Livro Estado Saude e Sociedade (2) (1)

176
Sociedade, Estado e Direito à Saúde

description

okk

Transcript of Livro Estado Saude e Sociedade (2) (1)

  • 11111

    Sociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito Sade

    Sociedade, Estadoe Direito Sade

  • 22222

    Sociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito Sade

    FUNDAO OSWALDO CRUZ

    Presidncia

    Paulo Buss

    Vice-Presidncia de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnolgico

    Jos Rocha Carvalheiro

    Coordenao da rea de Fomento e Infra-Estrutura

    Win Degrave

    Coordenao do Programa de Desenvolvimento e Inovao Tecnolgicaem Sade Pblica (PDTSP)

    Mirna Teixeira

    ESCOLA POLITCNICA DE SADE JOAQUIM VENNCIO

    Direo

    Andr Malho

    Vice-Direo de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnolgico

    Isabel Brasil Pereira

    Vice-Direo de Desenvolvimento Institucional

    Sergio Munck

    Coleo Educao Profissional e Docncia em Sade: a

    formao e o trabalho do agente comunitrio de sade

    Coordenao

    Mrcia Valria G. C. Morosini

    Est publicao contou com o apoio do PDTSP/Fiocruz

  • 33333

    Sociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito Sade

    Sociedade, Estadoe Direito Sade

    Organizao

    Mrcia Valria G. C. Morosini

    Jos Roberto Franco Reis

  • 44444

    Sociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito Sade

    Projeto Grfico e Editorao Eletrnica

    Marcelo Paixo

    Capa

    Gregrio Galvo de Albuquerque

    Diego de Souza Incio

    Reviso

    Janana de Souza Silva

    Soraya de Oliveira Ferreira

    Reviso Tcnica

    Anakeila de Barros Stauffer

    Anglica Ferreira Fonseca

    Mrcia Valria G. C. Morosini

    Waldir da Silva Souza

    Catalogao na fonteEscola Politcnica de Sade Joaquim VenncioBiblioteca Emlia Bustamante

    M869s Morosini, Mrcia Valria Guimares Cardoso (Org.) Sociedade, estado e direito sade. / Organizado por Mrcia Valria G. C. Morosini e Jos Roberto Franco Reis. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007.

    176 p. :m il. ; (Coleo Educao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do agente comunitrio de sade, 2). Coordenadora da coleo Mrcia Valria G. C. Morosini.

    1. Agente Comunitrio de Sade. 2. Sade. 3. Polticas Pblicas de Sade.4. Sociedades. 5. Direito Sade. 6. Brasil. 7. Estado. 8. Livro Didtico. I.Ttulo. II. Reis, Jos Roberto Franco. III. Morosini, Mrcia Valria G. C.

    CDD-362.10425

  • 55555

    Sociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito SadeSociedade, Estado e Direito Sade

    AutoresAutoresAutoresAutoresAutores

    Adriana Ribeiro Rice GeislerPsicloga, bacharel em Cincias Jurdicas e Econmicas, mestre em

    Psicologia e doutoranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional

    pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), pro-

    fessora e pesquisadora da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio

    da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).

    Eliane Ministro PereiraAssistente social, especialista em Sade Pblica pela Escola Nacional

    de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/

    Fiocruz), tcnica da Secretaria Municipal de Sade do Rio de Janeiro.

    Fernando LinharesHistoriador, mestre em Poltica Social pela Universidade Federal

    Fluminense (UFF) e professor do Ensino Mdio e Superior no Rio de

    Janeiro.

    Giselle Lavinas MonneratAssistente social, doutoranda em Sade Pblica da Escola Nacional de

    Sade Pblica Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e professora assistente da

    Faculdade de Servio Social da Universidade do Estado do Rio de Ja-

    neiro (FSS/Uerj).

    Ial Falleiros BragaHistoriadora, mestre em Educao pela Universidade Federal

    Fluminense (UFF) e professora e pesquisadora da Escola Politcnica

    de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/

    Fiocruz).

  • 66666

    EDUCAO E SADEEDUCAO E SADEEDUCAO E SADEEDUCAO E SADEEDUCAO E SADE

    Jos Roberto Franco ReisHistoriador, doutor em Histria Social pela Universidade de Campinas

    (Unicamp) e professor pesquisador da Escola Politcnica de Sade Joa-

    quim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).

    Mnica de Castro Maia SennaAssistente social, doutora em Sade Pblica pela Escola Nacional de

    Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz)

    e professora adjunta da Escola de Servico Social e do Programa de Estu-

    dos de Ps-Graduados em Poltica Social da Universidade Federal

    Fluminense (UFF).

  • 77777

    SumrioSumrioSumrioSumrioSumrio

    Apresentao

    Cultura de Direitos e Estado: os caminhos (in)certosda cidadania no Brasil

    Jos Roberto Franco Reis

    O Estado e as Polticas Sociais no CapitalismoEliane Ministro Pereira e Fernando Linhares

    A Sociedade Civil e as Polticas de Sade no Brasil dosanos 80 primeira dcada do sculo XXIIal Falleiros Braga

    A Seguridade Social Brasileira: dilemas e desafios

    Giselle Lavinas Monnerat e Mnica de Castro Maia Senna

    Agente Comunitrio de Sade: mais um ator na novapoltica de atendimento infncia e juventude?

    Adriana Ribeiro Rice Geisler

    9

    15

    63

    81

    103

    153

  • 88888

    EDUCAO E SADEEDUCAO E SADEEDUCAO E SADEEDUCAO E SADEEDUCAO E SADE

  • 99999

    ApresentaoApresentaoApresentaoApresentaoApresentao

    O livro Sociedade, Estado e Direito Sade o segundo da coleoEducao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do Agen-

    te Comunitrio de Sade, composta de seis volumes voltados para os docen-

    tes do Curso Tcnico de Agentes Comunitrios de Sade (ACS). Os temas

    abordados neste livro indicam que a formao dos ACS deve contemplar as

    discusses relativas s polticas de sade inseridas em um contexto maior da

    relao entre sociedade, Estado e direito sade.

    Essa forma de conceber a formao do ACS est diretamente relaciona-

    da ao entendimento de que ele realiza um trabalho complexo cujas bases tcni-

    cas no podem ser descontextualizadas das relaes sociais e polticas que as

    atravessam e condicionam. Tal premissa marca a concepo de educao pro-

    fissional promovida pela Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fun-

    dao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), que entende o trabalho como princpio

    educativo e a formao docente como um processo contnuo no qual pesquisa e

    ensino se articulam em objetos de trabalho e investigao permanentes.

    Assim, a idia de uma coleo de textos de referncia bibliogrfica para

    os docentes que se dedicam educao dos ACS surge do reconhecimento de

    que h saberes fundamentais, a serem sistematizados na formao desses

    profissionais, que transcendem o nvel local e conformam uma base comumque precisa ser socializada. Nesse sentido, os temas abordados neste livro

    acerca das concepes de sociedade, Estado e direito sade constroem-se

    na perspectiva dos direitos sociais como conquistas de cidadania e lanam

    questes prtica cotidiana da atuao desses trabalhadores, na interface

    com as questes sociais que atravessam a sua prtica poltica de construo

    do direito sade.

    As discusses abordadas no livro, de forma semelhante ao restante da

    coleo, emergiram dos debates realizados com docentes, ACS, gestores e

    especialistas (representantes das coordenaes municipais e estaduais da Sa-

    de da Famlia) em oficinas regionais desenvolvidas em trs escolas da Rede de

    Escolas Tcnicas do Sistema nico de Sade (Retsus) no Centro de Forma-

    o de Pessoal para os Servios de Sade Dr. Manuel da Costa (Natal-RN), na

    Escola Tcnica em Sade Maria Moreira da Rocha (Rio Branco-AC) e na Escola

  • 1 01 01 01 01 0

    EDUCAO E SADEEDUCAO E SADEEDUCAO E SADEEDUCAO E SADEEDUCAO E SADE

    Tcnica de Sade de Blumenau (Blumenau-SC) , contemplando as trs

    macrorregies geoeconmicas do pas, respectivamente, Nordeste, Amaznia

    e Centro-Sul. Nestas oficinas, participaram tambm o Centro Formador de

    Curitiba, a Escola de Formao em Sade de Santa Catarina e o Centro de

    Formao de Recursos Humanos da Paraba.

    Nesses encontros, almejou-se reconhecer as condies do trabalho dos

    ACS, buscando a interlocuo necessria construo da coleo. Esse pro-

    cesso se deu no mbito do projeto Material Didtico para os Docentes do

    Curso Tcnico de ACS: melhoria da qualidade na Ateno Bsica, coordenado

    pela EPSJV/Fiocruz, realizado em parceria com Escola Tcnicas do SUS e fi-

    nanciado pelo Programa de Desenvolvimento e Inovao Tecnolgica em Sade

    Pblica: Sistema nico de Sade (PDTSP-SUS) da Fiocruz, edital 2004. O

    referido projeto, assim como os demais temas desenvolvidos, foram apresenta-

    dos no livro O Territrio e o Processo Sade-Doena, primeiro ttulo da coleo.O texto que abre este livro, Cultura de direitos e Estado: os caminhos

    (in)certos da cidadania no Brasil, de Jos Roberto Franco Reis, procura refletir

    sobre a dinmica de constituio de uma cultura de direitos no Brasil, desde

    uma perspectiva crtica s interpretaes correntes que s identificam proces-

    sos incompletos e falhos de cidadania no pas, subcidadanias atravessadas por

    carncias e deficits, em oposio a modelos timos e idealizados registradosem outros experimentos nacionais de cidadania, freqentemente associados

    prtica histrica de certos pases europeus ou dos Estados Unidos. O autor

    defende o argumento de que a cidadania um fenmeno histrico, produto dos

    enfrentamentos e lutas concretas de cada sociedade. Sendo assim, no se re-

    vela adequado falar em cidadania no singular, mas sim em cidadanias, no plural,

    nem tampouco consagrar qualquer modelo normativo como mundo ideal a ser

    copiado. Salienta, pois, o autor, a dimenso de embate poltico que envolve a

    necessidade de reconhecer a peculiaridade brasileira no processo de constitui-

    o de uma cultura de direitos, valorizando o legado particular de lutas e

    conquistas efetivas dos trabalhadores nacionais por reconhecimento poltico e

    por cidadania social, para alm das suas inmeras contradies, ambigidades

    e autoritarismos.

