição é um dos pilares da democracia moderna, sofreram um duro golpe com a aprovação do Patriot Act, em 2001. O pacote de leis permite ao governo monitorar conversas telefônicas de suspeitos de terrorismo sem necessidade de autorização judicial. Também permite manter estrangeiros presos por até sete dias sem acusação formal.” (SCHELP; BOSCOV, 2006, p. 95)

Ou seja, todo e qualquer cidadão comum, americano ou estrangeiro, pode ter a vida

vasculhada a qualquer momento sob qualquer pretexto. No início a maioria dos americanos

apoiou estas medidas, mas a porcentagem destes vem diminuindo consideravelmente,

principalmente depois de acusações contra o governo de que este esteja se aproveitando

dessas leis para outros motivos que não sejam suspeitas de terrorismo.

E é assim, nesse clima de histeria e medo que a América sempre esteve envolvida, em

grande parte por causa de fatores históricos e irremediáveis de uma conquista conseguida às

custas de muito sangue e tiros. Yves Michaud (1989, p.38) cita

“um viajante francês que partiu para a Califórnia no momento da corrida para o ouro e descreve a cidade de São Francisco como ‘povoada de celerados, de assassinos e bandidos’ e apavora-se com a maneira pela qual os americanos acertam suas contas à bala nos cassinos.”

Esse quadro será fundamental para entender as implicações atuais no que diz respeito

à mídia e violência e que serão explicitadas nos dois seguintes capítulos. Robert Crunden

(1994, p.291) distingue dois modos de vida na história mundial, e uma delas parece se adaptar

bem aos Estados Unidos: “a segunda maneira de vida está baseada na vontade de uma

3 Escala científica que mede a intensidade de tremores de terra.

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minoria, imposta pela força sobre a maioria. Depende do exercício do terror e da opressão,

controle de imprensa e de rádio, eleições fixadas e supressão das liberdades pessoais.”

Neste caso, esta realidade ainda está sob o disfarce de democracia protetora, mas nada

pode garantir ao povo que este quadro se manterá assim.

2.2 CULTURA DA POBREZA E DA DIFERENÇA

No Brasil, tudo é muito diferente do que é nos Estados Unidos, em matéria de cultura,

sociedade e política. Também é um país ocidental e que tem como norte os princípios

democráticos, mas as semelhanças param por aí. A própria colonização já começou diferente,

de acordo com os livros de história que classificam as colonizações como de exploração ou de

povoamento.

A história brasileira começou no fim do século XV, quando alguns portugueses à

procura de novas terras que lhe pudessem ser fontes de riqueza, descobriram a terra a que

mais tarde dariam o nome de Brasil. O propósito então desde o início era o de explorar as

riquezas, e o povoamento de estrangeiros que se formou aqui tinha o único objetivo de

gerenciar as atividades de exploração. Apenas três séculos mais tarde é que se foi pensar em

ficar aqui de maneira definitiva, com a Declaração de Independência, que foi muito mais um

acordo, um presente de pai para filho, do que realmente um conflito.

A colonização brasileira, e todos os problemas administrativos geraram um imenso

país de terceiro mundo, com uma diversidade racial enorme, que se deu pela mistura de

colonizadores portugueses, a população remanescente de índios, escravos africanos, e ainda

mais tarde, imigrantes europeus e orientais, em menor escala; e muitos problemas. Estes,

muito mais internos do que externos.

Ao contrário dos Estados Unidos, intervencionista, o Brasil raríssimas vezes se

envolveu em conflitos externos com outros países, a não ser das vezes em que foi forçado a

tomar um partido, como quando, na Segunda Guerra Mundial, enviou combatentes para a

Itália, os famosos pracinhas. Talvez por sua condição de país subdesenvolvido, que não

permite entrar em corridas armamentistas e nucleares, ou talvez por uma política peculiar,

com tantos problemas internos que não sobra tempo nem dinheiro para se envolver em coisas

maiores, ou talvez ainda porque simplesmente não lhe interessa, por causa do jeito folgado e

acomodado de sua gente.

As rixas são muito mais culturais e econômicas do que necessariamente políticas,

como a eterna briga de brasileiros e argentinos no futebol. Aliás, a lembrança do Brasil por

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29

parte de estrangeiros e dos próprios brasileiros é principalmente relacionada a questões

culturais, quando se diz que o Brasil é terra de carnaval e futebol.

Com relação aos conflitos internos, alguns cenários políticos se sobressaem, até

porque a cultura é uma reflexão deles. Antônio Brandão e Milton Duarte (1990) fazem essa

discussão entre o momento do país e sua reflexão na cultura, principalmente na música. Na

década de 50 surge a Bossa Nova, como movimento nacional, e o rock’n’roll, chegado dos

Estados Unidos, e refletido na rebeldia. Nas décadas de 60 e 70, produto de uma vida

conturbada, em meio à repressão da ditadura militar, surge uma cultura mais elaborada, com

movimentos musicais como a Tropicália, que mesclou política e consumo, numa contradição

de idéias que opunha à modernidade ao arcaico, principalmente na estética, sem fazer uma

conexão direta com o esquerdismo militante.

A indústria cultural se fixa no país principalmente a partir da década de 70, com uma

ascensão do mercado fonográfico, que estivera em crise desde meados de 60, conseqüência de

uma política de abertura comercial e um período de grande prosperidade econômica. A partir

daí, com a diminuição do interesse pelo rock, a música e a TV passaram a lançar modas.

“Com uma indústria fonográfica mais articulada em termos de marketing, a discothèque tornou-se alvo de maciças produções, demonstrando a total recuperação e o aumento do mercado fonográfico no país. Esse fenômeno, que vendeu grandes quantidades de discos, principalmente em 1978 (na esteira do sucesso do filme Os embalos de sábado à noite e da novela Dancin’ Day’s), não deixou influências mais marcantes no modo de fazer música no Brasil, apesar do surgimento do Black Rio (no Rio de Janeiro) e do Chic Show (em São Paulo) – eventos e bailes de música negra para o público dos subúrbios. A discotèque trará conseqüências importantes para a sedimentação do mercado de disco no país, a partir da imposição de certos padrões de consumo para a chamada música jovem” (Ibid., p. 91).

Os anos 80 vieram cercados de conflitos internacionais, da continuação da corrida

armamentista e espacial, o esfacelamento da União Soviética, e no Brasil, a sedimentação da

urbanização e da industrialização, aumento da crise econômica, e um delicado processo

político que culminou no movimento das “Diretas Já”. Culturalmente, o rock nacional surgiu

com força total, com bandas de São Paulo, Rio de Janeiro e agora Brasília, a nova capital

nacional. O pop também chegou dos Estados Unidos, ajudando a moldar uma variedade

musical que mais tarde seria o norte dos anos 90 até a atualidade. Um marco desse período foi

a realização do Rock in Rio, festival que apresentou grandes astros nacionais e internacionais.

Segundo a obra citada acima (Ibid., p.107), “apesar das crítica, quanto ao ecletismo e à

comercialização feita em torno do festival”, o evento revelou o Brasil internacionalmente,

como um mercado a ser explorado.

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30

Grave também é o preconceito de classes e raças. No Brasil, é fato que a renda é

absurdamente mal distribuída, e a assistência do governo é mínima. Diz o antropólogo Darcy

Ribeiro (1996, p. 219) que “a distância social mais espantosa do Brasil é a que separa e opõe

os pobres dos ricos. A ela se soma, porém, a discriminação que pesa sobre negros, mulatos e

índios, sobretudo os primeiros.”. A pobreza e a discriminação geram segregação – em favelas

principalmente nos grandes centros urbanos -, e esta gera violência.

“As autoridades policiais e os jornalistas costumam afirmar que nos bairros pobres da periferia é onde a violência é mais crua e deflagrada. Isto não quer dizer que os pobres são, naturalmente, mais violentos. Quer isto significar que o grau de impotência que lhes foi imposto acua-os de tal forma que, em certos momentos, só os atos de violência se apresentam para eles como alternativa de liberação e sobrevivência.” (MORAIS, 1981, p. 33)

Essa violência da pobreza, causada pela abstenção e pela exclusão, é uma das causas

da maior parte dos crimes ocorridos no país. Favelas tomam lugar de guerrilhas urbanas, entre

policiais e chefes do tráfico de drogas. No Brasil, não é tão escancarada a visão de cultura do

medo, como acontece nos Estados Unidos, mas ela está implícita nos comportamentos do

cidadão. Os que têm mais dinheiro se entregam ao isolacionismo e segurança reforçada de

condomínios privados, em algumas cidades há o toque de recolher, cada vez mais armas são

vendidas, legal e ilegalmente para que o cidadão tenha a impressão, mesmo que falsa, que

estará mais seguro. E quem não tem recurso nenhum fica entregue à sorte, muitas vezes como

acontece nas grandes favelas, tem que tomar partido dos bandidos, para que estes a protejam,

papel que deveria ser exercido pelas forças armadas.

Culturalmente, o povo brasileiro é um povo totalmente aberto tanto às suas próprias

culturas, regionais, quanto à hábitos culturais que vêm de fora, é isso fica claro, por exemplo

na incorporação de vários hábitos do american way of life norte-americano. Diz Darcy

Ribeiro (1996, p.248) que “dada a homogeneidade cultural da sociedade brasileira, cada um

dos seus membros tanto é capaz de comunicar-se com os contingentes modernizados, como se

predispõe a aceitar inovações.”, ao contrário de anteriormente, quando

“A cultura popular, assentada no saber vulgar, de transmissão oral, embora se dividisse em componentes rurais e urbanos, era unificada por um corpo comum de compreensões, valores e tradições de que todos participavam e que se expressavam no folclore, nas crenças, no artesanato, nos costumes e nas instituições que regulavam a convivência e o trabalho.” (Ibid., 1996, p.263)

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31

De acordo com Darcy Ribeiro (Ibid., p. 205), ocorreu uma deculturação do povo

brasileiro, talvez por ser tão aberto a culturas estrangeiras, talvez porque não é cultivado no

brasileiro o hábito de manter suas tradições culturais.

“A questão hoje é mais grave. A luta dentro dessa massa urbana é ferocíssima. Se associam, eventualmente, nos festivais, como o Carnaval e cerimônias de Candomblé, como paixões esportivas co-participadas e como os cultos de desesperados. Esses marginais não devem, porém, ser confundidos com a secular população favelada das grandes cidades, que de fato são suas principais vítimas.”

Essa pequena exposição da realidade cultural e política brasileira vai servir de pano de

fundo às posteriores análises midiáticas, e de como a violência se inter-relaciona com esse

processo cultural, já que de um jeito ou de outro ela está presente. A cultura tradicional

brasileira toma novos moldes, correspondentes a novas realidades econômicas e sociais.

