LITERATURA BRASILEIRA DA CONTEMPORANEIDADE: UM...

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Universidade Federal de Campina Grande Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino 1 ANAIS ELETRÔNICOS ISSN 235709765 LITERATURA BRASILEIRA DA CONTEMPORANEIDADE: UM DEBATE SOBRE AS NOVAS FORMATAÇÕES E SUA INSERÇÃO NO CONTEXTO ESCOLAR Patrícia Valéria Vieira da Costa (PPGLI-UEPB) 1 RESUMO O presente artigo tem como finalidade versar sobre os conceitos e manifestações literárias na atualidade, no contexto brasileiro. Considerando o meio literário um grande refrator de debates sociais e/ou culturais, pretendemos, por meio desse estudo, elaborar um panorama que indique as novas e múltiplas formatações literárias, que acompanham as mudanças de um mundo “plural”. Para tanto, traremos recortes temáticos de contos e romances da contemporaneidade, no intuito de discutir as definições da “escrita marginal”/paraliteratura, como pertencentes ou não ao campo do literário, além de debatermos sobre como essas manifestações tem tomado espaço e representado, de maneira abrangente, os movimentos sociais que pertencem à cultura do nosso país. Objetivamos, por fim, mostrar a importância do estudo das escritas pormenorizadas, ressaltando que estas reconfiguram os diversos espaços que constituem a nossa sociedade, grifando assim a sua importância no acervo de leituras no contexto escolar. Para isso, elaboraremos um tecido teórico de discussões sobre literatura da contemporaneidade e suas diversas variantes de gênero e constituição interna, por meio de ideias como as de Ludmer (2007) e sua teoria de Literaturas pós- autônomas, além de teóricos e críticos como Dalcastagnè (2012); Justino (2007); Klinger (2007); Cury (2007), Giraldo (2007); Cortázar (1983); Pires (2008), dentre outros. PALAVRAS-CHAVE: Manifestações literárias. Escrita Marginal. Paraliteratura. Contexto Escolar. 1 A autora é mestranda em Literatura e Interculturalidade pelo Programa de Pós Graduação em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba.

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LITERATURA BRASILEIRA DA CONTEMPORANEIDADE: UM DEBATE SOBRE AS NOVAS FORMATAÇÕES E SUA INSERÇÃO NO

CONTEXTO ESCOLAR

Patrícia Valéria Vieira da Costa (PPGLI-UEPB)1

RESUMO

O presente artigo tem como finalidade versar sobre os conceitos e manifestações literárias na atualidade, no contexto brasileiro. Considerando o meio literário um grande refrator de debates sociais e/ou culturais, pretendemos, por meio desse estudo, elaborar um panorama que indique as novas e múltiplas formatações literárias, que acompanham as mudanças de um mundo “plural”. Para tanto, traremos recortes temáticos de contos e romances da contemporaneidade, no intuito de discutir as definições da “escrita marginal”/paraliteratura, como pertencentes ou não ao campo do literário, além de debatermos sobre como essas manifestações tem tomado espaço e representado, de maneira abrangente, os movimentos sociais que pertencem à cultura do nosso país. Objetivamos, por fim, mostrar a importância do estudo das escritas pormenorizadas, ressaltando que estas reconfiguram os diversos espaços que constituem a nossa sociedade, grifando assim a sua importância no acervo de leituras no contexto escolar. Para isso, elaboraremos um tecido teórico de discussões sobre literatura da contemporaneidade e suas diversas variantes de gênero e constituição interna, por meio de ideias como as de Ludmer (2007) e sua teoria de Literaturas pós-autônomas, além de teóricos e críticos como Dalcastagnè (2012); Justino (2007); Klinger (2007); Cury (2007), Giraldo (2007); Cortázar (1983); Pires (2008), dentre outros.

PALAVRAS-CHAVE: Manifestações literárias. Escrita Marginal. Paraliteratura. Contexto Escolar.

1 A autora é mestranda em Literatura e Interculturalidade pelo Programa de Pós Graduação em

Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba.

