LITERALMENTE FALANDO

168

Transcript of LITERALMENTE FALANDO

LiteraLmente FaLando

Solange Coelho Vereza

SENTIDO LITERAL E METFORA NA METALINGUAGEM

LITERALMENTE FALANDO:

Editora da Universidade Federal Fluminense Niteri / 2007

Copyright 2007 by Solange Coelho Vereza Direitos desta edio reservados EdUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense - Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icara - CEP 24220-900 Niteri, RJ - Brasil -Tel.: (21) 2629-5287 - Fax: (21) 2629- 5288 - http://www.uff.br/eduff E-mail: [email protected] proibida a reproduo total ou parcial desta obra sem autorizao expressa da Editora. Edio de texto: Tatiane Braga Reviso: Rozely Campello Capa: Leonardo Maral Projeto grco e editorao eletrnica: Elisngela Mendona Superviso grca: Kthia M. P. Macedo Dados Internacionais de Catalogao-na-Fonte - CIP V489 Vereza, Solange Coelho Literalmente falando: sentido literal e metfora na metalinguagem / Solange Coelho Vereza Niteri : EdUFF, 2007. 170 p. ; 23 cm. (Coleo Biblioteca EdUFF, 2004) Bibliograa. p. 153 ISBN: 978-85-228-0444-3 1. Lingstica. 2. Linguagem. I. Ttulo. II. Srie CDD 410

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor: Roberto de Souza Salles Vice-Reitor: Emmanuel Paiva de Andrade Pr-Reitor de Pesquisa e Ps-Graduao: Humberto Fernandez Machado Diretor da EdUFF: Mauro Romero Leal Passos Diretor da Diviso de Editorao e Produo: Ricardo Borges Diretora da Diviso de Desenvolvimento e Mercado: Luciene Pereira de Moraes Assessora de Comunicao e Eventos: Ana Paula Campos Comisso Editorial Presidente: Mauro Romero Leal Passos Gesmar Volga Haddad Herdy Gislio Cerqueira Filho Hildete Pereira Melo Joo Luiz Vieira Jos Walkimar de Mesquita Carneiro Lvia Reis Mrcia Menendes Motta Maria Laura Martins Costa Maringela Rios de Oliveira Silvia Maria Baeta Cavalcanti

Entre a palavra e a coisa o salto sobre o nada. Em torno da palavra muitas camadas de sonho. Uma cebola. Um tomo. Uma cebola vida. Entre uma e outra camada nada . Paulo Henriques Britto

agradeCimentoS Universidade Federal Fluminense, que, por meio do Edital EdUFF, viabilizou a publicao deste livro; A Mara Sophia Zanotto, que acompanhou, sempre com competncia, cada etapa da pesquisa de doutorado que resultou neste livro; A Danilo Marcondes, pela leitura cuidadosa do texto e pela rica reflexo na rea da filosofia da linguagem, que muito me estimulou; A Helena Leme, Heronides Moura, Josalba Vieira, Maria Isabel Nardi e demais pesquisadores e amigos do grupo GEIM (Grupo de Estudos da Indeterminao e da Metfora, coordenado por Mara Sophia Zanotto), por compartilharem comigo, h mais de uma dcada, o fascnio e o desafio de se estudar a metfora; A Sergio Carvalho, Solange Faraco, Luiz Carlos Souza, Ricardo Almeida, Carmen Lima e Lucilene Hotz, que, pela confiana e interesse na metfora, ajudam-me a reafirmar a relevncia deste caminhar; A Jorge Chami Batista, pelo apoio seguro, a cada momento

SUMRIo PreFCio , 10 introduo, 9Problematizando o sentido literal, 9 Inferncia lexical e a palavra desconhecida, 10 Reconceituando o sentido literal: objetivos do presente estudo, 14 Consideraes sobre metodologia, 18 Introduo, 21 Conceituando o sentido literal, 21 Sentido literal e o pressuposto da literalidade, 38

reConCeituando o Sentido LiteraL, 21

o PreSSuPoSto da LiteraLidade na LingStiCa e na FiLoSoFia, 41Introduo, 41

a ruPtura Com a LiteraLidade: Contexto e Sentido, 67

Introduo, 67 A volta do sofista: o elogio do contexto e da pluralidade, 68 o sentido sob uma perspectiva wittgensteiniana, 71 Literalidade no contexto e na conveno, 85 Produo de sentidos e o mito da literalidade, 96 Introduo, 104 A vida uma viagem: a metfora conceitual, 105 A metfora conceitual, 109 o sentido uma entidade: a metfora da literalidade, 114 o sentido literal como metfora ontolgica, 116 A metfora do recipiente e a metfora do canal, 118 Literalmente falando: a pragmtica da metfora da literalidade, 133

o Sentido LiteraL Como metFora ConCeituaL, 104

ConSideraeS FinaiS, 147 reFernCiaS, 151

PreFCio um privilgio e uma honra poder apresentar aos leitores este livro instigante de Solange Coelho Vereza, a quem tive o prazer de acompanhar em sua trajetria de doutorado. A pesquisa realizada por Solange Vereza nasceu de um estudo emprico sobre inferncia lexical na leitura (relatado na introduo), em que alunos de lngua estrangeira deviam justificar a seleo de palavras cujos sentidos lhes eram desconhecidos. A partir da anlise das respostas, a pesquisadora passou a problematizar a noo de sentido literal, aproximando-se das reflexes de tericos da linguagem sobre esse conceito, que levaram chamada crise da literalidade. Essa percepo do problema a levou a buscar esses tericos, que discutiam a questo da significao da palavra em uso numa viso contextualista da linguagem, como o Wittgenstein das Investigaes Filosficas (1953). Nessa linha de pensamento, a autora tambm discutiu as idias de Fish (1980) e Toolan (1996). Wittgenstein, nessa obra, focaliza a questo da explicao do significado de uma palavra em uso e chega concluso sintetizada na afirmao de que a significao de uma palavra seu uso na linguagem. Conclui tambm que a noo de sentido literal s teria algum fundamento se a compreendssemos como representao da significao que seria uma noo bastante depurada ou idealizada da significao em si mesma, ou seja, da palavra em uso no discurso. Este pode ser considerado o incio da derrubada de um conceito fundador da cincia objetivista. Essa crise que teve origem na Filosofia Analtica da Linguagem, com Wittgenstein, acabou influenciando a obra seminal de Lakoff & Johnson (1980) Metaphors We Live By.1 Esses autores, ao descobrirem a metfora conceptual, rejeitaram a viso literalista e objetivista do significado e do conhecimento. A teoria da metfora conceptual levou assim a uma reviso da dicotomia sentido literal/sentido metafrico. Ao revisitar essas teorias, Solange Vereza elabora a viso do sentido literal como uma metfora semntico-pragmtica, sintetizando assim as vises do contextualismo de Wittgenstein, Fish e Toolan e do cognitivismo de Lakoff e Johnson. Deixo a cargo do leitor desco-

1

Esse livro foi traduzido para o portugus, com o ttulo Metforas da Vida Cotidiana, pelo GEIM Grupo de Estudos da Indeterminao e da Metfora, do qual sou coordenadora e Solange Vereza membro.

brir a soluo proposta pela autora, quando ler e se embrenhar nas discusses instigantes por ela realizadas. Este livro ir, assim, contribuir para desconstruir a falcia objetivista do sentido literal, que pode cegar as pessoas para a real natureza da significao das palavras em uso. Mara Sophia ZanottoPontifcia Universidade Catlica de So Paulo Julho, 2007

introduoAs palavras s tm sentido no fluxo da vida. Ludwig Ttgenstein

Problematizando o sentido literalO conceito de sentido literal bastante polmico nos debates em diversas reas da lingstica, na filosofia e nas cincias humanas em geral. Por um lado, alm de ser um conceito explicitamente defendido por alguns tericos da linguagem, o sentido literal representa um importante aliado no processo de formalizao da linguagem, to caracterstico dos estudos lingsticos a partir do ltimo sculo. Por outro lado, a noo de sentido literal tambm tem sido alvo das mesmas crticas sofridas pelo conceito de signo, que, segundo Eco (1991), tem sido submetido a uma espcie de extino silenciosa at mesmo pela cincia que o toma por objeto: a semitica (p.16). Portanto, ao escolher o sentido literal como foco deste estudo, posso parecer estar tentando investigar um conceito que, apesar dos defensores de sua realidade lingstica e psicolgica e adequao filosfica, teve a sua morte, no s anunciada, mas decretada e assumida por algumas das tendncias recentes nas cincias da linguagem. No entanto, a polmica permanece, e, como veremos, uma das sadas dessa polmica parece estar sendo o desenvolvimento de reconceituaes de sentido literal, reconceituaes essas que se mostram coerentes com a viso de linguagem e de cincia inerente s teorias propostas. No entanto, a necessidade de investigar sistematicamente, no presente estudo, a natureza terica da literalidade no surgiu devido a um interesse intrnseco pela dimenso semntica ou ontolgica do significado. Na verdade, foi a constatao de que o sentido literal como significado fundador, estvel e inerente palavra uma noo que permeia de tal forma o conceito socialmente compartilhado de significado, que passou a determinar uma srie de expectativas e aes especficas que caracterizam tanto as teorias lingsticas mesmo quando essas se colocam explicitamente como anti-literais quanto

a prpria linguagem cotidiana e prtica pedaggica, principalmente no que se refere a sua abordagem diante do texto. Essa constatao foi, gradualmente, tomando forma a partir da anlise dos primeiros resultados de um trabalho de pesquisa sobre inferncia lexical desenvolvida na PUC do Rio de Janeiro, no Departamento de Letras.1 A breve descrio desse trabalho faz-se aqui necessria, uma vez que a questo do sentido literal, como rea a ser problematizada terica e empiricamente, emergiu justamente no decorrer dessa pesquisa. Na verdade, com o surgimento dessa questo, a pesquisa tomou um rumo completamente diferente daquele proposto inicialmente.

Inferncia lexical e a palavra desconhecidaA pesquisa sobre inferncia lexical fazia parte de um projeto institucional de ingls instrumental, por mim desenvolvido, cujo objetivo era a elaborao de programas e materiais para cursos de leitura de textos acadmicos em ingls, em instituies de Ensino Superior. A fase inicial do projeto consistia em uma pesquisa sobre os hbitos e necessidades de leitura em lngua inglesa com alunos da ps-graduao da PUC-Rio. Os resultados da anlise dessa pesquisa apontaram para um contato ainda bastante espordico com textos em lngua inglesa. Vale notar que esses resultados seriam provavelmente diferentes nos dias atuais, j que o uso da lngua inglesa em textos acadmicos e na informtica globalizou-se rapidamente e, portanto, podemos supor que o contato de estudantes do Ensino Superior e de ps-graduao com textos em ingls teria tambm se intensificado na ltima dcada. Mas, na poca da pesquisa, uma das principais razes alegadas para esse pouco contato com o ingls escrito era a presena de itens lexicais desconhecidos nos textos em ingls que, alm de dificultarem a compreenso, reforavam a imagem negativa1

Pesquisa desenvolvida como subprojeto 10: Aspectos lingsticos e discursivos nas estruturas de textos bsicos para fins acadmicos, utilizados como complementao bibliogrfica em lngua inglesa, em instituies de terceiro grau dentro da rea 1, linha de pesquisa 4: Lingstica aplicada lngua inglesa: estudo da aquisio do ingls como lngua estrangeira em situao de ensino formal. O projeto de pesquisa fez parte de um projeto maior desenvolvido pela ps-graduao do departamento de Letras da PUC-Rio, em 1988 e 1989, em convnio com a FINEP. Os resultados da pesquisa aqui discutida foram relatados em um trabalho apresentado no IX ENPULI na Universidade de Braslia, em 1990, sob o ttulo Aspectos da inferncia lexical na leitura em lngua estrangeira.

