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A função do medo, a posição da mídia e a construção de
uma subjetividade punitiva na formação do imaginário que
circunda as prisões provisórias
O presente capítulo objetiva apresentar a discussão sobre o papel do medo,
sistematicamente difundido pelos diversos mecanismos de mídia, na constituição
de um patamar de subjetividade punitiva responsável pela transformação das
prisões provisórias em mecanismos de neutralização social de populações
consideradas como problemáticas.
Em busca de tal objetivo, preliminarmente, devemos, conforme a fala de
Jean Delumeau, identificar aquelas populações problemáticas passíveis de
controle como as “coletividades mal amadas da história”, as quais “são
comparáveis a crianças privadas de amor materno e, de qualquer modo, situadas
em falso na sociedade”, tornando-se assim “as classes perigosas”87.
À emergência dessa discussão em torno das “classes perigosas” no cenário
brasileiro atual, o medo frente ao inimigo condicionou-se a ser regra numa justiça
criminal que é teoricamente considerada democrática, mas em sua prática é
extremamente autoritária, marcada sistematicamente por decisões carentes do
mínimo respaldo legal, tornando despiciendo o comando constitucional,
expressamente previsto no artigo 93, inciso IX, da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, o qual impõe o dever de fundamentação a todas as
decisões emanadas pelo poder judiciário.
Assim sendo, é inevitável destacar que as prisões provisórias, que devem
ser aplicadas preservando os limites intangíveis dos direitos e das garantias
individuais asseguradas pelo regime democrático brasileiro, estão sendo
distorcidas e banalizadas, concretizando algumas das práticas autoritárias no
campo da justiça criminal.
No entender de André Nicolitt, a referida distorção do instituto das prisões
processuais acontece em virtude do fato de que elas “acabam sendo utilizadas
87 DELUMEAU, Jean. Op. cit., p. 27.
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como mecanismos de satisfação da sociedade, funcionando como prevenção geral
e específica, funções próprias da pena definitiva”88.
Não obstante, cabe pontuar que se deve atribuir ao papel da mídia, boa
parte do desvirtuamento do instituto das prisões provisórias, eis que a tendência
atual é que o resultado final do processo importe menos do que a satisfação
momentânea alcançada com a prisão de um suspeito do cometimento de uma
conduta criminosa.
Isto se visualiza claramente quando a opinião pública acredita que as
práticas e os institutos do poder judiciário podem propiciar uma rápida solução
para o problema da violência, o que se constitui como uma falsa premissa, já que
o judiciário não se compõe como órgão do executivo vinculado à pasta de
segurança pública.
Nesse patamar, no intento de compreender o autoritarismo contemporâneo
que paira sobre a justiça criminal brasileira, deve-se adotar como referência a
opinião de Vera Malaguti sobre o fato de que a hegemonia conservadora incutida
na formação social brasileira trabalhou a disseminação do medo como mecanismo
indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social. Nesse passo, ele
tornou-se então importante fator de tomadas de posições estratégicas nos campos
econômico, político ou social89.
Cumpre ainda registrar que no entender da sobredita autora, historicamente
o medo foi trabalhado no Brasil desde o contexto de colonização da América,
passando pela assimilação do modelo colonial escravista e chegando à formação
de uma República, que se orienta na incorporação dos indivíduos os excluindo,
revelando, desta forma, uma forte tendência ao viés autoritário.
3.1
A expressão atual do medo na sociedade brasileira considerando os
reflexos da colonialidade na “América”
A primeira projeção do medo no continente que seria chamado de
“América” foi aquele disseminado pela matriz colonial de poder europeia,
88 NICOLITT, André. As subversões da presunção de inocência: violência, cidade e processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 117. 89 BATISTA, Vera Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história, p. 23.
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responsável direta pelo apossamento de grande parte das riquezas do continente
americano, promovendo, em vista da consecução deste objetivo, um genocídio
sem precedentes dos seus habitantes nativos.
Acerca deste acontecimento histórico, Tzvetan Todorov estima que no
lapso temporal compreendido entre o ano de 1500 e meados do século XVI, a
população americana anteriormente composta de 80 milhões de pessoas teria sido
brutalmente reduzida para apenas 10 milhões90.
Registre-se que os impressionantes índices deste extermínio, inauguravam
o projeto da modernidade ocidental em solo americano, o qual remanesce ainda no
curso do século XXI, demonstrando alguns indícios de que ele talvez não tenha
encontrado o seu encerramento no continente.
Na leitura de Walter Mignolo, o paradigma da modernidade ocidental
estabeleceu-se no continente americano, mediante a lógica da colonialidade do
poder, a qual obedecia a quatros postulados da experiência humana: o domínio
econômico, referente à necessidade de apropriação da terra, da exploração da
força de trabalho e do controle das finanças; o domínio político, que envolvia o
indispensável comando da autoridade; o domínio social, atinente ao necessário
controle da questão de gênero e da sexualidade e, por fim, o domínio epistêmico e
pessoal, relativo à dominação do conhecimento e da subjetividade91.
Com sustentáculo nos preceitos da colonialidade, o enunciado autor
sustenta que a matriz colonial de poder européia forjou a ideia do continente
americano, consolidando a expansão de suas concepções e instituições,
desprezando as contribuições de quem anteriormente habitava o continente.
Nessa contextualização, ainda na dicção do supramencionado autor,
ocorrera a “invenção” da América, o que implicou na sua apropriação e integração
ao imaginário cristão e europeu e não o “descobrimento” daquele continente, eis
que essa terminologia se baseava num discurso triunfal do imperialismo ocidental
europeu, principal articulador da modernidade.
Os marcos do conceito de “descobrimento” impuseram o peso da
apropriação colonial a certos povos, que foram alijados da história oficial européia,
90 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Trad. de Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 129. 91 MIGNOLO. Walter D. La idea de América Latina: la herida colonial y la opción decolonial. Trad. de Silvia Jawerbaum; Julieta Barba. Barcelona: Gedisa, 2007, p. 36.
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tendo suas memórias, experiências e relatos conceituais silenciados, colocando-se,
portanto, fora da categoria de seres humanos, atores históricos e sujeitos racionais.
No transcurso dos séculos XVI e XVII no continente americano, os
indígenas e os escravos africanos tiveram a sua história usurpada pela violência
em nome da evangelização e da civilização, sendo que, nos tempos recentes, essa
usurpação ganhou novos contornos, no propósito de justificar o avanço do
desenvolvimento e da democracia de mercado.
Saliente-se que as usurpações do direito à memória dos povos nativos do
continente americano submeteram-nos ao jugo do medo, sob a forma de um
controle, dominação e exploração permanente, refletindo todo um contexto de
opressão contido na colonialidade, a qual se ocultava sob o véu aparente dos
discursos da modernidade ocidental, em torno da salvação, do progresso, da
modernização e do bem comum.
Aprofundando um pouco mais a compreensão do tema, Walter Mignolo
assegurou que:
“Por mor de claridad, es conveniente considerar la
<<modernidad/colonialidad>> como dos caras de una misma moneda y no
como dos formas de pensamiento separados: no se puede ser moderno sin ser
colonial, y si uno se encuentra en el extremo colonial del espectro, debe negociar
con la modernidad, pues es impossible passarla por alto. La idea de América no
puede separarse de la colonialidad: el continente en su totalidad surgió como tal,
en la conciencia europea, como una gran extensión de tierra de la que había que
apropiarse y un pueblo que había que evangelizar y explotar (Por razões de clareza, é conveniente considerar a <<modernidade/colonialidade>> como duas caras de uma mesma moeda, e não como duas maneiras distintas de pensar: não se pode ser moderno sem ser colonial, e se um se encontra no extremo colonial do espectro, deve negociar com a modernidade, pois é impossível passá-la por alto. A idéia da América é inseparável da colonialidade: o continente como um todo surgiu como tal na consciência europeia, como uma grande extensão de terra de que tinha que ser apropriada e um povo que tinha que ser evangelizado e explorado).”92
Ressalve-se então que a colonialidade, estrutura logística do domínio
econômico e político colonial, não deve ser confundida com o colonialismo,
definição conceitual referente a períodos históricos específicos e a lugares onde
vigorou algum tipo de dominação imperial.
92 Ibidem, p. 32.
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Por obra de seu completo alinhamento com a modernidade ocidental, a
colonialidade acolhia a ideia de uma história linear e homogênea que
marginalizava diversos saberes, línguas e pessoas.
Com fundamento nessa marginalização do “outro”, edificou-se uma
justificativa ideológica para o racismo no continente americano, facilitando-se o
domínio de largas faixas de terra e a exploração abundante do potencial laborativo
de seres humanos categorizados como “inferiores”, em sua maioria, indígenas e
negros africanos.
Formava-se, desse modo, uma hegemonia voltada a um modelo de
humanidade renascentista europeu, onde os indígenas e os negros africanos
ostentavam o rótulo de cidadãos de segunda categoria, isto quando recebiam o
“privilégio” de serem qualificados como seres humanos.
No entender de Walter Mignolo, surgiam os cimentos históricos,
demográficos e raciais de um mundo moderno/colonial, no qual a questão de raça
não se relacionava somente como a cor de pele ou a pureza de sangue, senão com
a adequação a um modelo preconcebido de humanidade ideal. Logo, observava-se
que:
“La noción de <<raza>> sería similar a la de <<etnia>>, pues la raza se
refiere a la genealogía sanguínea, genotípica o de color de la piel y la etnia
incluye la lengua, la memoria y un conjunto de experiencias compartidas
passadas y presentes, por lo que comprende un sentido cultural de comunidad, lo
que las personas tienen en común. Ese es precisamente el significado de ethnos y
es la razón por la cual equivale al concepto de <<nación>> (del latín natio,
<<comunidad donde se há nacido>>) y es complementário de él. (A noção de <<raça>> seria semelhante a de <<etnia>> pois a raça se refere a genealogia sanguínea, genotípica ou da cor da pele e a etnia, inclui a língua, a memória e um conjunto de experiências compartilhadas passadas e presentes, portanto, compreende um sentido cultural de comunidade, o que as pessoas tem em comum. Isso é precisamente o significado de etnia e é a razão pela qual o conceito equivale ao conceito de <<nación>> (do latim natio, <<comunidade onde tem nascido>>) e é complementar a ele).”93
Com os Estados nacionais surgindo na América, oriundos dos movimentos
de independência no continente no século XIX, acelerou-se a reprodução da
segregação racial, característica dos movimentos expansionistas da Europa
93 MIGNOLO. Walter D. Op. cit., pp. 41/42.
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ocidental no século XVI, só que agora na vertente dos criollos, descendentes de
europeus nascidos em solo americano.
Estes criollos, ao se constituírem como as novas elites americanas,
necessitavam emancipar-se do domínio metropolitano que, segundo Benedict
Anderson, os consideravam de “natureza diferente e inferiores aos
metropolitanos” pelo fato de terem nascido num “hemisfério selvagem”, e, por
esse fato, estavam inaptos a ocuparem os cargos mais importantes das colônias
americanas94.
Embora tenham se libertado da dominação política metropolitana, os
criollos, no campo ontológico, ainda identificavam-se com a sua ascendência
europeia e com os costumes da matriz colonial originária, sendo certo que eram
ainda economicamente dependentes das relações comerciais travadas com a
metrópole.