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1 INTRODUÇÃO

Como disse Julio Cortázar, “É preciso nomear (porque nomear é apreender)”

(CORTÁZAR, 2008, p. 63). Essa parece ser uma necessidade que impulsiona muitos dos

críticos e teóricos da literatura: Pôr limites, “tipologar”. Se essa atividade não tem sido

fácil (basta olharmos os percursos históricos como faz Cortázar, principalmente nas

diferenciações do romance entre os séculos XVII-XX), atualmente ela tem se tornado

cada vez mais infrutífera, tanto para delimitar o romance como outros gêneros como o

conto.

Quanto ao conto, percebemos essa dificuldade até em manuais mais práticos

de ensino na academia, como é o caso de “Teoria do Conto”,de Gotlib (2004), que faz

parte da série Princípios e por universitários é tido como um meio simples e

esclarecedor de estabelecer conceitos. Numa leitura mais acurada, percebemos que

este livro parte de concepções formuladas, como quando traz três acepções da palavra

conto unindo-as pela definição de que “são modos de contar alguma coisa, e enquanto

tal, são todas narrativas.” (GOTLIB, 2004, p. 10), para no decorrer do livro grifar as

variadas definições sem alcançar um denominador comum, como inocentemente se

espera. O título sugestivo utilizado no singular é, no fim do livro, substituído por sua

variação no plural, teorias do conto.

Para o romance, trazemos a priori a concepção de Moretti (2009), em seu

trabalho intitulado “O romance: História e Teoria.” Esse teórico parte de princípios

clássicos de definição quanto a prosa, admitindo-a como sendo, diferentemente da

poesia, uma produção de caráter não simétrico e consecutivo, fruto de um trabalho de

adequação entre as partes, memória e etc., que atribui ao romance uma complexidade

na ação de narrar. Ao considerar a premissa básica de que o romance é extenso,

Moretti inicia sua problematização partindo da consideração de que existe uma família

de formas instituídas pelo romance, mas que provavelmente não existe um ramo

principal para tal. No entanto, nos parece que o ponto mais relevante para esta

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atividade seja o foco que o autor dá à diferenciação das produções de Romance entre

a China e a Europa. As diferenciações grifadas por ele nos saltam aos olhos como que

para mostrar os modos divergentes de realização do romance entre essas duas

regiões desde meados do século XVII até as produções modernas.

É exatamente embasado nessas dificuldades de definição, principalmente na

contemporaneidade, dos gêneros literários, que este artigo pretende solidificar sua

discussão. No primeiro momento, pretendemos mostrar, por meio de uma discussão

teórica, como as definições do conto e do romance, em detrimento ao contexto de

produções literárias contemporâneas, parece uma atividade improdutiva. No segundo

momento, expomos na prática a diversificação dos modos de produção de contos e

romances que, num primeiro contato, podem confundir um leitor desavisado. Por fim,

exporemos como esses novos modos de se fazer literário refletem socialmente,

grifando sua importância no contexto escolar.

2 A PROBLEMÁTICA DA DEFINIÇÃO DE GÊNERO LITERÁRIO NA

CONTEMPORANEIDADE

2.1 Sobre o Conto

Piglia (2004), com a intenção primeira de quebrar a concepção tradicional,

condensa em duas teses o que vem a ser o conto, a partir de produções clássicas como

as de Edgar A. Poe. A primeira caracteriza o conto como um tecido entre duas histórias

paralelas, uma na superfície e outra secreta, que se encontram em pontos de

interseção. Posteriormente ele elenca a segunda, a de que a história secreta é a chave

para o conto, ou seja, o não dito, a alusão e o subentendido passam a ser os elementos

essenciais para a constituição do conto. Ao se utilizar posteriormente de contos como

os de Jorge Luís Borges para fundamentar seu posicionamento, Piglia (2004) arremata

as duas teses, considerando que o conto é um relato breve que é constituído em

tensões rumo ao final secreto. Essas tensões são tecidas num jogo narrativo que

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quebra a consideração simplista, como colocado inicialmente. É claro que fazer uso de

contos como os escritos por Borges é uma “mão na roda” para sublinhar essas teses,

que parecem fazer sentido, ao mesmo tempo em que, se postas como tentativa de

elaborar uma concepção para o conto de maneira geral, podem facilmente ser

questionadas.