10

que os alunos tinham de seu prprio conhecimento dessa lngua. Essa frustrao, por sua vez, afastava-os ainda mais da leitura regular de textos em lngua inglesa. Por essa razo, a pesquisa voltou-se para o estudo do papel do vocabulrio na leitura em lngua estrangeira dentro de uma perspectiva inferencial a partir de estratgias de leitura. Estudos sobre inferncia lexical eram bastante freqentes na dcada de 1980 dentro da lingstica aplicada.2 Essas pesquisas partiam de questes prticas que se colocavam principalmente no ensino da leitura em lngua estrangeira como o problema do vocabulrio mencionado acima e tinham como principais pressupostos tericos a teoria interacional da leitura (GOODMAN, 1976), a noo de coeso textual, principalmente no que se refere coeso lexical desenvolvida por Halliday e Hasan (1979), e a teoria dos esquemas (RUMELHARDT, 1980). Uma prtica comum nas pesquisas em inferncia lexical era pedir aos alunos que lessem o texto rapidamente (skimming), sublinhassem os termos desconhecidos, tentassem adivinhar seu sentido desses itens e, finalmente, justificassem sua tentativa de adivinhar o sentido do termo em questo. Com isso, pretendia-se verificar se o aluno havia empregado as estratgias cognitivas normalmente utilizadas na leitura na lngua materna, como por exemplo, o uso da estrutura morfolgica da palavra (sufixos, radicais e prefixos, principalmente os afixos produtivos), o contexto imediato ou intra-sentencial, o co-texto geral ou intersentencial, colocaes, relaes de campos semnticos, relaes de coeso lexical e referencial, macroproposies, e informaes exofricas (de conhecimento do mundo e esquemas). Com esse objetivo, 25 alunos de diversos cursos de ps-graduao da PUC-RJ, com nvel intermedirio de proficincia em ingls, foram selecionados. Aps uma rpida leitura de um texto acadmico da rea de cincias sociais, considerado de dificuldade mdia em termos de complexidade lexical na lngua inglesa, os alunos, a pedido da pesquisadora, marcaram os itens desconhecidos e tentaram inferir o seu sentido no texto. Depois desse procedimento, eles deveriam tentar explicar como haviam chegado quele significado. A justificativa de suas inferncias mostrou-se problemtica, pois a maioria deles no conseguiu desautomatizar, isto , trazer para o nvel da conscincia, e verbalizar estratgias cognitivas que pareciam ser frutos de uma mera intuio.2

Ver, por exemplo, Kato (1985), Kleiman (1985) e Scott (1983).

11

No entanto, o estudo dessas estratgias sequer chegou a ser iniciado, pois a prpria lista de palavras selecionadas como desconhecidas revelou-se, no meu ponto de vista, bem mais problemtica, e, portanto, mais propcia a uma investigao sistemtica do que o uso das estratgias em si. Como a pesquisa de inferncia lexical j pressupunha a seleo de itens desconhecidos, os critrios usados pelos alunos para essa seleo no eram sequer questionados ou problematizados. Dessa forma, decidiu-se que as questes centrais da pesquisa deveriam ser voltadas para uma anlise desses critrios. Em outras palavras, por que o aluno incluiu um determinado item X quando muitas vezes o sentido desse item era absolutamente transparente por a) ser um cognato, ou b) por ter um sentido totalmente bvio dentro do contexto (co-texto) em que se inseria? Haveria critrios para considerar uma palavra desconhecida e outra no? O que seria, ento, desconhecer uma palavra? Haveria nveis de desconhecimento? Enquanto essas questes no fossem investigadas, um estudo sobre o uso de estratgias no processo de inferncia do significado de uma palavra desconhecida parecia problemtico. Conhecer ou no uma palavra Com o objetivo de pesquisar os critrios que levam o leitor em lngua estrangeira a considerar um item lexical desconhecido e, talvez, por isso mesmo, passar a ter uma relao de estranhamento com o texto com que interage, pediu-se aos mesmos 25 alunos que justificassem a seleo das palavras que haviam sido consideradas desconhecidas. Como nos casos da introspeco, a partir da qual haveria uma tentativa de tornar consciente o que, a princpio, estaria automatizado no inconsciente (como nos chamados protocolos verbais), essa justificativa no foi uma tarefa inicialmente muito fcil para grande parte dos informantes. A reao inicial da maioria foi a de que a palavra desconhecida porque eu no a conheo. No entanto, ao contrrio das justificativas anteriores das estratgias de inferncia lexical que haviam sido usadas, a justificativa da escolha dos itens desconhecidos mostrou, no decorrer das entrevistas, ser bem menos problemtica para os alunos. As entrevistas foram orais, mas no foram gravadas, uma vez que, diferentemente dos protocolos verbais, a tcnica de 12

retrospeco visava apenas a respostas pontuais que poderiam ser copiadas pela pesquisadora. As respostas mais freqentes foram as seguintes: a) Eu no conheo essa palavra, apesar de entender o seu sentido. b) Eu no conheo essa palavra porque no sei sua traduo em portugus. c) Eu no conheo essa palavra porque no sei o que ela quer dizer aqui no texto. d) Eu no conheo essa palavra porque eu nunca a vi e nem a ouvi na vida. e) Eu no conheo essa palavra porque eu no saberia explicar o que ela significa. Essas respostas comprovaram logo de imediato que a questo que havia sido problematizada realmente merecia uma investigao prpria, no necessariamente atrelada ao contexto da inferncia lexical, pois indicavam que a prpria seleo pressuposta pela pesquisa j trazia em si outras importantes questes que no poderiam ser ignoradas, seno vejamos: 1- Como se explicaria a contradio entre no conhecer uma palavra e, ao mesmo tempo, entender seu sentido? 2- Saber uma palavra em lngua estrangeira saber sua traduo na lngua materna? 3- No conhecer uma palavra no t-la visto ou ouvido anteriormente a sua apario em um contexto onde o seu sentido bvio? E, no momento que isso acontece, ela passa a ser conhecida ou no? 4- Conhecer uma palavra entend-la, saber us-la, ou a combinao das duas situaes? 5- Conhecer uma palavra saber explicar o que ela significa, isto , poder dar-lhe uma definio qualquer? Dentre os critrios de desconhecimento apresentados, o nico que poderamos dizer que justificaria inteiramente a presena de uma determinada palavra na lista de itens desconhecidos seria o da letra c (no conheo porque no sei o que quer dizer no texto), uma vez que, nesse caso, uma palavra desconhecida no teria sentido no prprio texto. Como uma palavra pode fazer sentido e ainda assim 13

ser considerada desconhecida? Ou o desconhecimento prvio apario da palavra naquele contexto (eu desconhecia antes, mas agora j conheo), ou a expectativa do que vem a ser conhecido no coincide com o que vem a ser compreendido. Os outros critrios pareciam evidenciar uma srie de valores, crenas ou pressuposies que subjaziam no s uma possvel abordagem perante o significado em um texto, ou o significado de um texto, mas como tambm uma maneira particular de se agir perante um texto, principalmente no contexto pedaggico. Saber a traduo de uma palavra ou ser capaz de explicar ou definir o seu significado (critrios b e e) poderia sugerir uma expectativa pedagogicamente ou metalingisticamente construda. Afinal, tradues e definies so tradicionalmente concebidas como formas clssicas de aprendizado de uma palavra e tambm de demonstrao do conhecimento de seu significado. O que quer dizer X ? muitas vezes requer uma definio ou, no caso de uma lngua estrangeira, uma traduo. As questes eram muitas, como tambm as possveis perspectivas de uma conduo sistemticadelas. Entretanto, a questo que se revelava mais proeminente, principalmente por parecer subjacente a todas as outras, era o fato de que parecia haver uma viso implcita ou explcita de que o significado inerente palavra, no importando o contexto no qual se manifesta e cujo teor pode ser aprendido/ apreendido tambm independentemente. Em outras palavras, o significado representaria o contedo estvel da palavra, seu sentido literal; contedo esse que poderia ser traduzido ou definido. Ou seja, o significado transcendia o texto e, como forma sedimentada, era nico e, portanto, literal.

Reconceituando o sentido literal: objetivos do presente estudoA partir desse questionamento inicial de carter ainda bem pouco sistemtico, em que somente perguntas consideradas relevantes foram levantadas, teve incio uma pesquisa que apresentava como diretriz bsica a seguinte hiptese: o sentido literal seria um conceito no inerente palavra, mas, fundamentalmente, inerente prpria viso de significado e de texto de uma maneira geral, sendo

14

que essa viso teria efeitos determinantes na relao texto, palavra e leitor/aprendiz. Essa investigao transformou-se em um projeto de pesquisa que deu origem ao presente estudo, que tem como objetivo principal investigar a questo da literalidade sob o ponto de vista da metfora conceitual, a partir principalmente da proposta introduzida por Lakoff e Johnson (2002, 1999), e desenvolvida mais tarde em Lakoff (1987), Lakoff e Turner (1989) e Kvecses (2002, 2005). A primazia dada ao conceito de metfora conceitual como quadro referencial para se compreender o que aqui chamo literalidade ser justificada mais frente. Por ora, importante apenas que o leitor saiba que a metfora conceitual fornece um aparato explicativo que, por razes a serem explicitadas mais tarde, mostra-se no s adequado, mas tambm bastante elucidativo para as questes a serem aqui tratadas. Esse referencial ser usado para justificar a conceituao de sentido literal proposta e defendida neste trabalho: o sentido literal seria uma metfora de natureza conceitual. Procuraremos examinar como a noo de sentido literal caracterizada por um paradoxo que a coloca como um conceito que, se por um lado j vem sendo rejeitado como conceito fundador em algumas teorias da linguagem, por outro, parece subjazer tanto ao prprio processo de teorizao quanto viso pr-terica (ou leiga) diante da linguagem e ao discurso cotidiano no qual a linguagem torna-se objeto de si mesma. Em outras palavras, se, por um lado, o sentido literal no parece fundamentar (sustentar, nutrir) o sentido em uso, por outro, ele estaria presente, como construto terico, nas vrias instncias em que a linguagem idealizada enquanto objeto de reflexo. Entretanto, seria necessrio, em primeiro lugar, esclarecer o que normalmente entendido como sentido literal. Para isso, examinaremos, no Captulo 1, quais sentidos so atribudos a sentido literal nas diversas propostas de (re)definio e (re)conceituao dessa noo explicitadas e defendidas por tericos da linguagem como Lakoff (1986), Gibbs (1984), Searle (1979), Dascal (1989), Possenti (1990) e Toolan (1996). Ser defendida, nesse mesmo captulo, a idia de que, subjazendo a cada (re)conceituao de sentido literal proposta, haveria uma viso mais geral de linguagem que, de certa forma, necessitaria de algum tipo de suporte epistemolgico no qual a noo de sentido literal desempenharia um papel imprescindvel. Em outras palavras, as noes de sentido literal discutidas no s se mostram consistentes 15