Pela notória influência dos valores de sua matriz colonial, os criollos
também afirmavam seu poder, cerceando permanente as práticas e os saberes dos
índios, negros africanos e mestiços no continente americano, incorporando-os a
uma história universal e linear, articulada sob as bases da perspectiva cristã
ocidental.
Agindo assim, os criollos criaram a ideia da “América Latina”,
representada pela permanente colonização do “ser” e do “saber” dos povos
indígenas, africanos e mestiços, a qual, aliada ao capitalismo da segunda metade
do século XIX, difusor do primado da técnica e da ciência como ideologia,
propiciou a construção de um racismo, de cunho perigosista e biologicista, que
desvalorizava o valor da vida humana, exortando a noção de sua prescindibilidade.
Este racismo perigosista e biologicista, candente até hoje na realidade
latinoamericana, de acordo com os cânones interpretativos de Walter Mignolo,
potencializou a colonialidade do poder, a qual foi responsável pela manutenção de
uma hierarquia em todas as esferas da sociedade.
Historiando as premissas basilares do poder punitivo na América Latina,
instituído sob os auspícios da colonialidade, Eugenio Zaffaroni, com riqueza de
detalhes, destaca, na explicação transcrita a seguir, como o espaço
latinoamericano veio a se tornar uma gigantesca “instituição de sequestro”:
94ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad. de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 101.
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“O exercício do poder repressivo nos países colonizados permaneceu sem grandes alternativas até muitas décadas depois da independência, ao amparo de repúblicas oligárquicas que mantiveram as maiorias em condições análogas à servidão. A independência significou muitas vezes apenas a ascensão da limitada classe dos brancos descendentes dos colonizadores. Justiça exercida por grandes proprietários de terras, penas de morte privadas, assassinatos de dissidentes, repressão em massa, recrutamento forçado de mestiços e mulatos para os exércitos, polícias de ocupação, arbitrariedades e torturas, degolas, aprisionamento sem processo, estados de exceção permanentes e fenômenos de incrível corrupção foram correntes nestes imensos campos de concentração.”95
Infere-se assim que o racismo perigosista e biologicista avançou pelo
século XX na América Latina e, temperado por uma cultura autoritária das
ditaduras de segurança nacional, chegou ao século XXI, embora levemente
modificado, com força suficiente para continuar silenciando as memórias de uma
série de homens, os quais ainda permanecem na condição de oprimidos.
Estes homens oprimidos agora encontram o seu controle sob o signo de um
medo que não determina concretamente quem seja o seu inimigo. Todavia,
quando este temor aponta finalmente os seus adversários, prontamente os etiqueta
como “terroristas”, capazes de desestabilizar a harmonia e o equilíbrio de uma
suposta “ordem pública”.
Conforme se disse anteriormente, verifica-se que as implicações do
imaginário da colonialidade, com algumas poucas modificações, remanescem no
âmago dos discursos do medo no contexto latinoamericano, tal qual acontece no
cotidiano brasileiro na atualidade, onde também se observa o exercício de um
poder punitivo baseado na aplicação de mecanismos de neutralização de quem
eventualmente assuma os contornos destinados à figura do inimigo.
Noutra explicação, aqueles indivíduos rotulados como problemáticos ou
indesejáveis ao convívio em sociedade, ao realizaram supostas práticas criminosas
das quais sejam acusados, costumam sofrer uma descriteriosa aplicação da prisão
preventiva, utilizada como forma de imposição de uma sanção prévia de privação
da liberdade, a qual nem efetivamente pode vir a se confirmar, descortinando-se,
dessa forma, uma característica de controle social incrustada nessas detenções.
Debruçado sobre essa realidade latinoamericana, Eugenio Zaffaroni
observou com perspicácia que:
95 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit., pp. 47/48
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“A característica mais destacada do poder punitivo latino-americano atual em relação ao aprisionamento é que a grande maioria – aproximadamente 3/4 – dos presos está submetida a medidas de contenção, porque são processados não
condenados. Do ponto de vista formal, isso constitui uma inversão do sistema
penal, porém, segundo a realidade percebida e descrita pela criminologia, trata-se de um poder punitivo que há muitas décadas preferiu operar mediante a prisão preventiva ou por medida de contenção provisória transformada definitivamente em prática. Falando mais claramente: quase todo o poder punitivo latino-americano é exercido sob a forma de medidas, ou seja, tudo se converteu em privação de liberdade sem sentença firme, apenas por presunção de periculosidade.”96
Essa antecipação do poder punitivo, diagnosticada por Eugenio Zaffaroni,
também decorreria essencialmente de dois fatores.
O primeiro é a massificação mundial do modelo de enfrentamento ao
“terrorismo”, determinado pela declaração de uma guerra preventiva-repressiva
aos “terroristas”, aliado ao alargamento da base conceitual do que seja
caracterizado como prática ou grupo terrorista.
Já o segundo consistiria na representação concreta do crime como foco de
exclusão dos sujeitos desconectados da sociedade de mercado.
No tocante a este último fundamento, frise-se que é a prova cabal da
utilização das prisões provisórias como forma de controle social.
Da mesma forma, podemos deduzir esta função da custódia preventiva a
partir dos ensinamentos de Gilles Deleuze acerca dos paradigmas regentes da
“sociedade de controle” (ou melhor, da sociedade de mercado globalizada dos
tempos atuais), pois o papel desempenhado pelo encarceramento provisório na
vida dos custodiados preventivos em muito se identifica com a “sociedade de
controle” deleuziana, porque tanto esta quanto aquele se fundamentam nas bases
de um controle exercido em “curto prazo e de rotação rápida, mas também
contínuo e ilimitado”97.
Não é à toa que se verifica assim a transformação da medida cautelar numa
pena (coação) cautelar, a qual, sendo revista com bastante cerimônia em alguns
processos, submete os acusados ao crivo de uma sanção formal cumprida através
da prisão provisória, sublevando a importância do ato de cessação da custódia
96 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit., p. 70. 97 DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972 – 1990. Trad. de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: 34, 1992, p. 224.
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preventiva, que passa a ser equivalente a uma absolvição em quase todos os seus
efeitos práticos.
Nessa toada, Eugenio Zaffaroni, refletindo sobre a constatação de que os
“indesejáveis” sofrem uma punição formal na custódia preventiva, acentua ser o
poder punitivo latinoamericano “exercido mediante medidas de contenção para
suspeitos perigosos, ou seja, trata-se, na prática, de um direito penal de
periculosidade presumida, que é a base para a imposição de penas sem sentença
condenatória formal à maior parte da população encarcerada”98.
Por sua vez, realizando uma detalhada pesquisa nos arquivos históricos
brasileiros, Sidney Chalhoub apresenta um interessante registro da prática
punitiva de periculosidade presumida na cidade do Rio de Janeiro no século XIX,
ocasião em que este município abrigava a Corte imperial brasileira. Senão
vejamos:
“O código de posturas de 1838, mais rigoroso e detalhado em relação aos movimentos permitidos aos escravos e “pessoas de suspeita” – e encontramos aqui, novamente, o temor provocado pelo levante dos africanos na Bahia em 1835 –, recomenda aos donos das tavernas que não permitam o “ajuntamento de mais de quatro escravos”, e estabelece que “todo o escravo que for encontrado das sete horas da tarde em diante, sem escrito de seu senhor, datado do mesmo dia, no qual declare o fim a que vai, sofrerá oito dias de prisão, dando-se parte ao senhor.””99
Diante deste interessante registro histórico, resgatado por Sidney Chalhoub,
o qual expressa uma espécie de prisão provisória, cominada em pleno código de
posturas vigente no Rio de Janeiro imperial, não se pode duvidar do fato de que se
desenhava, já no cenário do Brasil Império do século XIX, como frisa Vera
Malaguti, “uma articulação do direito penal público a um direito penal privado, a
partir do regime escravocrata”100.
Essa articulação entre o poder punitivo público e o particular, muito além
de resultar num processo de desqualificação jurídica que estabilizou a ordem
burguesa brasileira nos fins do século XIX e influiu na recepção da doutrina de
98 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit., p. 71. 99 CHALHOUB, Sidney. Medo branco de almas negras: escravos libertos e republicanos na cidade do Rio. In: INSTITUTO CARIOCA DE CRIMINOLOGIA. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. n. 1. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996, p. 169-189, p. 176. 100 BATISTA, Vera Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história, p. 102.
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segurança nacional nos anos sessenta do século XX no Brasil, contribuiu
decisivamente para a difusão das políticas urbanas segregacionistas e das
campanhas em prol da “lei e ordem”.
Tais acontecimentos acompanharam o retraimento das políticas públicas, o
aumento do desemprego, do subemprego, o rebaixamento salarial e a diminuição
da renda per capita, culminando num quadro irreversível de marginalização das
classes urbanas brasileiras mais humildes, as quais, excluídas de um projeto de
educação, de moradia, de saúde e de saneamento adequados, inevitavelmente
tornaram-se a clientela preferencial de um sistema penal que pune, principalmente,
através do aumento de presos sem condenação.
Aliás, este sistema penal da punição sem condenação, registra o avanço de
um autoritarismo que impõe as marcas de um modelo belicista ao poder judiciário
brasileiro, o qual, ao tratar o acusado ou condenado como “inimigo”, naturaliza a
violação de direitos e reifica as intolerâncias em relação às garantias fundamentais
asseguradas no texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Nesse sentido, Vera Malaguti frisa que as estruturas jurídico-policiais do
sistema penal brasileiro nunca se desintegraram, tampouco se atenuaram. Na sua
convicção, é como se a memória constituísse “uma arquitetura penal genocida
cuja clientela-alvo se fosse metamorfoseando infinitamente entre índios, pretos,
pobres e insurgentes”101, naturalizando uma rígida e hierarquizante ordem social,
que se opõe ao caos, por intermédio do artifício de uma sistemática criminalização
das camadas populares.
O ponto de apoio dessa apontada criminalização, inclusive, se sustenta
num poder punitivo onipresente e capilarizado, que, impregnado pelo medo e pela
insegurança globalizada, desdobra-se em múltiplas construções discursivas,
movidas por um discurso criminológico central baseado no senso comum,
impregnado da noção de que as sanções criminais devem ser aplicadas de acordo
com o grau de periculosidade presumida do acusado.
Em período recente, constituiu um cristalino exemplo de apoio às práticas
de um poder punitivo de periculosidade presumida, o posicionamento do prefeito
carioca, Eduardo Paes, manifestado publicamente por meio de uma declaração sua
a respeito dos crimes em série ocorridos no município do Rio de Janeiro em 21 de
101 BATISTA, Vera Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história, p. 105.
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novembro de 2010, os quais fomentaram uma onda de pânico na cidade e a
posterior reação das forças de segurança pública do estado fluminense e das forças
armadas brasileira, através da gigantesca operação militar montada nas
comunidades do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro.
Na ocasião da sobredita megaoperação militar, o referido chefe da
administração municipal declarou então a um veículo de comunicação que “está
na cara que esses episódios são uma reação contra a política de segurança. São
ações de terrorismo que buscam acuar as autoridades”102.
Rememore-se, nessa conjuntura, que a nomenclatura “terrorismo”,
utilizada naquela ocasião, já havia sido empregada noutro momento pelo então
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando o mesmo referiu-se a uma sequência
de atos criminosos praticados, em grande maioria, contra policiais civis e militares
na cidade do Rio de Janeiro em 28 de dezembro de 2006.