    O texto seguinte, de autoria de Eliane Ministro Pereira e Fernando

    Linhares, O Estado e as polticas sociais no capitalismo, acompanha os pro-cessos de constituio do chamado Estado Nacional Moderno, com nfase no

  • 1 11 11 11 11 1

    percurso histrico voltado implementao de certas polticas sociais, desde

    uma perspectiva inicial inspirada no liberalismo e na defesa de uma ao estatal

    com menor interferncia possvel. O resultado geral observado aponta para o

    aumento da pobreza como contraface perversa do incremento da riqueza capi-

    talista, estabelecendo-se, ao longo desse processo, a necessidade de polticas

    reparadoras de proteo aos pobres, decorrncia de um pauperismo ampliado e

    agravado que emerge como fenmeno social de massa. Na virada do sculo XIX

    para o XX, em virtude do risco de desagregao do tecido social e dos processos

    de solidariedade coletiva, novos e diferentes arranjos de proteo social come-

    am a ser montados em um nmero cada vez maior de pases, de acordo com

    as suas caractersticas sociais, culturais e polticas. Os autores acompanham

    ento a estruturao, ao correr do sculo XX, de novos sistemas de proteo

    social de formatos menos residuais e mais universalistas, conforme os princ-

    pios do chamado Welfare State (Estado de Bem-Estar Social), que procuravainstituir aes mais amplas de melhoria das condies de habitao, sade,

    educao e bem-estar geral. Na ltima parte do texto, Pereira e Linhares,

    analisam as polticas sociais como parte dos processos de disputa poltica em

    torno dos sentidos atribudos ao estatal, espremida entre os objetivos do-

    minantes da acumulao privada, estritamente mercantil, e o atendimento e

    reconhecimento das necessidades bsicas de existncia dos seres humanos, em

    conformidade com certos parmetros de justia social e busca de eqidade.

    Ial Falleiros Braga, no seu texto A sociedade civil e as polticas de

    sade no Brasil dos anos 80 primeira dcada do sculo XXI, busca analisar,

    com base em uma matriz terica gramsciana, as mudanas ocorridas na soci-edade civil brasileira nas dcadas de 1980 e 1990, e as relaes que se podem

    estabelecer com as polticas de sade desenvolvidas no perodo. O texto per-

    corre o processo histrico de afluncia dos movimentos sociais e das lutas

    reivindicatrias envolvidas no processo de democratizao do pas nos anos 80

    do sculo passado, bem como da perda crescente de vitalidade poltica e

    associativa verificada no correr da dcada seguinte. A autora discute, por fim,

    o desafio lanado aos movimentos populares de no contexto atual de avano

    das polticas neoliberais assentadas em lgicas econmicas de ajuste estrutu-

    ral e de controle de gastos pblicos, com importantes conseqncias negativas

    na orientao das polticas sociais resgatar o SUS na sua vertente original,

    de modo a retomar, nas palavras da autora, o seu sentido de universalidade,

  • 1 21 21 21 21 2

    SOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADE

    rediscutindo e reforando o carter democratizante da descentralizao, da

    participao e do controle social.

    Em seguida, Giselle Lavinas Monnerat e Mnica de Castro Maia Senna,

    no texto A seguridade social brasileira: dilemas e desafios, analisam as mar-

    chas e contramarchas do processo de implantao das polticas sociais brasilei-

    ras, notadamente renovadas nos anos 80 e com base na Constituio de 1988,

    que estabelece novos parmetros de regulao societal assentados nos princ-

    pios da universalidade, da descentralizao e do controle social. De acordo com

    as autoras, nesse momento, inaugura-se no Brasil a noo de seguridade soci-

    al, que buscava agregar os campos da sade, previdncia e assistncia social,

    historicamente fragmentados no pas. Processo complexo, marcado por contra-

    dies e disputas polticas, na medida em que envolvem atores sociais e inte-

    resses conflitivos muito diversos. Assim, minada pelas mudanas de inspirao

    neoliberal ocorridas no padro das polticas pblicas brasileiras dos anos 90 em

    diante e por certa incompreenso setorial diante do risco potencial de perda de

    recursos, a proposta da seguridade social resulta, ante a expectativa de sua

    consolidao como propriedade social, at certo ponto fracassada. Ou pelo

    menos no logra a consolidao de uma perspectiva sistmica de integrao,

    mantendo-se, de acordo com as autoras, a histrica fragmentao entre as

    suas trs reas (sade, assistncia e previdncia), que seguem trajetrias pr-

    prias, embora com avanos setoriais significativos, mas com muito ainda por

    realizar, tendo em vista que guardam importante valor poltico.Por fim, o texto de Adriana Ribeiro Rice Geisler, Agente comunitrio de

    sade: mais um ator na nova poltica de atendimento infncia e juventude?,

    busca associar um dos recortes populacionais do trabalho do ACS, isto , a

    ateno a crianas e adolescentes, s questes sociais que a atravessam, ten-

    tando articular contedos dos textos precedentes problemtica do trabalho

    desse profissional da sade. A autora o faz, remetendo-se ao histrico de cons-

    tituio de uma poltica dirigida infncia no Brasil, com destaque para a im-

    plantao do Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) de 1990, que final-

    mente impe o reconhecimento da criana e do adolescente como sujeito de

    direitos. No que se refere poltica de promoo da sade propriamente dita,

    Geisler discute as aes introduzidas pelo Programa de Sade da Famlia (PSF),notadamente as responsabilidades que pode e deve ter o ACS como instn-

    cia de aproximao entre a equipe de sade, a famlia e o conselho tutelar.

  • 1 31 31 31 31 3

    Pautado por temas transversais ao trabalho do ACS, este livro

    disponibiliza eixos de discusso fundamentais compreenso dos demais livros

    da coleo, particularmente Polticas de Sade: a organizao e aoperacionalizao do SUS, consoante a compreenso do trabalhador como su-jeito poltico e tcnico do seu trabalho e da realidade scio-histrica em que

    este se realiza.

    Mrcia Valria Guimares Cardoso Morosini

    Jos Roberto Franco Reis

  • 1 41 41 41 41 4

    SOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADE

  • 1 51 51 51 51 5

    Cultura de Direitos e Estado: Cultura de Direitos e Estado: Cultura de Direitos e Estado: Cultura de Direitos e Estado: Cultura de Direitos e Estado: osososososcaminhos (in)certos da cidadaniacaminhos (in)certos da cidadaniacaminhos (in)certos da cidadaniacaminhos (in)certos da cidadaniacaminhos (in)certos da cidadaniano Brasilno Brasilno Brasilno Brasilno Brasil

    Jos Roberto Franco Reis

    A partir do momento em que a idia deigualdade foi proclamada perante o mundo,a desigualdade se tornou um fardo difcil desuportar.

    Reinhard Bendix

    Introduo

    A proposta deste texto apresentar o processo de constituio da cida-

    dania no Brasil, de forma a compreender o seu significado e apontar seus limi-

    tes, dando nfase ao modo como se constitui o processo de obteno de direi-

    tos sociais no pas. Tendo por suposto que o conceito de cidadania est vincula-

    do noo de direitos e que sua compreenso adequada envolve um esforo de

    contextualizao histrica, nosso objetivo contribuir para o elucidamento de

    questes importantes relacionadas ao processo peculiar de construo da cida-

    dania brasileira, observando alguns momentos-chave da nossa histria.

    A proposta que se possa ultrapassar certa leitura teleolgica e

    essencialista do tema que tende, no primeiro caso, a interpret-la sempre a

    partir do seu vir-a-ser, ou seja, do seu curso histrico posterior e, no segundo,

    acusando o permanente reatualizar da tradio, ou seja, de uma cultura pol-

    tica assentada no mando e na lgica do favor, espcie de maldio das ori-

    gens. Ambas concluindo, de antemo, ou pela ausncia de uma verdadeira

    cidadania no Brasil ou pelo carter sempre incompleto desta, posto que distan-

    te de certos modelos idealizados consagrados como clssicos.

    Com efeito, a experincia brasileira e latino-americana, em geral, tem

    sido vista como um caso incompleto, de uma cidadania insuficiente ou

    subcidadania, atravessada por carncias e deficits em oposio experincia

  • 1 61 61 61 61 6

    SOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADE

    europia ou norte-americana, alada ao plano de realidade ideal. Entretanto,

    uma hiptese importante desse trabalho que no se pode falar em cidadania

    no singular, mas sim em cidadanias no plural. Nesse caso, para o adequado

    deslindamento do tema, deve-se observar a dinmica histrica de cada socieda-

    de determinada, de forma que se possa compreender as especificidades e pecu-

    liaridades do seu projeto de cidadania. No entanto, para dar conta desse obje-

    tivo sem cair num relativismo excessivo, que implique na descrio histrica de

    uma variedade muito grande de experimentos nacionais de cidadania, ns nos

    valeremos, como estratgia metodolgica, da descrio do modelo desenvolvi-do pelo socilogo britnico, T. H. Marshall,1 para tratar do processo ingls. Ape-sar de muito criticado hoje em dia, sua proposta j clssica de evoluo dacidadania ainda se apresenta como principal referncia em se tratando da cida-dania referida sociedade contempornea (Saes, 2003; Sorj, 2004; Reis, 1999).Ademais, em que pese tratar-se da situao particular da Inglaterra, sua narra-tiva da dinmica evolutiva da cidadania presta-se, como sugerem muitos auto-res, ampla generalizao, servindo como parmetro de anlise para discutiroutros casos nacionais, notadamente o processo brasileiro.

    Como estratgia expositiva, dividiremos o texto em trs partes. Umaprimeira que buscar mapear o processo de implantao da cidadania modernana Europa ocidental, tendo como padro de referncia, como j se disse, omodelo ingls descrito por Marshall. O objetivo aqui reforar um ponto centraldo nosso argumento, isto , de que a cidadania um fenmeno histrico, pro-duto das lutas concretas (sociais e polticas) de cada sociedade, para alm deum modelo normativo que a represente como mundo ideal e desejvel,freqentemente associado s prticas dos pases avanados, transformadosde mundo emprico em mundo ideal (Sorj, 2004: 19-20).

    Assim, tendo por mapa esse cuidado analtico, na segunda parte do textotrataremos de refletir sobre o processo brasileiro de constituio da cidadania,de modo a refletir sobre os seus alcances e limites, tendo como eixo condutor adinmica da relao entre Estado e sociedade nos anos de 1930 a 1964, identi-ficados por grande parte da literatura como cruciais na definio dos rumos e docarter da cidadania brasileira, particularmente em torno da efetivao de uma

    1 Thomas Humphrey Marshall, socilogo britnico, professor da Universidade de Londres,realizou, em 1949, uma srie de conferncias em Cambridge, em homenagem a Alfred Marshall,na qual formulou sua concepo de cidadania, dando origem, no ano seguinte, ao livro Citzenshipand Social Class, hoje um clssico dos mais citados sobre o tema.

