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LETRAMENTO DIGITAL COMO POSSIBILIDADE DE VIVER A EXPERIÊNCIA ERRANTE DAS IDENTIDADES SOCIAIS Por: Petrilson Alan Pinheiro da Silva (Programa Interdisciplinar em Lingüística Aplicada) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa Interdisciplinar de Lingüística, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Professor Doutor Luiz Paulo da Moita Lopes. UFRJ / Faculdade de Letras Rio de Janeiro, Dezembro de 2007

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LETRAMENTO DIGITAL COMO POSSIBILIDADE DE VIVER A EXPERIÊNCIA ERRANTE DAS IDENTIDADES SOCIAIS

Por: Petrilson Alan Pinheiro da Silva

(Programa Interdisciplinar em Lingüística Aplicada)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa Interdisciplinar de Lingüística, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Professor Doutor Luiz Paulo da Moita Lopes.

UFRJ / Faculdade de Letras Rio de Janeiro, Dezembro de 2007

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Pinheiro, Petrilson Alan Letramento digital como possibilidade de viver a experiência errante das identidades sociais / Petrilson Alan Pinheiro. - Rio de Janeiro: UFRJ/ CLA, 2007. xiii, 204 f.: il.; 29,7 cm. Orientador: Luiz Paulo da Moita Lopes. Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa Interdisciplinar de Lingüística Aplicada, 2007.

Referências Bibliográficas: f. 186-193. 1. Visão socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais. 2. (re)Construção da identidade social de gênero. 3. Letramento digital. I. Moita Lopes, Luiz Paulo. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa Interdisciplinar de Lingüística Aplicada. III. Título.

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LETRAMENTO DIGITAL COMO POSSIBILIDADE DE VIVER A EXPERIÊNCIA ERRANTE DAS IDENTIDADES SOCIAIS

Petrilson Alan Pinheiro da Silva

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa Interdisciplinar de Lingüística Aplicada, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Lingüística Aplicada.

BANCA EXAMINADORA:

__________________________________________________ Professor Doutor Luiz Paulo da Moita Lopes - UFRJ

Orientador

__________________________________________________ Professora Doutora Branca Falabella Fabrício – UFRJ

__________________________________________________ Professora Doutora Viviane Maria Heberle – UFSC

__________________________________________________ Professora Doutora Myriam Brito Correa Nunes - UFRJ

Suplente

__________________________________________________

Professora Doutora Liliana Cabral Bastos – PUC-Rio Suplente

Rio de Janeiro Dezembro de 2007

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Ao meu filho, cuja existência passou a me proporcionar um novo projeto de vida emocionante e desafiador: o de ser pai.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, por sempre me incentivarem a lutar por aquilo que acredito valer

a pena.

Ao Professor Luiz Paulo da Moita Lopes, por seus ensinamentos e orientações

ao longo de minha vida acadêmica. Sou muito grato por sua paciência, confiança e

pelos constantes incentivos para que eu pudesse me tornar um pesquisador, um

profissional e um ser humano melhor. Através de sua generosidade em querer

constantemente compartilhar seus conhecimentos, ele me ensinou que, como sempre

gostou de dizer, “o conhecimento só vale a pena quando é compartilhado com os

outros”. Você, Luiz, mais do que meu orientador, se tornou meu amigo.

À Professora Branca Falabella Fabrício, co-responsável pelo meu crescimento

como pesquisador ao longo do mestrado. A ela agradeço não só por ser um exemplo

de dedicação profissional como professora e pesquisadora, mas, principalmente, por

sua incansável vontade e disposição em me incentivar e me ouvir sempre que a ela

recorri, mostrando-se sempre solícita em querer me ajudar. Muito obrigado, Branca.

À Professora Myriam Brito Correa Nunes, pelo seu profissionalismo, ética,

vontade, paixão e bom humor que sempre estiveram presentes nas suas aulas de

mestrado e que muito contribuíram para meu amadurecimento como pesquisador e

professor.

À Professora Viviane Maria Heberle, por seu pronto aceite em participar de

minha banca examinadora, pelo seu conhecimento e profissionalismo dos quais que já

tive a grande oportunidade de presenciar e, sobretudo, por sua simpatia e humildade

que sempre demonstrou desde que a conheci.

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À Professora Liliana Cabral Bastos, ao só por aceitar ser suplente na minha

banca examinadora, mas, sobretudo, por ter sido sempre um exemplo de dedicação,

que já pude presenciar em simpósios e seminários dos quais participamos juntos.

À CAPES, pela bolsa de mestrado, que muito contribuiu para que eu pudesse

me dedicar à elaboração desta pesquisa.

Ao meu tio, Felipe, que sempre se mostrou muito solícito para me ajudar nesta

dissertação. Muito obrigado, Fil!

Aos meus irmãos (Celso e Edson) e aos meus queridos avós.

Ao amigo Fábio Ferrari, por ter me incentivado nessa grande empreitada que foi

o mestrado.

Aos colegas de mestrado e de iniciação científica do Salínguas (em especial, à

Lêda, Ana Paula, Milena, Rodrigo, Tatiana, Thiago, Thayse, Aline, Jucilene, Natália,

Douglas e Vitor), que me proporcionaram não só momentos de construção de bons

conhecimentos, mas, sobretudo, de alegria e companheirismo ao longo desses dois

anos. Muito obrigado a todos!

À Daniele, secretária do Salínguas, que sempre foi muito prestativa nos

momentos que recorri a ela, além de ser uma pessoa muito divertida. Continue assim!

À Bianca, por sempre ter sido paciente e ter me apoiado quando muito precisei.

Você sabe o quanto é especial para mim!

E, por fim, ao sujeito desta pesquisa, sem o qual esta dissertação não seria

possível. Você foi mais que um simples participante; você foi a parte que colaborou e

que serviu de referência para dar vida a todo este trabalho. Muito obrigado!

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REINVENÇÃO (Cecília Meireles)

A vida só é possível

reinventada.

Anda o sol pelas campinas e passeia a mão dourada

pelas águas, pelas folhas... Ah! tudo bolhas

que vem de fundas piscinas de ilusionismo... - mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,

a vida só é possível reinventada.

Vem a lua, vem, retira

as algemas dos meus braços. Projeto-me por espaços

cheios da tua Figura. Tudo mentira! Mentira

da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço... Só - no tempo equilibrada, desprendo-me do balanço

que além do tempo me leva. Só - na treva,

fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida, a vida só é possível

reinventada.

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RESUMO

O LETRAMENTO DIGITAL COMO POSSIBILIDADE DE VIVER A EXPERIÊNCIA ERRANTE DA IDENTIDADE SOCIAL DE GÊNERO

Petrilson Alan Pinheiro

Orientador: Luiz Paulo da Moita Lopes

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa Interdisciplinar de

Lingüística Aplicada, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Lingüística Aplicada.

O objetivo desta dissertação é o de realizar um estudo de caso centrado em um

menino de dezessete anos que se constrói sócio-discursivamente como uma menina no ciberespaço por meio de práticas de letramento digital. Para tanto, tomarei como construto teórico central uma visão socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais (MOITA LOPES, 2003), cuja base epistemológica está principalmente voltada para a preocupação com o que fazemos com nossas vidas e com as dos outros quando utilizamos a linguagem. Nessa concepção, compreende-se que as relações de sujeitos e de sentidos, nas quais as identidades sociais são constituídas, são múltiplas e variadas, isto é, são entendidas como heterogêneas, contraditórias e em fluxo, constituintes das práticas discursivas nas quais atuamos (ORLANDI, 2001). Quanto à metodologia de pesquisa, adoto uma visão interpretativista de pesquisa, de teor etnográfico, em cuja perspectiva se reconhece o conhecimento como algo construído na interpretação da linguagem (MOITA LOPES, 1994). Como material de análise, construí dois corpora: uma entrevista com o meu sujeito de pesquisa, e algumas conversas com seus amigos virtuais, realizadas nas salas de bate-papo da Internet, onde ele (re)constrói sua identidade social de gênero. Por meio da análise dos dados, é possível refletir acerca do fato de que uma pessoa, ao se constituir como homem ou mulher, em especial no ciberespaço, não está expondo sua natureza, uma suposta essência do seu ser que pré-existe ao discurso, mas está se interpretando e se construindo de uma forma que a permita criar sentidos no mundo social, o que o possibilita experimentar outros modos de viver a multiplicidade da experiência humana. PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Identidades Sociais; Gênero; Letramento Digital; Ciberespaço.

Dezembro de 2007 Rio de Janeiro

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ABSTRACT

DIGITAL LITERACY AS A POSSIBILITY OF LIVING THE ERRANT EXPERIENCE OF THE SOCIAL GENDER IDENTITY

Petrilson Alan Pinheiro

Orientador: Luiz Paulo da Moita Lopes

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa

Interdisciplinar de Lingüística Aplicada, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em Lingüística Aplicada.

The objective of this dissertation is to develop a case study of a seventeen-year-old boy who constructs himself as a girl on cyberspace by means of digital literacy practices. To do so, I will take as a central theoretical construct a socioconstructivist view of discourse and social identities (MOITA LOPES, 2003), whose epistemological basis is concerned with what we do with our lives and with other people’s when using language. In such a view, it is understood that subject relations, in which social identities are constituted, are multiple and varied, namely, they are understood as heterogeneous and contradictory, constituent of the discursive practices in which we participate (ORLANDI, 2001). As for the research methodology, I adopt an interpretativist view of research with an ethnographic flavor which understands that knowledge is something constructed in language interpretation (MOITA LOPES, 1994). As for the data analysis, I have constructed two corpora: an interview with my research subject, and some conversations between him and his virtual friends, carried out in virtual chat rooms, where he (re)constructs his social gender identity. By means of the data analyses it is possible to ponder that a person, when constituting her/himself as a man or a woman, in special on cyberspace, is not exposing her/his nature, a supposed essence of his/her being which pre-exists discourse, but s/he is interpreting and constructing her/himself in a way which allows her/him to create meanings in the social world, which enables him to experience other means for living the multiplicity of human experience. KEYWORDS: Discourse; Social Identities; Gender; Digital Literacy; Cyberspace.

December 2007 Rio de Janeiro

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LISTA DE CONVENÇÕES E ABREVIATURAS

Lista adaptada de MARCUSCHI (1991)

/ ..............................................................................................................pausa breve // .............................................................................................................pausa longa :: ..............................................................................................alongamento da vogal [ .............................................................................................sobreposição de vozes (( )) ................................................................................comentários do pesquisador /.../ ......................................................................................... corte na produção oral P .............................................................................................................Pesquisador

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 14

2. DISCURSO COMO PRÁTICA SOCIAL 24

2.1. Um olhar reflexivo para a contemporaneidade 24

2.2. A visão socioconstrucionista do discurso: o foco na alteridade 32

2.3. Discurso e poder: uma visão foucaultiana 37

2.4. Categorias de análise do discurso: o posicionamento discursivo e as

pistas de contextualização

43

3. A IDENTIDADE SOCIAL DE GÊNERO 50

3.1. A temática das identidades sociais 50

3.2. O gênero como identidade social 53

3.3. Gênero e poder 61

4. LETRAMENTOS 65

4.1. Letramento com prática social 65

4.2. O letramento digital 71

5. O CIBERESPAÇO 80

5.1. O conceito de ciberespaço 80

5.2. O Ciberespaço e o letramento digital: Novas formas de (re)pensar e

redefinir as construções identitárias

85

6. CONTEXTO E METODOLOGIA DE PESQUISA 95

6.1. O(s) Sujeito(s) de uma pesquisa: buscando respostas para a eterna

pergunta sobre o quê pesquisar

95

6.2. Uma breve discussão sobre o paradigma interpretativista de pesquisa 99

6.3. A pesquisa Interpretativista no estudo de caso: observando e 103

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participando do Contexto e da Metodologia de pesquisa

6.3.1. O contexto de pesquisa 103

6.3.1.1. Os sujeitos da pesquisa 103

6.3.1.2. As salas de bate-papo do ciberespaço 105

6.3.2. A metodologia de pesquisa 109

7. ANÁLISE DOS DADOS 114

7.1. A (re)construção da identidade social de gênero de um menino por meio

de práticas de letramento digital

114

7.1.1. A Entrevista 116

Seqüência 1: “na Internet, a gente tem a chance de ser, assim, tipo uma

outra pessoa. Ser coisas que na vida real a gente, às vezes, não pode ser”

117

Seqüência 2: “eu às vezes fico muito irritado porque se você, tipo, não tem

uma namorada, então você é gay, quer dizer, ah, assim, todo mundo fica

pensando que você é gay”

121

Seqüência 3: “As meninas me adoram! Elas gostam muito de mim. Assim,

elas me respeitam e não têm vergonha de falar as coisas comigo”

125

Seqüência 4: “Um dia, por causa da foto que eu mostrei pra uma amiga na

Net, ela disse que um amigo dela viu a foto e aí ele quis muito me conhecer”

129

7.1.2. As conversas nas salas de bate-papo do ciberespaço 134

Excerto 1: “to doida pra botar piercing mas minha mãe fica me enchendo!!” 135

Excerto 2: “sei lá gosto de caras que falem coisas interessantes. Naum

gosto de cara machão, sabe? Gosto assim de caras que sabem conversar”

139

Excerto 3: “acho q naum precisa ser um Brad pit, mas pelos menos tem q

ser gatinho e educado!!!”