Naquela oportunidade, o comandante do Executivo federal também
declarara, coincidentemente ao mesmo veículo de comunicação, que “essa
barbaridade que aconteceu no Rio de Janeiro não pode ser tratada como crime
comum. É terrorismo. Extrapolou o banditismo convencional que
conhecíamos”103.
Posteriormente aos episódios nominados de “terroristas” por parte do
presidente Lula, o deputado federal pelo estado de Rondônia, Eduardo Valverde,
pertencente ao mesmo partido daquele chefe do Executivo federal, apresentou, em
20 de março de 2007, um projeto de lei “antiterrorismo”104.
Imbuído de um alto grau de indeterminação, o projeto de lei de iniciativa
da Câmara dos Deputados nº 486/2007 permitia a criminalização de diversos
102 Eduardo Paes classifica ataques em série no Rio como ‘terrorismo’, Rio de Janeiro, 23 nov. 2010. Notícias. Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2010/11/eduardo-paes-classifica-ataques-em-serie-no-rio-como-terrorismo.html>. Acesso em: 26 fev. 2011. 103 Ataques no Rio são ato terrorista, afirma Lula, Rio de Janeiro, 01 jan. 2007. Notícias. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,AA1405422-5601-413,00.html>. Acesso em: 27 fev. 2011. 104 Reforce-se que pouco tempo depois da apresentação do Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 486/2007, o Congresso Nacional da Argentina sancionou um projeto de lei enviado pelo Poder Executivo, incorporando o crime de financiamento do terrorismo ao Código Penal daquele país. Por suposto, esta iniciativa legislativa do governo argentino objetivava o cumprimento de compromissos internacionais firmados com as Nações Unidas, solidarizando-se com os Estados Unidos da América, em razão dos acontecimentos que envolveram o 11 de setembro, e auxiliava na consolidação de uma tendência latinoamericana de endurecimento legal para o enfrentamento do terrorismo. In: CARDO, Horacio. Contra el terror, la fuerza de la ley, Buenos Aires, 25 jun. 2007. Opinión. Disponível em: <http://edant.clarin.com/diario/2007/06/25/opinion/o-02901.htm>. Acesso em: 31 mar. 2011.
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movimentos sociais, o avanço da punibilidade para os atos preparatórios, a
previsão de elevadas penas voltadas à prevenção de atos futuros que abalassem a
preservação da ordem pública, além do “inquisitivo” instituto da delação
premiada.
No desiderato de melhor se enxergar a extensão do quilate punitivo da
suscitada proposta legislativa, a qual visava definir o crime de terrorismo e a
organização terrorista, vale transcrever a seguir alguns de seus dispositivos legais,
bem como parte de sua justificativa, por ser de grande relevância para a
compreensão de seus objetivos mais prementes:
“[...] Artigo 1º- Considera-se crime de terrorismo, os atos que, na população
ou em um segmento da mesma produzam terror ou intimidação e criem perigo comum para a vida, a saúde, a integridade corporal ou a liberdade das pessoas, pelo emprego de meios ou artifícios que por sua natureza possam causar, danos materiais, graves perturbações da ordem ou calamidades públicas. [...] Artigo 2º- Considera-se grupo, organização ou associação terrorista todo o agrupamento de duas ou mais pessoas que, atuando coletivamente, visem prejudicar a tranqüilidade e ou a ordem pública, forçar a autoridade pública a praticar atos, a abster-se de o praticar ou a tolerar que se pratique, ou ainda intimidar certas pessoas, grupos de pessoas ou a população em geral por meios de atos terroristas. Parágrafo Primeiro - Quem promover ou fundar grupo, organização ou associação terrorista, a eles aderir ou os apoiar, nomeadamente através do fornecimento de informações ou meios materiais, ou através de qualquer forma de financiamento das suas atividades, aplica-se a pena de reclusão de 8 a 15 anos. Parágrafo Segundo - Quem chefiar ou dirigir grupo, organização ou associação terrorista é punido com pena de reclusão de 15 a 20 anos. Parágrafo terceiro - Quem praticar atos preparatórios da constituição de grupo, organização ou associação terrorista é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. Artigo 3º- A pena pode ser especialmente atenuada ou não ter lugar a punição se o agente abandonar voluntariamente a sua atividade, afastar ou fizer diminuir consideravelmente o perigo por ela provocado ou auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis. [...] Justificativas. Em face dos atentados praticados por organizações criminosas nacionais (PCC, Primeiro Comando da Capital) contra pessoas inocentes, visando objetivos similares aos praticados por organizações terroristas internacionais (Al Quaeda), resta à legislação pátria compreender este fenômeno, dando-lhe contornos jurídicos-fáticos. Além dos fatos inerentes às condições sócio- econômicas que o país atravessa, que registra a existência de atos terroristas pautando tão somente no conflito de bandos formados por criminosos comuns contra o poder público (citam-se as ações criminosas contra a Força Pública do Estado de São Paulo), outros poderão existir, por
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motivações políticas, considerando o papel do Brasil. no cenário internacional [...].”105 [grifos nossos]
Consigne-se que esta destacada iniciativa legislativa, em razão da forte
pressão exercida pelos movimentos sociais e por alguns setores do Partido dos
Trabalhadores106, temerosos acerca do aumento potencial do encarceramento de
militantes, foi remetida ao arquivamento em 02 de outubro de 2007, diante do
pedido formulado pelo próprio autor da proposta.
Malgrado se tenha impedido que esta proposta legislativa continuasse
tramitando na Câmara dos Deputados, as vozes propagadoras do medo da
criminalidade terrorista encontram-se ainda muito presentes na realidade brasileira,
sustentando toda uma ideologia defensiva que legitima a crescente ampliação dos
mecanismos de contenção do “terrorismo”.
À propósito, lecionando sobre uma imbricação entre o estereótipo do
criminoso e do “terrorista”, Alessandro Baratta chama a especial atenção para o
fato de que:
“A defesa do Estado contra o terrorismo é suficiente para legitimar a suspensão da reforma dos códigos e a inversão de tendências na transformação das instituições penitenciárias em direção a papéis de mera custódia, para o cárcere de máxima segurança, e a transformação do conjunto do sistema penal em direção a uma função política de intimidação e para a configuração de um regime policialesco. A política da reforma penitenciária colidiu com a exigência, que hoje parece a exigência essencial, de uma política de ordem pública.”107
Atentos às formas de “contenção” do “terrorismo”, nos deparamos então
com uma controvertida utilização da prisão provisória, a qual administra a
detenção de uma série de adjetivados como terroristas no Brasil, que, como já
105 BRASIL. Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 486, de 20 de março de 2007. Define crime de terrorismo, organização terrorista e dá outras providências. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/444044.pdf >. Acesso em: 06 mar. 2011. 106 Nesse propósito, frisem-se as críticas do deputado federal Adão Pretto, do Partido dos Trabalhadores pelo Rio Grande do Sul, as quais consideravam que o projeto de lei antiterror poderia ser aplicado tanto a uma greve de trabalhadores quanto a uma manifestação dos movimentos do campo, enquadrando ambos como atos de terrorismo. In: FÓRUM DE ENTIDADES NACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. Adão Pretto pedirá esclarecimentos sobre lei antiterror, Brasília, 10 mar. 2007. Direitos Civis e Políticos. Disponível em: <http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=2700&Itemid=2>. Acesso em: 06 mar. 2011. 107 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2002, p. 194.
69
observamos na parte introdutória deste trabalho, possuem um perfil e um crime
determinado.
No geral, cuidam-se de sujeitos pardos ou negros, acusados do
cometimento de crimes patrimoniais e de tráfico de entorpecentes, que se
originam, na maioria das vezes, das classes populares, em vista de que sequer
chegam a conseguir uma oportunidade para completar o primeiro grau de
instrução escolar108.
Talvez, só o seu perfil pessoal demonstre porque eles representam um
incômodo à “unidade nacional brasileira”, que nada lhes pode oferecer, senão o
controle, a vigilância, a submissão e, caso reivindiquem a efetivação das
promessas democráticas do Estado brasileiro, objetivando atingirem melhores
condições de vida, tendem a acabar numa prisão, vendo relativizadas as suas
reivindicações mais básicas e sendo permanentemente coisificados ou, na pior das
hipóteses, até serem exterminados, por conduto de execuções policiais ou para-
policiais realizadas à revelia de qualquer estatuto legal.
Nessa direção, vale conferir o seguinte pensamento de Joel Birman,
explicando as claríssimas razões pelas quais o cárcere tende a cumprir uma função
atemorizadora de neutralização e segregação das populações consideradas
problemáticas ou indesejáveis, na ótica das classes socialmente favorecidas:
“Esta massa humana fica num estado de errância, mas sem qualquer destino. Porém, é preciso controlá-la socialmente, conjugando o impossível, qual seja, administrando sua precariedade mas sem nada prometer. É esta massa desolada que será enviada para instituição prisional (...), para obstruir o seu potencial de violência e de desordem. Não existe, hoje, no entanto, qualquer investimento para aprimorá-la e recuperá-la, pois não há outros destinos sociais para esta massa que não seja a eliminação e o silêncio.”109
108 Segundo as estatísticas do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), do total de 496.251 presos custodiados no sistema penitenciário brasileiro, incluindo-se o número de 164.683 provisórios, 283.040 são analfabetos, alfabetizados ou possuem apenas o ensino fundamental incompleto. Este fato revela, sem dúvidas, que o baixo grau de instrução dos internos é um forte indicativo da miséria e desigualdade social que se deposita no interior das carceragens brasileiras. In: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Sistema integrado de informações penitenciárias – InfoPen. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/Depen/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRNN.htm>. Acesso em: 31 mar. 2011. 109 BIRMAN, Joel. Saberes do psíquico e criminalidade. In: MENEGAT, Marildo; NERI, Regina (orgs.). Criminologia e subjetividade. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 77-91, pp. 89/90.
70
Ancorando-se neste entendimento de Joel Birman, conseguimos captar a
tática função neutralizadora da custódia preventiva sobre as camadas populares,
desempenhada com um grande patamar de eficácia pelo poder judiciário, o qual,
hodiernamente, tem sucumbido às vociferações da “opinião pública” sobre o
medo, caindo na tentação ofertada pelo discurso em prol da unidade de todos, com
o fito de fortalecimento da defesa social.
Exemplo nítido dessa tendência atual do judiciário se pôde observar no
seguinte trecho do discurso de posse do recém-eleito presidente do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o Desembargador Manoel Alberto Rebêlo
dos Santos, quando o próprio, ao chamar a atenção para a necessidade de união no
combate ao crime e à injustiça, afirma que:
“Espectros nos rondam a todo instante, à luz do dia ou na calada da noite. Feras, predadores, à espreita da presa e seu descuido. O crime, a corrupção, o desmando, o arbítrio, a injustiça, a turbarem a paz, a enodoarem o zelo da coisa pública, a tornarem rouco o grito de liberdade, a distanciarem a justiça como apenas mais um sonho intangível. Não pode ser! Como esperá-los, combatê-los, como nos cuidar de sua aproximação? Como nos prevenir de seu triunfo? Outra maneira não há: unindo-nos ainda mais, que nenhum de nós é capaz de afrontá-los sozinho”110
Cotejando o posicionamento do Desembargador Manoel Alberto Rebêlo
dos Santos, observa-se que os apelos à unidade da sociedade contra a
criminalidade levam adiante um processo de silenciamento e acanhamento das
vozes do povo, perpetrado, entre outras formas, pela banalização do
encarceramento preventivo, a qual efetiva um patamar concreto do que Geraldo
Prado convencionou chamar de “teoria da aparência acusatória”111, infelizmente
bastante presente no cotidiano dos tribunais brasileiros.