Teles (2002), por sua vez, ingressa neste desafio de estabelecer uma teoria

sobre o conto também por meio das concepções tidas por vários teóricos, críticos e

escritores. Partido de uma definição inicial, de que o conto tem um sentido unitário de

estrutura narrativa, Teles (2002) vai caminhando pelas concepções, que aqui trazemos

de maneira reduzida: Silvio Romero (conto como um gênero pequeno e elementar);

Araripe Júnior (Conto como uma forma primitiva da prosa); Oswaldo Orico (Conto

como um soneto: tamanho determinado e tema específico) Mário de Andrade (Forma

de prevalecer sempre esteticamente sobre o assunto); Julio Cortázar (sentido do conto

como dependente dos valores atribuídos ao poema e ao jazz; ritmo, tensão, pulsação

interna, imprevisto, etc.) dentre muitos outros.

Em meio a tantas formulações, o que nos parece prevalecer é que Teles (2002),

em meio a sua argumentação, demonstra sempre retomar a concepção que ele traz

tanto de Horácio Quiroga, quanto posteriormente de Mário de Andrade, a de que em

síntese, o “Conto é o que o autor diz que é Conto”. Esta concepção se mostra tão

fundamentada por Teles (2002) que chega a fazer parte do seu próprio discurso,

quando o vemos afirmar que a distinção não tem limites rígidos, sendo que esta é

sempre dada pelas preferências e critérios do autor.

Quando Galvão (1983) elenca suas cinco teses sobre o conto e parte daí por

uma visão primeira do conto como a ação de contar, acaba por colocar em xeque (em

específico nas produções nacionais de conto) as tensões conceitualistas entre os

contos enquanto anedota (escritos para a publicação jornalística, de forma reduzida e

por isso pouco propenso a ousadias e inovações) e os contos como atmosfera (núcleo

firme de enredo, desfecho determinante, criação de estados de espírito, elementos

fragmentados) para sublinhar a predominância simples e jornalística dos contos como

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anedota na literatura brasileira atual (no caso, na época da sua publicação). Claro que,

para confirmar ou não essa tese, seria necessário nos debruçarmos sobre um

levantamento de contos escritos nesta época em específico, o que não cabe para esta

atividade. No entanto, mais uma vez os limites do conto parecem ser contestados.

2.2 Sobre o Romance

Iniciemos por Giraldo (2007), que problematiza uma maneira de realização do

romance contemporâneo em relação à mistura de gêneros, ou, como ele coloca, as

“Obras híbridas”. Tendo como corpus de pesquisa as produções de Roberto Bolãno, o

autor elenca características cabíveis a diversas produções atuais, como as de autores

como Cortázar e Octávio Paz. Dentre muitas, Giraldo trata da mistura entre crítica e

ficção como uma marca patente, elemento constituinte da tessitura da narrativa, que

torna o romance de certa forma inclassificável para “caber” em moldes de num gênero

limitado. Essa tendência à hibridez, como coloca o autor, se dá principalmente na

constatação do teor biográfico e/ou crítico ao mesmo tempo que ficcional das obras

contemporâneas, maneira esta que possibilita a literatura falar de si própria, como é o

caso de Bolãno e tantos outros como Borges, por exemplo.