144

Excerto 4: “o gatinho é td de bom!!! ai, ja to azarando ele tem um tempo,

mas não sei. me ajuda, amigaaa!!!”

149

Excerto 5: “ela me disse que ele era só ficante. mas se sou ela ficava direto

com ele!!!”

153

Excerto 6: “vc só vai saber se namorar com ele. tem q tentar. To com inveja 156

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de vc!!!”

Excerto 7: “eu acho,assim que nem todo homem é safado. Naum sei. tem

mulher mais safada do que homem”

161

Excerto 8: “ai, vc ta sendo machista!!! só porque eu sou mulher vc naum

quer falar!”

164

Excerto 9: “ai eles tiveram uma briga e vc sabe como é “gay” quando brigam

é porque a coisa ta feia”

168

7.2. Respondendo as questões de pesquisa 172

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS 179

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 186

ANEXOS 194

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14

1. INTRODUÇÃO

“Tornamo-nos conscientes de que o ‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não tem a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira que age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o ‘pertencimento’ quanto para a ‘identidade’. Em outras palavras, a idéia de ‘ter uma identidade’ não vai ocorrer às pessoas enquanto o ‘pertencimento’ continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa. Só começarão a ter essa idéia na forma de uma tarefa a ser realizada, e realizada vezes e vezes sem conta, e não de uma só tacada” (BAUMAN, 2005, p. 17).

O interesse cada vez mais crescente por questões acerca das identidades

sociais é resultado das diversas mudanças que vêm ocorrendo nas práticas de

sociabilidade do mundo contemporâneo; um mundo de contradições, de diversos

encontros e desencontros entre teorias e práticas, tentando buscar respostas que, por

sua vez, parecem estar na origem de novas perguntas.

De fato, os últimos anos têm sido marcados como um período de mudanças

muito significativas na vida social, mudanças essas que se constituem novas formas de

sociabilidade entre os mais variados conjuntos de atores sociais (BAUMAN, 2005). A

velocidade dos meios de comunicação e produção, a volatilidade do capital e o acesso

aos estoques mundiais de informação, possibilitados pela era da tecnologia, segundo

Fridman (2000), exerceram grande influência nas novas formas de sociabilidade.

Tudo isso tem influenciado mudanças em relação à autoridade dos padrões

morais e sociais tradicionais: entre o declínio da ética puritana, de um lado, e o

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crescimento de uma ética consumista hedonista, de outro (LIPOVETSKY & CHARLES,

2004). Tais mudanças passaram também a ocorrer, sobretudo, em virtude do grande

fluxo de informação, bem como do seu fácil acesso, o que passou a disponibilizar

diversas formas de ver e viver a experiência humana (FRIDMAN, 2000), ao mesmo

tempo em que vêm contribuindo para propiciar um repensar e uma redefinição das

relações e identidades sociais construídas nos mais variados contextos sociais.

Essa visão acerca das identidades sociais que vêm sendo construída na

contemporaneidade tem sido possibilitada a partir de mudanças na vida social, devido,

em grande parte, ao acesso imediato à informação por meio da mídia. Assim, muitos

construtos sociais que, segundo Moita Lopes (2006b, p.32), eram “tradicionalmente

entendidos com um discurso da esfera privada, estão cada vez mais presentes no

domínio dos discursos públicos como a mídia”.

Nesse sentido, a mídia, sobretudo a mídia eletrônica digital, tem se tornado,

portanto, um espaço central não só para a difusão da informação renovada, como

também para a permanente (re)construção das identidades sociais. Em outras palavras,

na contemporaneidade, o processo de construção das identidades sociais está cada

vez mais dependente de um grande fluxo de materiais simbólicos constituídos por meio

das mais diversas práticas de letramento nas quais os sujeitos se engajam para

construir sentido na vida social.

Tendo em vista, portanto, a posição preponderante que as identidades sociais

têm ocupado no contexto sócio-histórico atual, em especial na mídia, é notório o

crescente interesse em se estudar a questão das identidades sociais na tentativa de

criar inteligibilidade sobre a vida social. A exemplo disso, é possível mencionar estudos

relativos à questão do gênero, como os estudos e movimentos feministas, e, mais

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recentemente, estudos concernentes à sexualidade, como teorias anti-sexistas e queer,

que muito têm contribuído para promover um questionamento e até uma redefinição

do(s) modo(s) como sempre se compreendeu a problemática das identidades sociais.

Talvez esse campo das identidades sociais esteja vindo à tona nas áreas de

estudos sociais mais recentes em virtude do fato de muitos de nós – sociólogos,

antropólogos, psicólogos, filósofos, lingüistas aplicados etc – termos nos tornado

conscientes, conforme a epígrafe supracitada, de que as identidades, de fato, “não têm

a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida”. Ao contrário, “são

bastante negociáveis e revogáveis” (BAUMAN, 2005, p. 17).

Cito meu próprio caso como exemplo. O interesse em querer me enveredar por

esse caminho e começar, então, a lidar com a questão das identidades sociais surgiu

em 2003, ano em que conheci, ainda no curso de graduação em letras da UFRJ, os

professores Luiz Paulo da Moita Lopes e Branca Falabella Fabrício. Foi justamente

durante a disciplina de Lingüística Aplicada, no sétimo período do curso de português /

inglês, ministrada por esses professores, que tive meu primeiro contato com esse

assunto que, algum tempo mais tarde, já começaria a mudar o próprio rumo da minha

vida.

Naquele mesmo ano, fui convidado pelo professor Luiz Paulo da Moita Lopes a

participar das reuniões do Projeto Salínguas: um projeto filiado ao Programa

Interdisciplinar de Lingüística Aplicada da Pós-graduação da Faculdade de Letras da

UFRJ, que lida com linhas de pesquisa voltadas para a questão das identidades

sociais, sobretudo as de gênero, raça e sexualidade.

Devo confessar que meu pouco conhecimento acerca desse assunto sempre

fora construído sob a égide de uma lógica biologizante ou mesmo religiosa para

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explicar determinados fenômenos que, já há algum tempo, passaram a não mais fazer

sentido para mim. Cresci aprendendo, por exemplo, que a homossexualidade ora era

considerada uma doença, para os mais “incrédulos”, ora um “mal do espírito”, para os

mais “religiosos”. Ou ainda que a subserviência feminina se devia à suposta “natureza

do seu sexo”, razão por que as mulheres seriam supostamente consideradas mais

frágeis, físico e emocionalmente falando, do que os homens.

Foi por meio das teorizações, com base nas muitas leituras exigidas pelos

professores, e das discussões durantes as reuniões do projeto de pesquisa que passei

a compreender que somos construídos sócio-discursivamente por diversos traços

identitários que tanto nos levam a acreditar em regimes de verdade tradicionais de

cunho “bio-religioso”, impostos pela sociedade, como os que mencionei acima, quanto

podem, por outro lado, nos oferecer um outro olhar que, ao buscar desnaturalizar tais

construtos, nos possibilite enxergar outras alternativas de viver a experiência humana.

Contudo, devo reconhecer que, ao me expor a esse novo olhar, ainda pairaram

por minha mente muitas dúvidas. Afinal de contas, ainda me encontrava um tanto preso

aos valores tradicionais sob os quais sempre fui criado. Surgiram, então, certos

questionamentos, sobretudo no que concerne à questão do gênero e do sexo: ora, se

estou operando com uma base epistemológica que compreende a identidade social de

gênero, bem como as demais identidades sociais, como uma construção social, então,

o que dizer a respeito do sexo, atributo biológico usado no senso comum, e até

cientificamente, para categorizar homens e mulheres?

Esse e outros questionamentos só contribuíram para fomentar meu interesse em

estudar questões relativas à construção das identidades sociais, em especial, o gênero.

Foi, então, imbuído desse espírito “aventureiro” (digo “aventureiro” porque, de fato,

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estava me enveredando por um caminho estranho, um novo mundo de conhecimento)

que me propus a ser um pesquisador. Dois anos depois, já estaria fazendo parte do

corpo discente de pós-graduação (mestrado) do programa interdisciplinar em lingüística

aplicada da UFRJ.

Depois de já ter decidido que me tornaria um pesquisador, só faltava saber qual

seria exatamente o assunto e, conseqüentemente, o objetivo da minha pesquisa. E,

mesmo antes de ingressar no mestrado, já tinha um interesse muito grande em

pesquisar a Internet. Mostrar, por exemplo, que as características precípuas das

identidades sociais, como a fluidez, a heterogeneidade, a multiplicidade e a

variabilidade são muito mais visíveis no mundo virtual do que no mundo real.

É preciso mencionar que, até aquela época, as pesquisas realizadas pelo corpo

docente e discente do Projeto Salínguas (resenhas, artigos científicos, dissertações de

mestrado etc) estavam voltados exclusivamente para o contexto escolar. E, como já há

algum tempo o meu orientador estava começando a lidar com estudos que envolviam

outros contextos institucionais (que não a escola), percebi, naquela mudança, uma

possibilidade de realizar pesquisas que estivessem relacionadas com o mundo virtual,

deslocando-me, portanto, do contexto escolar.

Ao longo dos dois últimos anos (2006 e 2007), tive, então, a oportunidade de

desenvolver alguns estudos que tematizam a inter-relação entre a questão das

identidades sociais e a Internet, em trabalhos de fim de curso de mestrado, em

apresentações de congressos, simpósios e seminários nacionais e internacionais e até

em artigos acadêmicos que foram publicados por revistas científicas da área.

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___________________________

1 Por motivos éticos, o nome do sujeito de pesquisa e os de todas as pessoas com as quais interage serão substituídos por pseudônimos neste trabalho. Para ele, optei pelos pseudônimos “Johnny” e “Rose”. Este será usado sempre que ele estiver se construindo como uma menina nos dados gerados referentes às salas de bate-papo do ciberespaço; aquele, quando estiver se posicionando como um menino nos dados gerados na entrevista que me concedeu. Ainda faço uso dos dois nomes juntos (Johnny / Rose) quando for possível, a meu ver, realizar uma interpretação ambivalente a respeito da sua construção identitária, em que ele poderia estar se construindo tanto como Johnny quanto como Rose.

Todavia, devo reconhecer novamente que, mesmo já tendo feito alguns

trabalhos relativos ao assunto, um dos grandes percalços pelos quais passei, e acredito

que muitos outros pós-graduandos de mestrado e doutorado também passam, estava

relacionado a uma eterna questão: o que pesquisar?