No objetivo de modificar esse sistema penal “aparentemente acusatório”
nos tribunais brasileiros deve-se envidar todos os esforços possíveis no afã de que
a jurisdição penal se dirija à defesa intransigente das garantias constitucionais no
processo criminal. 110 ASSESSORIA DE IMPRENSA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. Novo presidente do TJ do Rio defende a união no combate ao crime e à injustiça, Rio de Janeiro, 04 fev. 2011. Disponível em: <http://srv85.tjrj.jus.br/publicador/exibirnoticia.do?acao=exibirnoticia&ultimasNoticias=21533&classeNoticia=2&v=2>. Acesso em: 13 abr. 2011. 111 PRADO, Geraldo L. M. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 195.
71
Nesse universo, conseguirá cindir-se com a equivocada conclusão de que a
jurisdição criminal está instalada e se dirige através da agenda de interesses
políticos dos programas de segurança pública do Estado, preservando-se, desta
sorte, a independência das decisões emanadas pelo poder judiciário.
Sob o impacto dessa reflexão, podemos interpretar que o clamor social em
torno da “união de todos”, com o intuito de efetivar uma “defesa da sociedade”
mais eficaz contra o crime, na verdade, serve para propagar o medo, além de
remontar, no entender de Vera Malaguti, certas heranças histórico-culturais das
fantasias de controle total originárias do absolutismo português, as quais,
repercutindo em determinadas práticas jurídicas, introjetaram no imaginário do
judiciário brasileiro, certas concepções reacionárias sobre direitos, disciplina e
ordem.
3.2
A contribuição da mídia na propagação do sentimento de medo que
aplaca as múltiplas nuances da realidade
Uma das chaves de compreensão da sociedade contemporânea perpassa
pela problematização e a difusão de seus perigos e incertezas. Os medos circulam
num vaivém constante, vagando numa consciência humana cada vez mais atônita,
sem saber em quem ou no quê se deve acreditar.
Isto acontece porque os meios de comunicação, influenciados pelos efeitos
da compressão espaço-temporal resultante da nova dinâmica econômica e social
trazida pela revolução técnico-científica informacional, nominada de globalização,
trabalham produzindo desinformação, já que as notícias são veiculadas de forma a
que os destinatários não sejam capazes de localizá-las no espaço e no tempo,
consolidando um processo de nulificação do real.
Dessa maneira, produz-se uma ausência dos referenciais espaciais nas
notícias que são veiculadas, pois as distâncias geográficas e territoriais são
ignoradas, tornando-se o espaço mundial uma verdadeira “aldeia global”, na qual
um acontecimento no Japão, nos Estados Unidos ou no Brasil pode aparecer
igualmente próximo ou distante, dependendo do enfoque ou do tratamento
jornalístico dispensado à informação noticiada.
72
Um exemplo interessante disso residiu na cobertura jornalística dos
acontecimentos que permearam o enigmático 11 de setembro de 2001, quando
foram destruídas duas torres do World Trade Center na cidade de New York,
causando grande comoção no Brasil, inclusive, segundo Marilena Chaui, “tendo
algumas pessoas se referido ao fato como se fosse algo muito próximo e que as
atingia, embora continuassem olhando calmamente e sem nenhuma emoção para
crianças esfarrapadas e famintas pedindo esmolas nas esquinas das ruas de suas
cidades”112.
De forma semelhante, a ausência de informação ventilada pelos meios de
comunicação também se edifica a partir da ausência de referências temporais das
informações noticiadas, já que os acontecimentos são costumeiramente narrados
sem a menção às suas causas passadas e aos seus efeitos futuros.
Reflete-se assim uma realidade fática de que as notícias veiculadas pela
mídia são pontos puramente atuais ou presentes, sem um marco de continuidade
no tempo, origem e consequência, existindo por serem exclusivamente objetos de
transmissão e deixando de existir se não mais forem transmitidas.
Em vista desse motivo, Marilena Chaui sublinha que as informações
jornalísticas apresentam a existência de um espetáculo, permanecendo gravadas
na consciência dos ouvintes e espectadores, enquanto se mantiver a forma
espetacular servindo de moldura à sua transmissão.
Para ilustrar tal posição, a autora exemplifica uma referência concreta
brasileira, a qual explicita que:
“(...) desde os seqüestros da filha de um apresentador de televisão e, depois, desse mesmo apresentador e o de um publicitário muito conhecido no Brasil, os noticiários de rádio e televisão passaram a dedicar a maior parte do tempo a notícias sobre crimes (roubos, furtos, homicídios, seqüestros, estupros, violência contra crianças etc.), como se tais crimes tivessem surgido do nada, repentinamente. A população passou a sentir-se ameaçada e amedrontada porque passou a receber uma verdadeira enxurrada de notícias sobre esses assuntos, embora os crimes já ocorressem de longa data e tivessem aumentado havia muito tempo. Todavia, nenhum noticiário estabeleceu qualquer relação entre a criminalidade e suas causas possíveis, tais como o problema do crime organizado e dos crimes de colarinho branco, os problemas postos pela economia (desemprego, exclusão social, desabrigo, fome, miséria etc.) e suas conseqüências sociais (desigualdade social, injustiça, corrupção dos aparelhos policiais e judiciários etc.). Nenhuma informação real foi transmitida à sociedade, a não ser a idéia de que criaturas más e perversas, saídas de parte nenhuma, haviam se
112 CHAUI, Marilena de Souza. Simulacro e poder: uma análise da mídia, p. 46.
73
posto, sem outro motivo a não ser a pura maldade, a ameaçar a vida e os bens de cidadãos honestos e desprotegidos.”113
Diante disso, a mídia conduz uma existência humana sob o signo da
superficialidade e da fugacidade, impossibilitando a diferenciação do que seja
aparência e sentido, virtual ou real, imperando nos meios de comunicação uma
transparência temporal e espacial das aparências, consideradas como evidências.
O simulacro da realidade, operado pela mídia, congela o tempo presente
desconstruindo o sentido de continuidade da vida humana, a qual se esgota num
espaço plano de imagens fugazes.
Tal situação fática produz uma saturação de informações que nada
informam, obstando uma verificação mais acurada das reais condições
econômicas, sociais e políticas narradas numa determinada notícia.
Nesse ponto, observe-se que o fator chave para a percepção do alcance da
desinformação produzida pela mídia é o seu critério de verdade, pois a forma que
se produzem as notícias em alguns veículos de comunicação favorece as
abordagens parciais e simplificadoras das informações veiculadas, abrindo-se mão
de um amadurecimento na hora da divulgação dos fatos noticiados.
Logo, a verdade reportada se traduz numa versão dos fatos ocorridos,
intermediada pelos interesses mais prementes da linha editorial do meio de
comunicação que a veicula, aliado à subjetividade dos jornalistas que a
transmitem, a qual, diga-se de passagem, está cada vez mais em sintonia com as
opiniões dos editores responsáveis pela publicação das notícias.
Desmitifica-se assim o sofisma de que a mídia seria somente uma
mediadora desinteressada dos fatos, prestando um serviço à cidadania e à
democracia.
Ao contrário, esvaziando o conteúdo concreto da realidade, a mídia prove
o avanço constante de um tempo cronológico vazio de significado e profundidade
(chronos), expressando, em verdade, sua característica de representação e
uniformização de toda complexidade e pluralidade presente na realidade, criando
uma espécie de comunidade imaginada.
Assim, partindo da conceituação de Benedict Anderson, conseguimos
associar a mídia à metáfora de “um organismo sociológico atravessando
113 Ibidem, pp. 46/47.
74
cronologicamente um tempo vazio e homogêneo”, hipótese que, curiosamente
para o referido autor, corresponderia analogicamente à invenção da nação,
“concebida como uma comunidade sólida percorrendo constantemente a história,
seja em sentido ascendente ou descendente”114.
De outro lado, não podemos desconsiderar o fato de que o esvaziamento
da realidade torna efetiva a apresentação da mídia como instância deliberativa de
controle social, político e cultural dos indivíduos, traduzindo-se a mesma num
meio de tomada de decisões que possibilita ao capitalismo, travestido sob as
vestes de um espetáculo, a sua reprodução automática.
Sob tal aspecto, não se deve esquecer que os meios de comunicação fazem
parte da chamada indústria cultural, visto que são empresas privadas regidas de
acordo com os interesses e as necessidades do capital.
Em virtude disso, tornam-se opção para o aporte de investimentos e
projeção de lucros de setores empresariais completamente desvinculados das
atividades inerentes ao ramo das comunicações, o que justifica bancos e indústrias
de diversas especialidades adquirirem jornais, revistas, rádios, televisões, entre
outros.
Nessa reflexão, observe-se que o espetáculo midiático nada mais seria do
que um produto cultural do capitalismo globalizado, o qual impulsiona o chamado
“fetichismo da mercadoria” de Karl Marx, na medida em que colabora para a
sublimação das relações sociais estabelecidas entre os sujeitos, como o intuito de
transformá-las numa “forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”115.
A relativização dos vínculos sociais entre os sujeitos pauta a instituição do
espaço e do tempo público por uma mídia que se apresenta, sobretudo, como
reflexo do poder do capital.
Em consequência desse fato, modela-se um imaginário da desconstrução
do mundo real, sediado num discurso anônimo e impessoal, propagado por um
agente indeterminado, o qual instaura um domínio ideológico-político realizado
como produção de um simulacro.
114 ANDERSON, Benedict R. Op. cit., p. 56. 115 MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Trad. de Reginaldo Sant´Anna. Livro primeiro, v. I., 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994, p. 81.
75
Com especial atenção aos efeitos do simulacro midiático sobre a realidade
e a causa fundamental de sua vinculação ao sistema punitivo, Nilo Batista sustenta
com plena convicção que:
“O compromisso da imprensa – cujos órgãos informativos se inscrevem, de regra, em grupos econômicos que exploram os bons negócios das telecomunicações – com o empreendimento neoliberal é a chave de compreensão dessa especial vinculação mídia-sistema penal, incondicionalmente legitimante.”116
Diante de tal explicação, José Rodrigues observa que o sentimento de
insegurança social fomentado pela mídia não passaria, em grande parte, de uma
espécie de “pura fantasmagoria desprovida de qualquer nexo com a realidade”117.
À seu modo, procurando definir a extensão desta alienação provocada
pelos veículos de comunicação, Jock Young destaca que:
“Os meios de comunicação em massa exibem uma pletora de imagens de criminalidade e desvio coletadas em todo o mundo. Essas mercadorias de mídia são caracterizadas, como toda notícia, por sua natureza atípica – são “notícia” porque surpreendem e chocam. Em sua quantidade esmagadora e característica berrante, elas devem sem dúvida causar um “medo” da criminalidade desproporcional ao risco real.”118
Com a invenção do temor do crime superior à sua representatividade na
realidade, o citado autor destaca que os meios de comunicação massivamente
cumprem um papel primordial no processo de demonização dos acusados, pois
“eles perseguem o desviante muito à frente da polícia, acusando-a freqüentemente
de lidar inadequadamente com o caso”, acuando o sistema de justiça criminal, o
qual “fica assim na defensiva, em vez de estar num papel moral empreendedor”119.