com as teorias das quais elas emergem, mas tambm essenciais para a prpria consistncia epistemolgica dessas mesmas teorias. A partir desse questionamento, o objetivo do Captulo 2 investigar de que forma a questo do sentido literal, e, por conseguinte, do significado vem sendo tratada nas principais linhas da lingstica (lingstica formal, discursiva e cognitiva) e da filosofia da linguagem. Essa discusso no se prope a desenvolver uma anlise detalhada dos vrios aspectos dessas linhas tericas nem a fazer uma reviso da vasta literatura envolvida, uma vez que seu objetivo se limita a tentar mostrar como a literalizao do sentido, de diferentes maneiras, parece permear as chamadas tendncias formalistas, representacionistas e neopositivistas da lingstica e da filosofia. Examinaremos a maneira como, a partir do momento em que a linguagem se torna um objeto de reflexo, ela submetida a um processo de idealizao que a desloca inevitavelmente da complexa e inefvel rede de sentidos que a fundamenta em contextos especficos de uso. Argumentaremos que emerge desse deslocamento um sentido acessvel ao olhar reflexivo que procura algum tipo de regularidade, estabilidade e estrutura que possa transcender o acontecimento; em suma, um sentido literal. No Captulo 3, problematizaremos a noo de sentido literal como uma dimenso significativa que pudesse permear ou fundamentar o sentido produzido em contextos naturais de uso da linguagem. Defenderemos uma viso de sentido por meio da qual esse estaria irremediavelmente atrelado ao uso, s situaes e aos contextos que o fundamentam. O pensamento da chamada Segunda Filosofia de Ludwig Wittgenstein, principalmente dentro do contexto de sua obra Investigaes Filosficas, e o dos tericos da linguagem Stanley Fish (1980, 1994) e Michael Toolan (1996) serviro de fundamentao terica a partir da qual defenderemos uma viso contextualista de sentido em que esse visto como um produto da experincia em jogos de linguagem. O sentido literal, assim, ser rejeitado enquanto estrutura fundadora do sentido em uso. No entanto, ele ser caracterizado como um pressuposto inerente a determinados jogos de linguagem nos quais a linguagem passa a ser o objeto de si mesma. No Captulo 4, esse nvel idealizado de significado o pressuposto do sentido literal evidenciado na discusso das teorias da linguagem que o sustentam, conceituado como uma metfora de natureza cognitiva, nos moldes propostos a partir de Lakoff e Jonhson (2002). A metfora conceitual, diferentemente da metfora concebida 16

de forma tradicional como uma figura de linguagem caracterstica do discurso potico ou retrico, colocada como um processo cognitivo de mapeamento conceitual, pelo qual um determinado conceito compreendido a partir de outro. Dessa forma, a metfora, inerente sabedoria potica proposta pelo filsofo italiano Gianbatistta Vicco, faria parte do prprio processo de se construir cognitivamente a realidade e, apesar de ser marcada lingisticamente, no apenas um recurso lingstico de tipos especficos de discurso. Nessa linha de pensamento, partimos da metfora do canal proposta por Reddy (1993) para introduzirmos a metfora da literalidade que, ao conceber a palavra ou o texto como um recipiente cujo contedo seria o sentido literal, leva o homem a desenvolver ou solidificar a crena de que significados podem ser entificados (reificados ou coisificados), apreendidos e transmitidos. Nesse mesmo captulo procuraremos, tambm, ressaltar e elaborar a idia, defendida principalmente por Kvekses (2005), de que a noo de cognio implcita na metfora conceitual no s abriga, mas tambm pressupe uma articulao entre linguagem, pensamento e cultura. Assim, a metfora conceitual no poderia ser compreendida independentemente de seus aspectos socioculturais. Evidncias da metfora da literalidade podem ser encontradas na prpria linguagem ordinria. Assim, alguns exemplos extrados de textos autnticos e que parecem evidenciar a metfora da literalidade so apresentados e brevemente analisados nesse captulo. Examinaremos, mais detalhadamente, como essa metfora parece ter uma dupla funo: epistemolgica e pragmtica. Se, por um lado, em sua dimenso pragmtica (como parte de determinados jogos de linguagem), a metfora desempenha uma funo fundamentalmente metalingstica e metadiscursiva, por outro, ela transforma o significado, que um fenmeno multifacetado, fluido e constitudo discursivamente, em um objeto acessvel de reflexo. Essa objetificao ou reificao do sentido aqui identificada como uma caracterstica daquilo que Lakoff e Johnson (1980, 2002) chamam metfora ontolgica, que faz com que o ser humano conceba entidades abstratas em termos de entidades concretas para que as primeiras possam fazer sentido. Em outras palavras, a metfora da literalidade, como um tipo de metfora ontolgica, objetifica o significado para poder viabiliz-loenquanto objeto na eterna busca de sentido que caracteriza o homem enquantoser pensante. 17

Assim, a partir dessa investigao, poderemos compreender melhor as questes que emergiram do estudo emprico descrito no incio desta introduo. O sentido literal, enquanto metfora conceitual, conduz uma srie de expectativas que surgem quando o sentido se desprende da malha contnua de significao caracterstica do discurso. Em nossas consideraes finais, examinaremos, brevemente, como esse processo de literalizao parece permear os jogos de linguagem (a leitura seria um deles) nos quais a questo do sentido em si, que se torna significado, objeto de reflexo, adquire um papel predominante no ato discursivo.

Consideraes sobre metodologia importante deixar claro que este um estudo de natureza fundamentalmente terica. A opo por tal tratamento para as questes aqui investigadas foi necessria porque a prpria noo de sentido literal mostrou-se, antes de tudo, teoricamente problemtica. Partimos da viso de que o sentido literal no poderia ser apenas defendido ou rejeitado, uma vez que ele se revelou um pressuposto inerente a vrias teorias da linguagem. Assim, sua existncia no poderia ser corroborada ou refutada por evidncias empricas, pois, como construto terico, o sentido literal certamente j existia. E a natureza dessa existncia mostrou-se uma questo a ser examinada teoricamente, j que envolvia uma nova conceituao de sentido literal, ou seja, esta aqui proposta: o sentido literal uma metfora conceitual, que reifica ou entifica o sentido, para que possamos apreend-lo cognitivamente e agir pragmaticamente sobre ele. Rejeitar o sentido literal como conceito fundador da significao e propor sua conceituao como metfora exigiram um questionamento terico que parece ter abrangido aspectos relativos a vrias reas que tm a linguagem como objeto de investigao. Com isso, nos remetemos tanto lingstica, quanto filosofia e pragmtica. Essa interdisciplinaridade poderia ser interpretada como um ecletismo inadequado a uma investigao sistemtica e rigorosa. No entanto, cremos ser, seno impossvel, certamente indesejvel tratar com profundidade uma questo de natureza multidimensional, como a do sentido literal, percorrendo apenas um campo terico, tendo como nico objetivo uma suposta coerncia e unicidade. Como afirma Possenti, ao defender a sua proposta de criar uma ponte entre duas reas 18

aparentemente incompatveis, se os objetos so complexos, as teorias no podem ser simples [...] e teorias auxiliares so uma tradio na histria das cincias (1996, p. 71). Apesar da opo por um tratamento terico, apresentamos, no ltimo Captulo, alguns exemplos de evidncias empricas que tm como objetivo apenas ilustrar as possveis marcas da metfora da literalidade no discurso cotidiano. No pretendemos desenvolver uma anlise sistemtica ou rigorosa das passagens citadas. Acreditamos, porm, que uma das contribuies especficas deste estudo seria propiciar a formao de um campo de investigao, tanto terica quanto emprica, sobre a metalinguagem e sua relao com a metfora conceitual. Cremos tambm que a contribuio geral deste estudo est na compreenso de que certas noes tericas, como a do sentido literal, s podem ser defendidas ou criticadas a partir de seu papel dentro das teorias que a sustentam. Assim, literaliza-se o sentido para que este se torne suscetvel prpria teorizao. Enquanto objeto, no necessariamente isomrfico quilo que se pretende com ele retratar, o sentido literal conceituado e ento analisado nos moldes da teoria que o fundamenta. Dessa forma, rejeitar ou advogar uma determinada noo de sentido literal (como muitos outros construtos tericos) significa, em ltima anlise, rejeitar a prpria teoria que lhe subjacente, qual ele, por sua vez, tambm subjaz. Esperamos tambm que este estudo possa, na medida do possvel, enriquecer o j rico debate em torno da metfora conceitual como forma de ao cognitivo-pragmtica, a partir da discusso de uma metfora particular aqui elaborada: a metfora da literalidade. A metaforologia (STEEN, 1994) uma rea de estudos ainda recente, mas, como veremos mais tarde, pela vasta e frutfera pesquisa que tem se desenvolvido a seu redor, parece bastante promissora. Acreditamos que possamos contribuir, de alguma forma, para esse debate, j que a recproca certamente verdadeira: a noo de metfora conceitual mostrou-se fundamental para a compreenso da questo do sentido literal aqui tratada. Finalmente, esperamos que a noo de sentido literal aqui elaborada indique a sua prpria condio de meta-metfora; isto , uma viso que certamente no se coloca como definitiva, completa e, muito menos, como a verdadeira. Como todo construto ou artefato terico, a noo de metfora conceitual, e em nosso caso especfico, a 19

metfora da literalidade, em si mesma, uma metfora: um processo e uma prtica que possibilita o processo de reflexo, reflexo que, sem a metfora, provavelmente no teria como dar conta da inefabilidade do sentido no acontecimento.

20

RECONCEITUANDO O SENTIDO LITERALA gente inventou um truque pra fabricar brinquedo com as palavras. Manoel de Barros

IntroduoUma investigao sobre o sentido literal, ou sobre qualquer outro construto de base fundamentalmente terica, deve ter como ponto de partida a problematizao do que se entende por esse conceito. Com esse objetivo, passaremos a uma discusso breve sobre a natureza polissmica do termo sentido literal sob o ponto de vista tanto de seu uso na linguagem ordinria, quanto de suas conceituaes formais propostas por tericos da linguagem. A idia a ser defendida aps tal discusso ser a de que as conceituaes de sentido literal propostas no s re etem, mas tambm reforam a viso geral sobre sentido e linguagem, a partir da qual o conceito de literal foi desenvolvido. Em outras palavras, a prpria tentativa de, por um lado, rejeitar ou defender a existncia do sentido literal, e, por outro, estabelecer seus principais fundamentos, surge pela necessidade de sustentar e de elaborar teoricamente uma determinada viso geral sobre linguagem.