Alguns grupos culturais tentam a duras penas, preservar a cultura original. “Mas elas só

podem manter-se tradicionais como arcaísmos em relação ao que se tornara o perfil cultural

predominante como obsolescência com respeito à nova economia prevalecente.” (RIBEIRO,

Ibid., p. 265)

Mas mesmo assim, e(2006, p.101)m todo esse período, a cultura brasileira não se

restringiu apenas à simples imitação de modelos culturais vindos de fora. Além de possuir

valores próprios, o contato mais direto com a cultura internacional, através dos meios de

comunicação, acabou sendo de importância fundamental no processo de modernização e

transformação do universo sócio-cultural brasileiro, segundo Brandão e Duarte (1990, p. 109).

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32

3 MÍDIA TELEVISIVA: QUEM MANDA, AFINAL?

“Welcome to a new kind of tension. All across the alienation.

Where everything isn’t meant to be OK. Television dreams of tomorrow.

We’re not the ones meant to follow. For that’s enough to argue.”

(American Idiot – Green Day)1

A televisão é uma invenção recente, da década de 30, que veio logo após o rádio como

mais uma forma de entreter as pessoas, com uma vantagem sobre seu antecessor: além do

som, passou a existir também a imagem. Diferencia-se do cinema pelo fato de ser uma

imagem rápida, mas que não pode ser desacelerada, como pode ocorrer com os fotogramas de

cinema. As imagens geradas no tubo do aparelho de televisão ocorrem numa varredura de

linhas na tela que não permitem grande detalhamento, para que também não se perca em

resolução.

Fala-se muito na espetacularização da TV, mas o que não foi ela, e não somente ela,

mas também o cinema, a fotografia e o rádio, senão formas de espetáculo? O homem sempre

precisou de uma ponte que ligasse o real, sua vivência, com seu imaginário, funcionando

como uma válvula de escape para os problemas do cotidiano. Seja para unir amigos em torno

de uma simples partida esportiva, ou servir de companhia a um trabalhador cansado, ansioso

apenas por ouvir ao invés de falar. A televisão cumpre bem esse papel na transmissão de

novelas, noticiários, esportes, filmes e mais uma variada gama de atrações.

Os meios, observados desse prisma, funcionariam como domesticadores da fantasia,

servindo bem como mediadores de consciente e inconsciente, equilíbrio do qual o pensamento

1 “Bem-vindos a um novo tipo de tensão./ Tudo a ver com alienação./ Onde nada foi feito para parecer ok./ Sonhos televisivos do amanhã./ Os quais nós não deveríamos seguir./ Tudo isso é o suficiente para discutir.” (Tradução da autora).

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33

freudiano trata. E para cumprir essa função o espetáculo é inevitável, estabelecendo “tensão

entre momentos de fantasia liberada e restabelecimento do esquema da ordem”

(MARCONDES, 1988, p. 40). Diz também o autor (Ibid., p. 41) que “o espetáculo é a

linguagem da televisão. E é segundo a lógica do espetáculo – a única lógica possível à TV –

que tudo nela é transmitido”. Por isso também o meio não deve ser entendido como terapia, já

que nesta o indivíduo procura se conhecer e naquela ele apenas se deixa levar.

A mídia atual, no formato em que a conhecemos, é força geratriz constante de

controvérsias e polêmica. Adaptada a formas alucinadas de consumo, transmite idéias e

conceitos efêmeros, com uma estética distorcida e tresloucada, que promove valores do

consumo de massa, e uma revolução de imagens quase que permanente. Ocorre uma

retroalimentação entre meio e cultura, em que muitas vezes, valores como a tradição oral, são

deixados para trás, em virtude do que é pop, urbano e capitalista. A sociedade assiste à

construção presente da história em tempo real, principalmente com o que se vê na TV,

confirmando que:

“é aos mass media que se deve o reaparecimento do monopólio da história. De agora em diante esse monopólio lhes pertence. Nas nossas sociedades contemporâneas é por intermédio deles e somente por eles que o acontecimento marca a sua presença e não nos pode evitar. [...] Imprensa, rádio, imagens não agem apenas como meios dos quais os acontecimentos seriam relativamente independentes, mas como a própria condição de sua existência”. (NORA, 1995 apud BARBOSA, 2003, p. 116)

É de uma análise da TV, de imagem e discurso, que surge a relação entre os fatos e a

realidade, e que se pode realmente iniciar um julgamento de valor. Usualmente, a televisão

leva a responsabilidade por vários desvios sociais. Aqui a citam como incentivadora da

violência, dos maus costumes, libidinagem e outras perversidades. Mas há fatores importantes

a serem considerados antes de atribuir à TV a responsabilidade. Não há como negar um

envolvimento sedutor de homem e imagens, e toda a persuasão que cerca a linguagem

televisiva, mas em termos de sociedade, “todos os meios de comunicação antes confirmam do

que alteram as opiniões gerais e refletem as normas sociais. Em ambos os casos atuam como

força conservadora”. (GOODLAD [19-?] apud MARCONDES, 1988, p.28).

Ou seja, a mídia por si só não tem esse efeito tão poderoso, e culpá-la acaba por

desviar o foco real da atenção, que deveria estar centrado na sociedade, e em seus

comandantes. Um estudo recente da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA)2

mostra, para ilustrar, que na programação da televisão, os programas mais violentos não estão

2 Relatório citado em GLASSNER, Barry. Cultura do medo. São Paulo: Francis, 2003. p. 97.

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34

nem um pouco pares com a realidade, em programas simplórios como “America’s Funniest

Home Vídeos”3. Programas policiais que mostram grande quantidade de homicídios, mostram

o crime como algo que realmente não compensa, encorajando o público a não praticá-la, além,

ainda, de afirmar que, se por um lado os telespectadores estão cercados de violência, por outro

estão cercados de bons exemplos, pois nenhuma programação se mostra tão benevolente e

cercada de paz e tolerância quanto a norte-americana, tendo como exemplo principal as séries

televisivas.

A psicanalista Maria Rita Kehl (2002, p. 171) afirma ainda que a relação do indivíduo

com o meio “quase que independentemente dos conteúdos desse discurso (da TV) – é uma

relação imaginária, que se rege prioritariamente pela lógica da realização de desejos. Portanto,

prescinde do pensamento”. Houve épocas no estudo das teorias da comunicação quando se

considerou a audiência passiva e receptiva de tudo, como quando segundo a Teoria

Hipodérmica

“Os meios são vistos como onipotentes, causa única e suficiente dos efeitos verificados. Os indivíduos são vistos como seres indiferenciados e totalmente passivos, expostos ao estímulo vindo dos meios. O máximo que os primeiros estudos distinguiram, em termos de diferenciações entre o público, foi dividi-lo de acordo com grandes categorias como idade, sexo e classe sócio-econômica”. (ARAÚJO, 2001, p.127)

Isso não durou muito tempo, até que Lazarsfeld desenvolvesse estudos mais

sociológicos, e até que um de seus discípulos, Klapper, desenvolvesse um modelo teórico

denominado de “enfoque fenomênico”, que “prevê que os meios de comunicação não são

causa única dos efeitos, mas, antes, acham-se envolvidos no meio de muitos outros fatores.”

(Ibid., p. 128).

Telespectadores são diferentes não apenas quanto a dados básicos como os

supracitados, mas também quanto a vivência, hábitos e caráter psicológico, cada um

absorvendo as informações do meio de uma maneira única. Com relação ao tempo que

passam em frente à tela de TV, por exemplo, pesquisas realizadas por Nathan Katzman

(MARCONDES, 1988, p. 82) mostram que quanto menor a renda e o nível educacional da

população, mais estas assistem à televisão. Mostra também que mulheres assistem mais TV

que os homens. Mais uma vez também é afirmado que esta funciona mais como uma força

conservadora que inovadora, quando Jesús Martín Barbero (1978 apud MARCONDES, 1988,

3 “Vídeos caseiros mais engraçados da América”, algo como as “Vídeo Cassetadas do Faustão”.

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35

p. 83) diz que “há o reforço na crença de que a ordem dos acontecimentos programados e

maquiados é o único mundo possível”.

O que, então, faz com que a mídia esteja no meio de tanta discussão e polêmica sobre

manipulação ideológica? Algo simples de enxergar, é que qualquer informação ou notícia

repassada precisa de credibilidade. A televisão é apenas um instrumento, muitas vezes

controlado por grupos capitalistas poderosos, e que em muitos países estão ligados ao próprio

governo. É daí que acaba vindo a credibilidade de que a população tanto necessita para acatar

aquela informação transmitida pela TV. Mas este é um processo bem mais complexo do que

aqui exposto, e que no último capítulo deverá ser retomado. “Culpar a TV é localizar

erroneamente o verdadeiro inimigo”. (MARCONDES, 1988, p. 8)

3.1 NOTICIÁRIOS E PROPAGANDA NA TV

A informação da TV pode ser interpretada de várias formas. Isso vai depender

basicamente de dois fatores principais: primeiro, quais valores cada emissora quer passar a

seus telespectadores; segundo, o que estes desejam sorver de toda a rede de dados a eles

passados. Talvez possa existir, mas possivelmente será muito rara aquela rede de TV que não

apresenta seus próprios valores e os transmite, ideologicamente.

Os dois maiores exemplos de utilização de ideologia e persuasão da mídia são o

noticiário e a publicidade. A ideologia há muito definida por Marx como sinônimo de

manutenção da ordem política, principalmente, e a persuasão, instrumento da manutenção,

muitas vezes servem como álibi de uma deturpada mostra da realidade, programada por quem

está no poder, e que, além da mídia televisiva, utiliza vários outros meios de credibilidade.

Alguns recursos retóricos empregados no jornalismo, como imparcialidade e distanciamento,

e na publicidade, como uso de silogismos (CITELLI, 2000, p.43), acabam trabalhando na

mente humana uma intrincada forma de persuasão, aditivada com jogos de elementos

emocionais e figuras de heróis e bandidos (Ibid., p. 64-66) capazes de definir formas de

pensamento e transmitir ideologias ao telespectador.