De fato, não sei se posso falar em nome de todos os discentes que se propõem

a realizar pesquisas, aliás, acho até que não. Muitos parecem chegar aos cursos de

mestrado e doutorado bastante convictos do que realmente querem pesquisar, o que,

no começo da minha jornada acadêmica, confesso, já me causou até uma certa inveja.

Contudo, devo dizer que, hoje, sinto-me orgulhoso de fazer parte da grande maioria que

passa pelos cursos de pós-graduação vivendo esse grande dilema sobre o quê

investigar. Isso porque, mesmo sabendo que essa dúvida poderia fazer com que me

atrasasse na pesquisa, acredito que nós só podemos construir conhecimento quando o

reconhecemos como um eterno devir. E, não obstante a minha pouca experiência, acho

que consegui aprender algo que, por mais paradoxal que possa parecer, já tem

norteado a minha vida há algum tempo: certeza e conhecimento não são palavras

sinônimas.

Com o intuito de buscar encontrar respostas para meus questionamentos

acerca da dinâmica da identidade social de gênero no panorama contemporâneo, em

especial no mundo virtual, depois de mudar o próprio rumo da minha pesquisa (Ver

seção 6.1), decidi-me por realizar um estudo de caso com Johnny1, cujo objetivo é o

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tratar a construção da identidade social de gênero de um menino em práticas de

letramento digital no ciberespaço. Para tanto, procurarei pautar-me pelas seguintes

questões de investigação:

1) Como o sujeito de pesquisa (re)constrói sócio-discursivamente sua

identidade social de gênero ao participar de conversas em salas de bate-papo no

ciberespaço?

2) Como as práticas de letramento digital com as quais ele se envolve

promovem outras possibilidades de viver sua experiência identitária de gênero?

Meu interesse em focalizar o contexto do ciberespaço encontra respaldo,

primeiramente, na grande importância que a mídia eletrônica digital vem ocupando nas

mais variadas esferas da vida social, por ser um meio através do qual circulam tanto

discursos mobilizadores de novos significados, quanto discursos geradores e

mantenedores de preconceitos acerca da identidade social de gênero. Tal fato se deve

em função do número cada vez mais crescente de pessoas, sobretudo de

adolescentes, que fazem uso da Internet, em especial das salas de bate-papo virtuais,

engajando-se nas mais variadas práticas de letramento digital, em que compartilham

suas histórias de vida, conhecimentos, crenças, valores e opiniões, que perpassam os

contextos mais íntimos aos mais públicos.

Com base nisso, decidi, portanto, analisar a interação de Johnny com alguns de

seus amigos virtuais em salas de bate-papo do ciberespaço, em que ele se constrói

sócio-discursivamente como uma menina.

Para fins de organização, esta dissertação foi dividida em nove capítulos. Ao

encontro das idéias e dos objetivos esboçados acima, o presente estudo foi, então,

estruturado com base nas divisões apresentadas a seguir:

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No Capítulo 2, busco apresentar uma perspectiva do discurso como prática

social. Logo no início, traço um breve panorama acerca da contemporaneidade, o

momento sócio-histórico em que estamos vivendo, fazendo referência a algumas das

transformações pelas quais a sociedade globalizada vem passando. Ao fim da primeira

seção, um destaque especial é dado à relevância da mídia e ao discurso na formação

de crenças, valores culturais, políticos e sociais para a (re)construção de identidades

sociais. Em seguida, discuto a visão socioconstrucionista do discurso e das identidades

sociais, em que mostro a importância do reconhecimento da alteridade na ação

discursiva e o modo como o discurso é entendido como uma forma de agir no mundo,

uma vez que ele tanto constrói o mundo social como se constitui por meio dele. Logo

depois, tento problematizar algumas questões pertinentes às relações entre discurso e

poder, com base numa visão foucaultiana, com o fito de mostrar como os discursos são

práticas sociais permeadas por relações de poder. Ainda neste capítulo, apresento os

dois recursos analíticos com os quais lido no presente trabalho: os conceitos de

posicionamento discursivo (DAVIES & HARRÉ, 1990; VAN LANGENHOVE & HARRÉ,

1999) e o de pistas de contextualização (GUMPERZ, 1999), utilizados aqui como

construtos teórico-metodológicos, visto que, em toda interação discursiva, nos

localizamos e localizamos o outro frente aos discursos dos quais participamos com

base em traços nas formas lingüísticas e paralingüísticas presentes nas estruturas

discursivas que contribuem para indexicalizar nossas identidades sociais.

O capítulo 3 é dedicado a tratar da questão da identidade social de gênero,

apresento, de forma mais geral, a temática das identidades sociais à luz do contexto

sócio-histórico atual. Em seguida, discorro acerca do gênero como uma construção

social, buscando não só historicizar seu conceito, como também apontando seu caráter

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múltiplo, heterogêneo e fragmentado. Na última seção, discuto a relação entre gênero e

poder, mostrando que, embora seja construído socialmente, e que, por isso, estaria

sempre aberto a re-significações, o gênero não se apresenta de forma passiva na

sociedade, mas, muitas vezes, se constitui por meio de relações assimétricas de poder.

No capítulo 4, discorro acerca do(s) conceito(s) de letramento na

contemporaneidade, entendendo-o como uma prática social e plural. Logo depois,

busco realizar um contraponto entre os modelos autônomo e ideológico de letramento,

e situo a prática de letramento com a qual o sujeito de pesquisa se envolve no modelo

ideológico. Em seguida, trato da questão do letramento digital, em que mostro como a

introdução, na sociedade, de novas modalidades de práticas sociais de leitura e de

escrita, propiciadas pelas recentes tecnologias de comunicação eletrônica digital, estão

contribuindo para um repensar na forma como concebemos a própria noção de

conhecimento, uma vez que esse novo tipo de letramento na cibercultura nos conduz a

construir um tipo de conhecimento diferente daquele a que conduzem as práticas de

leitura e de escrita da era pré-digital. Ainda neste capítulo, aponto o hipertexto digital

como um meio multimodal de construir sentido nas práticas de letramento do

ciberespaço.

O capítulo 5 é dedicado a tratar teoricamente do ambiente que gerou a minha

pesquisa de dissertação: o ciberespaço. Logo no início, apresento conceitos gerais

sobre o ciberespaço, compreendendo-o como uma grande rede interconectada

mundialmente, com um processo de comunicação “universal” sem uma “totalidade”. Na

seqüência, tento relacionar o mundo do ciberespaço e as novas práticas de letramento

digital com as novas práticas de sociabilidade na contemporaneidade e com a

construção identitária, ao ponderar que a(s) maneira(s) como nos posicionamos nas

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mais diversas práticas de letramentos nas quais nos engajamos contribuem para

(re)construir quem somos no mundo social. Com isso, busco mostrar como essa

relação está promovendo novas alternativas para se (re)pensar as construções

identitárias, como as salas de bate-papo da Internet, que se transformaram num lugar

para novas possibilidades de viver a experiência humana.

No capítulo 6, trato do contexto e da metodologia de pesquisa. Inicialmente,

relato o modo como a minha pesquisa tomou um outro rumo, em que passei a lidar com

um estudo de caso. Em seguida, discuto brevemente acerca do paradigma

interpretativista de pesquisa, em que justifico a opção por essa visão de pesquisa no

presente trabalho. Na seqüência, situo, então, a minha investigação como um estudo

de caso dentro da perspectiva de pesquisa interpretativista, em que me posiciono não

somente como observador, mas, sobretudo, como co-participante da pesquisa. Ainda

nesta seção, descrevo o contexto em que este estudo foi realizado, bem como os

instrumentos utilizados na geração dos dados.

Dedico o capítulo 7 à análise e discussão dos dados, em que analiso e interpreto

os dados à luz dos pressupostos teórico-metodológicos abordados aqui, fazendo,

primeiramente, uma breve introdução. Em seguida, discuto os dados gerados nos dois

corpora de análise (a entrevista e as salas de bate-papo do ciberespaço), e, por fim,

separadamente, respondo às duas perguntas de pesquisa que nortearam este estudo.

O capítulo 8 encerra como as minhas considerações finais acerca dos resultados

do trabalho como um todo, tomando como base os pressupostos teórico-metodológicos

e a análise e interpretação dos dados desta pesquisa.

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2. DISCURSO COMO PRÁTICA SOCIAL

2.1. Um olhar reflexivo para a contemporaneidade

“As transformações ocorridas no final da década de oitenta entraram de rompante na década de noventa e estão-nos agora em casa. Que fazer delas? Por que transformações estão a passar as transformações? Que desafios colocam à sociologia e às ciências sociais e humanidades em geral? De que modo nos vão afectar? De que modo as podemos afectar? Não é fácil responder a estas questões, tanto mais que elas pressupõem como não problemática uma postura epistemológica que o é cada vez mais. Pressupõem a separação sujeito-objeto: nós, aqui, as transformações, lá fora. Quando, na verdade, as transformações não são mais que nós todos, todos os cientistas sociais e todos os não cientistas sociais deste mundo a transformarmo-nos” (SANTOS, 2001, p. 18).

Se nos dispusermos a observar o contexto sócio-histórico atual com acuidade,

perceberemos que, nos últimos anos, houve transformações muito significativas nos

jogos relacionais que se traduzem em novas formas de sociabilidade entre os mais

variados conjuntos de atores sociais (BAUMAN, 2005). Tais mudanças passaram a

ocorrer, sobretudo, em virtude do grande fluxo de informação, bem como do seu fácil

acesso, o que passou a disponibilizar diversas formas de ver e viver a experiência

humana (FRIDMAN, 2000). Isso, ao mesmo tempo, vem, outrossim, contribuindo para

propiciar um repensar e uma redefinição das relações e identidades sociais, uma vez

que, conforme a epígrafe supracitada, todos estamos, de alguma forma, nos

transformando (SANTOS, 2001).

Esse momento sócio-histórico tem sido batizado com diversos nomes pelos

estudiosos que têm se dedicado a teorizar a contemporaneidade. Rótulos como

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___________________________

2 Os autores Lipovetsky & Charles (2004) fazem uma distinção entre os períodos da “Pós-modernidade” e o da “Hipermodernidade”. O primeiro, de acordo com os autores, seria uma fase imediatamente posterior ao período da Modernidade, cujo princípio norteador é o da conquista pessoal; o segundo, que se caracteriza por ser o período atual em que vivemos, é marcado por prerrogativas sociais, responsabilidades e medos. O mote, portanto, do primeiro, de acordo com Lipovetsky & Charles (2004, p. 29), se resume a “goze sem entraves”; do segundo, “tenha medo em qualquer idade”. 3 Faço uso da expressão “Pós-moderninade” (entre aspas) em função do seu caráter ambíguo, e até contraditório, na opinião de alguns dos autores supracitados. Para Rouanet (1987), por exemplo, o prefixo “pós” tem muito mais o sentido de exorcizar o velho (a “modernidade”) do que de articular o novo (o “pós-moderno”). Pennycook (2006, p. 76), por sua vez, assevera que embora as “teorias do “pós”, como a “pós-modernidade”, “tenham feito avançar nosso pensamento de forma útil em muitos domínios, permanecem atadas aos domínios além dos quais reivindicam ir”. Em face disso, prefiro o termo “contemporaneidade” por ser considerado menos polêmico e problemático para se compreender o momento sócio-histórico atual.

“Pós-modernidade” (LYOTARD, 1989; ROUANET, 1987; SANTOS, 2001),

“Modernidade Reflexiva” (BECK, GIDDENS &LASH, 1997), “Modernidade Líquida”

(BAUMAN, 1999), “Modernidade tardia” (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999),

Capitalismo Tardio (JAMESON, 1996) e “Hipermodernidade”2 (LIPOVETSKY &

CHARLES, 2004), entre outros, têm sido usados para se referir a todas as mudanças

de ordem social, cultural, histórica, política e econômica que vêm transformando a vida

de todos nós, sem exceção.