Elaboramos, a seguir, a conceituao de sentido literal como um pressuposto (o pressuposto da literalidade) que subjacente a vrias teorias da linguagem e ao prprio pensamento e discurso metalingstico. Conceituando o sentido literalUsos de sentido literal O sentido literal parece ser, a princpio, um conceito to transparente e com um sentido literal to inequvoco que poderamos julgar desnecessrio tentar de ni-lo. Segundo Dascal, essa noo j 21

foi considerada to pouco problemtica que poderia se enquadrar na descrio de Arnauld: Era uma daquelas noes que, por serem to claras, no poderiam ser explicadas atravs de outras, j que no haveria outras to claras quanto elas.(1987, p. 259).1 Talvez por essa aparente transparncia existam pouqussimas definies mais explcitas desse conceito (GIBBS, 1994). Assim, no de se estranhar que no haja nem no dicionrio Aurlio 3a edio nem no Dicionrio de Lingstica e Gramtica de Mattoso Cmara2 um verbete especfico ou uma meno direta ao termo. No primeiro, podemos encontrar no verbete significado uma definio para significado figurado, mas no para o significado literal, e no verbete literal somente o uso do adjetivo como exato, claro, conforme a letra ou bvio (mas nunca para se referir ao sentido em si). J o dicionrio de Mattoso Camara no apresenta nenhum verbete para sentido literal ou outro qualquer , nem uma definio para significado, mas sim para significao: representao mental que uma forma lingstica evoca(p. 218). De um modo geral, mesmo na literatura referente a estudos da linguagem, h poucas menes explcitas ao sentido literal. Gibbs acredita que essa omisso possa ser explicada pelo fato de que, no mbito da lingstica, pressupe-se muitas vezes que uma teoria do significado sempre sobre o sentido literal (1994, p. 26). Toolan, por sua vez, sugere que na disputa entre como fazer lingstica e como explicar o sentido literal, o primeiro interesse mostra-se imbatvel (1996, p. 34). No entanto, essa falta de explicitao do sentido que se atribui a sentido literal nas diversas teorias lingsticas tem sido problematizada recentemente. Assim, Lakoff compara o sentido geral e pouco claro que normalmente se atribui a sentido literal com o sentido atribudo ao conceito de me, que, segundo ele, seria uma combinao de a pessoa que forneceu o vulo a partir do qual voc foi concebido, quem o carregou e lhe deu a luz, quem o criou, e quem casou com o seu pai (1986, p. 291). Esse conceito, porm, parte de1

Todas as passagens escritas em lngua estrangeira no original e aqui citadas foram traduzidas em portugus pela autora. Essas duas referncias foram usadas como exemplos da pouca explicitao dada ao termo sentido literal por representarem duas das obras brasileiras mais populares no que se refere definio de termos em geral e da terminologia bsica proveniente da gramtica e da lingstica. Isso no descarta a hiptese de podermos encontrar referncias mais explcitas do sentido literal em outras obras do gnero.

2

22

uma viso idealizada de me bastante longe da realidade atual na qual mes solteiras, fertilizaes in vitro, adoo de crianas por casais homossexuais e outras variveis do mundo moderno3 representam fatores determinantes na vivncia real do que viria a ser a experincia de ser me. Para Lakoff, esse conceito baseado em um modelo de um mundo extremamente simplificado, a partir do qual espera-se que uma combinao de condies possam convergir em um nico conceito. Essa mesma simplificao aconteceria com o conceito de sentido literal, que, segundo esse autor, normalmente visto como a juno de quatro sentidos: a) literal 1 ou literalidade convencional: linguagem ordinria convencional, que se contrasta com a linguagem potica, aproximao, exageros, polidez excessiva, indiretividade etc. b) literal 2 ou literalidade de assunto: linguagem usada normalmente para se falar sobre uma determinada rea ou assunto especfico. c) literal 3 ou literalidade no-metafrica: linguagem diretamente significativa, isto , linguagem que no compreendida, nem mesmo parcialmente, em termos de alguma outra coisa. d) literal 4 ou literalidade de condies de verdade: linguagem capaz de se enquadrar ao mundo (isto , capaz de se referir diretamente a objetos existentes ou de ser objetivamente falsa ou verdadeira). Para Lakoff (1986), o problema principal com a noo de sentido literal reside no fato de o termo ser usado indiscriminadamente, isto , sem haver uma distino clara sobre em qual das acepes o termo est sendo usado. Isso aconteceria porque tanto na lingstica quanto na filosofia lgica, todos os quatro sentidos de literal convergem em um s. Essa convergncia propiciaria o estabelecimento de pressuposies falsas sobre o sentido literal j que as implicaes de cada acepo no seriam necessariamente compatveis com as de outras. Um exemplo disso seria uma combinao do sentido literal 13

claro que essa realidade a qual Lakoff se refere baseada no contexto americano, o qual parece estar sendo aos poucos reproduzido em nossa sociedade, pelo menos dentro de uma determinada classe social. No entanto, no seria improvvel pensarmos na existncia de outras possveis variveis de nosso contexto que poderiam no se enquadrar com a viso de me apresentada. Quando dizemos, por exemplo, que algum uma me podemos estar querendo dizer metaforicamente que uma me algum que cuida, que zela, que d carinho, amor e ateno. Enfim, uma noo afetiva que no se encontra em nenhuma das definies apresentadas acima.

23

com o sentido literal 3 (a linguagem ordinria convencional diretamente significativa e, portanto, no metafrica) ou do sentido literal 2 com o sentido literal 4 (h somente uma maneira de se entender cada assunto, logo, a linguagem convencional usada para falar sobre um assunto pode ser falsa ou verdadeira). Tais pressupostos surgem por intermdio de uma viso grosseiramente simplificada de sentido literal que faz com que seus quatro sentidos convirjam em um s. As conseqncias tericas dessa falta de explicitao seriam, segundo Lakoff, bastante significativas, principalmente no caso de uma discusso sobre a metfora, o conceito mais freqentemente contraposto ao sentido literal. Ele ilustra essa problemtica com exemplos de algumas definies de literal, como a apresentada por MacCormac que sugere que o sentido literal seja algo diferente do metafrico, e ao mesmo tempo, o uso da linguagem ordinria para expressar acontecimentos e objetos concretos (1985, p. 296). No que diz respeito metfora, Lakoff prope o uso exclusivo do sentido literal 3 para evitar esse tipo de confuso terica. Assim, consideraes sobre a metfora deveriam fazer referncia ao sentido literal como linguagem diretamente significativa que no precisa ser entendida, nem mesmo parcialmente, em termos de alguma outra coisa (1985, p. 296). Os outros sentidos do termo, o literal 1, o literal 2 e o literal 4, seriam igualmente vlidos em outros paradigmas; o que se deveria ser evitado a confluncia de sentidos sem uma verificao das implicaes de cada um deles para o fenmeno estudado. Gibbs (1994) tambm discute os vrios sentidos do termo sentido literal apresentando exemplos dos usos do advrbio literalmente: Cada palavra aqui literalmente aquilo que o homem falou. Tnhamos literalmente um minuto para pegar o trem das doze horas. Quando chegamos em casa, eu literalmente morri de exausto. Durante o campeonato, nossos olhos estavam literalmente colados na televiso. e) Ele caiu literalmente a seus ps com flores e perfumes. f) Nos anos 1930, curas para a depresso inundaram literalmente a cidade de Washington. a) b) c) d) Gibbs afirma que o termo literalmente polissmico por expressar vrios sentidos. Em alguns desses casos, ele se refere idia de fidelidade de representao, e em outros, tomado como 24

uma hiprbole, isto , a proposio mencionada h de ser mais forte ou extremada. Podemos pensar em outros exemplos em nossas lngua e cultura, nos quais literalmente remete a noes de intensidade, sendo que essa noo muitas vezes se choca com o sentido de literal como ao p da letra:Eu estava literalmente morta de curiosidade. Ele literalmente um gato.

Nesses exemplos, os usos de morta e gato seriam tradicionalmente vistos como metforas (metforas convencionais, mas ainda assim, metforas no sentido 3 de Lakoff). Como algum pode estar literalmente morto e, ao mesmo tempo, poder verbalizar essa idia no mundo real e no no sobrenatural? Da mesma forma, como um ser humano pode ser literalmente um gato sem ter os atributos descritivos caractersticos de um felino (animal, quadrpede etc.). Podemos observar que, nesses dois casos, literalmente expressa um sentido de intensidade que parece remeter dicotomia literal e metafrico. Isto , o sujeito faz uso de um conhecimento metalingstico para poder dar maior intensidade a sua proposio. Essa dimenso pragmtica do uso do sentido literal ser adiante analisada mais profundamente . A idia de fidelidade, rigor, ou compromisso com a realidade objetiva tambm freqentemente expressa pelo uso de literalmente em nossa lngua:Temos literalmente uma hora para chegarmos ao escritrio. No sei se devo fazer literalmente o que ela me pediu. O problema deste bolo que ela no seguiu a receita literalmente.

Ao p da letra, ao p da verdade, ao p da realidade, com os ps no cho em terra firme: a noo de sentido literal parece se estender alm da questo da exatido da representao, isto , a relao do termo com o conceito, para encontrar na estabilidade um de seus parmetros primordiais. Essa estabilidade, juntamente com as noes de rigor e exatido em relao ao que no s estvel, mas tambm correto, parece permear a viso de que palavras, frases e at mesmo textos so caracterizados por sentidos literais, estveis, permanentes, regulares e autnomos, que podem ser objetivamente definidos. Afinal, 25

poderamos perguntar, se no fosse a estabilidade dos sentidos, como as pessoas poderiam se comunicar, como aparentemente o fazem com tanto sucesso. A existncia de sentidos estveis, transcendentes ao contexto, e que pudessem ser usados de acordo com a convenincia do falante, seria assim um pressuposto inquestionvel. Dessa forma, alm da estabilidade, a autonomia ou independncia do sentido literal em relao ao contexto4 parece fundamentar a noo de literalidade. Conceituaes tericas de sentido literal Essa viso sobre a transcendncia ao contexto, implcita nos vrios usos do termo na linguagem ordinria, adquire suporte terico mais explcito a partir da obra de Frege. O filsofo defendia a idia de que um falante/ouvinte de uma determinada lngua poderia compreender muitas sentenas sem precisar saber onde, como, por quem e por que foram produzidas; isto , o contexto no seria necessrio para sua compreenso. Segundo Gibbs (1984), essa viso teria as seguintes implicaes para a questo da literalidade: a) Todas as sentenas teriam um sentido literal, sendo que a ambigidade delas significaria a existncia de mais de um sentido literal. b) O sentido literal poderia ser inapropriado ou pouco especfico, como no caso de sentenas sem sentido (nonsensical sentences). c) O sentido de uma sentena deve ser diferente daquilo que o falante diz quando usa essa sentena. d) O sentido literal seria o sentido fora ou independente do contexto (free context).