Esse motivo, para Simone Schreiber, deve constituir a razão prioritária
pela qual se faz necessário distinguir a verdade midiática da processual, com o
intuito de “se compreender a nocividade de determinadas manifestações
116BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. In: INSTITUTO CARIOCA DE CRIMINOLOGIA. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. n. 12 (jul./dez. 2002). Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2002, p. 271-288, p. 273. 117 RODRIGUES, José Augusto de Souza. A economia política do medo. In: INSTITUTO CARIOCA DE CRIMINOLOGIA. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. n. 2. Rio de Janeiro: ICC, 1996, p. 269-276, p. 269. 118 YOUNG, Jock. Op. cit., p. 111. 119 Ibidem, p. 171.
76
jornalísticas que se arvoram em desvendar fatos criminosos e pautar a atuação da
justiça a partir de sua atuação”120.
Tomando por base tal premissa, adverte a citada autora que a verdade
produzida pela imprensa não pode ser considerada pelo julgador de um processo
criminal, pois não é revestida dos atributos conferidos pelas garantias processuais
penais.
E mais, a “opinião pública” midiática não deve influenciar na livre
convicção dos juízes, posto que, sendo o judiciário um poder contramajoritário,
sua função primordial é a garantia e a defesa dos direitos consagrados a qualquer
pessoa que viva no âmbito do Estado Democrático de Direito, ainda que isto
venha a contrastar com os desejos da “maioria”.
Firme-se que a inconsistência entre a verdade operada pela mídia e aquela
que se obtém por meio da regular atividade processual, constitui um
tensionamento permanente nas relações entre a imprensa e o judiciário, fato que,
na visão de Simone Schreiber, possibilitaria uma eventual restrição à liberdade de
expressão, no intento de se garantir o princípio a um julgamento justo ao suposto
autor do cometimento de uma conduta criminosa.
O princípio a julgamento justo na esfera criminal, constituinte de um
desdobramento natural do princípio do devido processo legal, aliado à presunção
de inocência, na concepção da dita autora, se justificaria, principalmente, no
intuito de evitar uma intromissão demasiada nos direitos e garantias processuais
de um acusado, mormente quando sejam efetuadas campanhas midiáticas
invocando a sua punição. Até mesmo por que:
“Se o juiz da causa forma uma imagem do réu como bandido que deve ser exemplarmente punido está claro que não reúne mais condições para decidir atento apenas aos fatos que lhe são imputados na denúncia, e se estão ou não satisfatoriamente provados pela acusação. O fato de o réu não ser tratado como inocente compromete o conceito de julgamento justo.”121
120 SCHREIBER. Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais: uma
investigação sobre as conseqüências e formas de superação da colisão entre a liberdade de expressão e informação e o direito ao julgamento criminal justo, sob a perspectiva da Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 410. 121 SCHREIBER. Simone. Op. cit., p. 410.
77
E quando a mídia se torna capaz de subverter a possibilidade de um
julgamento justo a um acusado, estimula o funcionamento de um sistema penal
invertido, onde a prisão tende a se comportar como regra e a liberdade a constituir
exceção. O resultado concreto desta inversão principiológica se projeta então na
superlotação das prisões, repletas de presos sem qualquer condenação formal.
Adite-se a isto o fato de que os clamores midiáticos, ao alardearem a
necessidade de se aumentar as escalas penais, propagandeiam a ilusão de que se
alcançará uma maior segurança pessoal contra o crime, mediante a sanção de leis
dotadas de um alto teor repressivo.
Tal hipótese, em realidade, representa uma verdadeira falácia, eis que a
repressão acima da média ao crime, acaba por destabilizar as garantias jurídicas
constitucionais dos acusados, provocando, consecutivamente, entre outros
aspectos, um aumento no número de encarceramentos preventivos, pois as leis
carregadas de um potencial punitivo desproporcional costumam dificultar a
aplicação de dispositivos legais desencarceradores.
Dificultando a atuação de um poder judiciário imparcial, desvinculado das
pautas programáticas da segurança pública, a mídia respalda abundantemente em
seus editoriais e crônicas os discursos legitimadores da pena.
E faz isso através da equação penal, de que se restou algum delito
praticado, deve haver a aplicação uma sanção privativa de liberdade, sem a qual
pode restar presente uma determinada “sensação de impunidade”.
Tocando o imperativo midiático que exige punição severa antes mesmo da
condenação formal, o poder judiciário afilia-se plenamente às práticas do
neoliberalismo, inscrevendo-se num processo de minimização, análogo ao
empregado no contexto econômico e social do avanço neoliberal.
Minimizando a plenitude e a abrangência das garantias constitucionais do
Estado democrático de direito, o discurso criminológico da mídia mostra que o
papel da criminalização na égide do neoliberalismo é ser provedora.
Noutras palavras, ela deve ser encarada como uma fonte legítima de
resolução de problemas sociais, influenciando os indivíduos para que eles tenham
determinadas condutas, abstendo-se de outras.
Referenciando-se nesta percepção, Nilo Batista define que:
78
“A criminalização, assim entendida, é mais do que um ato de governo do príncipe no Estado mínimo: é muitas vezes o único ato de governo do qual dispõe ele para administrar, da maneira mais drástica, os próprios conflitos que criou. Prover mediante criminalização é quase a única medida de que o governante neoliberal dispõe: poucas normas ousa ele aproximar do mercado livre – fonte de certo jusnaturalismo globalizado, que paira acima de todas as soberanias nacionais –, porém para garantir o “jogo limpo” mercadológico a única política pública que verdadeiramente se manteve em suas mãos é a política criminal.”122
Conjunturalmente, o reflexo deste discurso criminológico da mídia
deságua inevitavelmente na penitenciária, mais precisamente, naquelas que
desempenham funções de custódia sobre presos provisórios, as quais, na
interpretação de Nilo Batista, podem ser definidas como espécies de “prisões pós-
industriais”, que assumem a identidade de um “lugar de mero confinamento e
neutralização do infrator”123.
Numa arguta observação, o destacado autor ainda registra que entre as
contradições e ambiguidades do discurso criminológico da mídia, reside uma
dualidade indelével nos sistemas penais dos países de capitalismo tardio (entre
eles, encontram-se as nações latinoamericanas), qual seja, o fato de que enquanto
existe uma série de expedientes para esquivar os “consumidores” da
institucionalização de uma pretensão punitiva em seu desfavor, ao revés, constata-
se uma situação de “encarceramento neutralizante duradouro”, a recair sobre os
chamados “consumidores frustrados”124.
Nesse ponto, é que se revela de fundamental importância uma circulação
constante de informes acríticos sobre a realidade do sistema penal, a fim de que,
nos países de capitalismo tardio, cuja estampa da sociedade de classes se faz
notória, a seletividade possa ser angariada e manobrada com sucesso pela mídia.
Tal manobra implica numa verdadeira mutação no jornalismo
“convencional”, despindo-o de sua forma narrativa fidedigna aos fatos que cercam
a investigação de um fato criminoso ou um andamento de um processo, para alçá-
lo à assunção direta da função investigatória ou à reconstituição dramatizada de
um caso, dotando-o de uma repercussão maior do que a própria reconstrução em
sede processual.
122 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 274. 123 Ibidem, p. 274. 124 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 275.
79
Esse tipo de mídia, ao demolir as clássicas definições do projeto iluminista
de um jornalismo direcionado para “esclarecer os cidadãos”, na convicção de
Sylvia Moretzsohn, não passaria de um conceito “difuso, impreciso e abrangente”,
o qual implica na apreciação de “diversas formas de comunicação, desde o
noticiário tradicional a shows de variedades” 125, refletindo uma época na qual as
grandes empresas de comunicação se preocupam apenas com a transmissão de
informações noticiosas, indissociavelmente vinculadas ao espetáculo e ao
entretenimento.
Nessa lógica, observa-se que uma telenovela pode ser capaz de incorporar
determinadas pautas sociais, campanhas públicas e trecho de noticiários
formadores de algum tipo de interesse estratégico para aquela narrativa ficcional.
Por outro lado, um telejornal conseguirá manipular as emoções de seus
telespectadores, trabalhando a compreensão de um determinado caso criminal,
romanceando as informações referentes a ele, num processo contínuo de
embaralhamento entre a ficção e a realidade.
Sendo assim, por não se demarcarem os contornos precisos da atividade
jornalística, a compreensão do sentido que a norteia se processa numa perspectiva
de inter-relação das diversas formas comunicativas abrangidas pela mídia.
Na opinião de Sylvia Moretzsohn, tal constatação conduziria à mitigação
do “dever de informar” da imprensa, falseando-se uma postura imparcial e
distanciada da mesma, “como se não houvesse intencionalidades no ato de
selecionar os fatos que se tornarão notícia, ou como se a própria apreensão dos
fatos já não fosse também uma interpretação”126.
Nessa diretriz, defende a autora que a imprensa se arvorou a penetrar nos
espaços destinados à atividade policial ou à função jurisdicional, justificando a
sua “qualificação de “quarto poder”, que data do início do século XIX e lhe
confere o status de guardiã da sociedade (contra os abusos do Estado),
representante do público, voz dos que não têm voz”127.
Ocorre que essa visão superficial sobre a imprensa, além de legitimá-la
junto a uma opinião pública a qual ela mesma ajuda a elaborar, aproveitando-se de
125 MORETZSOHN, Sylvia. O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã”. In: INSTITUTO CARIOCA DE CRIMINOLOGIA. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. n. 12 (jul./dez. 2002). Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2002, p. 291-316, p. 292. 126 Ibidem, p. 293. 127 MORETZSOHN, Sylvia. Op. cit., p. 293.
80
um reconhecido distanciamento entre o homem comum, a instituição policial e o
aparelho judiciário, serve ao propósito de encobrir o fato de que:
“a cobertura criminal na grande imprensa baseia-se em fundamentações de cunho positivista e se orienta por uma lógica que se estende à cobertura dos fatos relacionados às classes populares, servindo à disseminação do medo e à formulação e ampliação de políticas cada vez mais repressivas de segurança pública.”128
Grife-se que esta abordagem da grande imprensa é resultado direto do
desprezo que ela adota em relação ao cotidiano das classes populares.
Numa pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e
Cidadania da Universidade Cândido Mendes, versando sobre as atuais tendências
da cobertura jornalística de assuntos relacionados à criminalidade e à segurança
pública no Brasil, constatou-se, oportunamente, a existência de uma “mea culpa
da imprensa pela cobertura estigmatizante que realiza sobre favelas e periferias”,
tendo a maior parte dos jornalistas reconhecido “que os seus veículos têm grande
responsabilidade na caracterização dos territórios populares como espaços
exclusivos da violência”129.
A elevada estigmatização das comunidades populares então se apresenta
intimamente conectada à fala tradicional dos veículos de comunicação,
funcionando como uma diretriz permanente das ações no campo criminal.
Um afã punitivo, diretamente motivado pela cultura do medo, percorre as
redações da grande imprensa, a qual, raramente, consegue realizar nas favelas e
nas periferias uma cobertura jornalística de assuntos não relacionados à temática
do tráfico de entorpecentes e da criminalidade.
Convém destacar, em particular, o exemplo da imprensa estigmatizante do
município do Rio de Janeiro, para a qual a percepção dos espaços urbanos
continua vinculada ao poder de disciplina política, higiênica e moral da pobreza, a
qual significa um fardo social para os dirigentes políticos e administrativos da
cidade.