Klinger (2007) trata este teor “híbrido” como sendo um retorno do autor (em

relação a sua “morte”, no século XX). Ao elencar a auto-ficção como característica

contemporânea para os romances, a autora problematiza o que foi já colocado por

Giraldo (2007) entre as fronteiras do “real” e do ficcional, e centra a discussão para a

presença nos romances em detrimento a outros gêneros como a autobiografia,

memórias, diários, e etc., como marcas de um suposto “eu” na ficção. Aqui, nos vale

lembrar também do discurso de Bakhtin quando coloca essa tendência como já

pertencente ao romance:

Qualquer gênero pode ser introduzido na estrutura do romance e, de fato, é muito difícil encontrar um gênero que não tenha sido alguma vez incluído num romance por algum autor (...) Todos esses gêneros que entram para o romance introduzem nele suas linguagens e, portanto, estratificam sua unidade linguística e aprofundam de novo

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modo seu plurilinguismo. (BAKHTIN, 1988, apud MACHADO, 1990, p. 138)

De fato, parece-nos que certo “hibridismo” permeia as produções romancistas,

e se essa tendência foi algo que de forma mais superficial já existiu em produções

historicamente mais antigas, atualmente ele vem com força total, marcando em

definitivo sua presença. Em “novas geografias narrativas”, de Cury (2007), temos um

panorama da produção brasileira que de maneira ampla recorre a novos modos de

realização do romance. Partindo da premissa de que a produção contemporânea não

possui uma vertente fundadora, Cury (2007) elenca características da ficção brasileira,

a começar pela raiz estabilizada no solo urbano. A escrita para as grandes cidades

passam por mudanças na forma de se dizer, e dessa maneira reformulam gêneros: “O

espaço da cidade assume feição performática, exibindo cenas rápidas, sketches que

rompem com formas enunciativas consagradas, deslocando técnicas e gêneros

narrativos, sob o olhar de narradores também eles condenados ao seu movimento

vertiginoso.” (CURY, 2007, p. 9)

A violência, a denúncia social decorrente da exclusão e a própria auto-reflexão

da literatura, como coloca Cury, parecem ser os aspectos mais pontuados pela

literatura brasileira contemporânea (e aqui, como não lembrar de Ferréz, com sua

literatura tão próxima da autobiografia, da denúncia social e por isso muitas vezes não

considerada como texto literário). Além disso, Cury grifa o caráter memorialístico,

numa mistura entre memórias coletivas e individuais, mesclando o particular e o

universal. Essa mistura nos remete a Pires (2008), quando coloca que estamos em

meio a “uma produção literária que se quer deliberadamente plural e em constante

diálogo” (PIRES, 2008, p. 60).

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3 ENTRE ROMANCE E CONTO: AS DIFICULDADES DE DEFINIÇÃO DE GÊNERO E A

REPRESENTAÇÃO DA OUTRIDADE EM CONTOS NEGREIROS, O GRANDE DEFLORADOR

E BANDIDOS E MOCINHAS

3.1 Bandidos e Mocinhas, de Nelson Motta

Bandidos e Mocinhas, de Nelson Motta, no princípio parece ser um romance

policial clássico, com único narrador, capitulação comum, uma certa linearidade. No

entanto, outras marcas sublinham as características do que hoje tem se tornado o

“romance” principalmente por duas questões abaixo discutidas.

A primeira nos remete novamente a discussão de Giraldo (2007), ao tratar da

mistura entre teor biográfico e ficção. No livro supracitado essa questão vem como

que fundamental para o próprio desfecho da trama. Isto porque o temos na narrativa

um personagem que pretende escrever sobre os acontecimentos que o cercam. Como

um autor, que busca em suas vivências artefatos para a produção da ficção, Pedro

Fortuna utiliza a história da vida real como uma espécie de autobiografia para realizar

a escrita de seu livro. O interessante, na trama, é perceber a reflexão que esta

condição imputa. Evidenciar estas marcas de autobiografia, por meio de um

personagem, problematiza uma forma de fazer narrativas que tem tomado o espaço

nas escritas contemporâneas. Além disso, essa forma de fazer o romance, para o leitor,

parece ser interessante para elencar as dúvidas quanto ao narrador, isto porque o fim

da narrativa é dado pela leitura do manuscrito de Pedro Fortuna, que além de escrever

sobre o desfecho do crime, traz em seu corpo textual um trecho que foi exatamente o

que iniciou a narrativa de Bandidos e mocinhas. Dentre as muitas possibilidades, nos

perguntamos se essa maneira de fazer não grifa a possibilidade de estamos lendo não

a narrativa de um narrador onisciente, mas o próprio livro de Pedro, uma espécie de

ficção que comporta outra.