  • 1 71 71 71 71 7

    cultura de direitos vista como concedida ou conquistada. Por ltimo, pre-tendemos aproximar a discusso acerca dos significados da cidadania aos qua-

    dros atuais de transformao do mundo do trabalho, observando como essas

    mudanas afetam os processos polticos de luta por direitos, notadamente os

    sociais, provocando rearranjos na percepo da cidadania brasileira.

    Cidadania Moderna e Constituio de DireitosCidadania Moderna e Constituio de DireitosCidadania Moderna e Constituio de DireitosCidadania Moderna e Constituio de DireitosCidadania Moderna e Constituio de Direitos

    O tema da cidadania pode ser identificado, em suas razes, l na Anti-

    guidade, sobretudo nas cidades-estados da Grcia Clssica. Nesse momento,

    cidadania envolvia, sobretudo, a idia de participao dos homens livres no

    governo da plis,2 configurando o que se pode entender como direitos e deve-res polticos no mbito da esfera pblica. Era atravs da palavra na gora,3

    espao pblico por excelncia, que os indivduos definiam as leis e as questes

    do Estado.

    verdade que nem todos possuam tais prerrogativas, no sendo consi-

    derados cidados, os escravos, as mulheres e os estrangeiros, um total de 3/4

    da populao. Alm do mais, na cidadania antiga, a vida privada, civil, era o

    espao da sujeio e do poder absoluto. A liberdade existia apenas para a plis,e os indivduos tinham suas vidas pessoais regidas pelo Estado, nos mais diver-

    sos nveis, como, por exemplo, na proibio de celibato, na obrigao de raspar

    o bigode, na regulao da moda etc (Comparato, 1993: 85). O que definia o

    indivduo como sujeito de direito no era a sua condio humana, mas sim a de

    membro da comunidade poltica, ou seja, de participante da coletividade/cida-

    de. E aqui aparece um aspecto importante que a diferencia da cidadania na

    forma como ela emerge no mundo moderno. Neste ltimo, o indivduo se torna

    titular de direitos no apenas como cidado, mas como homem, sendo pela via

    2 Plis se refere cidade na Grcia antiga. Compreendida como cidade-Estado, definia-secomo uma unidade poltica peculiar que se autogovernava, formada pela comunidade dos seuscidados, isto , pelo conjunto de homens livres e iguais. Topograficamente, constitua-se deum ncleo urbano (composto pela acrpole colina fortificada e centro religioso; asty mercado; e gora praa central) e o territrio rural adjacente. Apesar de no ser um fenme-no exclusivo da Grcia, a plis expandiu-se de modo generalizado por todo o mundo grego. Asua origem remonta poca Arcaica (VIII ao VI a.C.) da Antiguidade Clssica, com formasvariadas ao longo do tempo, sobrevivendo at o perodo Helenstico de finais do sculo IV a.C.3gora era a praa principal na constituio da plis grega, expresso mxima da esferapblica. Era nela que ocorriam as discusses polticas e os tribunais populares, momento porexcelncia em que o cidado grego convivia com o outro, constituindo-se, pois, como o espaoprprio da cidadania.

    CULCULCULCULCULTURTURTURTURTURA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTADO (...)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)

  • 1 81 81 81 81 8

    SOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADE

    dos direitos civis, reconhecidos como direitos naturais, universalmente vlidos

    porque seus por natureza, que a condio de cidado inicialmente se estabele-

    ce. Como salienta Coutinho (1997: 47 grifo nosso),

    no mundo moderno, a noo e a realidade da cidadania tambm estoorganicamente ligadas idia de direitos; mas num primeiro momento, aocontrrio dos gregos, precisamente idia de direitos individuais ou civis.John Locke, por exemplo, que viveu no sculo XVII, baseou seu pensa-mento poltico na afirmao de que existiam direitos naturais. Os indiv-duos, enquanto seres humanos (e no mais enquanto membros da polis,como entre os gregos, ou enquanto membros de determinado estamento,como na Idade Mdia), possuiriam direitos.

    So, pois, os tericos liberais do jusnaturalismo, ou doutrina dos direi-

    tos naturais, que repem a questo da cidadania, nos termos de direitos uni-

    versais inscritos numa suposta natureza humana, garantidos queles reconhe-

    cidos como cidados no interior de um agrupamento nacional em processo de

    formao. Direitos civis, portanto, garantidores das liberdades individuais, de-

    finidos como fundamentais seja na Bill of Rights (Declarao de Direitos

    1689) promulgada pelo parlamento britnico aps a Revoluo Gloriosa, ou na

    Declarao de Independncia dos EUA (1776) e, ainda, na Declarao dos

    Direitos do Homem e do Cidado (1789), estabelecida pela Revoluo France-

    sa (Quirino & Montes, 1986).

    Dentro da compreenso da cidadania como um processo historicamente

    constitudo de ampliao de direitos em trs nveis distintos, iniciando-se pelos

    civis, e vinculados condio de pertencimento a um determinado Estado-na-

    o, creio que a formulao desenvolvida pelo socilogo britnico Marshall (1967),

    como dissemos, oferece uma importante contribuio e merece ser aqui resga-

    tada. Observando o processo histrico vigente na Inglaterra, definiu certa pers-

    pectiva cronolgica de implantao dos direitos de cidadania em trs momentos

    sucessivos: inicialmente implantou-se, basicamente no sculo XVIII, os chama-

    dos direitos civis (liberdade de ir e vir, de pensamento, de religio, de opinio,

    direito vida, justia e propriedade, de estabelecer contratos), definidos

    pela idia de liberdade individual; em seguida os direitos polticos, no sculo

    XIX, que asseguram a participao dos indivduos no governo da sociedade (como

    votar e ser votado, direito de associao e organizao), consagrados como

    direitos individuais exercidos coletivamente; e, por ltimo, os direitos sociais

    no sculo XX, que garantem a participao na riqueza do pas como educao,

  • 1 91 91 91 91 9

    sade, trabalho, aposentadoria e salrio digno , envolvendo a presena do

    Estado como criador das condies econmicas para a sua viabilizao.

    Tal diviso dos direitos em civis, polticos e sociais, teria sido possvel, de

    acordo com Marshall, em funo de um processo de diferenciao institucional

    por que passou a sociedade inglesa no seu processo de constituio nacional,

    ultrapassando a antiga ordenao estamental4 tpica do feudalismo, que se ca-

    racterizava por agregar cada indivduo num certo status particular, com institui-es e prerrogativas prprias. Nesse momento histrico, as instituies se en-

    contravam amalgamadas umas s outras, indiferenciadas por estamento uma

    mesma instituio era uma assemblia legislativa, um conselho governamental

    e um tribunal de justia. O que se observa como dinmica evolutiva natural e

    endgena a separao das diversas instituies, que adquirem funes

    especializadas, garantindo tipos especiais de direitos. Ao mesmo tempo, verifi-

    ca-se um processo de fuso das instituies no plano geogrfico, que deixam de

    se referir-se ao plano local e passam a possuir uma base nacional.

    Assim, dado esse processo de diferenciao das diversas esferas da vida

    social, caractersticas da ordem burguesa em expanso, diversos tipos de direi-

    tos puderam ser definidos, o que os teria levado a implantarem-se obedecendo

    a dinmicas diferentes em termos de temporalidade e de seqenciamento his-

    trico/cronolgico. Com efeito, a perspectiva em escada de Marshall estabe-

    lece certa linha evolutiva e lgica nesse processo de expanso da cidadania, em

    que a introduo dos direitos civis cria as condies de possibilidade para o

    estabelecimento dos direitos polticos, que, por sua vez, permite o avano dos

    direitos sociais, este ltimo assentado fundamentalmente no trip educao,

    sade e trabalho.

    Interessante observar que, embora obedeam a uma dinmica evolutiva

    e lgica, no se caracterizam pela presena de um mesmo princpio poltico,

    tendo em vista que os dois primeiros direitos civis e polticos surgem como

    4 As sociedades do chamado Antigo Regime, melhor compreendidas como agregados de comu-nidades com peculiaridades regionais tnicas e lingsticas, se estruturavam atravs de or-dens ou estamentos, definidos pela condio de nascimento dos indivduos. Compostas detrs ordens ou estados primeiro estado, clero; segundo estado, nobreza; e terceiroestado, o povo em geral, evidentemente, a grande maioria da populao, compreendia umsentido de estratificao social bastante rgido. Sendo assim, comportava pouca mobilidadesocial, com a passagem de um estamento para outro, envolvendo um processo demorado, porvezes at geracional, o qual implicava no apenas a posse de riqueza e autoconscincia, masuma sano jurdica que a tornasse vlida (Wehling & Wehling, 1999).

    CULCULCULCULCULTURTURTURTURTURA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTADO (...)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)

  • 2 02 02 02 02 0

    SOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADE

    limites ao poder do Estado, com o cidado, de certa forma, buscando construir

    protees interferncia opressora do Estado. No caso dos direitos civis, ca-

    racterizados, segundo a literatura, por um tipo de liberdade negativa, os indi-

    vduos historicamente buscaram se opor ao autoritria e desptica do Esta-

    do Absolutista; em relao aos direitos polticos, vistos como liberdade positi-

    va, expressam a exigncia de uma ao ativa e participativa dos cidados na

    conduo dos negcios do Estado contra um Estado antes oligrquico (Perei-

    ra, 1997: 8-9).

    De qualquer modo, ambos invocam certa reao, definida historicamen-

    te, ao poder estatal, que a aparece como ameaador das liberdades fundamen-

    tais civis e polticas. No caso dos direitos sociais, a lgica de ao outra,

    porquanto ao contrrio de um Estado contido, recolhido, exige-se uma presen-

    a mais forte e atuante deste, de modo que se possa garantir um mnimo de

    bem-estar social para todos. Seria, pois, atravs da ampliao do escopo de

    interveno estatal que se poderia garantir a participao bsica de todos nos

    frutos da riqueza produzida coletivamente, encurtando as desigualdades sociais

    e produzindo maior justia social. Por isso, alguns autores procuram estabele-

    cer distines entre os diversos tipos de direitos, definindo os dois primeiros

    civis e polticos como direitos-liberdade (Ferry & Renaut apud Sorj, 2004: 29)

    ou de primeira gerao (Bobbio, 1992) e os direitos sociais como direitos-

    credores, dependentes do Estado, ou de segunda gerao.5 Justamente por

    isso, por dependerem do Estado, os direitos sociais sempre foram encarados

    com desconfiana pela tradio liberal e hoje se encontram na linha de ataque

    das polticas neoliberais que pretendem reduzir o papel do Estado.