Com efeito, não se deve duvidar que a grande capacidade de formação de
opinião, somada a total ausência de regulamentação estatal do setor, faz da mídia, 128 MORETZSOHN, Sylvia. Op. cit., p. 298. 129 RAMOS, Silvia; PAIVA, Anabela. Mídia e violência: novas tendências na cobertura de criminalidade e segurança no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007, p. 77.
81
mais particularmente das redes de televisão, uma concentradora de poder político
no âmbito do Estado brasileiro.
Apreendendo a dimensão deste problema, Nilo Batista explicita que para
“as massas analfabetas e excluídas da sociedade nacional brasileira, comprar a
televisão, para além do ato de consumo, é também comprar o grande inspetor de
sua opinião e de sua consciência, ganhando de brinde o index librorum
prohibitorum.”130
Em vista dessa situação, na conceituação de Eugenio Zaffaroni, ocorre um
“autoritarismo cool” na América Latina, identificado com uma forma discursiva
de comunicação pública vingativa e altamente popularesca “que opera com total
autonomia da realidade e de sua conflitividade mais séria”, ocupando-se de
algumas vinganças e deixando de lado a prevenção de outros ilícitos de massa131.
Trilhando uma firme direção, o discurso do autoritarismo cool
latinoamericano ignora as vítimas dos reais problemas da sociedade, manipulando
e dramatizando somente os mártires que lhe proporcionem alguma forma de
ganho comercial, no intento de realizar uma campanha publicitária de seu
principal produto, qual seja, a repressão.
Nesse pretexto, cabe ressalvar que, em nenhuma hipótese, a propagação
deste autoritarismo cool latinoamericano guardaria consonância com uma censura
ou prévio controle dos meios de comunicação, ao contrário, trata-se de uma
publicidade alienadora que desprestigia quem se coloca contra o discursivo
repressivo.
Dessa perspectiva, observa-se no autoritarismo cool latinoamericano uma
clara mensagem publicitária que o vende o poder punitivo como mercadoria,
desconsiderando, desta sorte, a opinião técnica jurídica e criminológica, com a
finalidade de motivar uma manipulação emocional, estimuladora de impulsos de
vingança em relação ao acusado do cometimento de um determinado crime.
Com o intuito de realizar esta manipulação dos sentimentos de vingança
para a promoção do êxito mercadológico da solução punitiva, os meios de
comunicação inventam a figura dos “especialistas” em segurança pública, que, ao
não possuírem dados empíricos confiáveis acerca dos parâmetros reais da
criminalidade, tornam-se meros reprodutores de um discurso único e popularesco,
130 BATISTA, Nilo. Fragmentos de um discurso sedicioso, p. 76. 131 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit., p. 78.
82
sendo, por isso, na concepção de Eugenio Zaffaroni, qualificados como
“palpiteiros livres”132.
Noutro prisma, o que dizer então da figura dos âncoras nos telejornais
criminais? Para Nilo Batista, eles não passariam de “narradores participantes dos
assuntos criminais, verdadeiros atores – e atrizes – que se valem teatralmente da
própria máscara para um jogo sutil de esgares e trejeitos indutores de aprovação
ou reproche aos fatos e personagens noticiados”133.
Nesse roteiro midiático, demarca-se uma inegável parcialidade da
acusação, tomada de um caminho moralizante e maniqueísta, na qual o campo do
mal se destaca daquele do bem.
Justificando as razões desta dicotomia, que se instaurou no ideário político
ocidental, Gisálio Cerqueira Filho e Gizlene Neder, recorrendo a uma
metodologia de pesquisa baseada na investigação indiciária histórica, pronunciam
que:
“A uma visão de mundo constituída arquetipicamente dentro da referência aristotélico-tomista que dominou hegemonicamente, por séculos, a cristandade européia (para quem a organização social e política constitui-se num uno integrado de um cosmo harmônico) associou-se a lógica cartesiana. Tal lógica é expressão mais que eloqüente das transformações que acompanham a estruturação do mundo burguês e dá suporte explicativo às interpretações mecanicistas que se baseiam, a seu modo, também numa visão harmônica do “funcionamento” do cosmo, da organização social, política, etc. Em suma, numa visão do todo social constituído a partir da idéia de ordem, em oposição ao caos. Sublinhe-se que não é outra a referência articulada essencialmente pelo debate racionalismo versus irracionalismo. Para o racionalismo, a organização do universo obedece a um ordenamento íntegro onde as leis intrínsecas do funcionamento determinam a existência. Neste terreno de ordem e, no extremo, dos mais variados tipos de determinismos, há pouco espaço para o acaso, a espontaneidade, o desejo, a subjetividade, enfim. Dentro da lógica cartesiana o diferente (o Outro), seja a mulher, o afro-brasileiro, o índio, o judeu, o palestino, o bósnio, o sérvio, o estrangeiro, etc., provoca medo e ódio porque é percebido como ameaçador, agente portador de fatores perturbadores da ordem, a provocar fissuras no todo harmônico e integrado.”134
Carreada então pela necessidade permanente de criação da realidade, a
mídia trabalha em favor da construção de um processo penal cada vez mais
simbólico, despido de uma função instrumental efetiva, apresentando um caráter
132 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit., p. 75. 133 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 282. 134 CERQUEIRA FILHO, Gisálio; NEDER, Gizlene. Quando o eu é um outro, pp. 91/92.
83
meramente político, o qual se processa mediante a criação de imagens e de
símbolos no imaginário popular.
O referido simbolismo processual penal acaba por produzir duas
importantes consequências.
A primeira consiste no êxito político promocional, conversível em votos,
de legendas políticas consideradas “populares”, desde que emprestem o seu apoio
à aprovação de legislações altamente repressivas.
A segunda, por sua vez, legitima o processo criminal como um programa
seletivo de segregação de sujeitos não sintonizados com a sociedade globalizada
de mercado, os quais são vítimas constantes de uma supressão das garantias de
liberdade, igualdade, presunção de inocência e devido processo legal de sua órbita
pessoal.
Especialmente, em vista desta última consequência, as prisões provisórias
ganharam uma notória importância, revelando marcantes características de
vigilância e de neutralização social de boa parte dos custodiados em caráter
preventivo, mostrando a aparência de um irreversível processo de estigmatização
das camadas populares.
Nesse rumo, a simbologia processual penal, apresentando contornos
delineados pela mídia, contribuiu para a transformação do Estado democrático de
direito em Estado policial, ao obedecer ao binômio “integração-prevenção”, típico
de um direito penal simbólico, que desempenha, na reflexão de Juarez Cirino dos
Santos, “o papel complementar de escamotear a relação da criminalidade com as
estruturas sociais desiguais das sociedades modernas, instituídas pelo direito e, em
última instância, garantidas pelo poder político do Estado”135.
Noutros termos, referenciada numa política criminal repressiva, a qual
incorpora um discurso defensivista da sociedade, a mídia colabora no sentido de
dissimular, na expressão de Maria Ignez Baldez, “a real função da prisão
provisória”, que é a de “assegurar a eficácia processual da prestação jurisdicional”
ou de funcionar “como cautela instrumental para assegurar a eficácia do devido
processo penal”136.
135 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal. In: INSTITUTO CARIOCA DE CRIMINOLOGIA. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. n. 12 (jul./dez. 2002). Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2002, p. 53-57, p. 56. 136 KATO, Maria Ignez Lanzellotti Baldez. A (des) razão da prisão provisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 1.
84
Pelo contrário, a mídia acaba condicionando o funcionamento da prisão
provisória como uma garantia do controle social finalístico exercido pelo Direito
Penal, contrariando assim a própria natureza jurídica de medida cautelar inerente
àquela custódia, conferindo um reforço a uma satisfação punitiva tão veloz quanto
a circulação de notícias na atualidade.
Nesses termos, a mídia firma apoio ao fato de que não se deve gastar tanto
tempo percorrendo todos os trâmites processuais, objetivando apurar quem possa
ter cometido uma determinada conduta contrária à lei penal, visto que se pode
lançar mão de uma “punição prévia”, mediante o emprego do encarceramento
preventivo do suposto infrator, o qual será eficaz no atendimento dos anseios
coletivos amedrontados por enganosas sensações de impunidade e de insegurança.
3.3
A análise do processo de produção da subjetividade punitiva que
inaugura uma nova vertente de encarceramento
Anteriormente, discorrendo acerca da incidência do medo como reflexo da
colonialidade no território latinoamericano, verificou-se que a apropriação da
subjetividade apresentaria uma indissociável articulação com o capitalismo. Tanto
é, que a própria engenharia do lucro não estaria adstrita apenas à questão da mais-
valia econômica, mas envolveria também a própria sujeição da subjetividade dos
indivíduos.
Firmada essa assertiva, mostra-se relevante apontar como característica
fundamental da apropriação de subjetividade, a transmissão dos valores por meio
de uma cultura de massa hegemônica, que busca condicionar as diversas
possibilidades da existência humana, padronizando os sujeitos em indivíduos.
Argumentando sobre este condicionamento, Félix Guattari explica que:
“A cultura de massa produz, exatamente, indivíduos: indivíduos normalizados, articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão – não sistemas de submissão visíveis e explícitos, como na etologia animal, ou como nas sociedades arcaicas ou pré-capitalistas, mas sistemas de submissão muito mais dissimulados.”137
137 GUATTARI, Félix; ROLNIK, Sueli. Micropolítica: cartografias do desejo. 7. ed. rev. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 22.
85
Conforme se depreende da explicação de Félix Guattari, a cultura de massa,
ao articular sistemas de submissão implícitos, é capaz de apoderar-se da
subjetividade dos indivíduos.
Este apoderamento, de acordo com a sua percepção, se efetivaria através
de “uma produção de subjetividade social que se pode encontrar em todos os
níveis da produção e do consumo”138.
Referende-se que essa produção de subjetividade, a qual abarca todos os
estágios da produção e do consumo na sociedade capitalista, espelha, na realidade,
uma instância de conexão direta entre as máquinas produtivas, os mecanismos de
controle social e o psiquismo dos indivíduos, influenciando a maneira de interação
dos sujeitos com o tecido urbano, com os processos maquínicos decorrentes das
relações de trabalho e com uma ordem social asseguradora das forças produtivas.
Nesse patamar, não se deve deixar de enfatizar a posição do indivíduo, que
se situa numa encruzilhada entre múltiplos componentes de subjetividade.
Na definição de Félix Guattari, estes múltiplos componentes de
subjetividade figuram, em certa medida, no inconsciente, no domínio do corpo,
nos chamados “grupos primários” (o clã, o bando, a turma) e na produção do
poder, representada pela lei, polícia e outras instâncias congêneres, além de
também estarem presentes numa espécie de “subjetividade capitalística”139.
Em razão disso, no entendimento deste autor, a criação da subjetividade
individual resultaria de agenciamentos coletivos de enunciação de variadas
espécies, não só sociais, mas econômicos, tecnológicos, midiáticos, entre tantos
outros, os quais desempenham a tarefa de serializar, normalizar e centralizar os
indivíduos em torno da imagem fabricada de um consenso ditado por uma lei
transcendental que obedece à lógica do mercado.