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A segunda nos leva a discussão sobre a outridade. Ambientalizada em solo

urbano, Bandidos e Mocinhas grifa relações entre diversos sujeitos sociais. Com um

narrador em 3ª pessoa, a obra nos conduz por um passeio entre os “mundos

diferentes” postulados numa mesma cidade. A proposta do autor, ao mostrar as

relações na favela, e da favela com a classe média/alta, marca o olhar do outro sobre

as margens. Enquanto a trama principal do crime se realiza, temos como pano de

fundo certa “denúncia” que silenciosamente vai se construindo para marcar as

relações de poder entre bandidos e juízes, a corrupção por parte da lei, a

criminalidade, etc.

3.2 Contos Negreiros, de Marcelino Freire e O grande Deflorador, de Dalton Trerisan

Ao nos depararmos com obras como Contos Negreiros, de Marcelino Freire e O

grande Deflorador, de Dalton Trerisan, notamos que esta essência primordial

permanece: os contos contam algo. Para isto, basta nos determos na leitura de Vai,

Valentão e Coração, de Trevisan (2000) e Freire (2005) respectivamente. Em Vai,

valentão temos a presença de um único narrador, além de um espaço e tempo

constituídos de maneira mais “clássica”. Em Coração a narrativa é montada em ordem

cronológica, vai pouco a pouco constituindo a história de maneira linear. No entanto,

este conto também nos serve de ponto para partimos para as revisões de um conceito

clássico: o narrador. Nele, temos o inicio efetivado pela primeira pessoa, que é

quebrado no parágrafo posterior pela continuidade tomada de um narrador em

terceira pessoa: “Célio conheceu Beto na estação de trem...”. Este narrador onisciente

inicia a história do caso amoroso, que será continuada novamente pelo narrador em

primeira pessoa, no terceiro parágrafo: “Depois encontrei com ele de novo”. Temos

aqui contos que de fato contam, no entanto sua estruturação, seu modo de dizer,

revisa muitos dos conceitos clássicos, como veremos nos próximos tópicos.

A escrita de Marcelino Freire, no primeiro contato, já nos remete a uma

musicalidade, um ritmo, como já é proposto na numeração de seus contos, na obra

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chamados de “cantos”. Retomando a aproximação feita por Cortázar (2006) e grifada

por Piglia (2004), os contos de Freire parecem um Jazz. Este efeito por vezes é dado

pela aproximação da sua produção a características da poesia, um lirismo que é

envolto na estrutura de uma narrativa. As rimas se fazem presente, como vemos em

Caderno de Turismo: “O que danado a gente vai fazer em Lisboa? Bariloche ou Shangri-

lá? Translados para lá. Para cá. (...) Nuca tinha ouvido falar em Viña del Mar. Val-

paraíso. A gente não devia sair do lugar.” (FREIRE, 2005, p. 67) Da mesma forma em

Meus amigos coloridos, quando vemos: “Lembrei de novo da floresta fálica. E do dr.

Salém. Fiquei sabendo que o dr. Salém não está lá muito bem.” (FREIRE, 2005, p. 92)

Rima e musicalidade se misturam, e por vezes nos vemos acompanhando os passos,

como no final do mesmo conto acima citado: “Falo daquele negronegronegronegro ali,

rebolando.” (FREIRE, 2005, p. 97) Rebolamos junto com ele.