Mas sabe-se bem que o discurso persuasivo não necessariamente induz a uma verdade,

como comprova Citelli (Ibid., p.13): “É possível que o persuasor não esteja trabalhando com

uma verdade, mas tão-somente com algo que se aproxime de uma certa verossimilhança ou

simplesmente a esteja manuseando”. Mais uma vez se comprova que não é a mídia em si que

cria comportamentos e, sim, essa aproximação, mesmo que falsa, de uma verdade, apoiada

por vários testemunhos e fatores que causam a alienação, e uma espécie de generalização da

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36

informação, quando, por exemplo, “as pessoas que moram fora da cidade sentem como

próprios os problemas da cidade maior, onde estão localizados os transmissores das redes de

comunicação.” (SCHWARTZ, 1985, p.77)

O discurso persuasivo muitas vezes faz uso de outras interfaces da cultura para

promover identificação com o público, em slogans curtos, musicais, cheios de silogismos e

estruturações formais (CITELLI, 2000, p.43-44), e chamadas de telejornais e capas de

revistas, recorrendo ao imaginário religioso, literatura, cinema, música entre tantos outros,

como nos exemplos “Ave Bush!”; “Saddam, o vingador” e “Sangue, suor e óleo”, manchetes

da época da Guerra do Golfo. (FAUSTO, 2002, p. 205).

No jornalismo, apesar da crença na imparciabilidade das notícias, não há como atestar

verdade alguma nisso, pois, primeiramente, os profissionais estão submetidos aos interesses

de seus superiores, e depois, o próprio jornalista, imbuído de carga psicossocial que é

enquanto indivíduo, pode ser tendencioso na transmissão da informação. “O jornalista não

pode falar como quiser, pois tem de se submeter a certas regras internas e externas da

instituição midiática.” (BARBOSA, 2003, p. 113)

Ultimamente o telejornalismo também tem se utilizado de recursos que ora beiram o

autoritarismo, impondo aquela notícia como verdade, e ora beiram a telenovela, pela

utilização de recursos dramáticos na voz, nas entrevistas, e em testemunhos de comentaristas

e algumas vezes também do público mesmo.

“De acordo com J. S. R. Goodlad, o jornalismo e o telejornalismo são parentes muito próximos dos dramas. Em questão de preferência popular, os noticiários ocupam, aliás, o segundo lugar, logo após os dramas. Isso talvez explique o porquê de os noticiários serem produzidos como espetáculos.” (MARCONDES, 1988, p. 52)

Já com relação à publicidade, que dá um trato diferente à informação, acontece a

mesma coisa com relação à transmissão de ideologias e uso da linguagem persuasiva, pois

aqui estes elementos estão mais explícitos. A publicidade trabalha com o desejo, incita no

telespectador a vontade de possuir. O que chama atenção são “os elementos que fazem parte

da nossa estrutura mental, mas que estão represados – é o que desejamos, e que por diversos

motivos não podemos possuir” (Ibid., p. 39). Isso mostra que de simples vendedora de

produtos, a publicidade passou a exibir estilos de vida, de uma maneira totalmente indiscreta,

com imperativos: seja, coma, beba e vários outros.

Além disso, a publicidade é um grande reforço de ideologias do capitalismo, não só no

plano comercial. Também podemos ver isso num plano político, que quase sempre é a

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37

propaganda quem determina vencedores de eleições, e a própria espetacularização da

propaganda política, em que não são apenas propostas que interessam, mas sim todo o estilo

de vida dos políticos, suas rotinas com a família, amigos e sua vida amorosa. “A política

manifesta-se permeada/invadida pelas ações íntimas e pessoais: a política se privatiza, a vida

privada do governante ocupa toda a cena pública” (PIOVEZANI, 2003, p. 53). Grande

exemplo disso foi o escândalo sexual na Casa Branca, quando o então presidente dos Estados

Unidos, Bill Clinton, manteve relações extra-conjugais com a estagiária Mônica Lewinsky.

Mas da mesma maneira que acontece na televisão, conforme citado anteriormente, a

publicidade não deve ser considerada a grande máquina persuasiva, levando-se em conta cada

telespectador diferentemente. Segundo Jean Baudrillard (2000, p.291), “o discurso

publicitário dissuade ao mesmo tempo em que persuade e daí parece que o consumidor é,

senão imunizado, pelo menos um usuário bastante livre da mensagem publicitária”. A grande

questão da publicidade é que ela se aproveita de acontecimentos da própria sociedade para

garantir lucratividade, gerando demanda. Um exemplo disso é citado por Barry Glassner

(2003, p.131). Segundo ele, uma empresa norte-americana chamada Safe-T-Child

“comercializou um pacote [...] que incluía dois cartões de identificação e uma fita cassete

instrutiva para os pais sobre como prevenir o rapto de crianças”. Isso foi nada mais que uma

demanda gerada pelo medo que assolou o país após uma onda de raptos de crianças na década

de 90, e foi responsável pelo decreto de mais de 50 leis nos Estados Unidos, entre elas leis

famosas, como a lei Jenna, lei Amber e lei Stephanie.4

O que torna a mídia televisiva tão passível de crítica é o fato de que em ambos os

casos, publicidade e jornalismo, não há resposta do receptor, primeiramente. Este obviamente

não está sob os domínios da TV, mas naquele exato instante da transmissão da informação,

está vulnerável, pois não tem o poder de imediatamente contestar o seu interlocutor. Ele

poderá, posteriormente, questionar a informação, mas naquele momento poderá se deixar

levar, ainda mais se esta for credenciada por um álibi poderoso. Um segundo fator para

diminuir a culpa da mídia, é descobrir quem paga pela informação. Quase sempre as

emissoras e redes de televisão pertencem a homens poderosos, com muita influência política e

econômica, quando estes homens próprios não são os políticos. No Brasil, temos a Rede

Globo, cujo fundador Roberto Marinho, ditou as regras da comunicação por muito tempo, e

sua emissora ainda hoje é líder em audiência. Nos Estados Unidos, temos a Rede Fox, que

4 Os nomes das leis são homenagens a crianças reais, vítimas de seqüestros e outros crimes. Além dos nomes citados, existem várias outras leis com nomes de crianças vítimas da violência.

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pertence à família do presidente George W. Bush, cujo irmão e sócio majoritário da rede era

governador do Texas.

Não só com relação aos donos das redes, mas também ao próprio público resta um

pouco de responsabilidade:

“Para a notícia ser veiculada em jornais, ela deve atender ao interesse dos assinantes. Porém, poucos assinantes moram nos bairros decadentes das grandes cidades – região onde vivem as minorias. A insignificante presença de noticiário internacional na maioria dos jornais americanos é resultado das mesmas forças mercadológicas.” (GLASSNER, 2003, p. 199)

Grandes anunciantes também lideram o segmento econômico. Como na maioria das

vezes é a publicidade quem sustenta emissoras de tv e outros tantos veículos, estes devem

estar sujeitos aos ideais destes anunciantes, para não perderem bons negócios. Um exemplo

disso é a indústria farmacêutica na América do Norte, que além de ser a indústria mais

lucrativa e, conseqüentemente, a maior anunciante, aprisionou a mídia cancelando contratos

publicitários, quando o laboratório Hoffman – La Roche, fabricante do sonífero Rohypnol,

teve uma grande queda em suas vendas por causa da divulgação de que a droga estava sendo

usada com a finalidade de cometer estupros.

3.2 MÍDIA E VIOLÊNCIA

A relação da mídia com a violência torna-se fatídica na medida em que aquela vive da

transmissão de informações, e que esta é talvez um dos aspectos sociais mais recorrentes da

modernidade capitalista. Especificamente no caso da televisão, somam-se a força das

imagens, naturais ou enganosas, e a própria disseminação de dados sobre a violência, que

causa medo na população. Diz Yves Michaud que:

“A mídia precisa de acontecimentos e vive do sensacional. A violência, com a carga de ruptura que ela veicula, é por princípio um alimento privilegiado para a mídia, com vantagem para as violências espetaculares, sangrentas ou atrozes sobre as violências comuns, banais e instaladas.” (1989, p.49)

Aqui, como foi citado anteriormente, tem lugar ainda a generalização da informação,

quando comprova-se que muitas das pessoas que têm medo da violência nem sequer foram

vítima dela, mas ouviram alguém contar um caso, ou viram na TV. Em cidades pacatas e

pequenas do interior temem com a mesma intensidade os males da cidade grande. Mas ao

mesmo tempo, essa sensação de que tudo se sabe sobre os acontecimentos com relação à

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39

violência, pode mais aproximá-la do sensacionalismo do que da verdade. Isso é extremamente

comum com o exagero das estatísticas, as manipulações de uso político que causam mais mal-

estar do que a realidade permite.

“A fala do crime, tanto pelas pessoas como pela divulgação na mídia tende a ampliar a sensação e os sentimentos de medo e insegurança nos grandes centros urbanos. Trata-se de uma fala fragmentada, que amplia o medo e não potencializa formas de solucionar a violência.” (BAIERL, 2004, p.61)

Um fato cada vez menos recorrente é a questão do tratamento das imagens da

violência, causando ainda mais sensacionalismo. Antes havia uma preocupação de abrandar

imagens, ou como diz Michaud (1989, p. 51), “mostrar a violência com celofane”. Na TV,

onde o impacto é maior, há ainda alguma preocupação, mas no geral o que ocorre é a

tendência em mostrar a realidade exatamente como ela é, com o objetivo de chocar mais e

talvez causar mais medo, ocorrendo isso principalmente em fotos de revistas. O

fotojornalismo já não é mais o mesmo, existindo agora agências especializadas em tratar

imagens, conferindo mais dramaticidade (e menos imparcialidade) ao exposto.

Além disso, no caso da violência, há sempre a preocupação de atribuir culpados, como

afirma Sérgio Adorno (2002, p. 184):

“Outro tema freqüente é o das causas da criminalidade. Jornalistas, autoridades e público são estimulados a refletir e a expressar opiniões a respeito das causas da criminalidade. Essas opiniões têm, na verdade, uma grande variabilidade. Mas em linhas gerais, podemos dizer que, em períodos de grande crise social, há o que se denomina sociologização das causas, isto é, a crise econômica – falta de emprego, más condições de vida – explicaria a criminalidade. Quando a crise fica mais ou menos contida, a tendência é psicologizar as causas da criminalidade.”

Para muitos, o alerta na mídia sobre a violência, é de certa forma bom para mostrar

que ela é ruim e errada. O medo torna-se um instrumento pedagógico para forçar novos

comportamentos e novas atitudes. Para outros, só serve para aumentar o alarde e fazer com

que as pessoas temam mesmo os crimes que não há possibilidade quase nenhuma que se

ocorra com elas, como por exemplo, seqüestros.

3.3 COMO FUNCIONA LÁ E COMO FUNCIONA AQUI.

Na maior potência capitalista da atualidade, a transmissão de informações pela mídia

não poderia deixar de ser um elemento importante para a sociedade. A média de aparelhos de

televisão por residência nos Estados Unidos é quatro para cada casa com cinco habitantes. As

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séries televisivas são a maior fonte de transmissão de valores morais, e as três maiores redes

de transmissão no país, CBS, NBC e ABC movimentam uma soma vultosa da economia.