    O enfoque marshalliano, descrito anteriormente em suas linhas gerais,

    foi objeto de diversas crticas. Trataremos fundamentalmente de duas delas,

    5 Bobbio se refere existncia, atualmente, de direitos de terceira gerao, envolvendo,sobretudo, a questo ambiental, a idia de uma cidadania planetria que defende o direito deviver-se em um ambiente saudvel (Bobbio, 1992). Outros autores trazem cena o tema dosdireitos especficos de minorias e de certos grupos sociais subalternos (gnero feminino,homossexuais, grupos tnicos, crianas, terceira idade). Principalmente em relao a esteponto, h muita controvrsia, tendo em vista que a idia de direito diferena, trazida pelaperspectiva do multiculturalismo que faz o elogio da diferena como norte de afirmao deuma nova cidadania definida pela incluso do indivduo, em algum grupo social especfico, oqual, por razes histricas e polticas determina algum tipo de discriminao positiva (polticade cotas, por exemplo) gera uma tenso com o princpio do direito igualdade, de cunhouniversalizante, que at ento estabelecia o parmetro de obteno de direitos de cidadania(Reis, 1999).

  • 2 12 12 12 12 1

    aquelas que podem, a nosso ver, ser consideradas as mais importantes. Aprimeira a que o acusa de menosprezar a ao e o conflito de classes, tendoem vista que apresenta um processo de desenvolvimento da cidadania excessi-vamente otimista, quase que resultado de uma evoluo endgena natural porfora dos avanos da ordem mercantil-capitalista. Com efeito, os processos de

    superao do mundo feudal, que resultaram na libertao jurdico-poltica dosindivduos e garantiram seus direitos civis, no se concretizaram apenas porum movimento de evoluo institucional fundadora de uma fuso geogrfica(o Estado-nao) e de uma especializao funcional das instituies, como jfoi salientado. Estes processos de ruptura foram decorrentes das lutas sociaise polticas observadas, por exemplo, na guerra civil inglesa de 1641 e na revo-

    luo gloriosa de 1688,6 no caso dos direitos civis.Em outros momentos histricos, referidos, portanto, a outros direitos,

    houve tambm certa subestimao dos diversos enfrentamentos decorrentesdas lutas empreendidas pelos movimentos de trabalhadores na Inglaterra des-de pelo menos o sculo XIX (Cartismo,7 lutas sindicais, trabalhismo ingls oLabour Party, fundado em 1906 com importantes bases sindicais , a ideologiada guerra fria e suas influncias sociais etc.), com forte impacto no reconheci-

    mento dos direitos, tanto sociais como polticos. O perigo subjacente a essaperspectiva evolucionista e naturalista da cidadania o de subsumir o lugar dahistria, negligenciando o papel das classes dominantes em barrar o processode avano da constituio de direitos, como se a defesa da cidadania pairasseacima do mundo dos interesses e no fizesse parte da luta de classes de qual-

    quer sociedade.8

    6 Alguns autores chegam a contestar a prpria dinmica seqencial inglesa dos direitos, apon-tando que o Bill of Rights, que procurava garantir certas liberdades individuais, decorreu deuma ao poltica, que, portanto, precedeu o reconhecimento dos direitos civis (Vieira, 1999).7 O Cartismo foi um poderoso movimento de trabalhadores ocorrido na Inglaterra a partir dadcada de 1830 do sculo XIX, que tinha como base a intitulada Carta do Povo, documentoenviado ao parlamento ingls contendo seis pontos de reivindicao poltica, dentre os quais adefesa do sufrgio masculino e a abolio das condies de propriedade para os candidatos.Promovido inicialmente pela Associao de Trabalhadores de Londres, criada pelo marceneiroWilliam Lovett, visava despertar o interesse dos operrios ingleses pela democratizao doEstado, de modo a avanar na obteno de certos direitos sociais, notadamente aquelesrelacionados ao mundo do trabalho. Gerou um amplo movimento de massas, com petiescontendo mais de um milho de assinaturas, em trs momentos diferentes (1838, 1842 e1848). Embora sem atingir seus objetivos imediatos, o radicalismo democrtico dos cartistasforou o poder pblico a dar incio a processos de regulamentao do mundo do trabalho e,portanto, deve ser entendido como parte dos movimentos polticos de organizao e luta dostrabalhadores ingleses da primeira metade do sculo XIX.

    CULCULCULCULCULTURTURTURTURTURA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTADO (...)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)

  • 2 22 22 22 22 2

    SOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADE

    No entanto, a histria atesta a permanente resistncia movida pelos

    grupos econmicos dominantes da sociedade inglesa, e europia em geral,

    ampliao e universalizao de certos direitos, como o sufrgio universal que

    sofreu fortssima resistncia. Como visto na literatura, as classes dominantes

    burguesia liberal e a velha aristocracia fizeram de tudo para barrar o avano

    desse processo na Europa do sculo XIX,9 instituindo qualificaes educacionais

    e de renda, situaes de dependncia e ausncia de propriedade como meios de

    controle e limitao do voto para no falar da excluso das mulheres, que s

    alcanaram a plenitude eleitoral no sculo XX tardio, em muitos pases bem

    depois do Brasil , sendo a bandeira da sua universalizao claramente susten-

    tada pelos trabalhadores. Como assinala Hirschman (1992), em um primoroso

    ensaio em que demonstra como, na Inglaterra, em cada fase da trajetria da

    cidadania descrita por Marshall, ocorreram concomitantes movimentos de rea-

    o, a idia de estender o direito de voto s massas no sculo XIX era vista

    como uma verdadeira ameaa ao status quo das classes respeitveis inglesas.Tratando da reforma eleitoral de 1832 diz:

    O trao notvel da aprovao definitiva do Reform Bill foi que os liberaisaristocrticos (Whigs) e seus aliados, que o defenderam, eram to hostisa qualquer ampliao do direito de voto para as massas quanto os recal-citrantes conservadores (Tories), que se opunham a ele. Ambos os grupostinham horror a essa perspectiva: ela implicava em democracia, termoamplamente usado como bicho-papo, em lugar de sufrgio universal,que soava mais progressista. (Hirschman,1992: 79-80)10

    8 Ainda que Marshall estabelea uma distino entre os direitos civis como funcionais aosistema capitalista porquanto permitem que os indivduos, por livre acordo de vontadesindividuais estabeleam relaes mercantis de compra e venda da fora-de-trabalho e osdireitos polticos e sociais marcados pela conflitividade, na medida em que contribuem paradiminuir a desigualdade de classes, atingindo de certa forma os interesses e o lucro da burgue-sia, como no exatamente apontavam para uma contradio com o avano do capitalismo,segundo o autor a igualdade de status [a condio igualitria de titular de direitos] maisimportante que a igualdade de renda (1967: 63-64), no so observados como um possvelrisco. O que o leva a subestimar o papel das classes dominantes em conter a dinmica dedesenvolvimento da cidadania, vista, pois, como um processo progressivo e muito pouco conflitivo(Saes, 2003).9 Hoje voltam a fazer isso em relao, sobretudo, aos direitos sociais, mas tambm em relaoaos direitos civis e polticos para os imigrantes.10 Como assinala Bobbio (1994), a convivncia entre liberalismo e democracia no sculo XIX foiproblemtica, no mnimo marcada por grande desconfiana, existindo liberais radicais, queincorporavam a questo da democracia, mas, mesmo assim, em etapas numerosas que gradu-almente alargassem os direitos polticos at o sufrgio universal, e os liberais conservadores,que tinham pela democracia verdadeiro sentimento de repulsa, sinnimo de tirania da maioria,demagogia e desordem, entendendo a extenso do direito de voto aos no proprietrios umaverdadeira ameaa liberdade.

  • 2 32 32 32 32 3

    Isso sem falar nas interdies livre organizao dos trabalhadores nosseus sindicatos e em partidos polticos (Bendix, 1996; Abendroth, 1977). Porisso, Coutinho (1997: 154) lembra que a generalizao dos direitos polticos

    resultado da luta da classe trabalhadora, sendo as

    conquistas da democracia enquanto afirmao efetiva da soberania po-pular, o que implica necessariamente o direito ao voto e organizao,(...) resultado sistematicamente das lutas dos trabalhadores contra osprincpios e as prticas do liberalismo excludente defendido e praticado

    pela classe burguesa.

    Importante observar esse aspecto, para evitar o senso comum polticoque tende a desqualificar os processos de constituio da cidadania na Amri-ca Latina, como se na Europa ou nos Estados Unidos a cidadania plena tivessese desenvolvido como um corolrio natural da instaurao da liberdade civil

    (Saes, 2003: 18). Conforme adverte Sorj (2004: 29),

    historicamente, foram em geral as classes proprietrias que procuraramlimitar o programa da modernidade capitalista defesa da liberdadeindividual [leia-se, fundamentalmente direitos civis], enquanto as clas-

    ses populares avanavam a bandeira da igualdade e da justia social.

    Outra crtica importante diz respeito aos argumentos que apontam paraum quadro necessrio e lgico de seqenciamento da obteno de direitos, aperspectiva em escada, de Marshall. Do ponto de vista do socilogo britni-co, a implantao, em primeiro lugar, dos direitos civis, foi uma pr-condiopara o avano do capitalismo e implicou a condio de possibilidade da obten-o de direitos polticos, na medida em que garantiu aos indivduos a perspec-tiva bsica de expressarem-se, de formularem opinies e organizarem seusinteresses, de estabelecerem contratos como seres livres e iguais.

    De modo semelhante, foi a partir da assuno dos direitos polticos deassociao, do exerccio de votar e ser votado, que se pde avanar na exign-cia de certos direitos sociais. Entretanto, ainda que se possa concordar comessa formulao em termos prescritivos, no sentido de reconhecer que a aqui-sio de certos direitos impulsiona a ampliao e a universalizao de outrostantos podendo ser apontada como uma condio necessria, mas no sufi-ciente para tal, tendo em vista que no gera automaticamente o gozo de ou-tros direitos (Carvalho, 2003; Saes, 2003) , o fato concreto que historica-mente no se passou assim na maioria dos pases.

    Conforme adverte Habermas (apud Pereira, 1997: 10), na defesa que fazdos direitos polticos como cruciais cidadania, liberdades negativas [direitos

    CULCULCULCULCULTURTURTURTURTURA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTADO (...)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)

  • 2 42 42 42 42 4

    SOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADE

    civis] e direitos sociais podem (...) [ser] garantidos por uma autoridadepaternalista. Sendo assim, conclui o autor, em princpio, o Estado constituci-onal e o Estado de Bem-Estar so possveis sem democracia. Na Alemanha,por exemplo, a implantao de alguns direitos sociais no perodo bismarckiano11

    ocorreu sem que certas liberdades civis estivessem garantidas e, muito menos,as liberdades polticas. Nos Estados Unidos, as polticas sociais do perodoRoosevelt antecederam em muito a integrao civil e poltica dos negros ame-ricanos. Isso sem falar em pases como Portugal e Espanha, em que governosautoritrios, restritivos das liberdades polticas e civis, garantiram certos direi-tos sociais (Sorj, 2004). O que nos leva a concluir, com Sorj, que a construoda cidadania, seja na Frana ou nos Estados Unidos, no Japo ou na Alemanha,foi e continua sendo um processo complexo, sofrido, ziguezagueante, que nopode ser reduzido perspectiva esttica e estilizada das ltimas dcadas dosculo XX (Sorj, 2004: 20).