As primeiras discussões sobre o tema da “pós-modernidade”3 surgiram no campo

das artes e da estética, notadamente na arquitetura. De forma geral, têm se

caracterizado pelas polêmicas a respeito do fim das bases de legitimidade do

conhecimento moderno ou sobre as transformações da vida social acarretadas pelo

avanço tecnológico. Esse período da contemporaneidade vem trazendo, de fato, uma

série de mudanças em todos os aspectos da vida social: a velocidade dos meios de

comunicação e produção, a volatilidade do capital e o acesso aos estoques mundiais de

informação, possibilitados pela era da tecnologia, estão exercendo uma influência cada

vez maior nas novas formas de sociabilidade (BAUMAN, 2005).

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Essas Mudanças vêm afetando a relação como concebemos a autoridade dos

padrões morais e sociais tradicionais: entre o declínio da ética puritana, de um lado e o

crescimento de uma ética consumista hedonista, de outro (LIPOVETSKY & CHARLES,

2004). E o dinamismo com que tais mudanças ocorrem tem atingido de forma crucial as

relações sociais, sobretudo, as subjetividades; mais do que nunca, o indivíduo se

tornou o centro de si mesmo, ou, nas palavras de Lipovetsky & Charles (2004, p. 23):

A pós-modernidade representa o momento histórico preciso em que todos os freios institucionais que se opunham à emancipação individual se esbarram e desaparecem, dando lugar à manifestação dos desejos subjetivos, da realização individual, do amor-próprio. As grandes estruturas socializantes perdem a autoridade, as grandes ideologias já não estão mais em expansão, os projetos históricos não mobilizam mais, o âmbito social não é mais que o prolongamento do privado – instala-se a era do vazio, mas “sem tragédia e sem apocalipse”.

De fato, nunca, na história da humanidade, os seres humanos viveram de forma

tão intensa tudo aquilo que diz respeito ao seu próprio eu. Na sociedade do consumo

(BAUDRILLARD, 1995), em que tudo e todos são cada vez mais tratados como

mercadorias (JAMENSON, 1993; SANTOS, 2001), o que existe é uma eterna

insatisfação, que vai sendo preenchida por um consumo hedonista, sempre pronto a

acabar e a recomeçar novamente. Sobre essa questão, Bauman (2005, p. 98) pondera

que:

Hoje em dia, somos consumidores numa sociedade de consumo. A sociedade de consumo é a sociedade do mercado. Todos estamos dentro e no mercado, ao mesmo tempo clientes e mercadorias. Não admira que o uso/consumo das relações humanas, e assim, por procuração, também de nossas identidades (nós nos identificamos em referência a pessoas com as quais nos relacionamos), se emparelhe, e rapidamente, com o padrão de uso/consumo de carros, imitando o ciclo que se inicia na aquisição e termina no depósito de supérfluos.

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Tem-se início, portanto, uma nova sociedade denominada sociedade de

consumo fragmentada (FRIDMAN, 2000), com a substituição da produção fordista por

cadeias de montagem mais curtas e flexíveis, denominadas de Toyotização, o que

acarretou, segundo Santos (2001), na perda do poder do Estado-nação, com a

crescente globalização da economia e alto índice de desemprego. Como corolário, a

noção de democracia passou a se basear na capacidade de livre escolha de bens de

consumo (LIPOVETSKY, 2004).

O consumo, na contemporaneidade, se coaduna, por conseguinte, com a esfera

econômica, que, longe de questionar qualquer ruptura com o sistema capitalista, mostra

que cada vez mais estamos no estágio do capitalismo tido como transnacional

(JAMESON, 1996). Relacionado intrinsecamente à globalização, esse momento sócio-

histórico tem como características essenciais a ruptura com as fronteiras nacionais e

uma adaptação mais flexível às demandas da produção e dos mercados consumidores.

Segundo Jameson (1996, p.17), o “pós-modernismo” seria, portanto, um conceito de

“periodização cuja principal função é correlacionar a emergência de novos traços

formais da vida cultural com a emergência de um novo tipo de vida social e de uma

nova ordem econômica”.

Nesse mundo da globalização, embora marcado por muitas transformações, uma

merece um destaque especial: a mídia. Com efeito, o desenvolvimento da mídia

transformou a constituição espacial e temporal da vida social, criando novas formas de

ação e interação não mais ligadas ao compartilhar de um local comum. Em relação a

essa característica, Fridman (2000, p. 17) aponta que “é possível saber o que afeta o

mundo todo e não estar em lugar algum”. Desse modo, podemos experimentar os

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acontecimentos sem a necessidade de compartilhar simultaneamente o mesmo espaço

que nosso interlocutor.

Essa capacidade da mídia de transformar o próprio sentido de temporalidade tem

se tornado um dos efeitos mais importantes do mundo contemporâneo, em que os

sujeitos vivem presentes contínuos perpétuos, em que o eterno presente, o tempo das

“narrativas da mídia, é contado pelo relógio dos gozos que se gastam em cada aceno

das mercadorias, nessa versão de uma salvação terrena que não tem um fim último

nem dá coerência a trajetos de vida” (ibidem, p. 72).

De fato, essa nova relação espaço-tempo, proporcionada pelos meios de

comunicação em massa, que vêm intensificando as relações sociais em escala mundial

ligando localidades antes distantes, tem nos proporcionado um novo tipo de vida nunca

antes experimentado. As conseqüências dessa transformação têm grande alcance e

atingem muitos aspectos e instâncias de nossas vidas, desde os mais íntimos aspectos

da experiência em um nível micro, a instâncias macro de domínio público (THOMPSON,

2004). A esse respeito, Fabrício (2006, p. 47) aponta que:

A compressão espaço-tempo possibilitada pela velocidade da circulação de discursos e imagens disponibilizados em tempo real pela TV ou pela Internet, que, ao produzirem uma megaestimulação visual e cognitiva, vêm tornando os regimes de atenção, concentração e percepção cada vez mais rápidos, instantâneos, multifocais e fragmentários, fabricando novos espaços de visualidade, de experimentação e de construção de sentido (como, por exemplo, espaços e simuladores virtuais e holográficos).

Em meio a esse mundo globalizado e contingente, percebemos cada vez mais

que as ações globais são cada vez mais afetadas pelas ações locais e o local, por sua

vez, cada vez mais globalizado, ou, segundo Kumaravadivelu (2006, p. 134), “o global

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está localizado e o local está globalizado”. Com isso as práticas sociais passam a ser

perenemente examinadas e reformuladas à luz de informação renovada sobre estas

mesmas práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter. Portanto, torna-se

intrínseco ao processo de constituição do conhecimento a possibilidade de revisão das

convenções daquilo que se tem como certo e verdadeiro (VENN, 2000).

Isto posto, podemos atribuir à fluidez do tempo a possibilidade, segundo

Thompson (2004), de compartilhar de “uma visibilidade mediada”, que é a

transformação da própria idéia de experiência, uma capacidade reflexiva de processar

novos conteúdos e de atuar em questões diversas e, como corolário, transformar a

própria vida social.

Um dos desdobramentos, portanto, mais significativos desse momento de grande

reflexividade da vida contemporânea (BECK, GIDDENS & LASH, 1997), marcada por

mudanças socioculturais e pela exposição a uma gama de discursos diversos, reside na

possibilidade que ela abre para (re)construção das identidades sociais no mundo

altamente semiotizado em que vivemos. Nesse sentido, a mídia passa a ser, então,

considerada como o veículo através do qual se produzem as incertezas, ambivalências

e pluralidades acerca das coisas do mundo contemporâneo (THOMPSON, 2004). A

esse respeito, Fridman (2000, p. 23) assinala que “a onipresença da mídia, ambiente

em que se processa a nova expansão do capitalismo, informa a idéia de sociedade da

imagem”. Nesse contexto, o predomínio das imagens influencia as maneiras de pensar,

sentir, desejar, consumir e agir dos indivíduos.

Contudo, somos atordoados pela sensação de que todos esses recursos

tecnológicos irão nos atropelar com uma avalanche de informações e acontecimentos

que nos chega em um ritmo acelerado e por meios diversos (SANTOS, 2001). A gama

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de informações transmitida pela mídia nos leva a não fazer distinção entre o aqui e o

ali, entre o próximo e o distante, afetando, assim, a nossa relação pessoal com o

espaço e com o tempo. E tudo isso pode causar um certo efeito desorientador sobre

muitos indivíduos, uma vez que “o uso dos meios de comunicação transforma a

organização espacial e temporal da vida social, criando novas formas de ação e

interação, e novas maneiras de exercer o poder” (THOMPSON, 2002, p. 14).

Filiando-se a essa compreensão, Fabrício e Moita Lopes (2004) contribuem para

a compreensão do sentido de vertigem ao sublinharem que “muitas das certezas ou

modos de viver tomados como naturais têm sido questionados cotidianamente pelos

avanços tecnológicos”, produzindo, assim, a “destradicionalização da vida pública e

íntima” (FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004, p. 6) na atualidade. É, justamente, essa

experiência sobre a diversidade econômica, cultural e social, sem precedentes, que

vem alterando profundamente a vida em sociedade, ou pelo menos a sua

compreensão, o que colabora para gerar o que alguns denominam de mundo em

descontrole (GIDDENS, 2002). Nesse sentido, Moita Lopes (2003, p. 15) pondera que:

Há nas práticas cotidianas que vivemos um questionamento constante de modos de viver a vida social que têm afetado a compreensão da classe social, do gênero, da sexualidade, da idade, da raça, da nacionalidade etc., em resumo, de quem somos na vida contemporânea.

Uma vez frente a esses novos significados, que não fazem parte de seu

repertório de sentidos, muitos sujeitos sociais perdem seu referencial e se deparam

com um sentimento de insegurança e impotência. Segundo Fridman (2000), as

vertigens trazidas por essas rápidas transformações resultam em esforços de se tentar

compreender o mundo atual. Esses esforços evidenciam a tentativa de elucidação dos

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meios e modos em que se processa a “comunicação instantânea, a volatilidade do

capital, a ação à distância, os novos apartheids sociais, a fragmentação do sujeito e a

predominância da mídia na constituição do universo simbólico das grandes massas”

(FRIDMAN, 2000, p. 11).

Nesse contexto, emerge uma outra característica marcante da

contemporaneidade: a noção de “modernidade reflexiva” (BECK, GIDDENS & LASH,

1997), em que se configuram propostas de reflexões constantes sobre a realidade

social que nos circunda. E, mesmo reconhecendo que ainda coexistem uma série de

kits identitários que não se enquadrariam no modelo de modernidade reflexiva proposto

pelos autores acima, é possível perceber, segundo Giddens (2002, p. 45), que a

reflexividade é um fator cada vez mais presente na vida social moderna, em que as

“práticas sociais estão sendo constantemente examinadas e reformadas à luz de

informação renovada sobre essas próprias práticas, alterando, assim constitutivamente

seu caráter”.

Se estamos presenciando mudanças profundas nas práticas sociais, devemos

pois, considerar sobremaneira a importância que o discurso assume na vida

contemporânea, uma vez que estou operando aqui com uma visão de discurso como

prática social, como uma forma de agir no mundo (Ver seção 2.2). A esse respeito,

Chouliaraki & Fairclough (1999, p. 4) asseveram que “uma característica importante das

mudanças de ordem econômica, cultural, e social da modernidade tardia é que elas

existem como discursos”. Logo, podemos inferir que a instauração do processo reflexivo

está intimamente relacionada ao uso do discurso como espaço de reflexão sobre a vida

social. É, portanto, a partir dessa noção de discurso, tomando como base os aspectos

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aqui explicitados acerca da contemporaneidade, que passo a discutir, na próxima

seção, o discurso como prática social.