“A Warner Bros., nos Estados Unidos, originalmente uma empresa cinematográfica, possui ramos desenvolvidos de eletrônica doméstica, programação audiovisual, música, bens de consumo, empresas de marketing, publicações, sistemas de TV por cabo, que lhe dão um rendimento anual de 3,5 bilhões de dólares (1983), tendo seu recorde sido batido por ela mesma no ano anterior, quando vendeu 3,9 bilhões de dólares.” (MARCONDES, 1988, p. 24)

O telejornalismo norte-americano é famoso por seus profissionais polêmicos, alguns

de extrema direita e bastante politizados, como Barbara Walters, do programa 20/20, da ABC.

Essa politização da mídia é simples politização da sociedade civil, que teve um início mais

bem definido a partir do caso Watergate, que muitos afirmam ter sido um escândalo suscitado

pela mídia. A partir de então parece ser uma espécie de obsessão a busca da mídia por

escândalos, mentiras e segredos, bem como a espetacularização da política, segundo

Piovezani Filho (2003, p. 57).

A partir daí, conforme citado anteriormente, a política vira circo, onde o que passa a

ter relevância para o cidadão (especialmente um tão moralista quanto o norte-americano) é a

vida privada do sujeito, e não propostas políticas.

“Hoje, ao julgar os candidatos, os eleitores não procuram rótulos políticos, mas sim o que consideram ser bom caráter – qualidades tais como convicção, compaixão, perseverança e muita vontade de trabalhar. Esta ênfase sobre os sentimentos é resultado de um ambiente onde a informação ocorre instantaneamente.” (SCHWARTZ, 1985, p. 115)

No caso de guerras, a população também está acostumada a ver a reflexão da realidade

na TV, quando na Guerra do Golfo, em 1970 as imagens foram catalisadoras de uma

mobilização popular que pôs fim à guerra. Mais recentemente, em 2001, as imagens do World

Trade Center vindo ao chão foram suficientes para alavancar a popularidade de um presidente

e apóia-lo numa guerra sem fundamento. Isso mostra que “o fato concreto da morte e da

destruição é sempre o mesmo, mas a versão é outra, o tratamento das imagens é outro e,

portanto, o fato simbólico é outro também” (KEHL, 2002, p. 170).

Aliás, desde os ataques terroristas de 11 de setembro, a mídia norte-americana tem se

mostrado, ao contrário do que sempre foi, extremamente tímida, e qualquer jornalista mais

atrevido que tenha ousado enfrentar o patriotismo exacerbado e a política vigente, foi ou

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senão quase foi preso, como a jornalista Judith Miller, do New York Times e Matt Cooper, da

revista Time, segundo a revista Veja.5

Há que se citar também as eleições que levaram George W. Bush ao poder, e seu

envolvimento com a mídia, pois, segundo várias fontes, a Flórida, importante distrito eleitoral,

teve o resultado das contagens das urnas alterado, e a mídia, depois de já ter anunciado Al

Gore como presidente, admitiu erro e anunciou Bush como vencedor das eleições. A alegação

é que a rede Fox, de propriedade do irmão de George, Jebb Bush, e na época governador do

estado, é que alterou essa contagem.

“Não eram conspiradores – pelo menos não do tipo de direita; eram mais soldados num embate histórico por despojar de poder a presidência e conquistar um controle sobre o processo eleitoral ainda maior do que aquele que hoje a mídia possui”. (BOBBITT, 2003, p.753)

A tv no Brasil é um fenômeno ainda mais recente que nos Estados Unidos, tendo

aparecido apenas na década de 50.

“Em princípio, o modelo da televisão brasileira foi o americano. Nisso, como em tantas outras coisas, começamos imitando os americanos, nossa influência foi mais forte. Os nossos primeiros produtores foram aos Estados Unidos, fizeram cursos na CBS, na NBC, para aprender as técnicas e os procedimentos fundamentais, e os utilizaram para implantar a televisão no Brasil” (DANIEL, 2001, p. 14)

O modelo de programação é um pouco diferente, pois a popularidade maior recai

sobre as telenovelas, que comumente são exportadas para vários outros países. O

telejornalismo se mostra um pouco mais tímido, numa tentativa de maior imparcialidade, e a

politização maior acaba sendo de posse da mídia impressa.

As duas maiores redes, Globo e SBT, disparam na audiência e deixam para trás

Bandeirantes e Record, que contam com uma menor fatia de público. Tem havido uma

tentativa, principalmente por parte do SBT, de implantar um modelo mais americanizado de

TV, comprando direitos de séries famosas nos EUA, e as repassando dubladas em sua

programação. E, surpreendentemente, como não costumava acontecer antigamente, o público

tem acatado essa nova forma de programação.

“Cada país desenvolve uma linguagem própria de televisão. Essa linguagem depende da cultura, do passado e do desenvolvimento das outras formas de comunicação social. O Brasil, embora já tivesse uma produção de filmes e uma

5 SCHELP, Diogo e BOSCOV, Isabela. Geral. 50 coisas que o terror mudou no mundo. Revista Veja. São Paulo: ano 39, n. 35, p. 95. 6/set/2006.

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tradição teatral antigas, não contou, pode-se dizer, com essa participação na constituição de sua linguagem televisiva. Ela derivou-se mais das formas de comunicação populares: o circo e o rádio.[...] A influência do circo sobre a TV brasileira é vista não apenas pela presença de palhaços ou do homem de auditório, mas também pelo estilo circense de alguns animadores, como Chacrinha, Sílvio Santos, Bolinha.” (MARCONDES, 1988, p. 43)

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4 VIOLÊNCIA URBANA E GLOBAL: ARMAS DE FOGO E TERRORISMO

“Don’t want to be an American idiot. One nation controlled by the media.

Information age of hysteria. It’s going out to idiot America”.

(American Idiot – Green Day)1

Nos capítulos anteriores foi visto separadamente cada um dos elementos que aqui

serão trabalhados em associação. O medo, como forma de reação a determinado estímulo, faz

com que o indivíduo lute ou fuja, num contexto genérico. Quando se trata da violência,

principalmente no caso da violência urbana, que tanto fragiliza os cidadãos, é bem provável

que se busque o isolamento, principalmente em culturas tão marcadas por lutas, repressões, e

exemplos históricos em que foram usadas a força e a agressão.

Foi visto também o papel da mídia televisiva, como importante formadora de opinião,

e disseminadora de informações, não significando necessariamente que estas correspondam à

realidade, e também que o público seja totalmente passível de acolhê-las. O fator decisivo

aqui torna-se a credibilidade, o álibi perfeito para que a opinião pública esteja a favor ou

contra determinado episódio em sua vivência.

No mundo de hoje, capitalista ou não, ocidental ou oriental, se de um lado surge uma

intensa necessidade de interdependência entre as economias, com acordos entre países e

órgãos, e tratados mundiais que devem ser cumpridos à risca para fazer valer uma

globalização indiscutível, do outro lado surge sempre mais insatisfação, desigualdade

econômica e social, intolerância cultural e religiosa. Tudo isso também fruto da mesma

globalização, que ignora valores pessoais em detrimento de políticas de potencialização da

riqueza (mesmo que esta seja destinada apenas à cúpula da globalização). 1 “Não quero ser um idiota americano./ Uma nação controlada pela mídia./ A era informacional da histeria./ Está aí para idiotizar a América”. (Tradução da autora).

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44

A violência surge nesse contexto, principalmente, não apenas como uma característica

intrínseca ao homem, como animal, mas também como forma de mostrar insatisfação e,

muitas vezes, como forma de garantir a própria sobrevivência. Do modo como a conhecemos,

hoje, a violência urbana surgiu, principalmente, devido às práticas iniciais do capitalismo,

quando surgiram as primeiras cidades, e os primeiros comércios locais nos burgos europeus,

quando havia saques em grande quantidade, segundo Yves Michaud (1989, cap. 2) e William

H. McNeill (2002, p. 20-23).

Conforme as prerrogativas deste trabalho, de analisar em algumas manifestações

midiáticas específicas o medo como forma de controle da opinião e da ação públicas, parte-se,

primeiramente, do caso norte-americano, em que o terrorismo tomou uma proporção

descabida após os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono, símbolos estratégicos do

poderio norte-americano, e houve alteração de todo o comportamento de uma nação. Isso se

refletiu abertamente no enfoque dado pela televisão ao assunto, inclusive diminuindo

problemas internos muito mais importantes.

Num segundo momento, passando ao Brasil, se perceberá que o caos gerado pela

violência tem responsáveis diferentes dos aclamados pela mídia. Uma campanha de

propaganda, e algumas coberturas jornalísticas levam a crer que o medo aqui também toma

conta da população, mesmo que de uma forma diferente. Nos dois casos estudados, o mais

importante será avaliar os exageros nas estatísticas, e, principalmente, as medidas usadas no

combate à violência, seja ela manifestada de qualquer forma. Deixar a discussão apenas no

nível da culpabilização da mídia omite medidas sérias que precisam ser tomadas para que a

violência seja realmente controlada, e a população mantenha-se mais tranqüila.

Sérgio Adorno (2002, p. 186 e 187) diz que, proporcionalmente, o crescimento da

população é maior que o crescimento da criminalidade. “Ou seja, se analisarmos

rigorosamente, o crescimento da criminalidade é negativo em relação ao da população

urbana”. Barry Glassner (2003, p. 19) afirma o mesmo em relação aos Estados Unidos, não só

em relação à criminalidade comum, mas também ao terrorismo. A não ser em caso de guerra,

a América tão cedo não seria vítima de outro atentado como em 11 de Setembro. Nos dois

países, por mais que seja significativa a quantidade de vítimas dessas violências retratadas, é

muito maior o número de vítimas, por exemplo, de acidentes de trabalho.

O que leva a pensar, conforme Sérgio Adorno (2002, p. 187), num exagero relativo à

violência:

Page 46: Medo na Mídia - uma visão distorcida da violência

45

“Daí se levanta uma hipótese: a de que hoje há uma dramatização na questão da violência. E por que há uma dramatização? O que me permite dizer isso? Quando comparo a criminalidade com outros fenômenos sociais, por exemplo, os acidentes de trabalho, descubro que o número de acidentados no trabalho é muito maior que o das vítimas de assalto e vítimas de homicídio.[...] Então a pergunta é saber por que a violência como a dos acidentes de trabalho e a dos acidentes de trânsito não recebem da imprensa a mesma atenção dada aos outros crimes? Percebe-se que existe um fenômeno de dramatização que precisa ser exposto e analisado”.