4

A noo de contexto , como a noo de sentido literal, bastante problemtica. Na linguagem ordinria, referimo-nos ao contexto cultural, histrico, pessoal; ao contexto como circunstncias, como conjuntura, conjunto de variveis, contexto do que est sendo falado ou escrito, em suma, como aqueles aspectos considerados prprios da experincia em si. Como veremos em maior detalhamento ao decorrer desta discusso, o contexto do ponto de vista terico tambm polissmico: haveria o contexto imediato ou da situao comunicativa, cujos parmetros poderiam a princpio ser definidos mediante uma anlise etnogrfica da fala, por exemplo. Mas haveria tambm o contexto do texto em si (o co-texto) ou o contexto do ponto de vista do sujeito-falante: suas expectativas, sua histria, sua experincia interior, seus esquemas mentais (sua schemata), ou at mesmo sua psique. Em outras palavras, o conceito de contexto variaria de acordo com o recorte terico e com a viso sobre a natureza da linguagem e do discurso.

26

Katz e Fodor (1963) compartilham essa noo de sentido literal segundo a qual haveria um significado autnomo em relao ao contexto, significado cujo conhecimento faria parte de uma competncia semntica do falante. O clssico exemplo da carta annima ilustraria bem esse sentido independente do contexto (context free meaning): um falante ideal de uma lngua receberia uma carta annima contendo apenas uma sentena e sem qualquer informao acerca de sua procedncia, ou o motivo por que foi escrita. Segundo os autores, o sentido literal das expresses lingsticas constituintes da sentena (os seus componentes) levaria por si s compreenso do texto em questo, sem qualquer influncia do contexto. Essa seria uma viso composicional5 do sentido. Dascal tambm adota essa caracterizao de sentido literal como sendo aqueles aspectos do sentido de uma sentena, os quais o falante pode detectar exclusivamente atravs de seu conhecimento das regras da linguagem sem qualquer ajuda de pistas contextuais(1987, p. 260). O autor prope o princpio da invarincia de significado, que considera bastante til para a compreenso da noo de sentido literal. Essa invarincia estaria associada ao que estamos chamando aqui de estabilidade do sentido. importante notar que essas caracterizaes de sentido literal referem-se essencialmente ao sentido de frases e no de palavras. Grande parte do que se teoriza acerca do sentido literal pressupe ou o primeiro ou o segundo nvel lingstico (palavra e frase). A anlise componencial, a teoria dos prottipos, das categorias radiais e a do lxico mental, que sero tratadas mais frente, referem-se literalidade no lxico, sempre enfocando a possibilidade de um significado central ou de uma matriz de significado da palavra. Esse significado tanto poderia ser visto como sua inteno ou como seu sentido (sense): isto , o conjunto de propriedades que compartilhado por todos os membros da classe qual o termo se refere (LYONS, 1995,

5

Uma teoria composicional do sentido seria aquela que, segundo Rumelhardt: forneceria um conjunto de significados para os lexemas individuais da lngua e, depois, um conjunto de regras de composio pelas quais os significados individuais dos lexemas so combinados para formar o significado da frase. Da mesma forma, os significados de vrias sentenas so combinados para formarem o discurso (1993, p. 81)

27

p. 82). J as teorias das condies de verdade6 e a dos atos ilocucionrios, por exemplo, pressuporiam de alguma forma a literalidade da frase (sentence meaning). No entanto, o sentido literal tratado aqui faz referncia tanto palavra quanto frase e at mesmo ao texto. O que aqui problematizado o pressuposto da literalidade e da estabilidade do sentido que subjazeria tanto s teorias do lxico quanto s da frase e do texto. Mesmo sem precisar ter essa estabilidade questionada, o sentido literal pode ser tambm concebido teoricamente como sentido convencionalizado. Aqui, o sentido, dentro de uma tradio saussureana, adquire um papel social e no apenas cognitivo. Isto , em vez de um fenmeno ou entidade cognitiva (um conceito), o sentido literal visto como um significado convencionalmente atribudo a um determinado termo e aceito por uma determinada comunidade lingstica: o lado significado da famosa folha de papel (que, mesmo rasgada sempre manter seus dois lados), cujo outro lado seria o significante. Toolan (1996), no entanto, contrape o que seria para ele a noo tradicional de sentido literal quela do significado convencional, uma vez que a primeira pressuporia a natureza composicional da linguagem e a outra no. Dessa forma, o sentido literal de uma expresso seria a soma dos sentidos dos termos que constituem essa expresso e no o sentido convencionalizado pelo qual a expresso compreendida e utilizada socialmente. Assim, a expresso John got the sack, teria, segundo o autor, o sentido convencional John foi despedido, enquanto seu sentido literal seria algo como John recebeu o saco. Essa dicotomia entre sentido literal e sentido convencional remete a outras dicotomias da mesma natureza, as quais so bastante relevantes no debate em torno da literalidade. Se, por um lado, temos o sentido literal composicional ou o sentido da sentena em sua dimenso semntica, por outro, teramos o sentido convencional, que poderia estar associado ao sentido do falante ou ao sentido contextual. O primeiro sentido seria o propriamente literal e o outro possibilitaria diferentes interpretaes de acordo com o contexto. No entanto, poderamos dizer que at mesmo o sentido convencional das6

Uma viso tradicional do sentido literal da frase pressupe uma relao direta entre sentido literal e verdade. Segundo Gibbs (1994), o sentido literal, nesse caso, seria identificado com sentido proposicional e esse com o sentido condicional da verdade. Assim, o sentido literal seria o conjunto de condies necessrias e suficientes que estabelecem a verdade da frase (p.63). Essa noo de literalidade, por limitar-se a frases no indicativo, exclui perguntas, ordens e frases performativas, o que restringe bastante a aplicabilidade dessa noo linguagem como um todo.

28

expresses idiomticas podem ter diferentes interpretaes em diferentes contextos. Assim, uma expresso como voc danou teria um sentido composicional relacionado com movimentar-se no ritmo da msica, e um convencional com esse mesmo sentido ou com o sentido da gria recente voc foi prejudicado de alguma forma, sendo que a ambigidade poderia ser solucionada apenas no contexto discursivo. Entretanto, haveria ainda uma outra possibilidade significativa que estaria na fora ilocucionria do enunciado em questo. O mesmo sentido convencional poderia ser interpretado como uma informao, uma crtica ou at mesmo uma ironia. A fora ilocucionria do enunciado vis-a-vis seu significado na frase estaria no centro das distines entre valor semntico e valor pragmtico, locuo e ilocuo, significao e valor, sentido literal e sentidos no literais (entre esses, estariam o sentido figurado, os idiomas, os atos de fala indiretos e a ironia). Essas distines estariam no cerne das discusses em torno da literalidade e do sentido. Investigando a realidade psicolgica do sentido literal Uma das implicaes importantes das distines mencionadas acima seria o fato de que, como o significado estaria inserido em diferentes dimenses (uma semntico-abstrata, e outra pragmtica), a produo e a compreenso de formas no literais teriam que pressupor necessariamente uma passagem pelo nvel da literalidade para se poder chegar ao no literal. Em termos de compreenso, isso estaria associado ao conhecido modelo de estgios cujos princpios bsicos foram desenvolvidos principalmente por Clark e Lucy (1975) e por Searle (1993). Segundo esse modelo, para poder compreender o sentido de expresses no literais,7 o falante primeiramente processaria o sentido literal da frase, depois verificaria a adequao desse sentido ao contexto em questo e, por ltimo, buscaria uma interpretao alternativa que resolvesse a anomalia e fosse apropriada situao discursiva como um todo. Assim, a hiptese da estabilidade do sentido, e, conseqentemente, da existncia de um sentido literal inerente a expresses lingsticas se mantm, uma vez que esse sentido seria constantemente acionado na enunciao: sem o literal no haveria7

Para Searle, um enunciado literal seria aquele por meio do qual o falante quer dizer exatamente o que diz (p. 87), isto , quando o sentido literal da sentena (sentence meaning) coincide com o sentido do enunciado (utterance meaning). Em enunciados no literais, no haveria uma coincidncia, mas sim um discrepncia entre esses dois nveis de significao.

29

compreenso. E isso vem reforar o papel no s fundamental, mas tambm fundador (TOOLAN, 1996) atribudo ao sentido literal. No entanto, evidncias empricas parecem no corroborar a validade desse modelo, principalmente no que diz respeito ao peso dado ao sentido literal na compreenso de enunciados. Os resultados das pesquisas desenvolvidas por Gibbs (1979, 1984, 1989, 1994) sugerem que at mesmo a distino entre sentidos literais e figurados e entre semntica e pragmtica no teria validade psicolgica (1984, p. 275). A hiptese investigada por Gibbs a de que, se a compreenso de sentidos no literais realmente envolvesse um modelo de estgios com passagem obrigatria pelo literal, o tempo de reao para a interpretao de enunciados no literais teria de ser necessariamente mais longo do que o de enunciados literais. Resultados de testes empricos de rapidez e modo de interpretao de enunciados contendo pedidos indiretos e expresses idiomticas mostraram, ao contrrio do que sugerido pelo modelo, que as formas em questo eram interpretadas com a mesma ou at maior rapidez do que as tidas como literais. Isso sugere uma interpretao direta das formas no literais, sem qualquer recurso ao sentido literal. O trabalho de Ortony et alii (1978) e o de Rumelhardt (1993) tambm apontam nessa direo: a interpretao de sentidos figurados no pressuporia uma passagem pelo sentido literal. Porm, como os autores no fazem a distino entre metfora e expresso idiomtica, novas pesquisas deveriam ser feitas envolvendo a interpretao de metforas novas e no cristalizadas pelo uso, isto , literais no sentido de convencionais e no composicionais. O trabalho de Paschoal (1992), por exemplo, levanta a possibilidade da passagem pelo sentido literal (a percepo de ruptura no significado) no caso da interpretao de metforas no discurso potico (metforas de inveno). No entanto, tal passagem, segundo a autora, seria de natureza sui generis, isto , evidenciou-se somente nos casos em que o informante permaneceu apenas no nvel da percepo de ruptura (estgio 1), sem oferecer uma parfrase interpretativa (estgio 2). Assim, a passagem pelo literal no seria um primeiro estgio necessrio qualquer interpretao de enunciados no literais e, conseqentemente, a possibilidade de um sentido literal sempre atrelado ao enunciado no evidenciada. Em muitos casos, poder-se-ia at afirmar que o sentido no literal de muitos enunciados, por serem interpretados de uma forma to direta ou automtica, seria, de fato, o seu sentido literal (GIBBS, 1984, p. 293). A provvel impossibilidade do que chamado por Gibbs de realidade psicolgica do sentido literal, juntamente com a conse30