2.2. A visão socioconstrucionista do discurso: o foco na alteridade

“O significado é um construto negociado pelos participantes, isto é, não é intrínseco à linguagem” (BAKTIN,1981, p. 96).

Em virtude do quadro sócio-histórico exposto na seção anterior, busco, no

presente trabalho, uma noção de discurso ancorada em uma visão

socioconstrucionista, cuja base epistemológica está voltada para a preocupação com o

que fazemos com nossas vidas e com as dos outros quando utilizamos a linguagem

(MOITA LOPES, 2006a). Nessa concepção, portanto, o discurso é caracterizado como

uma ação na qual os significados são gerados pelos participantes de um evento

discursivo específico. Em outras palavras, compreender o discurso sob essa ótica

implica, sobretudo, considerar seus efeitos sociais, o que nos leva a percebê-lo como

uma forma de ação no mundo social.

Para entender a importância que o discurso assume na contemporaneidade

dentro das relações sociais, devemos enxergá-lo, primeiramente, como uma construção

social. Isso quer dizer, primeiramente, que o significado, conforme Bakhtin (1981, p. 96)

pondera na epígrafe acima, “é um construto negociado pelos participantes, isto é, não é

intrínseco à linguagem”; e também que a construção social do significado se vincula a

momentos sócio-históricos específicos e é mediada por práticas discursivas

particulares, em que os participantes estão atrelados a relações de poder (FOUCAULT,

1979). Essa visão do discurso tem influenciado também pesquisadores que têm

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examinado como a construção das identidades sociais se dá por meio do envolvimento

das pessoas com práticas discursivas (MOITA LOPES, 2003). Assim, podemos inferir

que as identidades sociais dos sujeitos estão constantemente sendo (re)inventadas

para si e para o outro, construindo-se, desta forma, a realidade por meio do discurso.

Nesse sentido, pode-se inferir que o discurso fornece os meios de mediação da

ação, já que é o seu estudo que demonstra como os participantes do mundo social

constroem os contextos institucionais em que vivem (MOITA LOPES, 2003). Sob essa

perspectiva, é possível afirmar que o olhar para a ação humana situada implica,

portanto, uma noção fundamental para se compreender a vida social: a alteridade.

Assim, na busca de tentar fazer sentido no mundo por meio do uso da linguagem nas

práticas discursivas, a presença do outro se configura como de extrema relevância para

esse processo. Por isso, a concepção de alteridade está implícita no próprio conceito

de interação, já que esta pressupõe ação conjunta entre atores sociais. É, portanto, a

presença do outro com o qual nos “engajamos no discurso (tanto no modo oral, quanto

no modo escrito) que, em última análise, molda o que dizemos e, portanto, como nos

percebemos à luz do que o outro significa para nós” (MOITA LOPES, 2002, p. 32).

Nesse sentido, a obra de Mikhail Bakhtin contribuiu sobremaneira para os

estudos da linguagem no que concerne à importância da alteridade na construção de

quem somos. Desse modo, focalizar o discurso à luz da teoria desse pensador implica

compreendê-lo como uma construção dialógica. Para Bakhtin, a interação, então, é

engendrada pelas relações que os sujeitos estabelecem entre si no meio social através

da mediação da linguagem (BLANCK, 1996). Sob essa perspectiva, a presença do

“outro” possui, portanto, um papel fundamental, pois sem ele (o outro) o sujeito não

mergulha no mundo “sígnico, não penetra na corrente da linguagem, não se

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desenvolve, não realiza aprendizagens, não ascende às funções psíquicas superiores,

não forma a sua consciência, enfim, não se constitui como sujeito” (FREITAS, 1997, p.

320).

Isso nos leva a afirmar que é o engajamento discursivo com o outro que irá dar

forma não somente ao que dizemos, mas ao que somos (MOITAL LOPES, 2003).

Assim, no uso da linguagem, sempre há alguém para quem desejamos nos remeter e

com quem desejamos nos relacionar. A alteridade, portanto, é um elemento crucial para

a construção do significado bem como de nossa vida social.

Com base nessa visão de linguagem, Bakhtin desenvolve o conceito de

dialogismo, cujo sentido pode ser interpretado como o elemento que instaura a

natureza interdiscursiva da linguagem na medida em que diz respeito “ao permanente

diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos

que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade” (BRAIT, 1997, p. 98).

Nesse sentido, o dialogismo é entendido como um elemento representativo das

relações discursivas que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos

instaurados historicamente pelos sujeitos. Esses processos, portanto, se constituem em

“contextos que não estão simplesmente justapostos, como se fossem indiferentes uns

aos outros; encontram-se numa situação de interação e de conflito tenso e ininterrupto”

(BAKHTIN,1981, p. 96).

E, conforme já foi dito, por estarmos constantemente internalizando e trazendo à

tona os discursos dos outros, a linguagem apresenta, segundo Bakhtin (2003), um

caráter dialógico, uma vez que esses enunciados sempre pressupõem uma atitude

responsiva do(s) outro(s) a quem eles se dirigem. Ou, conforme o próprio Bakhtin

(2004, p. 79) aponta, “nenhuma enunciação verbalizada pode ser atribuída

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exclusivamente a quem a enunciou: é produto da interação entre falantes e em termos

mais amplos, produto de toda uma situação social em que ela surgiu”. Por conseguinte,

o eu e o outro constroem, cada qual, um universo de valores. A esse respeito, Faraco

(2003, p. 22) assevera que:

O mesmo mundo, quando correlacionado comigo e com o outro, recebe valorações diferentes, é determinado por diferentes quadros axiológicos. E essas diferenças são arquitetonicamente ativas, no sentido de que elas são constitutivas dos nossos atos (inclusive de nossos enunciados): é na contraposição de valores que os atos concretos se realizam; é no plano dessa contraposição axiológica (é no plano da alteridade, portanto) que cada um orienta seus atos.

O “outro”, portanto, não é entendido como um destinatário pacífico, cuja única

função se resume em compreender o locutor; sua atitude em relação à fala do locutor é

sempre responsiva ativa e materializa-se na sua resposta (externa ou interna). É

exatamente uma resposta e não uma compreensão passiva que o locutor espera do(s)

outro(s) a quem o seu discurso se dirige, resposta que pode se materializar sob a forma

de uma concordância, adesão, objeção, execução etc (BLANCK, 1996).

Isto posto, podemos afirmar que todo o discurso provém de alguém que possui

suas “marcas identitárias específicas que o localizam na vida social e que o posicionam

no discurso de um modo singular assim como seus interlocutores” (MOITA LOPES,

2003, p.19) e, ainda, que essas marcas são frutos de uma “consciência que adquire

forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas

relações sociais” (BAKHTIN, 1997, p.35).

Em face da atitude responsiva ativa do outro perante o locutor, o discurso

pressupõe sempre, conforme Bakhtin (1981), uma apreciação valorativa. Tal apreciação

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é norteada por avaliações que fazemos na vida, com base em critérios éticos, sociais,

políticos, religiosos ou outros, de enunciados concretos, e envolvem elementos

extraverbais, sem cujo conhecimento se torna impossível compreender o discurso.

Sob essa visão de discurso como uma apreciação valorativa, é possível afirmar

que, sempre que nos engajamos num processo de leitura, ou em uma conversa numa

sala de bate-papo na Internet, por exemplo, estamos fazendo também uma avaliação

ou julgamento sobre determinado tópico. Em outras palavras, ao (re)construirmos

significados via discurso, estamos o tempo todo fazendo escolhas que deixam

transparecer nossos posicionamentos em relação ao que está sendo dito e para quem

estamos nos dirigindo. Assim, “a significação dos enunciados tem sempre uma

dimensão avaliativa, expressa sempre um posicionamento social valorativo” (Bakhtin,

1981, p. 46). Isso significa dizer que, sob uma ótica bakhtiniana, as vozes que atuam

em nossos discursos, conforme foi dito, estão imbricadas de valores, de modo que

estamos sempre nos apropriando de discursos dos outros para a construção de quem

somos, isto é, nosso discurso reflete outros discursos provenientes de outras práticas

discursivas (FREITAS, 1996).

Com base nessa natureza social do discurso, Moita Lopes (2002, p. 197) aponta

que “os significados que as pessoas constroem quando agem nas práticas discursivas

são reveladores de como compreendem o mundo a sua volta, a si mesmas e os outros

como participantes desse mundo”. Por isso, tendo em vista que o discurso é parte

constitutiva do mundo social, podemos afirmar que todo discurso é gerado com base no

momento sócio-histórico em que ocorre, ou seja, tudo aquilo que falamos está

historicamente situado (MOITA LOPES, 2003). Desse modo, sempre que nos

engajamos em práticas discursivas, nos posicionamos dentro de um contexto sócio-

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histórico específico, ainda que o nosso interlocutor não esteja presente fisicamente,

como é o caso do mundo virtual, por exemplo (Ver seção 5.2). Isso significa afirmar que

os participantes das práticas discursivas não estão em um vácuo social, ou seja, não

são considerados como “uma entidade que existe independente do discurso, mas, ao

contrário, são uma função do discurso em si mesmo” (FAIRCLOUGH, 1992, p. 43).

Ao pensar o discurso como constituinte das relações sociais, devemos, portanto,

considerar que, ao se engajarem em práticas discursivas, os participantes estão

posicionados na história, na cultura e em relações de poder. Essas relações de poder

são caracterizadas por relações de conflito, nas quais grupos sociais, com interesses

distintos, engajam-se por meio de práticas discursivas (FAIRCLOUGH, 1992).

Podemos, então, afirmar que muitos discursos são intencionais e constituídos de

acordo com determinadas regras de interação e poder que são características de cada

contexto. É com base em tais inferências que dedico a próxima seção a tratar dessa

relação entre discurso e poder, tomando como base a visão foucaultiana.

2.2. Discurso e Poder: uma visão foucaultiana

O discurso, aparentemente, pode até nem ser nada de por aí além, mas, no entanto, os interditos que o atingem, revelam, cedo, de imediato, o seu vínculo ao desejo e ao poder. E com isso não há com que admirarmo-nos: uma vez que o discurso — a psicanálise mostrou-o —, não é simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo; é também aquilo que é objeto do desejo; e porque — e isso a história desde sempre o ensinou — o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-nos (FOUCAULT, 1996/1970, p. 2).

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___________________________

4 A relação entre discurso e poder sempre foi uma tônica nos trabalhos de Foucault. Contudo, como o presente estudo não se propõe a fazer uma releitura de suas obras, escolhi apenas os trabalhos supracitados com o fito de tentar promover, ainda que de forma um tanto exígua, uma discussão que possa contemplar tal relação.

Ao tentar contemplar a relação entre discurso e poder, não poderia deixar de

incluir neste estudo um dos autores que trataram com maior proficuidade sobre essa

questão no século XX: Michel Foucault.

Não pretendo, neste trabalho, fazer uma releitura dos trabalhos de Foucault –

algo que, muito embora pareça bastante interessante e tentador, não é, pois, o objetivo

desta pesquisa de dissertação. Proponho-me aqui a problematizar algumas questões

pertinentes às relações entre discurso e poder, com o fito de situá-las como práticas

sociais para iluminar o presente estudo e, para tanto, fazendo uso de alguns dos

pressupostos foucaultianos.

Em trabalhos como A Ordem do Discurso, Microfísica do Poder e A História da

sexualidade4, Foucault lida, sobretudo, com as relações entre discurso e poder,

rompendo com as concepções clássicas desses termos. Segundo ele, o poder não

pode ser localizado em uma instituição ou no Estado simplesmente, o que tornaria

impossível a “tomada de poder” proposta pelos marxistas, mas sim como uma relação

de forças (FOUCAULT, 1979).

Ao ser tratado como relacional, o poder, para Foucault, se torna onipresente, um

corolário de relações discursivas e de poder interdependentes e em constante

movimento. Portanto, para o autor, o poder não somente reprime, mas também produz

efeitos de verdade e saber, constituindo verdades, práticas e subjetividades por meio

dos discursos (FOUCAULT, 1981).