4.1 TRAGÉDIA AMERICANA EM 11 DE SETEMBRO

Os atentados terroristas ocorridos no dia 11 de Setembro de 2001 marcaram

profundamente a história dos Estados Unidos, pelo fato de esta ser a primeira vez que seu

território sofre um ataque massivo de forças inimigas, e num nível mundial ocorre uma

profunda mudança no cenário dos conflitos, que outrora tinha limites e táticas bem definidas.

O novo conflito não tem fronteiras, pode acontecer a qualquer momento e em qualquer lugar,

como um grande fator surpresa. Os ataques não estão mais restritos aos soldados dos campos

de batalhas, passando a atingir agora locais públicos, cheios de civis. Atrair a atenção da

mídia e da opinião pública é o principal objetivo, quando se luta por uma causa totalmente

ideológica (território é o de menos na nova guerra), que arrebanha dos dois lados, fanáticos

dispostos a matar meio mundo, inclusive a si próprios, para conseguir seus objetivos.

A guerra promovida pelos Estados Unidos não é recente, e essa não foi a única

tentativa de atentados terroristas promovidos pelo “eixo do mal” (BARBER, 2005, p.56)2. No

início da década de 90, um palestino chamado Ramzi Yousef tentou, sem sucesso, explodir

uma das torres gêmeas. O combate ao terrorismo não é exclusivo da administração Bush,

tendo ocorrido também no governo anterior de Bill Clinton, e até há mais tempo:

“Uma observação factual é que a guerra contra o terrorismo não foi declarada no 11 de Setembro. Na verdade ela foi redeclarada e com a mesma retórica de vinte anos atrás. Como você certamente já deve saber, desde o seu início a administração Reagan considerava a guerra ao terrorismo como eixo da política externa americana”. (CHOMSKY, 2003, p.62)

Antes da fatídica data também, já havia rumores dentro da própria Casa Branca de que

haveria algum ataque terrorista sendo planejado pela Al Qaeda aos Estados Unidos. Em

2 Termo usado pelo próprio presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, para se referir aos estados islâmicos terroristas apoiadores da Al Qaeda, grupo terrorista que assumiu a autoria dos atentados de 11 de Setembro.

Page 47: Medo na Mídia - uma visão distorcida da violência

46

entrevista ao documentário “A verdadeira história do 11 de Setembro”3, o chefe de operações

anti-terroristas do governo Bill Clinton, e do início do governo Bush, Richard Clarke, admite

ter enviado relatórios à CIA4 informando a intenção que a Al Qaeda teria em atacar alvos

públicos dos Estados Unidos, seis anos antes dos atentados e, posteriormente, nove meses

antes.

O fato é que a população saiu ilesa dos atentados, não só pelas perdas de entes

queridos, mas pelo preço que todos iriam pagar depois, que seria o medo. Esta “é a única

arma do terrorismo, mas [...] é uma arma muito mais potente contra os que vivem num clima

de esperança e prosperidade do que contra os que vivem num mundo de desespero, sem nada

a perder” (BARBER, 2005, p. 37). Essa foi a arma usada contra o povo norte-americano,

principalmente através da mídia. Muitas mudanças significativas ocorreram em território

ianque, e a mídia foi parte disso tudo.

Com um nível de popularidade extremamente baixo, o presidente Bush precisava que

a população o apoiasse de alguma forma numa medida retaliativa contra os terroristas, que

acabou sendo a alternativa mais fácil, e que ainda tinha a vantagem de atender a outros

interesses de seu governo: a guerra. Para que a população o apoiasse, esta precisaria se sentir

constantemente ameaçada e acuada, sendo o melhor método, o medo, e o melhor

disseminador, a mídia. Todas as redes de televisão nos Estados Unidos estão ligadas a figuras

políticas, ou a grandes empresas que patrocinam os partidos políticos, estando até esse ponto

uma parte do caminho percorrido. Corrobora Noam Chomsky: a “propaganda de estado,

quando apoiada pelas classes cultas e quando nenhuma divergência é permitida, pode ter um

grande efeito. Foi uma lição aprendida por Hitler e vários outros e tem sido aplicada até hoje.”

(2003, p. 13).

Uma das mudanças bastante significativas foi o surgimento da Lei Patriótica:

“... polêmica legislação anti-terrorismo que, entre outros pontos, aumenta os poderes das agências de polícia, que passam a ter autoridade legal para usar tecnologias de monitoramento e rastreabilidade de qualquer comunicação que possa ser interpretada como potencial ameaça ao país. Isso significa que qualquer cidadão residente nos EUA pode ser espionado”. (O DIA DO TERROR, 2006, p. 123)

A partir daí, grande parte da cobertura jornalística e propaganda foi sobre essas

medidas tomadas. A população, tão amedrontada que se sentiu, concedeu o apoio que o

presidente desejava para a guerra. Serão expostos alguns exemplos de como a cobertura 3 A VERDADEIRA história do 11 de Setembro. Produção do History Channel. Nova Iorque: 2006. Produção para canal de tv a cabo. 4 Central de Inteligência Americana.

Page 48: Medo na Mídia - uma visão distorcida da violência

47

midiática expôs e incitou o medo na população, tirados da mídia televisiva entre setembro de

2001 e o ano de 2006. Em todos os casos foi constatado principalmente o desrespeito aos

direitos civis, já que a liberdade dos cidadãos foi cerceada, e estes passaram a conviver com o

medo ditando as regras de suas atividades. Politicamente, a mídia se mostrou bastante “chapa

branca”, nos termos dos jornalistas Diogo Schelp e Isabela Boscov (2006, p. 94), justamente

por se mostrar tão a favor das políticas do governo, espalhando estatísticas amedrontadoras, e

formando opinião pública no sentido de posicionar os cidadãos a favor da guerra contra o

terrorismo.

Logo após o 11 de Setembro, importantes noticiários norte-americanos, como Dateline

e 20/20, divulgaram principalmente notícias sobre a guerra que deveria ser travada contra

Osama bin Laden, e alertaram a população sobre outros possíveis ataques terroristas que

poderiam acontecer. Alguns jornalistas, de visão muito conservadora, como Barbara Walters,

viram um nicho em que poderiam arranjar um culpado e condenar a população americana ao

medo. Tudo isso está ligado a uma questão cultural muito forte nos Estados Unidos, que é a

da intolerância.

“Apesar de serem o protótipo de uma sociedade multicultural, os Estados Unidos demonstram impaciência diante da diversidade cultural ou da heterogeneidade religiosa no mundo, sobretudo quando elas parecem ameaçar os ideais americanos ou se situam fora do âmbito de sua imaginação” (BARBER, 2005, p. 32)

Num período de seis meses, os noticiários de tv mais importantes das três redes

nacionais no país divulgaram as seguintes informações principais: situações em locais

públicos norte- americanos em que algum suspeito de descendência árabe, principalmente, foi

preso por se comportar de forma suspeita; como os americanos deveriam agir para se defender

do terrorismo iminente; as ações do governo na guerra contra o terrorismo, e a constante

vigília e as novas atitudes de segurança adotadas na prevenção contra novos ataques.5 Dois

documentários importantes aqui, também reuniram vários exemplos de cobertura midiática no

período, e o conteúdo era semelhante ao mencionado acima.6

Quanto à propaganda, foram encontrados exemplos de vários produtos disponíveis

apenas nos Estados Unidos, em que geralmente um produto que teoricamente o salvaria em

caso de ataques terroristas (de pára-quedas que abrem em baixas altitudes até cabines

isolantes em material indestrutível), e também propagandas de grandes varejistas, como Wal 5 Resumo das principais informações veiculadas no material jornalístico coletado num período de até seis meses após o 11 de setembro. 6 MOORE, op. cit. ______. Farenheit 9/11. Nova Iorque: Dog Eat Dog Productions, 2003.

Page 49: Medo na Mídia - uma visão distorcida da violência

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Mart, que vendiam produtos mais simples, como armas de fogo, munição e máscaras contra

gás. Em todo esse material coletado observa-se a seriedade com que os jornalistas e

publicitários abordaram todas as matérias e produtos, sempre levando em consideração um

álibi na luta contra o terrorismo, fosse lembrando os ataques de 11 de Setembro, fosse com

testemunhos de políticos, ou personalidades importantes. Inclusive muitas das reportagens

com conteúdo passível de ridicularização, como uma matéria com uma mulher indignada por

não achar uma máscara anti-gás disponível para seu cachorro, ou uma chamada para um novo

colete à prova de balas, que a modelo que demonstraria o produto fica totalmente confusa e

não consegue colocar o produto. A força e o apelo de tais imagens são capazes de deixar

qualquer telespectador amedrontado, mesmo que seja o mínimo, e mesmo que seja para um

observador externo.

Aqui, o mais importante depois da transmissão das informações é o efeito. Com esse

aparato retórico e persuasivo – com o cuidado da observação de que há pessoas poderosas e

interesses por trás da notícia – observou-se uma mudança radical no comportamento dos

americanos que, desde defender atitudes totalmente anti-democráticas, como a Lei Patriótica,

ficou mais recluso devido ao medo que passou a sentir de ataques terroristas. Segundo o

antropólogo Barry Glassner7, mesmo com a chance de um novo ataque terrorista quase não

poder acontecer, o medo de que ele ocorra entre a população subiu 600%.

Igualmente amedrontadora foi a cobertura de possíveis ataques terroristas com pó de

Antrax, que ocorreu alguns meses após os ataques de 11 de Setembro, quando um funcionário

da Casa Branca foi infectado depois do contato com um suspeito pó branco, que chegou a ele

numa correspondência suspeita, pelo correio, e que trouxe à tona a discussão de possíveis

ataques terroristas com o uso de armas químicas e biológicas. A cobertura da mídia acerca de

cartas estranhas, e a nova vigilância nas agências de correios do país, bem como o medo que

assolou lares e ambientes de trabalho, e fez mudar também várias regras de convivência em

âmbito nacional, foi uma prova de como toda a opinião pública foi moldada em torno de um

caso único, e que, possivelmente, não ocorreria novamente. Inclusive no Brasil, com raro

histórico de atentados terroristas, e que nisso nada tem de comparativo com os Estados

Unidos, “os sistemas de distribuição de correspondências dentro das empresas foram

modificados para reduzir os riscos de atentados com agentes biológicos” (SCHELP;

BOSCOV, op. cit.).