Nessa lógica, é banido todo o espaço de ruptura, espontaneidade, desejo,
amor e criatividade da órbita social, estando os indivíduos reduzidos a um mero
papel de “engrenagens concentradas sobre o valor de seus atos”, respondendo ao
mercado capitalista e seus equivalentes gerais, constituindo assim:
138 Ibidem, p. 22. 139 GUATTARI, Félix; ROLNIK, Sueli. Op. cit., p. 43.
86
“espécies de robôs, solitários e angustiados, absorvendo cada vez mais as drogas que o poder lhes proporciona, deixando-se fascinar cada vez mais pela promoção. E cada degrau de promoção lhes proporciona um certo tipo de moradia, um certo tipo de relação social e de prestígio.”140
De forma inevitável, essa órbita social acaba incorporando um viés de
culpabilização, na qualidade de raiz da produção de subjetividade capitalística. O
efeito imediato de tal incorporação, na dicção de Félix Guattari, é o surgimento de
determinados questionamentos que colidem a todo tempo com imagens de
referência na sociedade, tais como: “quem é você?”, “você que ousa ter uma
opinião, você fala em nome de quê?”, “o que você vale na escala de valores
reconhecidos enquanto tais na sociedade?”, “a que corresponde sua fala?”, “que
etiqueta poderia classificar você?”141.
Destes questionamentos resultaria então a obrigação imposta aos sujeitos,
de fazer a defesa de suas posições pessoais com a máxima consistência, hipótese
que se torna quase que impossível, diante da força dos agenciamentos coletivos de
enunciação, os quais tendem a englobar e a capturar as mais diversas convicções
humanas dentro de seu campo de abrangência.
Nesse momento, quando, em virtude de uma situação particular, os
agenciamentos coletivos de enunciação não conseguirem capturar alguma
convicção humana, esta tenderá a conduzir quem a pensou a um vazio existencial,
como se o direito de existência do sujeito que a concebeu se arrefecesse, levando-
o a calar-se e a interiorizar os valores difundidos pela produção de subjetividade
capitalística hegemônica.
Ato contínuo, esta internalização dos valores da subjetividade capitalística
hegemônica, como já se ressaltou, culmina num processo de culpabilização dos
indivíduos, que serve à produção de uma segregação funcional utilitária à
economia subjetiva do capitalismo, baseada em quadros de referência imaginários,
os quais propiciam uma ampla margem de manobra para a manipulação dos
sentimentos humanos.
Esta manipulação dos sentimentos humanos é capaz de promover a
manutenção de uma ordem social artificial, baseada em sistemas hierárquicos
inconscientes, de escalas de valores e de disciplinarização, que conferem uma
140 GUATTARI, Félix; ROLNIK, Sueli. Op. cit., p. 48. 141 GUATTARI, Félix; ROLNIK, Sueli. Op. cit., p. 49.
87
importância subjetiva às elites (ou a quem pretenda ocupar seu papel), abrindo
espaço para uma valoração do campo social, no qual os diversos indivíduos e as
camadas sociais deverão se inscrever.
Toda essa situação atenta, em última análise, contra os modos de
valorização dos desejos e das singularidades, que forjam outras percepções de
apreensão da realidade, inclinadas ao estabelecimento de outras formas de relação,
de vida e de existência na realidade concreta.
Na precisa explicação de Cecília Coimbra, considera-se assim que os
“valores, comportamentos, atitudes, modos de ser e de viver são
definidos/redefinidos/produzidos/reproduzidos/fortalecidos pelos diferentes
equipamentos sociais”, com especial destaque para a grande mídia, a qual alicerça
a gestão de uma sociabilidade artificiosa, na qual se consolidam “as virtudes da
instantaneidade, da descartabilidade, da diversificação do planejamento” 142.
Produzindo subjetividades em larga escala, os meios de comunicação em
massa fabricam identidades, cooptam simpatias, trabalham com a lógica binária
do bom e do mau, mutilando a complexidade dos acontecimentos noticiados, além
de elaborarem efetivos “códigos de conduta consensuais” vigentes entre os
indivíduos.
Cabe salientar que os meios de comunicação em massa projetam quais são
os temas prioritários ou urgentes, com o intuito de distinguir qual categoria de
assuntos devem ser solenemente ignorados daqueles merecedores de uma especial
atenção.
Atuando desta forma, a grande mídia, como já vimos, produz um novo
regime de verdade, a partir de uma interpretação da realidade pretensamente
neutra, objetiva e universal.
Ciente disso, Cecília Coimbra chama a atenção para o caso dos chamados
“mal-estares sociais”, os quais só passam a ter existência, no instante em que são
mencionados ou veiculados pela mídia.
Em outros termos, eles somente ganham notoriedade quando são
reconhecidos como verdade e se tornam parte integrante da realidade.
142 COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro: Oficina do Autor; Niterói: Intertexto, 2001, p. 30 e 35.
88
Ao constituir então suas novas verdades, a grande mídia desenvolve uma
“narrativa oficial”, opondo-se a uma série de histórias e memórias decorrentes de
práticas sociais não hegemônicas.
Discorrendo sobre os prejuízos evidentes do processo de produção do
esquecimento, guiado por meio dos caminhos que elevam a importância da
“história oficial”, Cecília Coimbra assinala que:
“A memória histórica “oficial” tem sido produzida pelos diferentes equipamentos sociais no sentido de apagar os vestígios que as classes populares e os opositores vão deixando ao longo de suas experiências de resistência e luta num esforço contínuo de exclusão dessas forças sociais como sujeitos que forjaram e estão forjando também uma outra história nunca narrada oficialmente.”143
Valendo-se da lógica do esquecimento, consegue-se obter a produção de
subjetividades que transfiguram os embates de quem se encontra à margem da
história dita “oficial”, como se eles simplesmente não figurassem na arena das
decisões políticas, sofrendo a exclusão de suas propostas, projetos e ideias do
campo da política.
Extirpa-se assim da realidade a chamada “história marginal”, composta
pelas experiências dos diversos grupos e movimentos sociais, os quais, em seu
cotidiano de resistências, almejam a afirmação de seu modo singular de existência.
Elaboram-se então na “memória oficial”, algumas zonas de sombra que
movem a política do esquecimento, propiciando um terreno fértil para a
constituição de práticas de silenciamento e repressão dos “esquecidos”,
devidamente repercutidas pela grande mídia, a qual produz e expande a imagem
dos “suspeitos”, “discrimináveis”, “perigosos”, “infames”, criando o estereótipo
do crime, do criminoso, assim como dos locais perigosos.
Partindo dessa discussão, Cecília Coimbra complementa que “da forma
como são produzidos os “bandidos”, os “marginais”, os “criminosos” de todos os
tipos, eles são construídos para se responsabilizarem por sua miséria,
marginalidade e criminalidade”, sendo que:
“No capitalismo uma das mais competentes produções prende-se à individualização das responsabilidades – atribuindo à natureza humana, à sua
143 Ibidem, p. 51.
89
história de vida ou ao seu meio ambiente certos dons ou defeitos. O indivíduo passa a ser medida de todas as coisas e o único responsável por suas vitórias ou fracassos.”144
No curso da consolidação dos estereótipos criminais, observa-se que a
prisão acaba por estimular a produção da delinquência, cumprindo seu papel ativo
de dispositivo de controle social. Com ela, aperfeiçoam-se as técnicas de
observação e registro de dados sobre as movimentações e comportamentos dos
presos.
Propiciando condições de extrema privação aos presos, a prisão produz
uma espécie de “comunidade paralela”, de onde surgem, nas palavras de Cristina
Rauter, “seres violentos, viciosos, inimigos de qualquer ordem social”, formados
numa “violência que se manifesta de forma incoercível e desligada de qualquer
contexto”145.
No ambiente do cárcere, abre-se uma possibilidade concreta para o
monitoramento dos presos, exercido através de um máximo controle de suas
individualidades.
Além do mais, a convivência na prisão instaura o primado das relações
sociais estabelecidas com base numa lógica fundamentada na hierarquia, cindindo
qualquer possibilidade de instituição de laços de solidariedade entre os detentos.
Visualize-se que, no caso da prisão provisória, quando ela simboliza uma
espécie extraordinária de sanção, penaliza determinados comportamentos,
relegando-os às mazelas do confinamento e do silenciamento, incorporando assim
as vestes de uma curta e rotativa forma de vigilância sobre certos indivíduos.
O constante monitoramento exercido pelo encarceramento provisório
define o perfil atuarial desta custódia no capitalismo pós-industrial, onde não
existe mais um mercado de trabalho à espera de um trabalhador para ser
requalificado e assumir um determinado emprego ou mesmo compor um exército
de reserva de mão de obra.
Seguindo as referências empregadas por Zygmunt Bauman, consegue-se
visualizar a prisão provisória como uma marca definitiva na subjetividade de seus
encarcerados, constituindo os mesmos verdadeiros “refugos” humanos, ou seja,
144 COIMBRA, Cecília. Op. cit., p. 64. 145 RAUTER, Cristina. Criminologia e subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 119.
90
objetos dispensáveis e sem utilidade dentro da escala de “qualidade” proposta
pelo capitalismo flexível.
Assemelha-se à condição dos presos provisórios no encarceramento
preventivo, a conceituação utilizada por aquele escritor polonês, enunciando ser o
“refugo”, “o segredo sombrio e vergonhoso de toda produção” 146 , o qual,
preferencialmente, deve permanecer em sigilo.
Este conceito baumaniano marcadamente aproxima a prisão provisória de
um depósito de dejetos, e, acima de qualquer contestação, termina provando o fato
de que o encarceramento preventivo, na sociedade pós-industrial, tem sido um
modelo de aprisionamento bastante recorrente.
Enxergando-se a organização da prisão provisória na sociedade pós-
industrial, compreendemos assim, mais uma vez, que a produção da delinquência
almeja ao atendimento de interesses econômicos e políticos centrais para o
capitalismo flexível.
Propondo uma definição bastante significativa acerca do tema, Cristina
Rauter consigna a seguinte reflexão:
“A que interesses políticos atenderia a produção da delinqüência pela prisão? Trata-se de obter um controle sobre as ilegalidades, não apenas no sentido de reprimi-las mas de fazer sua “economia geral”. Isso porque as “ilegalidades populares” no capitalismo tornam-se dia a dia mais perigosas do ponto de vista político. Não é que todas elas tenham em si propósitos políticos, mas podem conduzir a estes ou mesmo ser capitalizadas em seu favor.”147
Nesse ínterim, capta-se um avanço significativo dos discursos
moralizantes e estratégias de repressão nas formas de controle social do
contemporâneo. O poder disciplinar cresce, moderniza-se e transforma os modos
de controlar a miséria, prescindindo das estratégias produtivas de docilizar e
adestrar os indivíduos, para tentar reinseri-los na convivência em sociedade.
Em realidade, não é mera coincidência que o modelo prisional padrão na
sociedade pós-industrial é aquele aproxima as prisões de depósitos humanos,
espaços onde o propósito disciplinar perdeu qualquer função efetiva, mas que
146 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 38. 147 RAUTER, Cristina. Op. cit., p. 120.
91
possuem um propósito político muito claro e definido no tocante aos seus motivos
existenciais.