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Com base nessa concepção, podemos pensar que os diversos contextos sociais

e as relações subjetivas podem configurar em uma série de ferramentas sociais, não

necessariamente positivas (inclusão) ou negativas (exclusão), no que concerne às

relações de saber e poder, que se imbricam no discurso, revelando as condições de

“verdade” e “supostas verdades”. Nesse sentido, Foucault (1979, p. 94) pondera que:

É justamente no discurso que vêm a se articular poder e saber. E, por essa mesma razão, deve-se conceber o discurso como uma série de segmentos descontínuos, cuja função tática não é uniforme nem estável. Mais precisamente, não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso dominante e o dominado; mas, ao contrário, como uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes.

Os saberes, para Foucault, são tão produtores da realidade quanto os poderes,

uma vez que os saberes constituem igualmente a realidade e, por isso, não estão fora,

não se pode desvinculá-los dos poderes. Portanto, a idéia de poder que Foucault

apresenta é aquela em que o poder se configura como luta, como correlações de

forças, em que poder e saber se articulam como movimento, como dinâmica e não

como algo estático, definido de uma vez por todas (FOUCAULT, 1979).

Foucault, portanto, rejeita todo e qualquer pensamento metafísico, questionando,

com isso, o próprio estatuto da verdade, além de mostrar o modo como o poder é

produzido por relações particulares com saberes. Estes, do mesmo modo, não são

universais, mas se instituem enquanto verdades, ou melhor, como “regimes de

verdade”, num processo que produz poder, cuja relatividade não pode ser validada em

nenhuma instância metafísica ou exterior à realidade social (FOUCAULT, 1981). Em

outras palavras, os saberes que se instituem enquanto verdadeiros (num sentido não

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absoluto, mas relativo) estão imbricados em relações de poder particulares, em práticas

cotidianas, em instituições que representam o poder associado aos saberes que

legitimam aquelas práticas. Nesse sentido, ao construir sua identidade social de gênero

em práticas de letramento digital no ciberespaço, por exemplo (Ver seção 5.2), o sujeito

desta pesquisa se constitui discursivamente por meio de “regimes de verdade” em

relações particulares de poder.

O poder, portanto, se produz a cada instante, é um processo. A cada momento

há coisas novas acontecendo. Para estudá-lo, é necessário buscar compreender seus

movimentos. Desse modo, é possível compreender a idéia de que o poder se produz a

cada instante e provêm de todos os lugares, ou nas palavras de Foucault (FOUCAULT,

1981, p. 88):

Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes, as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais.

Se Foucault entende o poder, sobretudo, como uma correlação de forças e,

como tal, pressupõe uma interação de parte à parte, e não somente num sentido de

imposição e de supremacia, então, é possível pensar que, para qualquer tipo de poder,

pode haver sempre resistência (FOUCAULT, 1979). É exatamente por meio desse

embate que o próprio poder se estabelece, em que o alvo sobre o qual se exerce o

poder resiste, e este alvo são os próprios sujeitos. Pode-se perceber essa

transformação contínua da nossa realidade como um dos efeitos dessas lutas de poder.

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Nesse sentido, pode-se afirmar que todas as vezes que surgem alternativas,

resistências, que se tornam institucionalizadas, tem-se um movimento para colonizá-las,

para apoderar-se delas e transformá-las de novo nesse jogo de dominação

(FOUCAULT, 1979). Em outras palavras, o poder seria, justamente, uma situação

estratégica complexa criada para institucionalizar certas práticas, leis etc, pelos menos

durante um certo tempo, mas que, logo em seguida, começaria a mover-se, a desfazer-

se para novamente se reorganizar, porém de outra forma.

O modo, portanto, como Foucault propõe avançar na compreensão das relações

de força consiste na ligação entre as formas de resistência aos diferentes tipos de

poder, uma vez que tais formas seriam capazes de evidenciar as relações de poder e

de observar onde se inscrevem, de descobrir seus pontos de aplicação e os métodos

que utilizam. O que percebemos, com isso, é que podemos pensar nas relações de

poder com base na dinâmica das estratégias de poder / resistência (FOUCAULT, 1979).

Visto dentro dessa perspectiva, o poder que interessa a Foucault, conforme foi

apontado no começo desta seção, não é, portanto, somente o poder que permeia as

lutas de classes, mas, sobretudo, o poder que emana dessas lutas, visto que, segundo

a epígrafe supracitada, “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os

sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder

de que procuramos assenhorear-nos” (FOUCAULT, 1996 / 1970, p. 7). Assim podemos

entender o poder como o meio através do qual seja possível levar o sujeito ao

enaltecimento ou mesmo à subordinação discursiva dentro de rituais sociais nos quais

nós, sujeitos, somos constituídos, a partir das relações de poder nas quais nos

engajamos. (FOUCAULT, 1979).

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Repensando essas relações à luz das identidades sociais, Moita Lopes (2002)

nos chama atenção para o fato de que o poder se apresenta distribuído na sociedade e

que isso é uma característica central da visão de identidade como construção social.

Argumenta, ainda, com base em Foucault (1981), que as identidades, muitas vezes,

não são escolhidas, mas são inscritas em relações discursivas de poder específicas nas

quais são construídas.

Dessa maneira, percebemos que os processos discursivos são construtores de

certas identidades que têm voz na sociedade, mas que, conforme dito anteriormente,

podem transformar-se em épocas e contextos diferentes, uma vez que o discurso se

constitui como o meio através do qual as verdades são instituídas. A esse respeito

Foucault (1996 / 1970, p. 47) pondera que:

O discurso nada mais é do que o reflexo de uma verdade que está sempre a nascer diante dos seus olhos; e por fim, quando tudo pode tomar a forma do discurso, quando tudo se pode dizer e o discurso se pode dizer a propósito de tudo, é porque todas as coisas que manifestaram e ofereceram o seu sentido podem reentrar na interioridade silenciosa da consciência de si.

Toda essa questão que envolve o poder como constituinte dos significados

socialmente legitimados e que está presente nas práticas discursivas é, portanto,

central para esta pesquisa, uma vez que as relações de poder em exercício estão

presentes não somente no meu discurso como pesquisador e no discurso de Johnny, o

sujeito de pesquisa, como nas próprias conversas entre ele e as demais pessoas com

os quais ele interage nas salas de bate-papo da Internet (Ver capítulo 7).

Depois de considerar que toda prática discursiva é permeada por relações de

poder e que somos posicionados no mundo social com base nessas relações, encerro o

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presente capítulo discorrendo, na seção seguinte, acerca das categorias discursivas de

análise, nas quais trabalho os conceitos de posicionamento discursivo e sua relação

com as pistas de contextualização na (re)construção das identidades sociais.

2.4. Categorias de análise do discurso: o Posicionamento discursivo e as pistas

de contextualização

Conforme já foi discutido anteriormente neste capítulo, contemplar a visão do

discurso como prática social é, em outras palavras, reconhecer que estamos, a todo

momento, (re)construindo significados nas diversas práticas discursivas em que

atuamos. E isso ocorre em função das posições que ocupamos nas interações sociais

das quais participamos, ou seja, com base em determinados posicionamentos ou

localizações que tomamos na conversa (DAVIES & HARRÉ, 1990). Esse caráter

dinâmico da construção do significado de um evento interacional nos diferentes

contextos (sejam eles mais informais ou institucionais) é posto em relevo por alguns

autores (GOFFMAN, 1981/ 2002; DAVIES & HARRÉ, 1990; VAN LANGENHOVE &

HARRÉ, 1999; GUMPERZ, 1999) que abordam a linguagem como um fenômeno social.

Nesta seção, tratarei de dois recursos analíticos com os quais lido no presente

trabalho, com o intuito de compreender a identidade social de gênero como uma

construção social: o conceito de posicionamento discursivo (DAVIES & HARRÉ, 1990;

VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999) e o conceito de pistas de contextualização

(GUMPERZ, 1999).

Se as práticas discursivas nas quais nos engajamos são também práticas

sociais, então, isso significa que, cada um de nós, participantes discursivos, está

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inserido num processo de posicionar a si próprio e aos nossos interlocutores nessas

práticas discursivas, muitas vezes negociando novas posições. Segundo Van

Langenhove & Harré (1999, p. 2), em qualquer “prática discursiva, o posicionamento

constitui o falante inicial e os outros de uma certa maneira e, ao mesmo tempo, é um

recurso por meio do qual todas as pessoas envolvidas podem negociar novas posições

(e novos significados)”.

O sujeito, portanto, ao se engajar no processo de interação com o outro, se

constitui em função de determinadas posições ao trazer consigo sua visão de mundo,

suas experiências de vida, seu modo de agir etc. Davies e Harré (1997 apud Fabrício,

2002, p.88) definem o posicionamento como “um termo que faz alusão não só ao

conjunto de direitos e obrigações que orientam falantes e ouvintes a agir de

determinadas maneiras, mas também à ligação entre as posições por eles assumidas e

sua significação como atos sociais”. A esse respeito, Davies & Harré (1990, p. 48)

ponderam que:

Ao falar e agir de uma posição, as pessoas estão trazendo para a situação particular suas histórias como um ser subjetivo, isto é, a história de alguém que esteve em múltiplas posições e engajado em diferentes formas de discurso.

Isso significa que os participantes podem, muitas vezes, se posicionar

discursivamente para atingir determinados objetivos em detrimento de outros, de modo

a (re)construir suas identidades e as identidades de seus interlocutores. Nesse sentido,

o posicionamento pode ser entendido como a construção discursiva de histórias

pessoais que “fazem com que as ações das pessoas se tornem inteligíveis e relevantes

como atos sociais” (VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999, p. 16).

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Os posicionamentos, por conseguinte, são caracterizados por sua natureza

dinâmica, em que as inferências dos interlocutores são contextualmente situadas,

centradas, uma vez que “as formas concretas que tais posicionamentos vão tomar

diferem de acordo com as situações em que ocorrem” (Van Langenhove & Harré, 1999,

p. 30). Desse modo, podemos pensar que numa mesma conversa virtual na Internet,

por exemplo, um indivíduo pode se posicionar e / ou posicionar seu(s) interlocutor(es)

de diversas maneiras, algumas podendo ser até mesmo contraditórias entre si, como foi

o caso em algumas das interações analisadas nesta pesquisa (Ver subseção 7.1.2). Em

outras palavras, podemos sempre nos (re)posicionar e (re)posicionar o(s) outro(s) nas

práticas discursivas das quais participamos, visto que os posicionamentos são fluidos e

provisórios, sempre sujeitos a mudar no decorrer da interação.

Esses posicionamentos, portanto, podem também ser desafiados, questionados

e (re)negociados pelos participantes, o que nos remete às noções de poder e

resistência, discutidas na seção anterior (ver seção 2.3). Assim, uma vez que as

práticas discursivas são perpassadas por relações de poder, os sujeitos sempre se

posicionam com base naquilo que o seu interlocutor significa para ele em tais relações

(DAVIS & HARRÉ, 1990).

Ao discorrerem acerca do conceito de posicionamento, Van Langenhove & Harré

(1999) apresentam uma classificação para definir os tipos de posicionamento. No

entanto, para os fins do presente estudo, faço uso de apenas alguns dos tipos

apresentados por eles por considerá-los mais relevantes para a análise dos dados

gerados. Para os autores, o posicionamento pode ser de primeira ou de segunda

ordem. No posicionamento de primeira ordem, os sujeitos localizam discursivamente a

si mesmos ou a seus interlocutores. Contudo, esse posicionamento pode ser refutado

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ou questionado pelo(s) interlocutor(es), o que o transforma em um posicionamento de

segunda ordem. Este – também chamado de reflexivo – ocorre, portanto, quando um

participante discursivo tem seu posicionamento anterior questionado por outro(s)

participante(s), o que faz com que aquele participante se (re)posicione em favor de

seu(s) interlocutor(es) (VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999).