7 Em entrevista ao documentarista Michael Moore no filme Tiros em Columbine, op.cit.

Page 50: Medo na Mídia - uma visão distorcida da violência

49

Esse efeito persuasivo é interessante na medida em que, na maioria das vezes, as

informações passadas pela mídia, e atestadas por políticos não correspondem à realidade do

terrorismo. Diz Benjamin Barber (2005, p. 47):

“O medo é a arma e o catalisador do terrorismo, o multiplicador e amplificador de incidentes terroristas reais que, afinal, vistos em escala mundial, são pouco freqüentes. Embora possam ser devastadores para as pessoas diretamente afetadas, são insignificantes, do ponto de vista estatístico, quando comparados, por exemplo, com a relação de baixas anuais dos desastres de tráfego ou com os acidentes domésticos, como pessoas caindo de escadas em seu próprio quarto”.

Yves Michaud, com relação à criminalidade em geral, chega a uma conclusão que

pode ser aplicada ao terrorismo:

“Mas essa progressão da violência criminal não foi provada e o que se assiste é, em vez, uma pacificação progressiva da sociedade; admitindo-se ou não, os costumes se civilizaram. O fato de a opinião pública preocupar-se com uma crescente insegurança não tem entretanto nada a ver com o volume efetivo da criminalidade.” (1989, p. 33)

Não se pretende de forma alguma menosprezar o perigo que o terrorismo representa,

hoje, aos Estados Unidos, mas ao mesmo tempo também é extremamente importante

averiguar o quanto a disseminação do medo é nociva aos ideais de liberdade e democracia do

povo, e ameaça não apenas cidadãos, mas o meio televisivo, que acaba subjugado

eternamente aos interesses de quem pretende manter a população sob cabresto. Estatísticas

exageradas e uma retórica persuasivamente ruim são caminhos que o autoritarismo trilha, e a

população norte-americana não deve estar aquém disso. O mundo caminha num rumo

perigoso, em que o unilateralismo pode levar a conseqüências desastrosas, como guerras

nucleares. A popularidade do presidente Bush tem declinado explicitamente, dando indícios

de que o povo se manifesta em favor da paz, e gerando novas esperanças de que o medo não

seja mais a principal característica de uma grande nação com valores democráticos.

4.1.1 Não é só do terrorismo que eles têm medo.

O medo já virou algo tão recorrente no momento atual dos Estados Unidos que o

terrorismo se mostra como apenas uma de suas faces. Em caráter ilustrativo apenas, serão

comentados alguns dos outros medos dos americanos relativos à violência, e que encontram

na mídia grande repercussão.

Page 51: Medo na Mídia - uma visão distorcida da violência

50

Uma questão bastante similar a que será trabalhada num dos próximos tópicos é a

relação da criminalidade nos Estados Unidos, com uso de armas de fogo. Este é o país em que

ocorre maior número de vítimas por tal meio, seja na forma de homicídios, suicídios ou ainda

acidentes com armas. E é também o país com maior número de armas de fogo por cidadão, e

encontra grande respaldo na mídia. Propagandas mostram armas como algo glamouroso e

necessário para proteção de entes queridos, sendo estas direcionadas não apenas a adultos

mais, como esta propaganda do fabricante Smith & Wesson:

“Tendo enxergado as crianças como seu futuro, a indústria passou a criar anúncios: ‘Parece que foi ontem que seu pai o trouxe aqui pela primeira vez’, diz a propaganda, ao lado da foto de uma criança apontando um revólver, com seu pai a seu lado. ‘Aqueles realmente eram bons tempos – apenas você, seu pai e a Smith & Wesson dele’”. (GLASSNER, 2003, p. 35)

Todos os dias a mídia norte-americana fala de crianças que matam outras crianças,

pessoas que matam outras pessoas no trânsito, promovem o medo e o preconceito, mostrando

sempre os negros e pobres como autores de crimes, e vários outros preconceitos, como contra

mães solteiras, dependentes de drogas, e vários outros. Mas a questão é a que a mídia se

preocupa apenas com a violência em si, sendo que a causa maior, como se verá adiante, é o

excesso de armas, segundo a maioria das estatísticas.

Raramente essa questão é tratada na mídia norte-americana, e quando se tenta abordá-

la, o jornalista acaba por mudar o foco, como aconteceu numa matéria da CNN, em que o

correspondente Dennis O’Hayer mudou o foco da conversa quando o entrevistado tocou no

assunto das armas numa matéria sobre fúria no trânsito.8 O que muitas vezes ocorre, além dos

interesses privados por trás de cada propaganda e cada noticiário, principalmente nas

informações locais, é que a violência é uma ótima maneira de desviar a atenção de assuntos

mais importantes, como saúde, educação e desemprego, por exemplo. Mesmo sendo um

grande e rico país, os Estados Unidos contam com graves problemas sociais, de previdência,

pobreza e educação, só para citar alguns, e procurar um outro pretexto mais passível de

manipulação torna-se para o governo, em especial, uma enorme válvula de escape. E a

violência, para um povo tradicionalmente tão obcecado por ela, torna-se a isca perfeita.

8 CNN Today, 28 de Agosto de 1997. Disponível em <www.cnn.com>. Acesso em 04/04/2006.

Page 52: Medo na Mídia - uma visão distorcida da violência

51

4.2 BRASIL: GUERRILHA URBANA.

A questão da violência no Brasil é algo muito importante de ser discutido, pois os

índices são altos e o fator negligência quando se trata do governo e forças armadas, acrescenta

ao fato um grau de alarmismo considerável. A violência que será aqui retratada é bastante

diferente da abordada no tópico acima, pois se sabe que as chances de um ataque terrorista são

ínfimas. Apesar da condição brasileira de aliada dos Estados Unidos, as relações

internacionais são, na medida do possível, amigáveis, e até por um fator cultural de grande

diversidade, o Brasil é um país bastante tolerante, algo que certamente não causa tanto

conflito quanto nos Estados Unidos.

A criminalidade abordada aqui é a criminalidade urbana, que causa por dia tantas

mortes, principalmente por causa da presença de armas de fogo. São homicídios, crimes

domésticos, suicídios, acidentes com as armas, brigas de trânsito e várias outras manifestações

criminais que elevam os números e mostram a triste realidade do país nessa relação com a

violência. As tabelas anexas ao final do trabalho mostram alguns desses números. Mesmo

assim, as pesquisas de vitimização, que mostram os dados da criminalidade no Brasil, são

insignificantes, comparadas ao que deveria corresponder à realidade. Diz Lemgruber (2002, p.

157) que:

“Nos Estados Unidos e em diversos países europeus, tais pesquisas são realizadas periódica e regularmente: pelo menos uma vez por ano, amostras representativas da população de diversos países são entrevistadas a respeito dos crimes de que foram vítimas.[...] No Brasil, já foram realizadas algumas dessas pesquisas domiciliares, mas [...] é praticamente impossível compara-las entre si, porque nem sempre as variáveis selecionadas são as mesmas e há diferenças metodológicas nos desenhos das amostras, no período de referência adotado e na definição do público-alvo.”

E, obviamente, haverá muitas diferenças entre esse tipo de violência nos dois países,

considerando a posição econômica de cada um, principalmente, e alguns resultados, mas com

relação a números, por exemplo, existem tantos homicídios lá quanto aqui; se aqui existem

favelas, lá existem guetos da mesma maneira isolados e vistos como um grande perigo para

outros cidadãos; a polícia norte-americana ganha tão mal quanto a brasileira, e apresenta

também grande grau de corrupção, considerando mesmo as desigualdades sociais. Mesmo

com tantas semelhanças, a cidade de Nova Iorque ainda conseguiu implementar um programa

de tolerância zero, que na década de 90 reduziu o número de assassinatos em 64%, o número

de tiros disparados, de 1017 em 1995, para 526 em 1998, e o número de civis mortos pela

polícia de 26 para 19 no mesmo período, contra 593 só em São Paulo todos os anos, segundo

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52

Louis Anemone (2002, p. 151), chefe de combate ao crime da Polícia da Nova Iorque por 34

anos. Algo aí deve estar errado, já que o Brasil não provê políticas eficientes de segurança

pública.

Com relação ao enfoque da mídia, ressaltam-se também semelhanças à medida em que

a violência é pauta para inúmeros telejornais e propagandas, verificando-se em todo o

conteúdo muitas vezes o exagero de algumas estatísticas – mesmo sendo tão grave o caso da

violência no país – e a disseminação constante do medo, com enfoque apenas em fatos e

ocorrências, e não em discussões de medidas para solucionar o problema. O medo de ser

vítima de um crime no Brasil, segundo Luzia Fátima Baierl (2004, p. 22-26) faz com que

indivíduos de classe média acima procurem o isolamento, cercando e fazendo verdadeiras

barricadas em suas casas com suportes de proteção que a tecnologia provê, ou ainda procurem

refúgio em condomínios fechados. À população mais carente, acaba restando apenas trancar-

se em casa, ou dar aval a criminosos em troca de proteção que a polícia acaba por não

fornecer.

4.2.1 A grande questão das armas de fogo: sim ou não?

O foco perdido na solução deve ser recuperado, e nesse sentido a mídia não tem

ajudado muito. Vários estudiosos do fenômeno social da criminalidade concordam que uma

medida eficiente seria a redução drástica da quantidade de armas em circulação, algo que foi

tema de um referendo realizado em 2005, quando se propôs acabar com a comercialização de

armas no país. Duas frentes parlamentares, uma contra e uma a favor da questão iniciaram

uma campanha para mobilizar votos, que aqui serão tratadas como a campanha do não e do

sim, respectivamente.

A frente do não, representada principalmente pela bancada ruralista e defensores das

armas, contou com uma campanha esteticamente menos elaborada, já que dispunha de menos

verba, mas com um enorme poder de persuasão, e uma retórica bem elaborada em cima do

medo da violência. Uma garota propaganda, que sempre aparecia mostrando os argumentos,

falava sempre com a voz pausada e ligeiramente embargada, sempre lembrando aos cidadãos

que, se eles não podem contar com a polícia, que contassem com eles próprios, e sempre

mostrava estatísticas de violência, que muitas das vezes foram exageradas e tomadas

isoladamente. Enfim, um discurso, mesmo que não elaborado em cima de evidências

concretas (no final da campanha, estas foram esquecidas em detrimento de ataques à

campanha do sim, como por exemplo, questionamento de verba utilizada para campanha),

Page 54: Medo na Mídia - uma visão distorcida da violência

53

despertava em qualquer cidadão o medo da violência, que levou à vitória desta frente ao final

da contagem dos votos do referendo.