    Assim, possvel sugerir que o processo de implantao da cidadania empases da Amrica Latina, no Brasil em especial, por no ter se adequado aomodelo ingls, no deve ser visto como aqum em relao a outras experinciashistricas admitidas como normais e/ou ideais, mas sim como variantes pos-sveis do problema universal de regulao da cidadania (Sorj, 2004: 99). O fato que no existe esse modelo normal, o que existe so experincias diversasde cidadania trilhadas por cada pas particular, em convergncia com os sobres-saltos e peculiaridades de sua histria nacional, num jogo incessante de avan-os e recuos em termos das expectativas de direitos e de sua aplicao efetiva.

    No resta dvida, pois, de que em funo da luta popular pela conquis-ta de certos direitos, mas tambm pela aplicao da lei, que se garante a suaefetividade. Do contrrio, pode-se rumar para modelos jurdicos e constitucio-nais timos em termos de regulao da cidadania e realidades absolutamente

    distantes dos prottipos legais. E nesse ponto que os crticos que denunciam

    o carter problemtico da cidadania no Brasil se batem, acusando o descompasso

    brasileiro entre o pas legal e o pas real. Mas recorrendo histria tam-

    11 Perodo bismarckiano se refere ao predomnio poltico da figura de Oto von Bismarck,chanceler da Prssia e principal artfice da unificao alem, que se torna, aps esse processo,primeiro ministro do novo imprio alemo, de 1871 a 1890. Estabelece nesse perodo umalegislao social avanada (seguro doena 1883; acidentes de trabalho 1884; segurovelhice 1889), com o objetivo de conter o avano dos socialistas na Alemanha (Berstein &Milza, 1997).

  • 2 52 52 52 52 5

    bm que se podem matizar muitas das crticas que so dirigidas s insuficinci-

    as do processo brasileiro de cidadania.

    Brasil: a cidadania (im)possvelBrasil: a cidadania (im)possvelBrasil: a cidadania (im)possvelBrasil: a cidadania (im)possvelBrasil: a cidadania (im)possvel

    De uma maneira geral, a literatura histrica e sociolgica que vem tra-tando do tema da cidadania e da obteno de direitos no Brasil opera a partirda concepo de que aqui tal processo decorreu, sobretudo, da ao demirgicado Estado, decorrncia tanto da marca autoritria da cultura poltica brasilei-ra, sendo o nosso liberalismo um grande mal-entendido, uma idia fora dolugar (Schwarz, 1977), quanto da fora da cultura ibrica no pas, entendidacomo reforadora de um modelo poltico calcado na integrao orgnica dosgovernantes aos governados e no predomnio do todo sobre o indivduo. Fatoque se agrava pela enorme e patolgica, porque estrutural, distncia que existeno Brasil entre o pas legal e o pas real, herana do nosso bacharelismo eda convico que aqui se tem de que as leis existem para ingls ver12 ou paraserem aplicadas aos inimigos. O resultado disso a configurao de um modelode cidadania de contornos passivos, quando no sua ausncia plena, resultadofundamentalmente de uma antecipao generosa e clarividente do Estado e daincorporao tutelada dos brasileiros, que se revelam apticos e acomodados,praticamente ausentes do processo de conquista de direitos, que mais se pare-cem com favores, ddivas governamentais geradoras de lealdade e gratido.

    Assim, o que se nota, de uma maneira geral, que as interpretaes quetratam dos processos histricos de constituio de uma cultura de direitos noBrasil, ao no encontrarem de modo pleno certas caractersticas definidoras deum modelo clssico de representao e cidadania, de um tipo de participaopoltica que se enquadre em algum modelo historicamente (re)conhecido, oingls por exemplo, acabam sempre concluindo pela identificao de formaslimitadas e equivocadas dos comportamentos polticos no Brasil porquantoincompletos e permanentemente em falta.13

    12 A expresso lei para ingls ver tem origem na legislao que abolia o trfico negreiroaprovada no Brasil em 1831, por presso da Inglaterra, mas que nunca foi cumprida.13 Fato que tem levado muitos autores, em estudos que procuram entender o comportamentopoltico do brasileiro, a lanar mo de noes que, denotando ambigidade, procuram darconta dessa tenso constitutiva, como a idia de estadania, de Carvalho (2003); de cidadaniaconcedida, de Sales (1994); de direitos como favores, apresentada por Reis (1990); deestadania filial regulada, de Duarte (1999); do mais recente cidadania em negativo domesmo Carvalho (1996), at a clssica formulao de cidadania regulada, proposta porSantos (1979).

    CULCULCULCULCULTURTURTURTURTURA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTADO (...)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)

  • 2 62 62 62 62 6

    SOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADE

    O historiador Jos Murilo de Carvalho, por exemplo, que foi quem me-lhor estudou o processo de implantao da cidadania no Brasil em um trabalhoanaltico e rigoroso que navega por toda a histria brasileira, do perodo colonial nossa histria mais recente, apresenta um quadro fecundo das marchas econtramarchas desse processo no Brasil, mas, a nosso ver, incorre num equvo-co de fundo, determinado pelo que chamamos de analtica da falta.14 Emborareconhea a possibilidade de que cada pas possa ter seguido seu prprio cami-nho e saliente que a trajetria da cidadania inglesa serve apenas para compa-rar por contraste (1996: 7-13), ao aplicar a frmula marshalliana de ampliaoe repartio dos direitos na anlise do caso brasileiro, acaba reforando a crti-ca que acusa a nossa cidadania de anmala e estruturalmente comprometida.

    Em seu trabalho, Carvalho aponta duas diferenas bsicas do processobrasileiro em relao ao ingls: a maior nfase dada ao social e a alterao daseqncia inglesa, com os direitos sociais precedendo os outros. O problema que os resultados dessa alterao, na comparao por contraste, sugeridapor Carvalho, que parecem ser vistos como necessariamente desqualificadores,posto que, de acordo com o mesmo autor, como havia lgica na seqnciainglesa, sua alterao afet[ou] a natureza da cidadania brasileira. Isto , emdecorrncia da nfase no social e da alterao no curso da cidadania, agravadopelo papel antecipador do Estado brasileiro, nossa cultura de direitos se viuirremediavelmente corrompida e o mximo que conseguimos ou podemos ter uma cidadania em negativo ou estadania.

    Roberto DaMatta outro que, em suas anlises do dilema cultural bra-sileiro, tem recusado a presena de qualquer evidncia positiva de cidadania noBrasil. Tratando da gramtica das relaes sociais no pas, observa umadicotomizao entre indivduo e pessoa, instituidora de um sistema dual

    14 Thompson, por exemplo, no seu As Peculiaridades dos Ingleses, apresenta uma crticacontundente aos trabalhos de Perry Anderson e Tom Nairn, que pretendem analisar o pro-cesso histrico britnico de constituio e domnio de uma ordem burguesa e capitalista sobretudo o papel reservado classe trabalhadora, burguesia inglesa e aos intelectuais luz do modelo revolucionrio francs, alado deste modo ao lugar de frmula quase univer-sal, ao qual tudo que vem antes e depois deve ser relacionado, e que institui um tipo idealdesta revoluo contra a qual todas as outras devem ser julgadas (1998: 35). O resultadodisso, aponta o historiador, o reconhecimento sempre de uma falta, de uma falha, tendo emvista que, cotejado com este modelo, a classe trabalhadora inglesa um enigma dahistria contempornea, a burguesia fragmentada e incompleta e os intelectuais inglesesincapazes de constituir uma verdadeira intelligentsia (1998). No entanto, acrescenta oautor, como toda experincia histrica obviamente, em um certo sentido, nica (1998), oprocesso de constituio de uma ordem burguesa aconteceu de um jeito na Frana e deoutro na Inglaterra (1998).

  • 2 72 72 72 72 7

    metaforizado na distino entre a casa e a rua. Como indivduos, embora cida-dos, somos uma espcie de joo ningum, submetidos ao mundo pblico (rua),ao universo abstrato da lei, das regras gerais, impessoais e universais; comopessoas, adentramos um universo relacional (casa), de sujeitos concretos quese vem envolvidos em situaes concretas e que se valem de suas amizades edo capital que acumularam em termos de contatos e de influncia. Aqui entraem cena o voc sabe com quem est falando, a malandragem ou o famosojeitinho brasileiro. O resultado a presena de uma cidadania prejudicada,ambgua, determinada por hierarquias e redes de relaes pessoais, dependen-te, portanto, de quem est implicado na situao, e, nesse caso, bem poucoprxima de qualquer regra moderna de equivalncia igualitria, com princpiosabstratos e universalmente vlidos. Como salienta DaMatta, no Brasil muitomais importante conhecer a pessoa implicada, do que a lei que governa umadada situao (1992, prefcio, 1979).

    Outro trabalho importante que refora o argumento de uma cidadaniaanmala no Brasil o de Tereza Sales. No artigo Razes da desigualdade nacultura poltica brasileira, baseado na sua tese de doutorado defendida naUSP, Sales enfatiza a presena de uma cultura do mando e da submisso,gestada ainda no latifndio colonial, com seus traos de continuidade at opresente atravs de um processo de recriao efetuado no coronelismo daRepblica Velha , invadindo inclusive o espao urbano (1994: 26-37). Tal legadoestabeleceria um tipo de dependncia, em que a obteno de direitos estariaintrinsecamente vinculada idia de proteo e amparo, sendo vista, portanto,como ddiva a autora fala em cultura poltica da ddiva , gerando umasituao paradoxal de cidadania concedida expressa na idia de que no Brasilou bem se manda ou bem se pede (1994: 27).15

    15 Comentando o texto de Sales, Francisco de Oliveira oferece uma crtica, que de certa formaacompanhamos, atentando para o fato de que o tecido social da ddiva mais complexo,comporta direitos que no obedecem a um caminho de mo nica do mandonismo para ocampesinato (Oliveira, 1994: 42-44). Evidentemente, salienta Oliveira, que no se trata dedireitos no sentido moderno, individualsticos, o que no significa aceitar que a relao socialdo latifndio-minifndio era de total e completa arbitrariedade (p.43). Da o risco do uso danoo da ddiva, pois no sendo esta uma relao entre iguais, o conceito corre o risco depropor tambm uma relao de completa arbitrariedade (p.43). Entretanto, se interpretarmosa ddiva como uma relao simblica que provoca sempre a obrigao de uma compensaocomo resposta ao objeto doado, ou seja, como algo que envolve reciprocidade, ainstrumentalizao de uma hipottica cultura poltica da ddiva pode servir de alavancapara, em determinadas circunstncias especficas da luta social, trabalhar o sistema a seufavor (Ramalho & Esterci, 1996) e dessa forma criar motivos de luta visando obter ganhos egarantir direitos.