qente problematizao da dicotomia entre sentido da frase, literal, e sentido do enunciado, coloca o sentido literal em uma perspectiva aparentemente pouco defensvel emprica e teoricamente. Entretanto, pelo menos trs propostas mais explcitas de defesa do literal devem ser aqui mencionadas: a de Dascal (1987, 1989), a de Searle (1979) e a de Possenti (1990).8 Antes mesmo de discuti-las, podemos levantar a seguinte questo: at que ponto possveis propostas de defesa no implicariam uma reconceituao de sentido literal que levaria a um outro construto qualquer que no apresentasse as caractersticas que so justamente criticadas no sentido literal? Ser que, na tentativa de defesa no estaria sendo construdo um novo objeto que, por ser outro, no poderia ser mais questionado a partir do mesmo recorte? Essas questes de natureza epistemolgica parecem relevantes quando tratamos de um conceito fundamentalmente terico que certamente , em grande parte, determinado pela viso implcita sobre linguagem, cincia e discurso. Na defesa do sentido literal Das trs argumentaes mencionadas, que implicam a defesa do sentido literal, a mais diretamente relacionada com a crtica literalidade do sentido, feita por Gibbs, a de Dascal (1987, 1989). Na verdade, a polmica entre Gibbs e Dascal j bem conhecida na psicologia cognitiva: o primeiro oferecendo evidncias empricas que, aparentemente, descartam a realidade psicolgica do sentido literal, e o segundo, questionando essas evidncias e defendendo esse mesmo sentido literal. A polmica assim resumida pelo prprio Dascal, na introduo de seu segundo artigo na linha de defesa do literal (p. 253):na minha recente defesa do sentido literal (1987), minha preocupao principal era mostrar que tal construto terico era psicologicamente real. Pelo menos em um sentido, Gibbs concorda com esse ponto uma vez que ele reconhece que os significados que eu chamo de literal esto entre a variedade de produtos que resultam da compreenso8

Isso no quer dizer que o sentido literal seja uma noo rejeitada em outras teorias sobre a linguagem. Como veremos mais detalhadamente abaixo, a literalidade do sentido est implcita em grande parte das teorias lingsticas, desempenhando nelas um papel fundador. No entanto, como foi colocado acima, raramente esse pressuposto explicitado, trazido superfcie e defendido por essas mesmas teorias.

31

lingstica, e complementa: Ningum disputa que isso seja um aspecto da realidade psicolgica. O que ele disputa que haja algo especial a respeito desses produtos que pudesse dar-lhes um status privilegiado (a) como sendo de alguma forma bsico ou primrio, (b) como sendo o resultado de um processo cognitivo singular e (c) como se desempenhasse algum papel necessrio nos processos envolvidos no processamento de outros produtos no literais da compreenso lingstica. Gibbs argumenta contra (b) e (c) e conclui que (a) no verdadeiro. Eu tentarei mostrar que: 1. a nova evidncia emprica mencionada por Gibbs no sustenta a sua rejeio de (c), 2. na prpria viso de Gibbs, necessrio atribuir propriedades especiais ao processamento de significados literais; e, conseqentemente, 3. no s faz sentido, mas tambm necessrio afirmar que, no processo de compreenso, o sentido literal ocupa uma posio bsica (DASCAL,1989, p. 253).

Como podemos ver, Dascal defende no s a realidade psicolgica do sentido literal, como tambm sua primazia perante outros significados no literais. Entretanto, o autor distingue sua noo de sentido literal da viso mais tradicional dentro da qual esse visto a partir de sua natureza composicional. O literalismo moderado ou a concepo alternativa de sentido literal defendida por Dascal descarta as caractersticas, abaixo enumeradas, normalmente atribudas ao sentido literal, caractersticas essas que, para esse autor, apresentam exigncias excessivas sobre o papel que o literal deve desempenhar (1987, p. 260). 1- o sentido literal de uma expresso determinado por um conjunto de condies necessrias e suficientes. 2- o sentido literal de uma frase deve determinar as condies de verdade dessa frase. 3- o sentido de uma frase deve ser determinado pelos sentidos de seus componentes e pelas regras sintticas de composio. 4- o sentido literal deve ser independente do contexto. Para Dascal, seu literalismo moderado no implicaria a adoo desses critrios tradicionais associados ao sentido literal. Em primeiro lugar, em vez do sentido determinar ou ser determinado, Dascal prefere relativizar e adotar o termo contribuir ou parcialmente determinado. Alm disso, Dascal, ao descartar o critrio de composicionalidade adotado por defensores mais radicais do sentido 32

literal (como, por exemplo, Katz, 1973), adota a noo de sentido convencionalizado como sendo a mais adequada a uma conceituao moderada de sentido literal. Isto , no precisaramos decompor a frase em seus componentes semnticos para podermos apreender seu sentido literal. Para Dascal, o sentido literal, visto dentro dessa perspectiva poderia ser definido como o poder autnomo do signo que lhe foi conferido por convenes e hbitos, atravs do qual esse mesmo signo pode acionar, redirecionar e guiar o processo interpretativo (1989, p. 256). Seria devido estabilidade do signo e a sua autonomia face ao contexto que mensagens podem ser transmitidas e compreendidas com bastante sucesso. Assim, Dascal condena o que ele denomina contextualismo radical, defendido por Gibbs, pois esse implicaria a possibilidade de adivinhao de uma expresso a partir do contexto, cada vez que essa fosse usada. Adiante, essa possibilidade ser contestada, mesmo dentro de uma viso contextualista que ser ento defendida. Searle (1979) tambm prope uma conceituao moderada de sentido literal. Em um artigo que trata exclusivamente da explicitao de sua noo de sentido literal, o filsofo desenvolve seu argumento, partindo de uma crtica a um dos pressupostos bsicos da viso cannica de literalidade: a independncia do sentido em relao ao contexto. Searle deixa claro, no entanto, que seu pensamento no exclui os outros aspectos da viso tradicional, principalmente a distino entre sentido da sentena e sentido do enunciado.9 A suposta autonomia do signo perante o contexto , ento, rejeitada por Searle, que acredita que o sentido de uma frase s pode ser compreendido a partir de um conjunto de pressupostos bsicos ou pressupostos de fundo (background assumptions). Como sugere esse autor:[...] a viso tradicional erra ao apresentar a noo de sentido literal de uma frase como uma noo independente do contexto. Argumentarei que para um grande nmero de casos, a noo de sentido literal de uma frase s tem aplicao a partir de um conjunto de background assumptions que no fazem parte de maneira alguma da estrutura semntica de uma frase (SEARLE, 1979, p. 120).9

Como veremos frente, manter essa distino essencial para a teoria de Searle uma vez que ela atrelada distino entre semntica e pragmtica, essa ltima a disciplina na qual o filsofo desenvolve toda sua filosofia de linguagem.

33

Para efeito de ilustrao, Searle apresenta a frase: O gato est no tapete, cujo sentido literal somente poderia ser estabelecido a partir de pressupostos bsicos como, por exemplo, o de que o gato e o tapete no esto flutuando no espao, e de que foras gravitacionais estariam operando. Essas assunes fariam parte da competncia lingstica do falante e seriam, portanto, inconscientes. Searle no acredita na possibilidade de explicitar todos os pressupostos necessrios determinao do sentido literal de uma sentena. Afinal, eles seriam to fundamentais e j to impregnados no significado, que seria impossvel perceb-los. Para isso, seria necessrio um esforo consciente para traz-las superfcie e examin-las e, quando isso acontece produz um enorme desconforto e insegurana em filsofos, lingistas e psiclogos (SEARLE, 1979, p. 133). importante notarmos que esses pressupostos no estariam na estrutura semntica da frase nem no contexto da enunciao, que estabeleceria o valor pragmtico do enunciado. O nvel de contexto ao qual as assunes estariam atreladas seria o da competncia comunicativa do falante. Nesse sentido, a proposta de Searle pode ser, pelo menos em um aspecto importante, relacionada com a de Rumelhardt (1993), que sugere que o sentido s pode ser determinado a partir de um esquema que seria uma representao abstrata de um conceito generalizado. At que ponto o pressuposto bsico de Searle no pode ser visto como parte de um esquema associado a uma determinada expresso lingstica? No outro exemplo apresentado por Searle, D-me um hambrguer ao ponto, com ketchup e mostarda, mas com pouco picles, a natureza desses pressupostos envolveria no a fora pragmtica do enunciado (um pedido ou uma ordem, a relao fregus-atendente e outros fatos ligados ao contexto discursivo propriamente dito), mas talvez a forma do hambrguer, seu tamanho, o fato de ele ser comestvel etc. Isso poderia sugerir que esses pressupostos fazem parte de um esquema sem, no entanto, esgot-lo. A noo de esquema usada por Rumelhardt iria alm desses pressupostos bsicos, determinantes do sentido literal (para Searle) j que incluiria conhecimento tanto enciclopdico quanto pragmtico. O contexto, nesse caso, abrangeria outros nveis de significao. A terceira defesa do sentido literal desenvolvida por Possenti, que parte de um questionamento do que ele v como uma tendncia modernosa de se negar a existncia do sentido literal: 34

[...] h consenso total sobre o fato de que h sentidos no literais, chamados de metafricos, implcitos, indiretos, produzidos no instante mesmo da enunciao etc. E, talvez, tambm o literal. Por estranho que parea, no bvio para todos que ele existe. Em geral, para quem admite sentidos literais, admitir os no literais no problemtico. O inverso nem sempre verdadeiro. Isto , para alguns, no s o sentido literal no o nico, como no existe de forma alguma. Esta posio tem, alm do mais, um sabor de modernosidade (POSSENTI, 1990, p. 103).

Partindo da afirmao que ele cr no sentido literal, Possenti apresenta, de uma maneira similar de Dascal descrita acima, uma lista de propriedades que o sentido literal no precisa ter para poder ser considerado literal. a) O sentido literal no precisa ser convencional. Possenti prope que esse sentido seja visto como histrico, em vez de convencional; b) O sentido literal no precisa ser unvoco: pode haver vrios sentidos literais para um determinado termo; c) O sentido literal no precisa incluir a totalidade dos predicados de um objeto a que se refira ou de uma representao que determinada cultura cria (POSSENTI, 1990, p. 105); d) O sentido literal no precisa ser permanente nem originrio: haveria diversos sentidos em uma determinada poca; e) O sentido literal no precisa ser universal. Possenti defende ento a existncia de um objeto que outros dizem no existir10 (POSSENTI, 1990, p. 107) e que poderia ser caracterizado como a relao mais ou menos fixa dos sentidos com elementos da lngua (POSSENTI, 1990, p. 107), relao essa que, para o autor, seria de natureza histrica. O modalizador mais ou menos parece sugerir tambm o literalismo moderado apontado por Gibbs. O que podemos observar a partir dessas trs propostas de defesa do sentido literal que todas elas, de alguma forma, pressupem uma viso de sentido e, principalmente, de linguagem, caracterstica do pensamento dos autores em questo, viso essa que se10

A questo da Existncia de um construto terico como o sentido literal problematizvel sob o ponto de vista filosfico. O que significaria dizer que X existe? O prprio Possenti aponta para o fato de que o sentido literal tem algum tipo de existncia, mas no como o de uma traa que s vezes caminha na pgina de um livro j que a materialidade do sentido de outra ordem(p.107). Uma proposta para a compreenso dessa outra ordem ser apresentada no final deste estudo.