Para desbancar os argumentos propostos pela frente do não, estatísticas são

extremamente necessárias, e as quais foram ignoradas frente ao medo imposto, mesmo que a

campanha do sim as mostrasse. “O porte de armas já está proibido – só para esclarecer, posse

significa ter um revólver e porte corresponde a andar com a arma por aí” (MONTEIRO, 2004,

p. 72). A taxa de homicídios com arma de fogo no país é a maior, segundo um estudo de 1998

das Nações Unidas, alcançando a proporção de 88%. (CANO, 2002, p. 130). Conclui-se daí

que a simples presença de armas de fogo já aumenta as chances de que o crime seja letal.

Segundo Ignácio Cano (Ibid., p. 134), várias ações deveriam ser tomadas no sentido de

diminuir a quantidade de armas em circulação, sendo elas:

a) Ações para reduzir a demanda, incentivando cidadãos a entregar suas armas

existentes, inclusive sob oferta de indenização, e punindo severamente quem for

pego com uma arma ilegal;

b) Ações para reduzir a oferta, tornando as armas um instrumento de uso estrito de

profissionais de segurança pública e privada, adotando também uma severa

fiscalização com relação ao comércio ilegal e fronteiras;

c) Ações para melhorar a fiscalização, abastecendo a polícia com banco de dados

informatizado, confiável e eficiente, fazendo parcerias com outras organizações,

como as não governamentais, garantindo um ataque implacável à corrupção

policial, e pressionando para uma reforma legislativa e penitenciária.

Estes pilares para a reforma vão muito além da questão das armas, ao contrário do que

foi afirmado na campanha do não, pois envolvem reformas profundas na polícia, no manuseio

de estatísticas, e na própria mentalidade dos cidadãos. Esta campanha para o referendo fez os

cidadãos acreditarem que era uma questão ligada especificamente às armas, quando na

verdade era apenas o início de uma reforma, que, no caso do Brasil, poderia ser lenta, mas que

a longo prazo traria mudanças na área da segurança pública.

Três pontos principais constituem a argumentação utilizada na campanha do não,

além, obviamente, do medo da violência: o primeiro é de que as armas de pequeno porte que

cidadãos comuns têm em casa, de fabricação nacional, não são as armas utilizadas para

cometer crimes, sendo estas armas longas, de grande milimetragem, obtidas através de tráfego

internacional. Nas favelas e onde há presença de grandes grupos organizados, realmente

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existem armas de grande porte, mas a violência mais comum que permeia as estatísticas não

segue esse padrão. Segundo Cano (Ibid., p. 135 a 137), uma pesquisa desenvolvida no Brasil

mostrou que “a grande maioria das armas confiscadas pela polícia no estado do Rio, com uma

média de 10 mil por ano, são de fabricação nacional. Mais da metade das mesmas

corresponde às marcas Taurus e Rossi, ambas propriedades da mesma empresa”. Mesmo que

o poder de fogo das armas nas mãos dos bandidos tenha aumentado nos últimos anos, essas

armas curtas são as mais simples, de calibre 32 a 38, quase nenhuma delas automática, e a

maioria, revólveres. Isso “ao contrário da imagem popular difundida pela imprensa e

favorecida pelos fabricantes (de armas)”. (Ibid., p. 136).

O segundo ponto é a divisão rígida entre bandidos e cidadãos de bens. A propaganda

coloca os bandidos como as pessoas más que devem ser desarmadas, e os cidadãos comuns,

como vítimas com direito de possuir sua arma exclusivamente para proteção, não

representando nenhum risco para a sociedade. E o último ponto, complementar a este, é que a

“arma é um instrumento de proteção que diminui o risco de sofrer violência ou ataques,

particularmente roubos”. (Ibid., p. 134).

Isso se traduz numa idéia de que existem pessoas boas, que podem possuir armas sem

riscos, mas é algo que as estatísticas provam ser extremamente equivocado. Nesta situação,

além dos crimes intencionais contra pessoas estranhas, deve-se considerar outros tipos de

crime, com altos números de incidência. Segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto de

Estudos da Religião, citada por Ignácio Cano (Ibid., p. 137), das armas domésticas

confiscadas, “50% tinham sido apreendidas porque seu proprietário não possuía a autorização

correspondente, e 40% por terem estado envolvidas em outro tipo de crime”.

Esse outro tipo de crime corresponde às estatísticas apresentadas por Yves Michaud

(1989, p. 68), que servem tanto para os Estados Unidos quanto para o Brasil de que o maior

número de crimes tem incidência doméstica, de maridos que matam mulheres, brigas que

terminam de formas trágicas em bares, ou ainda suicídios e acidentes com armas de fogo.

“O temor mais comum de quem decide se armar é o medo de ser roubado ou assaltado por um desconhecido. Embora o número seja pequeno para extrair conclusões definitivas, parece que a vitimização causada pelas armas de fogo em brigas é semelhante à registrada nos casos de roubos, que é o motivo mais mencionado para comprar uma arma. [...] Em 1995, nos Estados Unidos, apenas 15% das mulheres foram assassinadas por desconhecidos. É mais provável que uma mulher seja assassinada por seu companheiro ou ex-companheiro que por um desconhecido”. (CANO, 2002, p. 141)

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55

Há ainda que se contar com o fato segundo o qual quem reage num assalto tem muito

mais chances de sofrer alguma agressão, de acordo com a tabela VIII em anexo, o que os

especialistas chamam de fator surpresa, com o qual o agressor geralmente conta, “e qualquer

reação de defesa armada, apesar de legítima, pode provocar um desenlace fatal para o

assaltado” (Ibid., p. 141). Portanto, é perigoso firmar uma divisão tão rígida entre cidadãos de

bem, e criminosos, primeiro por causa das estatísticas de crimes ocorridos, depois porque só o

fato de alguém possuir uma arma em mãos o deixa frágil a reações de medo e agressividade, e

é potencializador de ocorrência de crimes. A isso se soma o fato de as armas serem facilmente

transferidas a terceiros, não bastando uma seleção de quem pode ou não possuí-las, sendo que

o controle dessa transferência é impossível de ser determinado.

Um outro argumento da frente armamentista em sua propaganda foi o seguinte fato: se

os criminosos soubessem que sua vítima poderia ter uma arma em casa, uma relação de risco

seria mais medida, e muitos deixariam de roubar. Isso é falso, porque crimes sempre

ocorrerão, pelo contrário, uma pesquisa citada na obra de Cano9 diz exatamente o contrário,

que com mais cidadãos se armando, as chances de os bandidos realizarem um roubo com mais

violência, por exemplo, seria melhor, pois eles esperariam uma reação. Seria mais ou menos

um efeito dominó, pois com mais crimes violentos, a população, motivada pelo medo e pela

divulgação da mídia, se armaria mais, dando mais margem para mais violência. Cano (Ibid.,

p. 142) dá um exemplo do que acontece nos assaltos a ônibus no Rio de Janeiro:

“Se um policial não-fardado estiver viajando no ônibus assaltado, acha que será executado se sua profissão for descoberta e por isso tenderá a disparar rapidamente. Como os delinqüentes sabem disso, também tendem a disparar ao perceberem qualquer movimento imprevisto. Essa ‘espiral do velho oeste’, em que tudo parece depender de quem disparar primeiro, provoca numerosas vítimas inocentes”.

Em dois comerciais de uma campanha anti-drogas10, o medo da violência também é

usado, mas de uma forma inusitada e que inclui o cidadão na reflexão, justificando o medo

pelas próprias ações dos indivíduos. Num dos filmes, uma seqüência de palavras explica que

o tráfico de drogas é um dos fatores que financia as armas usadas em crimes. A disposição das

palavras combinada com o som, lembra os medidores de sinais vitais de pronto-socorros. A

aceleração progressiva e a repetição das palavras, dá idéia de morte, ou no caso, falência. Essa

falência seria a do sistema, a do próprio homem que causa a si mesmo o crime.

9 KELLERMAN, Arthur et al., 1993 apud CANO, op. cit., p. 141. 10 Filmes cedidos pela agência Full Jazz, com sede em São Paulo.

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O outro filme mostra uma cena de um assalto fatídico, em que a mãe de um garoto é

baleada. Uma pequena história em rewind mostra que a arma usada no assalto foi comprada

com dinheiro de drogas vendidas ao próprio filho da mulher morta. É sim uma forma de

mostrar o medo não como apenas um fator de isolamento e exclusão do cidadão no processo

democrático, mas como um convite à reflexão. Esses dois filmes são bons exemplos também,

de como se discutem vários problemas sociais ao tempo, mudando o trato usual dado a esse

tipo de informação, que geralmente é isolar um problema do outro, dificultando uma análise

mais sistemática.

Nenhuma dessas estatísticas está visível na mídia. Vez ou outra, um jornal ou revista

chama a atenção para o fato, mas o destaque é insignificante perante as manchetes de

violência da ocorrência de crimes. A tendência acaba sendo transferir a responsabilidade da

mídia, governos e reformas sociais apenas para as mentes perturbadas dos criminosos. O

medo acaba sendo o instrumento principal de uma supervalorização da violência, quando na

verdade os cidadãos deveriam ser incitados a lutar contra ele, pois como foi colocado no

primeiro capítulo, existem dois caminhos para fugir do medo, um irracional, de inércia, outro

no qual o cidadão luta racionalmente contra ele.

Talvez a campanha do não tenha tido sua parcela de realismo quando afirmou que a

polícia brasileira por si só não é capaz de proteger o cidadão brasileiro. Estratégias que

reduziram bruscamente os índices de criminalidade na cidade de Nova Iorque, além da

questão das armas, atacaram diretamente o problema de policiais corruptos e mal-preparados,

melhorando a distribuição de oficiais nos distritos da cidade, oferecendo melhor treinamento e

remuneração, entre outros. Não só isso, mas guarnecer os postos policiais com sistemas de

banco de dados e mapeamento de violência, além de um envolvimento pró-ativo da

comunidade na caça contra o crime, desestimulando o medo, foram fundamentais para o

sucesso da operação.

Essas são mudanças que requerem um pesado investimento, que deveria partir de uma

iniciativa direta do Congresso e dos governantes, já que muitas vezes, as próprias leis

dificultam o trabalho em favor da melhoria da segurança pública. A mídia, representada tanto

por noticiários quanto propaganda, contribuiria mudando o enfoque dado à violência,

mostrando dados e estatísticas, ao invés de simplesmente mostrar a violência geradora de

medo, pois a criminalidade acaba sendo elevada a estatísticas surreais.