Objetivando compreender a ausência de limites do poder punitivo, o qual,
irremediavelmente, modificou o perfil da prisão na sociedade globalizada
contemporânea, com a disseminação do encarceramento provisório, Cristina
Rauter pontua que:
“a produção da figura do delinqüente, este ente patológico, inimigo da sociedade e das leis, é mais um mecanismo de apartação, de desligamento do fenômeno do crime do contexto político. O crime é excluído como fato político da vida nacional, ele é desvinculado até mesmo da pobreza!”148
Evidentemente, o sistema prisional brasileiro, contando com esse
paradigma de produção do delinquente, disfarça a sua função primordial, ao
traduzir-se como guardião da sociedade contra o instinto individual, coibindo as
tendências “negativas” que habitam o comportamento humano.
Deve se pontuar que esse falso objetivo de restaurar a incolumidade da
sociedade em face dos impulsos individuais, levado a efeito por um processo
penal hipoteticamente democrático, não é capaz de mascarar uma produção de
subjetividade crédula na utilização da prisão como nova tecnologia de exclusão
social.
Sintetizando minuciosamente as razões pelas quais o encarceramento
preventivo pode ser considerado um gestor da exclusão social, o que revela a
importância das prisões provisórias no âmbito da articulação das sociedades pós-
industriais, Zygmunt Bauman ensina que:
“Aqueles que a expansão da liberdade do consumidor privou das habilidades e poderes do consumidor precisam ser detidos e mantidos em xeque. Como são um sorvedouro dos fundos públicos e por isso, indiretamente, do “dinheiro dos contribuintes”, eles precisam ser detidos e mantidos em xeque ao menor custo possível. Se a remoção do refugo se mostra menos dispendiosa do que a reciclagem do refugo, deve ser-lhe dada a prioridade. Se é mais barato excluir e encarcerar os consumidores falhos para evitar-lhes o mal, isso é preferível ao restabelecimento de seu status de consumidores através de uma previdente política de emprego conjugada com provisões ramificadas de previdência. E mesmo os meios de exclusão e encarceramento precisam ser “racionalizados”, de
148 _______________. Para além dos limites. In: MENEGAT, Marildo; NERI, Regina (orgs.). Criminologia e subjetividade. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 47-54, p. 50.
92
preferência submetidos à severa disciplina da competição de mercado: que vença a oferta mais barata(...).”149
Complementando esta visão baumaniana, Joel Birman explica a
concretização da projeção de subjetividade no contexto brasileiro transcorreu por
intermédio de um processo de dissociação da ordem simbólica da lei das práticas
sociais da justiça.
Pela ocorrência desse motivo, aquele autor fez um especial alerta para o
fato de que:
“A concepção simbólica da lei não pode se restringir aos processos lingüísticos, mas deve ser necessariamente relançada nos campos social e político, nos quais a economia política dos bens e valores intercambiados no espaço social remete para a economia psíquica das pulsões, desejos e demandas dos atores sociais.”150
Em paralelo a isto, o supracitado psicanalista lembra que as normas, ao
regularem as práticas sociais, arbitrariamente e relativamente, segundo as
peculiaridades culturais de determinada tradição histórico-social, alinham-se aos
dispositivos de poder, direcionando as diversas possibilidades de existir da
subjetividade.
O efeito prático do alinhamento das normas aos dispositivos de poder é a
quebra da ideia iluminista do universalismo da lei, na medida em que ela se
distancia das práticas sociais de justiça.
De acordo com esse entendimento de Joel Birman, percebe-se assim no
funcionamento da sociedade brasileira um “intervalo existente entre o registro
simbólico da lei e o funcionamento da justiça”, responsável, dentre outras
distorções, por “uma evidente assincronia entre a constituição bastante avançada –
do ponto de vista de seus princípios democráticos – e as práticas de processo
criminal”151.
Numa análise mais atenta do hiato entre o simbolismo da lei e as práticas
sociais de justiça no campo criminal, inscreve-se o costumeiro uso das prisões
provisórias como se pena fossem, delineando um caminho privilegiado para as
149 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, pp. 24/25. 150 BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 280. 151 Ibidem, p. 281.
93
manifestações autoritárias e violentas do poder, as quais, Joel Birman afirma
conduzirem “as subjetividades para o pólo narcísico de seu psiquismo, colocando
entre parênteses as relações alteritárias”152.
Dentro de um contexto autoritário e violento do poder, o propósito
ocupado pelo encarceramento preventivo, em termos de constituição de
subjetividade, reflete dois efeitos distintos no âmbito de quem decide pela sua
aplicação e naquele que é destinatário preferencial dele.
No grupo de quem decide sobre o cabimento das prisões provisórias,
representado pelos magistrados criminais, impera um estímulo à cultura do
narcisismo baseado em decisões repletas de argumentos de exceção, as quais se
postam acima dos marcos constitucionais e legais regentes da matéria, bem como
das condições mínimas em que é possível sustentar a possibilidade de manter um
sujeito preso numa situação anterior à apuração de sua culpa.
Nas classes populares, grupo destinatário preferencial da incidência de um
encarceramento anterior à sentença penal condenatória transitada em julgado, a
situação é completamente diferente, já que os sujeitos padecem com a
impossibilidade de obterem respeito aos seus direitos básicos como cidadãos e de
serem reconhecidos portadores de tal qualidade.
Em concreto, a contradição existente ente os referidos grupos ilustra um
problema muito longe de ser superado no Brasil, simbolizado pelos pesados
grilhões das tradições escravagista e patrimonialista, que tendem a atravessar as
relações sociais, constituindo-as de maneira muito peculiar.
Partindo da análise dessa questão candente na vida social brasileira,
podemos enxergar o saqueamento dos relatos, das histórias de vida, das
experiências de luta e das reivindicações das classes populares, realizado por uma
mediação estatal que recorre a uma diversidade de expedientes para o
cumprimento de tal finalidade, dentre eles, o uso corrente das prisões provisórias.
É importante esclarecer que a utilização descriteriosa das prisões
provisórias, muito além de ofender o núcleo material da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, contrariando os princípios do devido
processo legal, da presunção de inocência e da liberdade (artigo 5º, incisos LIV,
LVII e LXVI), aplicando a situação excepcional da prisão como um modelo a ser
152 BIRMAN, Joel. Op. cit., p. 283.
94
seguido no processo penal brasileiro, espelha uma verdadeira carência de meios
institucionais e jurídicos aptos a instituir uma organização política legítima, capaz
de transformar as regras de uma sociedade individualista, voltada aos ditames do
mercado e estruturada sob os auspícios do gozo predatório.
Efetivamente, este gozo predatório instituído na sociedade brasileira, ao
estabelecer os parâmetros de uma hierarquização social, reflete uma tendência
internacional de fortalecimento da ordem jurídica, em detrimento da completa
precarização da participação popular nas questões políticas.
Plenamente convicto disso, Joel Birman põe em relevo o fato de que o
registro jurídico marcaria então um contraponto seguro para o desinvestimento do
registro político153. Acompanhando esse prisma de análise da questão, o destacado
psicanalista ainda acrescentaria que:
“Com efeito, o modelo que se constitui hoje para combater os ilegalismos tem na punição penal o seu caminho privilegiado. A condenação e o aprisionamento das pessoas crescem vertiginosamente na sociedade contemporânea. Não me refiro apenas aos países periféricos, mas aos Estados Unidos e aos países europeus. Nestes, as populações carcerárias crescem e se perdem de vista. (...) A ordem penal se dissemina, assim, como a via preferencial, assumida pela sociedade pós-moderna, para lidar com os denominados desviantes sociais.”154
De toda a discussão em termos da produção de subjetividade que amolda a
realidade, perpassando pelos seus efeitos nas prisões provisórias, percebe-se
claramente que o acanhamento da política propiciou o avanço no espaço social de
uma instância jurídica altamente punitiva e seletiva, a qual não deixou de seguir,
obviamente, a expansão dos mercados em nível internacional.
A organização do capitalismo globalizado, na sociedade de mercado,
impõe então ao meio jurídico a inevitável incumbência da administração, pela via
do sistema penal, dos grandes contingentes populacionais desguarnecidos após o
desmantelamento do Estado de bem estar social.
A consequência imediata da administração desses grandes contingentes
populacionais forjou um pretexto necessário para a utilização abusiva e
desvirtuada das prisões provisórias, confirmando a premissa de que a construção
153 BIRMAN, Joel. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 343. 154 Ibidem, p. 344.
95
de um horizonte de subjetividade punitiva ergueu-se a partir de um olhar sobre a
prisão como um espaço prioritário para a gestão da exclusão social.
Esse novo estágio da prisão, como administradora da exclusão social, não
deixou de ser devidamente registrado por Joel Birman, pois ele expressou que “as
disciplinas se remanejam nas suas formas de funcionamento e nos seus alvos
privilegiados”, sendo motivadas pelas “novas condições econômicas e sociais”155.
Contribuindo com estas observações, Tânia Kolker adverte que as novas
condições econômicas e sociais, trazidas pela sociedade globalizada de mercado,
fazem a racionalidade administrativo-econômica adentrar de vez na criminologia
latinoamericana, criando uma situação de emergência estrutural, na qual o sistema
penal caminha para um panorama de administrativização.
As implicações dessa administrativização do sistema penal no espaço
latinoamericano promoveram um panorama de atualização das doutrinas de
segurança nacional para uma ideologia da segurança urbana, diversificando os
inimigos a serem combatidos, os quais, em razão de sua diversidade, demandam
estratégias mais difusas de enfrentamento.
Assinale-se que a inserção crescente das demandas de segurança publica
na justiça penal ainda forneceram o suporte necessário para o surgimento de outra
espécie de criminologia, a qual, na afirmação de Tânia Kolker, é “mais
preocupada em gerir do que reformar que vem implicando numa profunda revisão
dos princípios operacionais do sistema de justiça criminal”, amparada em “uma
nova cultura de emergência que, paralelamente à consolidação do Estado de
Direito, vai adaptando a nossa legislação e subjetividades”156.
As novas subjetividades punitivas, direcionadas à concretização de um
paradigma neoliberal de gestão da exclusão social, forneceram, a partir da
assimilação do parâmetro do encarceramento de curto prazo e rápida rotatividade,
os subsídios necessários para o processo de naturalização da segregação e da
neutralização dos presos provisórios, confirmando a máxima de Vera Malaguti de
que “é no nível do imaginário que se desenvolvem as principais batalhas pela
hegemonia política”157.
155 BIRMAN, Joel. Arquivos do mal-estar e da resistência, p. 345. 156 KOLKER, Tânia. Instituições totais no século XXI. In: MENEGAT, Marildo; NERI, Regina (orgs.). Criminologia e subjetividade. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 109-121, p. 110. 157 BATISTA, Vera Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história, p. 29.
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Em resumo, a subjetividade punitiva que se projetou em relação a uma
considerável parcela dos encarcerados preventivos, notadamente aqueles que
respondem a acusações pelo cometimento de crimes contra o patrimônio e tráfico
de entorpecentes, circunscreve-se ao que Carlos Alberto Plastino nomina de
“darwinismo social”158, ou seja, ela foi resultado imediato da participação das
políticas neoliberais no esvaziamento e na limitação da democracia em relação a
determinados sujeitos, o que, para o citado autor, constituiu uma aparente
contradição, haja vista a recente superação dos regimes ditatoriais e a correlativa
expansão dos regimes representativos em escala mundial.
158 PLASTINO, Carlos Alberto. Os horizontes de Prometeu: considerações para uma crítica da modernidade. In: Physis: Revista de Saúde Coletiva. v. 6. n. 1/2. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social; UERJ, 1996, p. 195-216, p. 201.