Existe ainda, segundo os autores, o posicionamento moral, que ocorre no

momento em que alguém se posiciona ou posiciona uma outra pessoa com base em

aspectos da vida social socialmente legitimados, ou seja, esse tipo de posicionamento

é, muitas vezes, usado pelos sujeitos buscam ser aceitos nos grupos sociais dos quais

almejam participar (VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999).

Por último, ainda tomo como base o posicionamento intencional. Este, segundo

Van Langenhove & Harré (1999), pode ocorrer quando: a) o sujeito deseja mostrar

traços de sua identidade, com o objetivo de atingir determinados propósitos específicos

(auto-posicionamento deliberado); b) quando a necessidade de assumir determinada

posição se dá por exigência do posicionamento de um outro interlocutor (auto-

posicionamento forçado); c) o sujeito fornece informações sobre outra pessoa, podendo

ou não ser esta o próprio interlocutor (posicionamento deliberado do outro); e d) o

sujeito é posicionado por outra pessoa de acordo com os julgamentos de uma dado

grupo ou instituição (posicionamento forçado do outro) (VAN LANGENHOVE & HARRÉ,

1999).

Há, portanto, diferentes modos de se posicionar nas práticas discursivas, que

são construídos e negociados entre os participantes na interação. Isso nos mostra que

os posicionamentos discursivos estão estreitamente relacionados à construção do

gênero, bem como à construção de outras identidades sociais, uma vez que, dentro de

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uma visão socioconstrucionista (Ver seção 2.2), “o gênero é um posicionamento

discursivo e, como tal, matizado por outros traços identitários” (MOITA LOPES, 2005, p.

4). Nesse sentido, considero a noção de posicionamento discursivo como um construto

teórico central para a análise de como somos construídos no mundo social.

Contudo, para que os tipos de posicionamento possam ser entendidos nas

práticas discursivas, entendo que seja também necessário que eles sejam

indexicalizados por meio de determinados elementos. Por isso, adoto, no presente

estudo o construto que Gumperz (1999) chama de pistas de contextualização

(contextualization cues), cuja função se presta a designar quaisquer traços nas formas

lingüísticas e paralingüísticas presentes nas estruturas discursivas que contribuem para

assinalar as pressuposições contextuais do falante e que os interlocutores interpretam,

na tentativa de compreender que tipo de atividade está ocorrendo. A esse respeito,

Gumperz (1999, p. 131) afirma que:

As pistas de contextualização são traços presentes na estrutura de superfície dos textos através dos quais os falantes assinalam e os ouvintes interpretam qual é a atividade que está ocorrendo, como o conteúdo semântico deve ser entendido e como cada sentença se relaciona ao que a precede ou segue.

Gumperz (1999) aponta como exemplos de pistas de contextualização os

mecanismos de sinalização relacionados às mudanças de código, estilo e dialeto,

fenômenos prosódicos, escolha entre opções lexicais e sintáticas, aberturas e

fechamentos conversacionais e repetições. O autor ainda lembra que, muito embora

essas pistas tragam consigo muitas informações, evidenciando-se formalmente na

superfície do texto, os significados são construídos como parte do processo

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interacional. Nesse sentido, o contexto, bem como o processo “de negociação de

significados, leva, portanto, à identificação e interpretação de uma variedade de sinais,

culturalmente convencionados, utilizados pelos participantes na interação” (FABRÍCIO,

2002, p. 81).

Dentro dessa perspectiva, o encontro social é caracterizado, então, como um

sistema integrado de atividades em funcionamento, em que tudo o que acontece

contribui para sinalizar o contexto da interação, e ainda para nossa interpretação do

que está ocorrendo naquele dado momento específico. Em outras palavras, podemos

afirmar que as pistas de contextualização funcionam no estabelecimento dos

posicionamentos discursivos no curso da interação, uma vez que contribuem para

sinalizar mudanças no contexto e para criar envolvimento entre os interlocutores

(GUMPERZ, 1999).

Faz-se necessário, por conseguinte, compreender que as pistas de

contextualização são muito mais de que elementos que veiculam “informação”, pois, se

os significados são construídos no processo de interação, então, eles são sempre

influenciados pelo contexto da interação e pelos interactantes que dela participam. Sob

essa perspectiva, é possível, portanto, inferir que os significados que atribuímos às

pistas de contextualização não são universais, uma vez que aprendemos em nossa

cultura a atribuir significado a essas pistas, “o que contribui para a interpretação das

mensagens momento a momento” (FABRÌCIO, 2002, p. 81). Do ponto de vista da

construção do significado que atravessa o presente trabalho, a comunicação humana é,

portanto, muito mais uma questão de co-construção de interpretações compartilhadas

do que, simplesmente, de transmissão de significados.

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Ao ter buscado compreender, no presente capítulo, a concepção de discurso

como prática social, pretendo corroborar a idéia de que as nossas identidades e

posicionamentos são tomados com base em determinados tipos de discurso

legitimados e apoiados pela sociedade, que os faz funcionar como verdadeiros. É

nesse sentido que determinados grupos sociais se julgam superiores a outros ao se

pautarem por determinadas concepções naturalizadas, como a de que o homem seria

superior à mulher. Dessa forma, procurei mostrar que visões de mundo e

conhecimentos entram em constante conflito visando engajar discursivamente os

participantes em um processo de reflexão sobre a própria ação. Por isso, considero

fundamental compreender o discurso como o meio através do qual seja possível

entender que a nossa participação nas mais diversas esferas da vida social constroí

quem somos, como avaliamos o outro e como pensamos que esse outro nos avalia com

base em nossos posicionamentos interacionais, desencadeando, com isso, um

processo ininterrupto de (re)construção de identidades. Em virtude disso, passo,

portanto, no próximo capítulo, a tratar especificamente da questão das identidades

sociais.

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3. A IDENTIDADE SOCIAL DE GÊNERO

3.1. A temática das identidades sociais

“A identidade só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, “um objetivo”; uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais” (BAUMAN, 2005, p. 21).

A questão das identidades sociais no presente trabalho surge como temática de

discussão, pois, por um lado, tem sido uma categoria de intensa análise em nossos

tempos e, por outro, nos dá a possibilidade de entendermos os movimentos sociais que

perpassam os sujeitos da contemporaneidade. Por isso, é possível afirmar que dentre

os motivos mais importantes pelos quais a temática das identidades tem sido focalizada

tão freqüentemente tanto na mídia quanto nas universidades estão as mudanças

“culturais, sociais, econômicas, políticas e tecnológicas que estão atravessando o

mundo e que são experienciadas, em maior ou menor escala, em comunidades locais

específicas” (MOITA LOPES, 2003, p. 15).

À luz do contexto sócio-histórico atual, os sujeitos sociais na chamada “crise de

identidade” (HALL, 1999) são vistos como parte de um processo mais amplo de

mudanças, fazendo surgir novas identidades fragmentadas e levando, com isso, a uma

nova concepção de sujeito e de “identidade”. O que Hall (1999) pretende mostrar com

esse questionamento é que as identidades, antes tidas como entidades fixas e

homogêneas, estão sendo compreendidas, na contemporaneidade, como

“descentradas”, isto é, deslocadas e fragmentadas. Isso nos conduz a compreender a

identidade, em conformidade com a epígrafe supracitada, como “algo a ser inventado, e

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não descoberto; como alvo de um esforço, ‘um objetivo’” (BAUMAN, 2005, p.22).

Ao buscar compreender as identidades sociais como categorias que podem

sempre ser (re)inventadas, não devemos, pois, concebê-las como uma qualidade

inerente aos indivíduos, mas como algo que se constitui nas relações interpessoais por

meio de práticas discursivas particulares. Isso quer dizer que construímos identidades

sociais ao nos engajarmos em processos interacionais com os outros, por meio daquilo

que dizemos e, da mesma forma, como nos percebemos com base naquilo que o outro

representa para nós (MOITA LOPES, 2002). Nesse sentido, é possível inferir que as

práticas discursivas moldam e são moldadas pelas nossas identidades sociais, não

sendo, portanto, algo natural, fixado antes da interação social, mas construído na

interação.

Contudo, devemos sempre levar em consideração, conforme nos aponta Louro

(2003), que, nesses processos de reconhecimento de identidades, inscreve-se a

atribuição de diferenças, uma vez que “tudo isso implica a instituição de desigualdades,

de ordenamentos, de hierarquias, e está, sem dúvida, estreitamente imbricada com as

redes de poder que circulam na sociedade” (LOURO, 2003, p.15). Portanto, devemos

pensar que a análise das práticas discursivas e dos significados que construímos vão

revelar nossos valores, crenças e nossas concepções políticas e que só se tornarão

possíveis ao relacionarmos os significados construídos localmente a contingências

políticas, culturais, institucionais e históricas (MOITA LOPES, 2002). Isso nos leva a

afirmar que ao considerarmos as identidades de nossos interlocutores no processo

discursivo, estamos ao mesmo tempo (re)construindo suas identidades sociais e eles,

as nossas (MOITA LOPES, 2003).

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Essa abordagem pressupõe, por conseguinte, uma visão não essencialista das

identidades sociais, cujo princípio se define não por fatores biológicos, mas como esses

e outros fatores são construídos nas práticas discursivas e sociais (COOK-GUMPERZ,

1995). Temos, com isso, duas visões antitéticas acerca das identidades sociais: uma

visão essencialista e uma visão socioconstrucionista (Ver seção 2.2). Jagose (1996, p.

8), a esse respeito, pondera que:

Enquanto a primeira considera a identidade como natural, fixa e inata, a segunda visão assume que a identidade é fluída, o efeito do condicionamento social a partir dos modelos culturais disponíveis para entender o sujeito.

A visão socioconstrucionista opera, portanto, com uma base epistemológica

corroborada pelo princípio de que as relações de sujeitos e de sentidos (nas quais as

identidades sociais são constituídas) são múltiplas e variadas, isto é, são entendidas

como heterogêneas, contraditórias, e em fluxo, constituintes das práticas discursivas

nas quais atuamos (ORLANDI, 2001).

Tal perspectiva acerca das identidades sociais lida, portanto, com uma visão de

identidade como construção social, implicando o modo como as pessoas se posicionam

ou são posicionadas no discurso com base nas circunstâncias nas quais se situam ou

nas práticas discursivas múltiplas onde atuam, não sendo, portanto, predeterminadas

(BRAIT, 1997).

Ao tomar essa visão de identidade como construção social, portanto, está

implicado o fato de que somos criados, ou melhor, criamos nossas identidades sociais

por meio dos outros a nossa volta, pois “ao antecipar como os participantes podem

responder na interação, com base em quem eles são, nos compomos de formas

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diferentes” (SHOTTER apud MOITA LOPES, 2002, p. 34). Isso significa que nos

posicionamos de formas diferentes, que pessoas são seres produzidos por outros e que

uns ocupam posições de maior poder nas relações assimétricas.

Dentro dessa perspectiva acerca das identidades sociais como construção

social, através da qual sujeitos se constituem para criar sentido no mundo social, é que

concebemos, outrossim, a constituição da categoria social de gênero.

3.2. O gênero como identidade social

“Se há algo de certo na afirmação de Beauvoir de que ninguém nasce mulher e sim torna-se mulher, decorre que mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. Como uma prática discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e re-significações” (BUTLER, 2003, p. 58).

Busco operar aqui com uma compreensão das identidades sociais com base nas

rápidas transições que a sociedade está experimentando devido aos processos

responsáveis por um novo modo de pensar o mundo e suas relações, bem como as

próprias pessoas em seus esforços (ou não) em compreender o que está acontecendo.