“Propor que cada cidadão se arme porque o sistema de segurança pública não funciona equivale a sugerir que, se o sistema de saúde pública não funciona, cada

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cidadão deveria comprar um bisturi e um estetoscópio. A segurança pública armada é para profissionais.” (Ibid., p.150)

Pelo menos a população já se propôs a lutar pela causa, e apoio (e por que não a

pressão?) da população é fundamental no combate à criminalidade. Apesar da vitória da frente

pelo não desarmamento no referendo realizado em 2005, uma pesquisa realizada pelo Vox

Populi, citada por Cano (Ibid., p.145), mostra que:

“60% estavam de acordo em que ‘ninguém deveria poder ter armas em cada’; 78% concordaram com que ‘só a polícia deveria poder usar armas’; e 54% preferiram a frase ‘a fabricação de armas no Brasil deveria ser proibida porque assim diminuiria o número de crimes violentos’, enquanto 41% optaram pela frase ‘a proibição de fabricar armas no Brasil não reduziria o número de crimes violentos’. Inclusive na região Sul do Brasil, onde estão situadas as fábricas de armas e onde se encontra o que mais se assemelha no país a uma certa cultura das armas, a maioria aprova a proibição da venda.”

Já existem alguns grupos que se manifestam contra, como por exemplo, a Fundação

Viva Rio, que sempre organiza passeatas no Rio de Janeiro em prol do desarmamento. Não só

essas mudanças são necessárias, como também é imprescindível uma reforma penitenciária,

oferecendo melhores condições aos detentos, inclusive uma chance de reintegração na

sociedade, são mudanças difíceis e lentas, mas que podem trazer bons resultados. A

criminalidade, muitas vezes, é fruto não apenas de uma mente perturbada isoladamente,

segundo Bruno Paes Manso (2002, p. 55), mas de problemas sociais que todos contribuem

para criar. Talvez entender o que leva essas pessoas a cometerem crimes seja útil para decifrar

isso.

4.2.2 PCC: terrorismo ou guerrilha?

Em julho de 2006, o Brasil viveu, por alguns dias, uma situação muito próxima a um

atentado terrorista. A diferença foi que os agressores não vieram de outro país, nem eram de

uma religião diferente em busca de um acerto de contas ideológico. Estes eram do próprio

território, e comandaram o motim detrás das grades das penitenciárias paulistas. Era o

Primeiro Comando da Capital, ou PCC, como é conhecido, que ordenou a depredação de

vários ônibus, estabelecimentos comerciais e bases policiais, sendo inclusive, vários destes

profissionais tendo sido assassinados.

Apesar da pequena quantidade de fontes e deste ser um grupo recente na história do

crime organizado brasileiro, a história ocorrida recentemente dá amostras de como a mídia

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tem lidado com tais acontecimentos, e assim como nas questões das armas, o medo é

propagado sem a proposição de alternativas que busquem a solução do problema. Aqui há um

diferencial, que é o grande poder que essas organizações possuem, e muitas vezes, o medo

dos próprios detentores da informação, é maior que seus interesses econômicos, exemplo

disso foi o assassinato do jornalista investigativo da Rede Globo, Tim Lopes, em 2003, e o

seqüestro de um outro jornalista neste último ataque do PCC, em que os bandidos exigiram

que um vídeo fosse exibido na programação em troca de devolver o jornalista com vida.

Não só os noticiários da TV como os meios impressos se referiram à sociedade como

“refém” (O PODER..., 2006, p. 45), numa declarada propagação do medo. Na televisão foi

mostrada a cidade de São Paulo deserta, cheia de estabelecimentos comerciais com suas

portas cerradas, e o desespero de várias pessoas. Uma matéria de revista registra o seguinte

texto:

“Medo, vergonha, raiva. Essas três reações, agravadas pela sensação generalizada de impotência, voltaram a assaltar os 11 milhões de habitantes de São Paulo na semana passada, quando a organização criminosa autodenominada Primeiro Comando da Capital – o PCC – desfechou na segunda onda de ataques em menos de dois meses, numa versão menos virulenta, mas igualmente assustadora, do ‘maio sangrento’.” (Id., p. 45)

Essa cobertura da mídia não oferece aos cidadãos a oportunidade de analisar melhor os

fatos. Os ataques do grupo foram direcionados à depredação do patrimônio público e algumas

pessoas da força policial, não a cidadãos especificamente. Os ônibus e estabelecimentos

atacados, a maioria não estava com pessoas por perto, e mesmo os policiais atacados, o foram

em caráter de emboscada. As imagens mostradas na televisão corresponderam a apenas uma

parte da realidade, sendo que algumas pessoas residentes em diferentes áreas da cidade de São

Paulo não notaram qualquer modificação em seus cotidianos, mostrando que as áreas afetadas

foram as mais periféricas.11

Os acontecimentos que vieram à tona na mídia representam uma discussão importante,

que é a força que essas organizações do crime representam num país como o Brasil, provando

mais uma vez que uma reforma na segurança pública é mais que urgente. A forma como se

apresenta a organização de tais grupos, com toda uma hierarquia, e “além dessa estrutura

verticalizada, o PCC também se organizou como uma empresa, com tesouraria, almoxarifado,

setor de crédito e departamento de pessoal”(Ibid., p. 47).

11 Amostra representada por 10 pessoas residentes em diferentes zonas da cidade, entrevistadas por telefone.

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Além disso, há a corrupção, com vários advogados seduzidos pela oportunidade de

ganhar ainda mais dinheiro, sendo coniventes com tal tipo de organização, e mais a

impunidade, e os vários problemas legislativos brasileiros, que combinados levam ao sucesso

desse tipo de criminoso. Todas as mudanças propostas no item anterior seriam úteis no

sentido de acabar com essas organizações.

A criminalidade não é algo novo, e sempre deverá ser combatida nas civilizações

capitalistas atuais. É muito importante qualificá-las e dividí-las em grupos para facilitar uma

ação efetiva contra elas. “[...] Apesar da escala apavorante do problema [...] ainda podemos

falar de um processo civilizador” (BURKE, 2002, p. 50). A esperança é que o medo deixe de

ser um fator que bloqueia os cidadãos a exercer seus direitos, e todos possam participar da

corrida pelo direito a uma segurança pública justa e igualitária.

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CONCLUSÃO

Nesta monografia três temas principais foram retratados e inter-relacionados: medo,

violência e mídia. Em dois casos bastante diferentes. De um lado, os Estados Unidos, país

desenvolvido, e que atualmente enfrentou uma situação que foi considerada um marco

histórico, os atentados terroristas ao World Trade Center e ao Pentágono. De outro lado, o

Brasil, país subdesenvolvido, e que enfrenta um problema sério de insegurança pública.

A população de cada país lida com a violência de uma forma particular, mas num

ponto há convergência: o apelo midiático no que se refere à violência. A mídia,

principalmente a televisão, de uma maneira geral, dá um tratamento especial à violência,

principalmente pelo peso e pelo impacto desta na vida dos cidadãos. Ela é, muitas vezes,

mostrada de forma crua, como fruto da mente de cidadãos perturbados, vítimas de infâncias

difíceis e vidas conturbadas. O modo como esta é mostrada faz com que muitos vejam a mídia

como uma grande manipuladora, esquecendo-se que muitas vezes há interesses ideológicos e

políticos por parte de quem está no comando das emissoras.

Claro que há de se considerar a televisão como formadora de opinião, até porque ela

atinge um público de baixa renda, que muita vezes não tem acesso a outras fontes de

informação, e toma a notícia televisiva como verdade, ainda mais se ela for amparada por um

líder de opinião ou algum político da confiança do povo. Mas a principal preocupação é o fato

de a TV estar sendo prejudicial num combate efetivo à violência, principalmente pela

propagação do medo.

Foi visto que o medo é algo inerente a todos os seres humanos, e que faz parte da luta

instintiva pela sobrevivência. Existem duas alternativas que servem de saída à violência,

basicamente: lutar ou fugir. No contexto social, a disseminação de notícias de criminalidade

pela mídia faz com que o cidadão, numa situação de fragilidade perante o poder de fogo dos

criminosos, escolha a opção de fugir. Isso se reflete em isolamento, e aquisição de meios para

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se defender da violência, e acaba sendo ainda mais fomentado pela própria mídia, que a partir

daí lança propagandas de armas, pára-quedas, máscaras anti-gases, e vários outros apetrechos

para fazer com que o cidadão se sinta mais seguro. Pode-se dizer que o medo gera uma

indústria bastante lucrativa.

Nos Estados Unidos, o terrorismo foi o pretexto para o surgimento de mais e mais

medos, que isolaram e discriminaram indivíduos por serem diferentes quanto à cor de pele,

religião e país de origem, só para citar alguns fatores; fez também com que uma “guerra

preventiva” fosse iniciada, provando o unilateralismo e a arrogância de um presidente que,

numa época de total interdependência global, se dispôs a brigar com quem quer que fosse,

dividindo o mundo entre aliados e inimigos.

No Brasil, a violência mostrada todos os dias na TV obriga quem tem mais recursos a

buscar uma vida tranqüila nos condomínios longe do centro da cidade, e os menos

afortunados a viver uma vida de medos, ou se entregar ao apadrinhamento do crime

organizado, já que a proteção policial não é suficiente para garantir a segurança. O grande

número de armas de fogo em circulação aumenta os números das estatísticas, e mesmo com

vários setores da sociedade comprometidos com a diminuição da violência, a vitória dos que

desejam a presença das armas no referendo realizado em 2005 comprometeu o passo inicial

na conquista de melhorias na segurança de todos os cidadãos.

Mas a pior perspectiva possível para o cidadão comum é imaginar que toda essa

cobertura da violência na mídia, e o trato dado a ela na realidade, servem apenas para

disfarçar problemas sociais muito maiores, como o desemprego, o grande número de crianças

fora da escola, o precário sistema de saúde, e a corrupção, para não citar outros. Tanto nos

Estados Unidos quanto no Brasil, existem milhares de pessoas abaixo da linha da pobreza,

fruto de uma injusta distribuição de renda, sem que o governo provenha condições mínimas a

essas pessoas, sendo o Brasil ainda mais injusto tanto na distribuição de renda, quanto aos

recursos mínimos oferecidos pelo Estado. São vários desses problemas que levam crianças a

crescerem em meio à miséria, tornando-se criminosos conturbados, ou ainda pais de família

que cometem crimes pela estrita necessidade.

Se cada governo, ao invés de se preocupar com a guerra, ou gastos imensos em

campanhas de reeleição, por exemplo, se atentasse a esses fatores, e buscassem soluções

efetivas, saíssem do comodismo para acabar de vez com pelo menos um pouco disso que

causa mal a tanta gente, os cidadãos poderiam construir para si uma sociedade mais justa.

Porque o medo não é uma situação permanente. Mesmo sendo usado como instrumento de

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controle, chega um momento em que a própria população dá um basta à situação, e o medo se

volta contra os líderes. Foi assim na Revolução Francesa. Será assim um dia na atualidade.

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