    CULCULCULCULCULTURTURTURTURTURA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTADO (...)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)

  • 2 82 82 82 82 8

    SOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADE

    Como se v, so muitos os limites observados para a vigncia de uma

    verdadeira cidadania no Brasil, para a idia moderna de direito a ter direitos

    nos termos de Hannah Arendt (apud Telles, 1999: 61) Como nosso objetivo tratar mais dos direitos sociais e da sua relao com a cultura poltica brasilei-

    ra e j que no possvel, nos limites deste texto, apresentar o percurso hist-

    rico geral da cidadania brasileira, nossa inteno mais modesta neste tpico

    valer-nos de um certo momento histrico preciso, os anos Vargas e/ou o cha-

    mado perodo populista entre 1930 e 1964, para discutir o assunto e apontar

    pelo menos outras possibilidades de inscrio poltica de uma cultura de direi-

    tos no Brasil.

    O objetivo aqui no apresentar o passo-a-passo da cidadania nesse

    perodo, mas refletir criticamente sobre o tema com base em alguns autores e

    conceitos-chave que, a nosso ver, sustentam as proposies bsicas denuncia-

    doras das limitaes, lacunas e contradies da cidadania brasileira, para, em

    seguida, observar a questo tendo em vista novos parmetros tericos que

    permitam problematizar tais hipteses legitimadoras, que a configuram como

    substantivamente concedida. Valemo-nos aqui da advertncia de Gomes de

    que se o modelo de cidadania que, bem ou mal, se implantou no Brasil principal-

    mente entre 1930 e 1964, fugiu ao modelo clssico, isto no quer dizer que

    esta deva ou possa ser ignorada ou minimizada. Sendo assim, acrescenta a

    autora, as interpretaes que explicam a experincia histrica e a concepo de

    poltica forjada no Brasil nos anos 40 do ltimo sculo como uma manipulao

    do povo por elites mal intencionadas, que elaboravam leis para ingls ver,

    tornam-se insuficientes para dar conta da sua durao e das questes que

    lanam para o entendimento da trajetria dos direitos de cidadania no Brasil

    (2002: 45).

    Estado e TEstado e TEstado e TEstado e TEstado e Trabalhadores na Era dos Direitos Sociaisrabalhadores na Era dos Direitos Sociaisrabalhadores na Era dos Direitos Sociaisrabalhadores na Era dos Direitos Sociaisrabalhadores na Era dos Direitos SociaisBrasileirosBrasileirosBrasileirosBrasileirosBrasileiros

    Comeamos ento pelo trabalho de Carvalho (2003: 123), citando o tre-

    cho em que ele, no seu precioso livro sobre cidadania, analisa o primeiro gover-

    no Vargas, perodo em que o autor reconhece ter sido a era dos direitos soci-

    ais no Brasil. Depois de afirmar que a nfase nos direitos sociais encontravaterreno frtil na cultura poltica da populao, principalmente da populao

    pobre, conclui:

  • 2 92 92 92 92 9

    a antecipao dos direitos sociais fazia com que os direitos no fossemvistos como tais, como independentes da ao do governo, mas comoum favor em troca do qual deviam gratido e lealdade. A cidadania que daresultava era passiva e receptora antes que ativa e reivindicadora (Carva-lho, 2003: 126).

    A principal causa para isso, esclarece Carvalho (2003: 110), decorre dofato de a legislao social possuir um pecado de origem, ou seja, ter sidointroduzida em um ambiente de baixa ou nula participao poltica e de prec-ria vigncia dos direitos civis. Ou seja, ainda que possa ser citada como cidada-nia, a crtica fundamental que se observa a e que determina os seus limitescomo possibilidade de conquista democrtica (p. 110) o fato de que osdireitos sociais obtidos nesse momento no decorreram de lutas sindicais epolticas dos trabalhadores, que se encontravam nesse momento amordaa-dos nas suas liberdades civis e polticas, mas em virtude de concesses e favo-res do Estado e, portanto, colocando-os em posio de dependncia em relaoao governante.

    Em outra publicao recente dedicada exclusivamente ao tema da cida-dania, no captulo sobre direitos sociais no Brasil escrito pela historiadora TniaRegina De Luca (2003: 481), o que se observa uma repetio desses argu-mentos denunciadores das lacunas e limites da cidadania brasileira:

    Note-se que a cidadania no figurava como resultado da luta poltica,antes dependia da benemerncia do Estado. A proximidade com o podere a troca de favores assegurariam muito mais que as aes de cartercoletivo e reivindicatrio levadas a efeito pela sociedade civil o ingressono mundo dos direitos (2003: 481).

    De modo semelhante, Santos (1979), na sua anlise j clssica sobre oprocesso de constituio de uma cidadania regulada ao longo dos anos 30 do

    ltimo sculo, indica os seus limites e insuficincias em termos de princpios

    universais, ressaltando que no Brasil a cidadania se caracterizaria pela insero

    dos indivduos em alguma ocupao reconhecida e definida em lei, no se refe-

    rindo, pois, a um cdigo de valores polticos em que ser membro da comunidade

    seria suficiente, o que tornava a carteira de trabalho mais do que uma evidncia

    trabalhista, um atestado de pertencimento cvico:

    A cidadania est embutida na profisso e os direitos do cidado restrin-gem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal comoreconhecido por lei. Tornam-se pr-cidados, assim, todos aqueles cujaocupao a lei desconhece. A implicao imediata deste ponto clara:seriam pr-cidados todos os trabalhadores da rea rural, que fazem par-te ativa do processo produtivo e, no obstante, desempenham ocupaes

    CULCULCULCULCULTURTURTURTURTURA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTADO (...)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)

  • 3 03 03 03 03 0

    SOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADE

    difusas, para efeito legal; assim como seriam pr-cidados os trabalha-dores urbanos em igual condio, isto , cujas ocupaes no tenhamsido reguladas por lei (...) a regulamentao das profisses, a carteiraprofissional e o sindicato pblico definem, assim, os trs parmetros nointerior dos quais passa a se definir a cidadania. (Santos, 1979: 75-76).

    Em que pese a engenhosidade da formulao, aceita por grande parte

    dos estudiosos que tratam da questo social no Brasil, e por isso j clssica, a

    pergunta que se pode fazer a seguinte: em qual experincia histrica a cida-

    dania prescindiu de regulaes fundadas em formas de estratificao social

    legalmente sancionadas? (Sorj, 2004: 98). Com efeito, o processo de desen-

    volvimento da cidadania, seja em sua vertente civil, poltica ou social, no impli-

    caria, ao contrrio, crescente regulao estatal? (Reis, 2000). Ademais, pre-

    ciso lembrar que, no plano dos direitos sociais, em boa parte dos pases euro-

    peus, o processo de sua universalizao se estabeleceu apenas no ps-guerra e

    em grande nmero destes pases, at meados do sculo XX, a distribuio de

    direitos sociais entre o campo e a cidade foi bastante desigual (Sorj, 2004).

    Afora isto, e voltando anlise da realidade brasileira, a pergunta a ser

    feita : qual a garantia de que nas lutas concretas da histria os trabalhadores

    tenham-se mantido nos limites da cidadania do trabalho pretendida pelo gover-

    no, de forma que os planos estatais de uma cidadania regulada, geradora de

    lealdade e gratido, tenham se afirmado plenamente? Algum tipo de incapaci-

    dade estrutural ou gentica do trabalhador brasileiro o impediria de romper

    com esse enquadramento de ferro?

    Ora, o que os estudos mais recentes tm procurado mostrar difere bas-

    tante de um quadro estvel de cidadania regulada, apresentando, ao contr-

    rio, trabalhadores que se prontificaram plenamente a ir alm do outorgado

    (Negro & Fortes, 2003). Com efeito, diversos so os trabalhos que tm procu-rado apresentar um quadro mais sofisticado e nuanado do processo de consti-

    tuio de uma cultura de direitos de cidadania no Brasil na Era Vargas e nos

    anos ditos populistas de 1930 a 1964, questionando, via de regra, as interpreta-

    es que realam exclusivamente a capacidade do Estado de impor arbitraria-

    mente suas mensagens e projetos de controle social, na clave ideolgica da

    colaborao de classes. Assim, o que possvel observar, com base nestes

    trabalhos, a superao de um modo de interpretao da realidade, aferrado a

    certos cnones conceituais populismo, paternalismo, personalismo, marca

    autoritria que sobreleva o papel protagonista do Estado, ativo e poderoso,

  • 3 13 13 13 13 1

    diante de uma classe trabalhadora passiva, objeto de cooptao desse Estado,

    esvaziada, como observa Gomes, de qualquer poder, inclusive o de ter suscita-

    do a cooptao (2001: 47).

    O entendimento geral que se tem que, a partir dos anos 30 do ltimo

    sculo, o que se coloca em pauta com a presena dos trabalhadores na cena

    pblica e seu reconhecimento como interlocutores pelo Estado, ainda que nos

    termos de um espao pblico que se quer controlado, algo mais do que uma

    cidadania regulada referida ao mundo restrito da produo e da fbrica, ou

    seja, das relaes de trabalho associadas esfera econmico-social, mas sim

    um processo ativo de luta social travada na arena poltica por uma cidadaniaampliada, que ousava subverter a programao governamental e se revelavamaior do que o espao que lhe fora concebido (Ferreira, 1997: 225-226).

    Como assinala Ferreira, em seu estudo sobre o movimento operrio nor-

    destino nos anos iniciais do primeiro governo Vargas, a atribuio de uma

    cidadania definida em seus limites pelo Estado entra em choque com a tentati-

    va dos trabalhadores de se constiturem como cidados, para alm dos limites

    da atribuio e da tutela (Ferreira, 1997: 156). Sendo assim, acrescenta o

    autor, os trabalhadores, ao tomarem a iniciativa nas questes de seu interesse,

    no se negam a pedir ajuda, a buscar apoios, e quando obtidos, esses apoios

    no se transformam mecanicamente em adeso (Ferreira, 1997: 273). De modo

    semelhante, assinala Negro (2002: 280):

    Vargas no deu a cidadania aos trabalhadores. A gosto seu, ele a reconhe-ceu e integrou na Repblica. Agradecidos os agraciados no renunciaramao conflito. Mas ainda, no se mantiveram dentro das prescries dacidadania regulada e foraram sua ampliao, tanto a partir de quem esta-va includo, quanto a partir de quem estava excludo.