35

mostraria compatvel com as noes moderadas de sentido literal apresentadas. Em outras palavras, a defesa do literal, mesmo dentro de uma perspectiva relativizada, parece ser no s coerente, mas tambm necessria para que as teorias de linguagem desenvolvidas possam ser melhor situadas com relao viso de sentido por elas pressupostas. Apresentar explicitamente essa viso contribui de uma maneira significativa para a compreenso dos recortes tericos vis--vis o objeto-linguagem estudado. Afinal, explicitar o que entendido como sentido literal significa iluminar tambm o que entendido como linguagem e sentido de um modo geral. Dascal, por exemplo, tem grande parte de seu pensamento terico desenvolvido na lingstica, cincia que, como veremos em maiores detalhes, pressupe um alto grau de estabilidade do sentido. Assim, no de se estranhar que Dascal resista a propostas desconstrutoras do signo. Da mesma forma, sua crtica ao destaque dado metfora em determinadas reas de estudos recentes da linguagem nos parece tambm coerente. Searle, por sua vez, desenvolve a sua filosofia da linguagem a partir de noes importantes derivadas da pragmtica, entre elas a clssica distino entre frase e enunciado (sentence e utterance) e significado da frase e significado do enunciado, noes que esto no cerne de uma outra distino mais geral entre semntica e pragmtica. Como Searle poderia desenvolver a sua conhecida teoria sobre atos de fala indiretos sem pressupor a noo de sentido literal que fundamentaria sua contraparte, o ato de fala direto? Assim, defender ou explicitar a noo de sentido literal parece um procedimento fundamental para a manuteno do aparato terico que sustenta grande parte do pensamento do filsofo. Como prope Toolan:Searle insiste, como talvez um terico dos atos de fala realmente devesse faz-lo, que sentidos literais e contedos semnticos so seguros e confiveis, e que seriam as background assumptions (e, portanto, as condies de satisfao dos vrios atos de fala que usam esses sentidos literais) que variariam. (TOOLAN, 1996, p. 76)

J no caso de Possenti, a defesa da condio histrica do sentido literal, reiterada vrias vezes em seu artigo, mostra-se bastante coerente com um recorte terico caracterstico da anlise de discurso da linha francesa. A crtica noo de sentido convencional baseada em uma noo de conveno, rejeitada pelo autor, que supe uma sociedade capaz de acordos entre iguais, isto , uma sociedade em 36

que cada um ocupa seu lugar natural (POSSENTI, 1990, p. 104). Para esse autor, o sentido resulta de disputas e no de acordo: assim como se disputam bens materiais, disputam-se bens simblicos, e um sentido que fica um sentido de alguma maneira imposto, nunca pactuado (POSSENTI, 1990, p. 104). O resultado dessa disputa, isto , o sentido que fica, estaria inscrito na linguagem, apesar de no ser permanente (haveria sempre novas disputas), universal (diferentes histrias e culturas implicam diferentes disputas), unvoco (poderia haver diferentes sentidos para cada termo), nem absolutamente preciso. A contextualizao do sentido estaria em sua dependncia da histria, ele, porm, pelo menos do ponto de vista sincrnico, estvel por j estar inscrito historicamente na linguagem. A abordagem histrica da anlise do discurso pressupe essa inscrio e retira da situao enunciativa uma possibilidade de fluidez dos sentidos. Dessa forma, Possenti, como Dascal, estaria rejeitando a linha contextualista que parece assumir um sentido mais autnomo em relao determinao lingstica e histrica do significado. Essas trs vises de sentido literal sugerem ento uma forte influncia do paradigma a partir do qual uma determinada viso de linguagem desenvolvida. Um outro exemplo desse tipo de influncia a conceituao de sentido literal proposta por Sperber e Wilson.11 Para os autores, um enunciado, no seu papel de expresso interpretativa do pensamento de um falante, estritamente literal se tiver a mesma forma proposicional daquele pensamento (1995, p. 233). Como os autores propem o critrio de relevncia tima para uma teoria de linguagem enquanto comunicao, de esperarmos que a noo de sentido literal desempenhe algum papel dentro desse quadro terico geral. Na busca de relevncia, o falante dever usar uma linguagem mais ou menos direta, que seja mais ou menos fiel a seu pensamento; em outras palavras, mais ou menos literal. Um dos exemplos sugeridos pelos autores o caso de um falante que, sabendo que recebe como salrio a quantia de $797,32 pode dizer que recebe exatamente essa quantia (Recebo $797,32,) ou pode arredondar dizendo: Recebo $800. O primeiro enunciado seria mais literal do que o segundo, pois representaria uma expresso 100% fiel ao pensamento. O uso de uma ou de outra forma iria depender da relevncia de cada uma situao enunciativa.

11

A noo de sentido literal proposta por Sperber e Wilson no foi discutida juntamente com as de Dascal, Searle e Possenti por no ter sido apresentada pelos autores como uma defesa explcita da literalidade. Sperber e Wilson apenas descrevem e exemplificam brevemente o sentido literal para ilustrar o funcionamento da busca da relevncia no processo comunicativo.

37

Seria ento razovel generalizar a idia de que toda teoria lingstica pressuporia ou teria implicaes diretas para uma viso sobre o sentido literal. Na maior parte desses estudos, porm, essa viso raramente explicitada, como foi feito pelos autores discutidos acima. O trabalho de Toolan (1996), que ser visto frente, representaria um esforo nessa direo, uma vez que o lingista desenvolve toda sua teoria integracionista da linguagem somente a partir de uma discusso detalhada sobre o sentido literal e o sentido figurado. De um modo geral, no entanto, a conceituao de sentido literal bastante problemtica pois, como sugerem Pollio, Smith e Pollio:o maior problema consiste na maneira pela qual a linguagem e o mundo se relacionam entre si e, enquanto outras conseqncias epistemolgicas surgem a partir de uma tentativa de se dar uma definio precisa de literal, nenhuma definio inequvoca facilmente proposta sem trazer consigo assunes sobre conceitos, linguagem e o mundo (POLLIO; SMITH; POLLIO, 1990, p. 152).

Dessa forma, no seria possvel propor uma definio para sentido literal que no tenha conseqncias para uma viso de linguagem e realidade e, dentro do mesmo raciocnio, no seria possvel manter uma viso de linguagem que no assumisse uma viso implcita de sentido literal.

Sentido literal e o pressuposto da literalidadeAs vrias conceituaes de sentido literal at aqui discutidas podem ser assim resumidas: por um lado, haveria a noo mais ortodoxa de sentido literal na qual ele visto sob uma perspectiva composicional, isto , o sentido literal de uma expresso lingstica seria a combinao dos sentidos de seus componentes. De acordo com essa viso, o sentido literal seria auto-suficiente por no depender do contexto de enunciao. Assim, teria um carter unvoco, estvel, fixo, transcendente, e, sobretudo, fundador. A realidade psicolgica do sentido literal no foi ainda comprovada empiricamente. Apesar das pesquisas nessa rea serem recentes e pouco conclusivas, elas parecem indicar uma compreenso automtica de sentidos considerados no literais, sem uma passagem pelo literal. Isso, porm, se no refuta necessariamente a possibilidade da existncia do sentido literal, certamente no a confirma. A falta de evidncias empricas, no entanto, no impede que o sentido literal seja defendido por tericos da linguagem, mesmo que essa defesa implique uma reconceituao moderada. Mesmo dentro 38

de perspectivas menos ortodoxas, podemos identificar os seguintes aspectos no conceito de sentido literal que parecem ainda prevalecer: a) o sentido literal independente do contexto; b) o sentido literal historica ou convencionalmente determinado, mas sempre inscrito na linguagem; c) o sentido literal pode se opor ao sentido do falante em uma situao enunciativa; d) o sentido literal se ope a determinados sentidos no literais (sentido figurado, indiretividade etc.). Podemos observar tambm que a conceituao de sentido literal no independente de uma viso mais geral sobre sentido e linguagem. Alm disso, o prprio processo de conceitu-lo implica, de uma certa forma, defend-lo ou contest-lo, mesmo que para isso tenhamos de adaptar a conceituao a essa viso geral de linguagem. Dessa forma, no de se estranhar que o debate em torno do sentido literal ganhe outros contornos em reas fora da lingstica, nas quais a questo da natureza do sentido de um modo geral representa um aspecto importante a ser tratado. Independentemente desse debate, no podemos negar que nosso discurso cotidiano est repleto de expresses que parecem evidenciar o que foi chamado por Arrojo e Rajagopalan (1992) de noo de literalidade ou metfora primordial, isto , a crena ou o pressuposto do sentido literal. Se assumirmos uma viso de linguagem, em que essa desempenhe um papel fundamental na construo social do real,12 manifestaes metalingsticas como O que essa palavra/ esse texto quer dizer? e Qual o significado desse termo? representariam dois exemplos bastante comuns que refletiriam, reproduziriam e legitimariam a crena na existncia de um significado inerente no somente palavra mas tambm ao texto. A prpria lgica de nossa linguagem ao se voltar para si mesma conduziria sua objetivao: a linguagem, ao se tornar seu prprio objeto, assume muitas vezes o pressuposto da literalidade ou da estabilidade do significado.

12

Referimo-nos particularmente noo de construo social do real defendida por Arbib e Hesse. Segundo essa viso, o indivduo constri a sua prpria realidade a partir de sua interao com a sociedade que, por sua vez, teria as suas prprias realidades construdas (conceitos socialmente aceitos que incluem desde teorias cientficas j assumidas, at valores, crenas, mitos e religies que constituem a rede de significaes da vida social) (1986, p.4). No correr desta discusso, veremos como a linguagem e, em particular, a metfora, participam desse processo por meio do qual o real construdo socialmente.

39

A crena na estabilidade do sentido, e, por conseguinte, na literalidade, no se aplicaria somente palavra ou ao nome. A sacralizao dos textos bblicos na Idade Mdia contribuiu em parte para a viso ainda hoje dominante (principalmente na prtica pedaggica) de que h um significado estvel uma essncia no texto escrito. A esttica da recepo, cujo terico mais importante, Iser (1979), juntamente com os chamados ps-estruturalistas, como Fish (1980, 1989) tem atacado sistematicamente essa viso monoltica do texto enfatizando a relao texto-leitor como fator determinante na significao. No primeiro caso, o leitor recriaria o sentido mediante seu repertrio e no segundo, produziria o sentido mediante sua experincia como membro de uma determinada comunidade interpretativa. No entanto, a crena na literalidade, isto , a crena na possibilidade de um sentido literal, objetivo e transcendente a seu uso no contexto parece resistir a qualquer tentativa mais rigorosa de um frame conflict (um conflito de ordem conceitual no qual haveria uma tentativa de ruptura com algum quadro conceitual ou quadro de referncia predominante ou hegemnico (REDDY, 1993). Afinal, o prprio teorizar sobre a linguagem, com suas formas de discurso caractersticas a metalinguagem no implicaria necessariamente a busca de um sentido para os conceitos problematizados? dentro dessa perspectiva que a questo da literalidade ser tratada nesse estudo: uma parte integrante do pensamento e do discurso metalingstico ou metadiscursivo. A hiptese a ser aqui desenvolvida ser a de que, ao refletir sobre a linguagem, o homem parte para a busca de um sentido estvel, sentido esse que tanto pode ser encontrado em seu conhecimento pr-terico, a partir da experincia de linguagem ordinria, como em seu contato mais direto com a metalinguagem e seus construtos que permeia o discurso terico. Em outras palavras, o pressuposto da literalidade representaria um fator intrnseco ao discurso metalingstico e at mesmo, de um modo geral, epistemologia dos estudos da linguagem. Assim, procuraremos examinar a seguir como esse pressuposto no s subjazeria maior parte das teorias lingsticas e filosficas sobre o significado, mas tambm seria nutrido por essas.