Outro aspecto que parece rever a questão tradicional do conto é a aproximação

das produções de Freire ao gênero dramático. Ler seus contos nos imputa criar as

ações, imaginar cenas e esta disposição para tal é formulada em primeiro lugar pela

própria estrutura: Os diálogos diretos dos personagens entre si, por vezes

entrecortados pela presença de um narrador, marcados ou não pelo sinal do discurso

(-). Como exemplo temos Linha de Tiro. Neste conto espaço, tempo, personagens e

etc. são detectados, mas sua forma de dizer é estabelecida sem a presença de um

narrador, e sim feita por um diálogo, que mais nos remete a uma encenação: “-Não

quero./ -Hã?/ Já disse que não quero./ -O quê?/ -Chocolate...” (FREIRE, 2005, p. 45)

Em segundo lugar, temos a sensação de um texto dramático pelas marcas da

oralidade exatamente pela falta de pontuação, que nos remete a uma fluência no falar

que não permite pausas, que pede fôlego, que grita o que quer dizer (dentro da

temática proposta pelo autor, é um grifo para a sua produção). Como exemplo tempos

os contos: Trabalhadores do Brasil- “Enquanto Zumbi trabalha cortando cana na zona

da mata pernambucana Olorô-Quê vende carne de segunda a segunda ninguém vive

aqui com a bunda preta pra cima tá me ouvindo bem?” (FREIRE, 2005, p. 19) e Curso

superior- “O meu medo é entrar na faculdade e tirar zero eu que nunca fui bom em

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matemática fraco no inglês eu que nunca gostei de química geografia e português o

que é que eu faço agora hein mãe não sei.” (FREIRE, 2005, p. 97)

Esse teor dramático se faz presente também nos contos de Dalton Trevisan. Em

Uma negrinha acenando temos a construção de um diálogo estruturado, que é

entrecortado pela presença de um narrador. A conversa dos dois personagens vai se

desenrolado num tecido discursivo que, como vimos também nos contos de Freire,

questionam os aspectos tradicionais: “Sandália velha de couro. Sem bolsa./ -De volta

do emprego?/- estou paquerando/ -Não diga. Faz isso todo dia?/ -Quando não

chove...” (TREVISAN, 2000, p. 7) Por vezes também encontramos nos contos de

Trevisan a dramatização feita apenas pelo locutor, como no caso de Olha Maria. Nesse

conto, o fluxo da fala do personagem nos remete a uma ação contínua, sua pontuação

recheada por pontos nos remete a uma fluência de justificativas para o ato que a

personagem está para cometer. Na tentativa de elevar sua gama de justificativas a

qualquer custo, a personagem “barra” a possível colocação de um interlocutor: “-

Olha, Maria, estão me judiando demais. Pelo amor de Deus, não abuse. Pelo amor de

minha filha, não quero ser criminoso. Vocês estão procurando. Não me façam isso.

(...)” (TREVISAN, 2000, p. 67).

A estrutura poética também é trabalhada em Trevisan. Em Querida amiga nos

sentimos mais uma vez em contato com certo tipo de oralidade, agora posta em

versos. A marca da fluência do desabafo da personagem é grifada pela falta de

pontuação, principalmente no “fim” do conto, isto por que a ausência de um ponto

final indica o ciclo de vida pela qual a personagem vive, todas as situações recomeçam:

“Chorei a última lágrima/ Com dois buracos no rosto/ Ele está chegando ouço a chave

da porta/ Começa tudo de novo ” (TREVISAN, 2000, p. 80)

Por fim, trazemos uma última característica aqui elencada: Ausência de um

núcleo central. Piglia (2004), em suas “Teses sobre o conto” grifa a tese de que “um

conto conta sempre duas histórias”. Partindo desse pressuposto, que vai de contra a

consideração clássica de que o conto contém apenas um núcleo central, temos em

Trevisan o Conto Aula de Anatomia, que nos possibilita perceber nitidamente a

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presença dessas duas histórias: “-Hoje foi a aula de anatomia. O meu primeiro cadáver.