    Em livro recente sobre a Era Vargas, no qual realiza um balano sobre o

    perodo e procura refletir sobre o significado do controvertido papel de Getulio

    para os trabalhadores o prprio ttulo do livro, alis, se apresenta sob a forma

    de uma indagao, Pai dos Pobres? o historiador americano Robert Levinesugere, em sua interpretao das memrias do ferrovirio Maurlio Toms

    Ferreira, que por idolatrar Vargas, aquele teria zombado dos cientistas sociais,

    se os lesse afirmando que as medidas trabalhistas de Vargas tinham a finalida-

    de de controlar a fora de trabalho, pois sabia que ele e sua famlia haviam

    sido beneficiados (Levine, 2001: 153). O que se pode concluir desse coment-

    rio de Levine no me parece ser a defesa tola da abdicao da capacidade do

    CULCULCULCULCULTURTURTURTURTURA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTADO (...)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)

  • 3 23 23 23 23 2

    SOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADE

    pesquisador de emitir juzos sobre os eventos histricos, dando voz exclusiva-

    mente s puras narrativas dos sujeitos. Apenas que no mais possvel deixar

    de levar em conta, em qualquer exerccio de interpretao histrica, a experin-

    cia efetiva dos indivduos nos seus prprios termos, negligenciando seus valores

    morais e polticos e suas expectativas de vida e de realizao pessoal, em favor

    de categorias e lgicas conceituais e ideolgicas a priori estabelecidas. Refletin-do sobre a direo terica e metodolgica dos novos trabalhos produzidos pela

    historiografia social no ps-anos 80 do ltimo sculo, Gomes assinala:

    A proposta dos novos estudos foi afastar a possibilidade de generaliza-es e formalizaes dos processos sociais, os quais seriam semprehistricos, isto , datados e localizados no tempo e no espao, no po-dendo ser compreendidos a no ser por dentro, vale dizer, por meio dasidias e aes daqueles que estavam diretamente envolvidos, o que nopermitiria esquemas ou verdades pr-estabelecidas. Com isso as anli-ses dos processos sociais se abre interveno dos atores neles pre-sentes, sendo a crucial uma outra recusa terica. Ela diz respeito ao aban-dono de modelos que trabalham com a relao de dominao no mundoeconmico, poltico e cultural , a partir da premissa de que o dominante capaz de controlar e anular o dominado, tornando-o uma expresso oureflexo de si mesmo. Tal recusa tem uma face de imensa densidade tericae emprica. Ela significa defender teoricamente que, entre seres humanos,no h coisificao de pessoas, e que, nas relaes de dominao, osdominantes no anulam os dominados, ainda que haja extremodesequilbrio de foras entre os dois lados. (Gomes, 2004: 160)

    Assim, influenciados por um olhar historiogrfico empenhado em formu-

    lar suas anlises com base em investigaes empricas assentadas em slidas

    bases documentais, portanto mais atentos ao fazer concreto do trabalhador

    brasileiro, tais estudos tm observado que a formao da classe operria no

    Brasil no pode ser entendida sem considerar a interveno legal do Estado

    nas relaes de trabalho cotidianas, constituindo um horizonte comum do que

    deveria ser dignidade e justia nas questes do trabalho (Paoli apud French,

    2001: 10). Em outras palavras, a implantao de uma legislao trabalhista esocial no Brasil, por ter resultado de um estreitamento das relaes dos traba-

    lhadores com o Estado, em um processo de incorporao controlada ao sistema

    poltico, no tornou os primeiros massa de manobra dos interesses governa-

    mentais, atendendo cabalmente suas intenes corporativas de controle social.

    Antes, como sugere Negro e Fortes (2003: 197), em importante balano sobre

    histria do trabalho e da cidadania no Brasil, envolveu um processo de

    reelaborao ativa de concesses e benefcios em forma de direitos (...) [apon-

  • 3 33 33 33 33 3

    tando para] um questionamento das teses tradicionais de uma cidadania au-sente ou incompleta e, como resultado, nos conduz[indo] idia de uma cida-dania conquistada.

    Assim, tendo em vista observaes densas do processo histrico brasilei-ro entre 1930 e 1964,16 rico em contradies e ambigidades, tais trabalhostm apontado no para uma classe operria resignada, passiva e plenamentesujeita manipulao populista, decorrncia de sua fragilidade poltica eorganizativa ou da sua falsa conscincia, mas sim para atores sociais que,

    diante de alternativas historicamente condicionadas (Arajo, 1996: 10) seapropriaram dos rituais de dominao do poder e, bem ou mal, agiram emdefesa de suas vidas e interesses.

    Em um excelente livro que aborda a relao entre os trabalhadores daregio do ABC paulista e o Estado, com destaque para o primeiro governo

    Vargas, o historiador John French (1995: 38) apresenta a seguinte observao:

    Diante de novos desafios, o movimento operrio reagiu criativamente,valendo-se das vantagens oferecidas pelas novas leis, ao mesmo tempoque lutava por contornar suas desvantagens. Para faz-lo tinham que re-nunciar ao sindicalismo revolucionrio do passado e caminhar de umsindicalismo de minorias conscientes para outro, de maiorias potenciais(...) O crescente interesse do movimento operrio pela ao indireta, suaaceitao do sindicalismo legal e seu abandono do sindicalismo revoluci-onrio mudaram as formas do ativismo e do radicalismo da classe oper-ria em So Paulo, sem alterar, porm, as metas do movimento de emanci-pao da classe operria.

    Ao descrever as greves ocorridas na regio entre os anos 1933 e 1935,chama a ateno para a estratgia operria do perodo que, ao invs de denun-ciar como fraude as leis trabalhistas, procurava, pelo contrrio, puxar a leipara seu lado. Tal estratgia no era tributria de algum tipo de f ingnua nogoverno, mas decorria da convico de que se as leis no correspondem realidade, pelo menos definem os parmetros de novos direitos que podem serinvocados para justificar e fazer progredir a luta da classe operria (French,1995: 56).

    Todavia, no captulo referente ao Estado Novo, onde as explicaes queapostam na represso do regime como criadora de um vcuo poltico no inte-

    rior do movimento operrio so vivamente questionadas. Segundo French

    16 Sobre polticas de sade nesse perodo, ver Baptista, texto Histria das polticas de sadeno Brasil: a trajetria do direito sade, no livro Polticas de Sade: a organizao e aoperacionalizao do Sistema nico de Sade, nesta coleo (N. E.).

    CULCULCULCULCULTURTURTURTURTURA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTADO (...)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)

  • 3 43 43 43 43 4

    SOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADE

    (1995), a maioria desses observadores conclui que os idealizadores do Estado

    Novo tiveram xito em sua meta de disciplinar e incorporar o operrio ao

    Estado. Pois bem, justamente o que o seu estudo procura mostrar que se o

    Estado Novo de fato tinha maiores condies de supervisionar e controlar as

    atividades sindicais, no se deve superestimar essa capacidade, particularmen-

    te nos locais mesmo de produo, porquanto tal avaliao resultaria do pressu-

    posto equivocado de que a lei equivale realidade de que as intenes equiva-

    lem aos resultados e de que a retrica equivale essncia (French, 1995: 77).

    A partir de 1942, com a entrada do Brasil na guerra, momento em que a

    transio do regime comeava a colocar-se de modo mais afirmativo, os oper-

    rios passam a estar presentes nos clculos polticos de alguns partidrios mais

    ntimos de Vargas, com destaque para a atuao do novo ministro do Trabalho,

    Alexandre Marcondes Filho (1941-1945), que confere novo vigor ao empenho

    do governo no sentido da reforma social como parte de uma tendncia a cons-

    truir um pblico operrio de apoio ao governo (French, 1995: 87). O movimen-

    to operrio da regio do ABC busca ento expandir o limite do possvel e

    estabelece uma estratgia que combina ao direta no interior de locais de

    trabalho e ao indireta, pressionando o aparelho estatal pelo cumprimento da

    legislao trabalhista.

    Centrando sua agitao na violao da lei pelo empregador, procuraramcooptar o Estado como aliado, a fim de proteger suas tentativas de orga-nizao. Assim, esse conflito muito desigual entre empregadores e em-pregados poderia ser apresentado como um conflito entre industriais forada lei e a soberania e a supremacia do governo, suas leis e poder judici-rio. A capacidade de fundamentar na lei os direitos da classe operria, oque dava aos operrios uma nova arma em suas lutas, resultou na snteseduradoura da ao direta e indireta que iria caracterizar a futura organiza-o dentro da fbrica, quer fossem essas iniciativas do movimento oper-rio vinculadas aos sindicatos legais, ou independente deles. medida queo Estado Novo chegava ao fim, o movimento operrio passava a ter con-dies de exercer influncia cada vez maior, ainda que limitada, sobre seuantigo aliado no palcio presidencial. (French, 1995: 90-91)

    A concluso final do autor sobre esse perodo detecta uma realidade que

    em muito se distancia de um quadro de passividade, resignao e completa

    desmobilizao da classe operria, fulminada pela represso e pela outorga

    corporativa:

    Ao se aproximar o fim do Estado Novo, os sindicatos do Brasil eram umafora potencial para a mobilizao poltica de uma classe operria que, apartir de 1930, tinha crescido tanto em nmero de membros, quanto em

  • 3 53 53 53 53 5

    sua coeso. Alm disso, o movimento operrio no final da Segunda Guer-ra Mundial estava mais forte do que nunca, com uma rede nacional deorganizao, recursos financeiros e ativistas, e com o comeo de umaverdadeira base dentro do proletariado industrial. (French, 1995: 91)

    Em boa medida, o que aparece nessa anotao final converge com asobservaes de Maria Clia Paoli (1987) no artigo Os trabalhadores urbanosna fala dos outros tempo, espao e classe na histria operria brasileira, noqual a autora aponta a capacidade de organizao operria nos locais de tra-balho durante o Estado Novo, atravs das pequenas lutas efmeras do dia-a-dia, como propiciadora da rearticulao do movimento em mobilizao da mas-sa e na exploso de greves e manifestaes do ps-guerra. Embora com dife-renas importantes com relao ao trabalho de French,17 ambos se afinam nascrticas afirmao de que terminada a ditadura Vargas o movimento operriose encontra[va] completamente esquecido de sua prpria histria e de fatointeiramente desarticulado (Weffort apud Paoli, 1987: 96). Hlio da Costa(1995) outro que, no seu inovador Em Busca da Memria: comisso de fbri-ca, partido e sindicato no ps-guerra, acompanha de perto as formulaes queobservam na atuao dos trabalhadores junto aos sindicatos oficiais uma pos-tura que no pode ser considerada nem inocente nem suficiente para inter-

    romper sua necessidade constante de lutar pelos seus direitos.