40

O PRESSUPOSTO DA LITERALIDADENA LINGSTICA E NA FILOSOFIA

A cincia pode classicar e nomear os rgos de um sabi, mas no pode medir seus encantos. Manoel de Barros

IntroduoAs diversas conceituaes de sentido literal tm, como vimos, em comum a noo do que Derrida (1973) chama signicado transcendental. Por menos rgido que o conceito de sentido literal se apresente nessas conceituaes (a partir de um literalismo moderado), haveria sempre um pressuposto que pudesse garantir a estabilidade e a autonomia do sentido perante o contexto de uso e ao prprio sujeito. Assim, o sentido poderia ser caracterizado como um pressuposto intrnseco ao prprio processo de re exo sistemtica sobre a linguagem. Em outras palavras, ao fazer da linguagem e do sentido objetos de investigao, o olhar cient co os literaliza: sem estabilidade no haveria objeto. As origens do processo de literalizao do sentido poderiam ser buscadas na passagem do estgio de simples vivncia lingstica para o estgio de re exo sobre a lngua (colocao da lngua como objeto de investigao). Segundo Neves, essa passagem, que se acredita ter ocorrido na Grcia antiga, condiciona-se, sob um ponto de vista histrico, a um fato fundamental que a separao entre lngua e realidade (1994, p. 2). Segundo a autora, essa re exo estaria tambm associada dicotomizao entre o falar e o agir, j presente explicitamente nos poemas homricos, e dissociao presente no discurso dos lsofos entre o ser e a linguagem (o ser, uno, dito de diferentes maneiras pelos homens (NEVES, 1994, p. 4). Esse olhar sobre a linguagem alcanaria uma autonomia ainda maior na sofstica que condicionava a e cincia do discurso persuasivo a um grande conhecimento da lngua como ferramenta retrica. Os so stas no problematizaram a linguagem como objeto de re exo los ca nem 41

tentaram desenvolver qualquer teoria do significado: a linguagem era convencional e como conveno estava a servio do homem. A metafsica platnico-aristotlica viria retirar a linguagem de sua dimenso plural como instrumento social de natureza puramente convencional, para inseri-la em um plano de idealizao: a linguagem de interesse para a filosofia seria a linguagem ideal que teria relao direta com a essncia do real e com a verdade e no o discurso convencional dos homens. A relao do nome com a coisa, enquanto conveno, no levava ao conhecimento da essncia do real, que somente seria apreendido pelo pensamento no-discursivo: as afeces da alma. Por essa razo, a linguagem no poderia levar ao conhecimento uma vez que o conhecer algo lingisticamente implicaria o uso de outros termos cuja definio implicaria outros termos, e assim por diante. No entanto, mesmo sem privilegiar a linguagem como objeto de reflexo, o paradigma epistemolgico dominante na tradio clssica, ao objetivar o real e prov-lo de uma essncia universal, separa-o do homem e, conseqentemente, de sua linguagem, propiciando assim a noo de um sentido inerente s palavras, independente do seu contexto de uso. Qualquer outro sentido manifestado no real seria apenas um desvio, uma figura de linguagem. Dentro dessa perspectiva, o nosso objetivo, aqui, examinar como o pressuposto da literalidade, ou a literalizao do sentido, seria subjacente grande parte das teorias lingsticas e a diversas linhas filosficas. No nossa proposta, entretanto, desenvolver uma anlise detalhada dos vrios aspectos dessas linhas tericas, nem fazer uma reviso da vasta literatura envolvida. Na verdade, pretendemos basicamente investigar aqui a natureza e a dimenso da literalizao do sentido como fator intrnseco a diversas teorizaes sobre a linguagem, tanto do ponto de vista lingstico quanto do filosfico. Literalidade nos estudos da linguagem e do significado A crena no sentido literal j foi conceituada como metfora primordial. (ARROJO; RAJAGOPALAN, 1992). Nessa viso, o sentido literal, que associado a uma estabilidade de significado inerente palavra ou ao enunciado, que supostamente preserva a linguagem da interferncia de quaisquer contextos e interpretaes (ARROJO; RAJAGOPALAN, 1992, p. 47), representa um pressuposto que permeia a maior parte das teorias da linguagem, as quais se baseiam na esta42

bilidade do sentido para estabelecerem as regularidades lingsticas que tanto buscam. A lingstica legitimou-se enquanto cincia da linguagem dentro dos moldes positivistas de cincia, delimitando, assim, seu objeto de estudo a seu sistema formal, abstrato e regular a langue. Para isso, a linguagem seria desprovida de sua condio de fenmeno social, contextualizado e construtor da prpria subjetividade, uma vez que essa sua dimenso no caberia nos moldes tericos estabelecidos. Em outras palavras, na lingstica dita estruturalista (LYONS, 1995), a linguagem foi literalizada (objetificada), para poder ser submetida a um tratamento analtico epistemologicamente aceitvel. Dentro do paradigma saussureano, o signo enquanto construto terico iria legitimar o papel da literalidade na conceituao da linguagem. A eterna busca do signo the pursuit of signs (CULLER, 1981) , leva a lingstica a tornar-se uma grande metalinguagem que pode ter, como a semitica, a funo de descrever a ambgua e obscura linguagem da literatura em uma metalinguagem sbria e inequvoca (p. xi). A lingstica no trabalha diretamente com a obscuridade da literatura, mas se depara com a mesma problemtica em relao fugacidade, transitoriedade, polifonia, subjetividade, historicidade e pluralidade da linguagem ao tentar transform-la em um objeto estvel, sbrio e inequvoco. A teoria gerativa transformacionista de Chomsky pressupe tambm a utilizao de moldes formalistas para estudar a linguagem. Apesar da incluso de um sujeito falante, esse foi idealizado como o falante ideal de uma comunidade de fala homognea, enquanto a linguagem foi tambm retirada de situaes reais de uso. O estudo da lngua passa a ser assim um estudo da competncia lingstica, no qual o significado cede lugar sintaxe e procura da estabilidade, da norma, da estrutura universal. A literalidade aqui no estaria no significado em si, porque esse excludo, mas na prpria busca da estrutura eterna (e, portanto, inata) e transcendente (e, portanto, universal) da linguagem; nas palavras do prprio Chomsky, a busca de princpios, condies e regras que constituem elementos ou caractersticas de todas as linguagens humanas (1968, p. 36). Assim, poderamos esperar que o formalismo caracterstico da lingstica estruturalista no fosse estendido ao estudo do significado. Afinal, a lingstica dita dura exclui a semntica justamente pela natureza multidimensional e plural de seu objeto: o significado. A 43

prpria controvrsia em torno da concepo do que seria significado j aponta para a dificuldade da definio de um objeto de estudo dessa natureza e, conseqentemente, de seu estudo sistemtico. Haveria, por exemplo, o significado como invariante semntico, (JACKOBSON, 1988), como unidade cultural (ECO, 1974), como representao mental (JACKENDOFF, 1992), apenas como referncia (NELSON, 1992), como sentido e referncia (FREGE, 1966), como referncia, significncia, aquilo que o ato mental abrange, ou o conhecimento enciclopdico sobre o conceito (HEGENBERG, 1974) ou um conjunto determinado de interpretaes de um smbolo (SPERBER, 1974). O clssico estudo de Ogden e Richards (1995) identifica 16 diferentes significados para significados:uma propriedade intrnseca, uma relao nica e no analisvel com outras coisas, as outras palavras anexadas a uma palavra em um dicionrio, a conotao de uma palavra, uma essncia, uma atividade projetada em um objeto, um acontecimento intencionado, um desejo, o lugar de alguma coisa em um sistema, as conseqncias prticas de uma coisa na nossa experincia futura, as conseqncias tericas envolvidas ou implicadas por uma assero, emoo suscitada por algo, aquilo que realmente relacionado com um signo por uma relao escolhida, os efeitos mnemnicos de um estmulo, alguma outra ocorrncia para a qual os efeitos mnemnicos de uma ocorrncia sejam apropriados, aquilo que um signo interpretado como tal, o que algo sugere, aquilo a que o usurio de um smbolo deveria estar se referindo, aquilo que um usurio de um smbolo acredita estar se referindo, aquilo a que o interpretante de um smbolo se refere, acredita estar se referindo, acredita que o usurio esteja se referindo (OGDEN; RICHARDS, 1995, p. 186-187).

Sperber resume assim a questo em torno da polissemia do termo significao (como significado): a palavra tem tantas significaes que um Deus-nos-acuda quando no a podemos utilizar. Diz-se indiferentemente que a palavra lua significa a lua, que pobre diabo! significa desprezo, que a febre significa doena e que a eleio do novo presidente no significa nada de bom. Confunde-se significao e referncia, significao e conotao, significao e diagnstico, significao e prognstico, e a gente aceita. Mas o que se pode confundir sem grande dano no linguajar comum deve ser cuidadosamente distinguido no enunciado filosfico ou cientfico (SPERBER, 1974, p. 20)

44

Com efeito, a confuso terminolgica e conceitual parece apenas refletir a pluralidade de um fenmeno que parece no caber em uma ntida e delimitada representao mental. Essa dimenso rica em possibilidades significativas fez e ainda faz com que o significado representasse uma palavra suja para os lingistas (ULLMANN, 1987, p. 148) e uma rea bastante negligenciada pelos estudos lingsticos. Como afirma Jackobson:os lingistas fizeram o impossvel para excluir a significao e todo recurso significao, da lingstica; o campo da significao permanece uma terra de ningum. Esse jogo de esconde-esconde deve terminar. Por anos e dcadas temos lutado no sentido de anexar os sons da fala fonologia. Devemos agora abrir uma segunda frente: estamos diante da tarefa de incorporar as significaes lingsticas cincia da linguagem (JACKOBSON, 1988, p. 33).

Assim, a semntica incorporada cincia da linguagem ressurge dentro dos moldes dessa mesma cincia. Para isso, a noo de significado s pode ser introduzida na cincia aps ter sido suficientemente circunscrita (SP