Coberto por lençol imundo. De fora só o pé descalço. Alguém o descobriu: Com medo

menina? ‘Estou com pena.’/- Quer dar um beijinho? (...)”(TREVISAN, 2000, p. 34) Como

podemos perceber, enquanto temos narrado pela primeira personagem a aula de

anatomia, temos pelo segundo o indicativo da narrativa de uma relação sexual, que vai

se desenvolver durante todo o conto. Aqui, diferentemente da intenção de Piglia

(2004) em grifar a importância da segunda história para o desfecho, temos na verdade

o entrelaçamento de ambas como um jogo do discurso. O desfecho aqui é algo que

não se concretiza, esse conto parece querer continuar, não há um final para os

indicativos as ações que estão sendo praticadas simultaneamente.

4 LITERATURA CONTEMPORÂNEA: UMA DISCUSSÃO SOCIAL QUE NECESSITA ESTAR

NO CONTEXTO ESCOLAR

Ao perfazer o percurso proposto por este estudo, facilmente nos

questionamos: Para quem essas produções literárias atualmente estão sendo

destinadas? Um fato óbvio é que a literatura sempre foi objeto restrito à classe

intelectual. Desde as margens a produções “artisticamente” elaboradas, o destino

sempre foi o olhar mais refinado da classe dominante (aqui, tanto pessoas de fato

afortunadas quanto pessoas de amplo conhecimento cultural). Resta-nos então saber

se atualmente as produções literárias tem atingindo a grande massa populacional.

Esse questionamento se torna bastante amplo e precisa de tempo para um

levantamento estatístico para ser fundamentado. Porém, alguns pontos podem ser

levantados. O que temos presenciado atualmente é uma disputa mercadológica, uma

literatura feita sobre encaixe para atender a determinado público. Como coloca Pires

(2008), o tempo e o espaço da literatura brasileira contemporânea também segue o

ritmo do mercado editorial. No entanto, essas disputas continuam voltadas para

públicos restritos, isto porque os meios de acesso à literatura permanecem

problemáticos: as livrarias continuam a vender livros com preços exorbitantes; a

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educação pública continua, em muitas regiões, podando o acesso a livros, seja pela

ausência de tais, seja pelo despreparo dos profissionais para utiliza-los; etc. O boom da

tecnologia nos serviu como um meio que nos imputa a leitura2, entretanto, a leitura de

literatura, independente de qual parte ela advém, continua voltada para pessoas que

tenham acesso ao menos a cultura (no nosso país, raras exceções).

Por fim, temos a literatura marginal como um elemento que grita a nossa

cultura diversificada, mas nos perguntamos: Não seria esta um novo meio de produção

exótica? Não estaríamos, como num jogo de eterno retorno, escrevendo sobre

margens, ou nas margens, para um público restrito? (Aqui vale grifar as literaturas

brasileiras provindas das favelas, que tem conquistado um amplo público ledor nos

países europeus). Enquanto profissionais da educação temos o dever de levar para a

sala de aula a maior quantidade de produções literárias diversificadas, se pretendemos

que por meio da identificação com os textos, o aluno frua. Nesses termos, as obras

aqui discutidas nos rementem a refletir sobre um plano de fundo social que, por vezes,

representa a vida dos alunos, o meio em qual vivem. Ao ressignificar a sociedade a

literatura se aproxima do aluno que, de uma maneira ou outra, se encontra naqueles

escritos e por meio deles pode se desenvolver, construir um olhar crítico sobre suas

vivências.

REFERÊNCIAS

CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: ______. (Org.). A valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1993. p. 147-164. CURY, Maria Zilda Ferreira. Novas Geografias narrativas. Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 42, p. 7-17. 2007. DALCASTAGNÈ. Regina. Literatura Brasileira Contemporânea: Um território contestado. Rio de Janeiro: Editora Horizonte, 2012. FREIRE, Marcelino. Contos Negreiros. Rio de Janeiro: Record, 2005. GALVÃO, Walnice Nogueira. Cinco teses sobre o conto. In: ______(Org.). O livro do seminário: ensaios. São Paulo: LR Editores Ltda, 1983.

2 Mesmo com a ampla disponibilidade de obras em formato PDF, não acreditamos no acesso assíduo de

tais por parte dos jovens brasileiros. A internet tem sido apenas um meio de entretenimento.

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