    Apesar de serem concebidos como instrumento de conciliao de classese pra-choques dos conflitos sociais, muitos trabalhadores, porm, noconcordaram que os sindicatos devessem agir dessa forma e cobraramdas suas direes uma prtica concreta que demonstrasse disposio emdefender seus interesses. Quando isso no aconteceu, os sindicatos fo-ram colocados margem dos conflitos pelas suas prprias bases. (Cos-ta, 1995: 29)

    O resultado foi que, ao fim do Estado Novo, o nmero explosivo de greves

    e mobilizaes de massa que se impuseram no panorama poltico do pas no

    decorreram do acaso, mas sim das lutas silenciosas e annimas, travadas no

    interior das fbricas e oficinas durante o Estado Novo, verdadeiro laboratrio de

    lutas futuras, que apontam, ento, para uma classe operria ativa e disposta a

    defender seus interesses, independente da atitude dos prprios sindicatos.

    Nessa estratgia, digamos, do possvel, certa dimenso de conquista

    tambm poderia estar presente ou seria ela menos legtima, porquanto des-

    17 Paoli salienta o carter de resistncia dos operrios sobretudo nos interstcios e em oposio ao do Estado, e no como French tambm em negociao com este, buscando expandir oslimites do possvel na luta por seus direitos.

    CULCULCULCULCULTURTURTURTURTURA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTADO (...)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)

  • 3 63 63 63 63 6

    SOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADE

    provida de uma conscincia revolucionria ou de resistncia aberta ao poder?

    Negar a um possvel espao de conquista, reconhecendo no projeto traba-

    lhista de Vargas pleno exerccio da manipulao e da concesso estatal, exclu-

    sivamente outra volta no parafuso da opresso e da dominao (Lenharo,

    1986: 28), de um processo que atuava sobre trabalhadores passivos, incapazes

    ou impossibilitados de reconhecer e formular seus interesses legtimos (exceto

    aqueles que resistiram heroicamente at o fim) no reforar a prpria ideo-

    logia da outorga? J que no foram arrancados num contexto de resistncia

    aberta, e sim atravs de embates sutis ou silenciosos configurados como tro-

    cas orientadas por lgicas que combinavam ganhos materiais com ganhos sim-

    blicos de reciprocidade (Gomes, 1988: 25), mas onde aparentemente s se

    fazia possvel ouvir a voz do Estado, tais direitos no podem ser lidos como

    conquistas, tratando-se, por conseguinte, de pura outorga do poder? Confor-

    me salienta Debert (1994: 199-203), entre o peleguismo e as pequenas resis-

    tncias [refere-se s lutas travadas no interior da fbrica] h uma longa hist-ria que deve ser recuperada. Do contrrio, corre-se o risco de cair aqui na-

    quela viso criticada por Ignatieff (1987: 185-193) que v a classe trabalhadora

    sempre como a bigorna na qual o martelo [Estado] bate em seu ritmoinexorvel.

    Vejamos tambm o trabalho de Arajo (1994) sobre a relao entre

    Estado e classes trabalhadoras que, a nosso ver, rompe com noes axiais quesustentam as anlises que s conseguem enxergar trabalhadores submissos e

    rendidos ao projeto de cidadania regulada do regime Vargas, como manipu-

    lao, heteronomia, falsa conscincia etc. Apoiada nas contribuies tericas

    de Gramsci acerca da idia de revoluo passiva18 e de sua relao com a

    problemtica da hegemonia,19 tece consideraes muito interessantes a res-

    peito do projeto corporativo do ps-30.

    18 Revoluo passiva, ou revoluo sem revoluo, um conceito de matriz gramsciana utiliza-do para explicar processos de modernizao capitalista com vis poltico conservador, ou seja,processos de ascenso poltica da burguesia atravs de transformaes realizadas pelo alto.Assim, por intermdio de movimentos reformistas caracterizados por processo dialticos deconservao-inovao, sem participao mais ativa das classes populares e sem rupturasradicais, ocorreriam transformaes importantes das relaes sociais fundamentais.19 Hegemonia indica a capacidade de um dado grupo social de exercer a direo intelectual emoral sobre outros grupos sociais. Por essa via, serve de complemento funo coercitiva dadominao, implicando a capacidade de exerccio do poder de classe atravs de processosmoleculares de obteno do consentimento.

  • 3 73 73 73 73 7

    Segundo a autora, a proposta de corporativismo inclusivo,20 formulada

    pelo regime, no visava excluso dos trabalhadores, mas sua incorporao

    sob controle do Estado, o que implicava numa dimenso necessariamente ativa,

    de busca de produo de consentimento. Assim, acabava propiciando, em que

    pese seus aspectos negativos de represso e manipulao, o atendimento

    efetivo de certos interesses dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que, reco-

    nhecendo-os como interlocutores econmicos, foras vivas da nao (Arajo,

    1994: 4), dotava-os de direitos e concedia-lhes participao poltica. Do ponto

    de vista dos trabalhadores, sua relao com o Estado e sua adeso ao sindicalismo

    corporativo21 aparecem no sob o vis da manipulao e da desmobilizao,

    decorrncia de sua fragilidade poltica e organizativa ou pela sua falsa cons-

    cincia, mas como resultado de uma escolha entre alternativas historica-

    mente condicionadas (p. 15). Assim, embora vitorioso em 1935, segundo

    a autora, o sindicalismo corporativo j est implementado na maioria dos

    Estados da federao e nos maiores centros urbanos do pas no foi um

    movimento de incorporao passiva e resignada, e sim decorrncia de esco-

    lhas entre alternativas historicamente condicionadas, geradoras de uma di-

    nmica conflitiva e contraditria:

    20 Segundo Arajo (1994), o corporativismo inclusivo, ao contrrio do excludente, centradobasicamente em mecanismos repressivos e desmobilizadores, caracterizaria-se por umaao estatal que visaria incorporao e cooptao poltica e econmica de segmentos dasclasses trabalhadoras, atravs de polticas distributivas e simblicas que atendessem ainteresses efetivos desta classe, aceitando sua presena mediatizada no Estado. O objetivofundamental como parte de um processo de revoluo passiva seria, por intermdio detais estratgias corporativas de incorporao dos trabalhadores, obter o consentimento dasclasses subalternas e desse modo recompor processos de hegemonia das classes dominan-tes. No caso do primeiro governo Vagas, adverte a autora, se houve a predominncia deestratgias inclusivas de cooptao entre 1930-1935 e 1942-1945, por exemplo , polticasexcludentes foram utilizadas em certas fases do regime entre 1935 e 1942 e tambm emrelao a setores do movimento operrio que se opuseram mais acirradamente ao regime.21 O sindicalismo corporativo foi estabelecido no Brasil aps a chamada revoluo de 1930,com a lei de sindicalizao de maro de 1931(decreto 19.770), que consagrava um modelo deorganizao em que os sindicatos foram definidos no como rgos de representao deinteresses de patres e operrios, e sim como rgos consultivos e tcnicos de colaboraoentre as classes e o Estado. Alm disso, os sindicatos tinham de ser reconhecidos oficialmen-te pelo recm-criado Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio, do contrrio no recebe-riam diversos benefcios e vantagens como, por exemplo, direito frias, acesso legisla-o previdenciria , o que implicava o cumprimento de uma srie de exigncias estabelecidaspelo ministrio, que, ademais, podia intervir nestes caso suspeitasse de irregularidades.Embora tenha sofrido alteraes com a lei de sindicalizao de 1934, foi reforado no seusentido geral com a lei de 1939 e mantido em seus aspectos centrais com a AssembliaConstituinte de 1946.

    CULCULCULCULCULTURTURTURTURTURA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTA DE DIREITOS E ESTADO (...)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)ADO (.. .)

  • 3 83 83 83 83 8

    SOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDSOCIEDADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADE, ESTADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADEADO E DIREITO SADE

    Em primeiro lugar, este processo mostrou a eficcia das medidas adotadaspelo Ministrio do Trabalho na promoo direta da sindicalizao e oxito de suas estratgias inclusivas na obteno da adeso dos trabalha-dores e de suas lideranas. Em segundo, ele mostrou que, se de um lado,a adeso e atuao das lideranas sindicais independentes, principalmen-te das correntes de esquerda, foi fundamental para legitimar e consolidaros sindicatos oficiais junto aos trabalhadores, de outro, ao transformarestes sindicatos em rgos de luta e politiz-los, levando-os a assumirpapel destacado na conduo das greves e no movimento anti-fascista,constituiu uma ameaa realizao do projeto de incorporao dos traba-lhadores sob controle do Estado. (Arajo, 1994: 294)

    Portanto, se as polticas de cooptao e controle do governo foram capa-

    zes de inviabilizar a sobrevivncia dos sindicatos autnomos22 e garantir a im-

    plantao do sindicalismo corporativo, no quer dizer que tenham sido capazes

    de quebrar a resistncia dos trabalhadores e de produzir um movimento sindi-

    cal afinado com a orientao dominante (Arajo, 1994: 295). Entretanto, a

    partir de 1935, diante da ameaa representada pela Aliana Nacional Libertadora

    (ANL) e pelo movimento insurrecional de novembro do mesmo ano,23 tais pol-

    ticas de cooptao cedem lugar represso em larga escala, cujo objetivo era

    barrar qualquer iniciativa de manifestao e organizao autnoma da classe

    operria e de garantir que o sindicalismo pudesse se tornar instrumento eficaz

    22 Segundo Gomes, apesar da intensa luta do movimento sindical independente frente sinvestidas da poltica governamental que se utilizava at de policiais infiltrados nos sindica-tos e fbricas e, nesse caso, provocando freqentes prises de lderes operrios , a partir de1933 ocorreu uma transformao geral das estratgias a seguir. Duas ordens de fatores teriamcolaborado para isso: a) a instituio da carteira de trabalho, tornando o controle sobre orecebimento dos direitos sancionados pela legislao social bem mais eficiente, isto , efetiva-mente apenas para aqueles sindicalizados de associaes operrias reconhecidas pelo Minis-trio; b) o clima das eleies para a Assemblia Constituinte de novembro de 1933, que previauma bancada de deputados classistas eleitos por sindicatos de empregadores e empregados,evidentemente tambm apenas para aqueles de sindicatos reconhecidos pelo Estado. Assim,conclui a autora: Tornava-se extremamente difcil para as lideranas de esquerda e poucoatraente para os trabalhadores sustentar a postura de defesa das associaes independentes.Com exceo dos anarquistas, que eram bem mais significativos em So Paulo que no Rio eque se mantinham em posio de resi