A profusão de discursos, possibilitada pelos meios de comunicação cada vez

mais tecnologizados, permitiu uma grande circulação de diversas formas de ver e viver

a experiência humana para além dos limites de tempo e de espaço (CHOULIARAKI &

FAIRCLOUGH, 1999 – Ver seção 2.1). Dinamismo, multiplicidade e contradição são

traços para se compreender o sujeito na contemporaneidade. O contato, portanto, com

outras formas de ser homem / mulher tornou possível não só a compreensão de que a

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experiência humana não se resume a um gênero particular, mas a um repensar das

concepções tradicionais de gênero (MOITA LOPES, 2002).

Isso leva-nos a pensar a questão da identidade como algo múltiplo, a partir das

próprias mudanças que a sociedade vêm nos impondo, dentre as quais a de que a

experiência humana não é limitada a um grupo étnico particular, a uma raça, a um

gênero, a um modo de expressão da sexualidade. A esse respeito, FROSH &

PATTMAN (2002, p. 51) asseveram que:

A modernidade tardia tem também sido caracterizada por uma explosão de políticas identitárias centradas particularmente na afirmação de identidades feministas, gays e lésbicas e de raça, que têm apresentado um grande impacto na sustentabilidade de noções mais tradicionais de masculinidade.

No que diz respeito à questão do gênero, estamos presenciando a uma

pluralidade de esforços na tentativa de reconhecer o gênero como uma construção

social. Diante dessa perspectiva, estamos admitindo que as diferentes instituições e

práticas sociais são constituídas pelos gêneros e são, outrossim, constituintes dos

gêneros. Portanto, tais instituições e práticas “constroem” e são “construídas pelos

sujeitos, o que nos remete a epígrafe acima de que, de fato, o gênero é um termo

sempre em “processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que

tenha uma origem ou um fim. Como uma prática discursiva contínua, o termo está

aberto a intervenções e re-significações” (BUTLER, 2003, p. 58).

Se formos historicizar o conceito de gênero como um construto social,

perceberemos que este se encontra lingüística e politicamente envolvido com a história

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das lutas dos movimentos feministas contemporâneos (LOURO, 2003). A esse respeito,

Giddens (1993, p. 19) indica que:

Do ponto de vista dos gêneros masculino e feminino, a “revolução sexual” dos últimos trinta ou quarenta anos não é apenas, ou mesmo primariamente, um avanço neutro na permissividade sexual. Ela envolve dois elementos básicos. Um deles é a revolução na autonomia sexual feminina - concentrada naquele período, mas possuindo antecedentes que remontam ao século XIX. Suas conseqüências para a sexualidade masculina são profundas e trata-se muito mais de uma revolução inacabada.

Por isso, muito embora ainda persistam estudos que buscam, por meio de um

determinismo biológico, “essencializar” as desigualdades entre homens e mulheres,

entendemos, em consonância com Connell (2001, p.12), que:

A(s) masculinidade(s) e a(s) feminilidade(s) não estão programadas em nossos genes, nem tampouco fixadas pela estrutura social. Elas passam a existir na medida em que as pessoas passam a agir no mundo. Elas são ativamente produzidas, usando os recursos e estratégias disponíveis num dado cenário social.

O conceito de gênero é uma caracterização de cunho sociocultural que surgiu,

portanto, com o intuito de se distinguir da concepção reducionista do dimorfismo sexual

da espécie humana, baseada numa concepção puramente biológica dos sexos. Há

machos e fêmeas na espécie humana, mas a condição de ser homem ou mulher é

condição realizada pela cultura (HEILBORN, 1994). Sobre essa questão, Butler (2003,

p. 24) aponta que:

Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a conseqüência de que homem e masculino podem, com igual

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facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino.

Ao dirigir o foco para o caráter “fundamentalmente social”, não há, contudo, a

pretensão de negar que o gênero se constitui com ou sobre corpos sexuados, ou seja,

não é “negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construção social e

histórica produzida sobre as características biológicas” (LOURO, 2003, p.22).

Verificamos, portanto, que as abordagens pós-estruturalistas distanciam-se das

vertentes que consideram o corpo como uma entidade puramente biológica, para

teorizá-lo como um construto sociocultural e lingüístico.

Essa idéia de os seres humanos serem divididos em dois sexos começou a

ganhar força cultural no século XVIII. Antes disso, para a ciência, havia somente um

sexo: o masculino. A mulher, por sua vez, era apenas um representante inferior desse

sexo (FOUCAULT, 1981).

Nesse sentido, o conceito de dimorfismo sexual para estabelecer a diferença de

gênero entre homens e mulheres veio de encontro com os ideais igualitários da

revolução democrático-burguesa cujo objetivo era o de justificar as desigualdades entre

homens e mulheres, fundamentado-as numa desigualdade natural (LOURO, 2003).

Nesse caso, a “natureza” era invocada como justificativa racional para as

desigualdades de direitos de mulheres e outras minorias construídas pela política e pela

economia da ordem burguesa.

Mediante a essas argumentações, o gênero como relação de poder, de fato,

antecede a diferenciação de sexo biológico; isso porque, ao ignorar o genital feminino e

tomando somente como referência o masculino, já é em si uma evidência da relação

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assimétrica e unilateral de cunho biológico e egocêntrico do homem. Sobre essa

questão, Butler (2003, p. 56) pondera que:

No lugar de uma sexualidade com “identidade masculina”, em que o masculino atua como causa e significado irredutível dessa sexualidade, nós podemos desenvolver uma noção de sexualidade construída em termos das relações fálicas de poder, as quais reestruturariam e redistribuiriam as possibilidades desse falicismo por meio, precisamente, da operação subversiva das “identificações” que são inevitáveis no campo de poder da sexualidade.

Talvez por isso a condição de “ser homem” seja imbricada por atributos

socialmente valorizados, tais como: atividade, força, bravura, coragem, autocontrole,

iniciativa, aptidão para competir, capacidade para dominar e comandar (COSTA, 1989).

Das mulheres, ao contrário, esperam-se características atribuídas e legitimadas pela

sociedade como: passividade, compreensão e delicadeza. E, de fato, tais atributos

imputados a homens e mulheres estão tão cristalizados na sociedade que ajudam a

corroborar a idéia de uma suposta “essência” do que é ser homem ou mulher.

Contudo, a categoria de gênero busca privilegiar a análise e compreensão dos

processos de construção dessas distinções, percebidas em mulheres e homens nas

formas sociais, culturais e históricas. A categoria passa a exigir, segundo Louro (2003,

p. 23), que se pense de forma plural, “acentuando que os projetos e as representações

sobre mulheres e homens são diversos”.

Ao compreender o gênero como uma categoria que se baseia na pluralidade e

nos conflitos dos processos em que a cultura vai construindo e distinguindo corpos e

sujeitos femininos e masculinos, torna-se relevante expressar a articulação de gênero

com outras categorias ou marcas sociais, conforme destaca Louro (2003), como classe,

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raça / etnia, religião, geração, tradicionalidade, regionalidade, sexualidade. Ou, nas

palavras de Connell (2000, p. 29):

O gênero é uma maneira de estruturar a prática social em geral, não um tipo especial de prática, por isso está inevitavelmente envolvido com outras estruturas sociais. É comum agora dizer que o gênero intersecta – ou melhor, ‘interage’ – com raça e classe.

Isso quer dizer que os construtos de gênero estão conectados a outros aspectos

da “vida social e na construção de outras categorias socialmente significantes. Em

outras palavras, isso significa que o gênero não é uma questão de duas categorias

sociais homogêneas, associadas a “ser mulher” e a ‘ser homem’” (ECKERT

MCCONNELL-GINET, 1995, p. 470). Entender o gênero como um construto social

permite, portanto, visualizá-lo dentro de uma gama de possibilidades de realização, o

que, muitas vezes, torna seu significado e classificação muito fugidios. Em virtude

dessa perspectiva, pode-se considerar que a noção de gênero já não pode ser mais

entendida como desvinculada de interseções sociais, políticas, históricas e culturais nas

quais ela é produzida, mas sim vista com um amálgama de identidades sociais em

práticas discursivas particulares (MOITA LOPES, 2006b).

Ao negar qualquer resquício de um essencialismo ou de uma base natural para a

constituição do gênero, Butler (2003, p. 37) o considera como “uma complexidade cuja

totalidade é permanentemente protelada, jamais plenamente exibida em qualquer

conjuntura considerada”. Sob essa perspectiva, a categoria de gênero propõe, portanto,

um afastamento das análises que repousam na definição de papéis e funções

imputadas a mulheres e homens para, dentro de uma concepção mais ampla, conceber

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o fato de que as instituições sociais, os símbolos, as normas, os conhecimentos, as leis,

as doutrinas e as políticas de uma sociedade são “constituídas e atravessadas por

representações e pressupostos de feminino e masculino e que estão diretamente

implicadas com sua produção, manutenção ou re-significação” (MEYER, 2003, p.18).

Tomando como base esses parâmetros, é possível perceber, por conseguinte,

que as possibilidades da sexualidade, por exemplo – das formas de expressar os

desejos e prazeres – também são, assim como o gênero, sempre socialmente

estabelecidas. Tal concepção se aplica, por exemplo, ao sujeito de pesquisa (Johnny),

que, embora seja um indivíduo do sexo masculino, se constrói identitariamente, no

mundo virtual, como uma menina que sente desejos por meninos (Ver seção 8.1).

Nesse sentido, podemos afirmar que as identidades de gênero e de sexualidade se

constroem numa relação conjunta, ou melhor, “queremos significar algo distinto e mais

complexo do que uma oposição entre dois pólos; pretendemos dizer que as várias

formas de sexualidade e de gênero são interdependentes, ou seja, afetam umas às

outras” (LOURO, 1997, p.49).

Essas novas formas de viver a experiência humana têm abalado projetos

essencialistas de gênero, colocando em xeque, sobretudo, a construção da feminilidade

e da masculinidade hegemônicas, representada pela dicotomia homem-mulher, uma

vez que as diferenças entre eles têm sido cada vez mais entendidas em termos de

construção social, afastando, com isso, “proposições essencialistas sobre os gêneros; a

ótica está dirigida para um processo, para uma construção, e não para algo que existia

a priori” (LOURO, 2003, p.23).

Dentro desse campo epistemológico, percebe-se que o mais interessante é

como todos somos atores neste espetáculo de gênero, ou somos intérpretes desses

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ideais de gênero que não possuem vínculo necessário algum com o corpo biológico,

visto que os meios através dos quais homens e mulheres agem no mundo social

precisam ser vistos como práticas de gênero que são relacionais, contraditórias e

múltiplas (FROSH & PATTMAN, 2002). Daí decorre que a matriz cultural por intermédio

da qual a identidade de gênero “se torna inteligível exige que certos tipos de

‘identidade’ não possam existir – isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo

e aquelas em que as práticas do desejo não decorrem nem do ‘sexo’ nem do ‘gênero’”

(BUTLER, 2003:39).

Se dentro dessa visão acerca da identidade social de gênero não se

compreende o sujeito de forma unívoca, bem como se desconstrói a dicotomia existente

entre masculinidade / feminilidade, visto que esta divisão pressupõe uma essência ou

um ideal masculino ou feminino de ser, então, devemos operar com construtos que

abarquem a multiplicidade de possibilidades do que vem a ‘ser homem’ ou ‘ser mulher’.

Em outras palavras, devemos pensar, por conseguinte, em masculinidades e

feminilidades como “realizações plurais, inscritas numa instituição social, histórica e por

isso contingente, não natural, não universal, uma vez que culturas diferentes, e

diferentes períodos da história constroem o gênero diferentemente” (CONNELL, 2000,

p. 10).

Contudo, não basta apenas que se atribuam realizações plurais ao gênero;

devemos, pois, buscar entendê-lo como uma categoria social que está sempre

imbricada a relações de poder. Portanto, dedico a próxima seção a discutir acerca

dessa relação entre gênero e poder.

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3.3. Gênero e Poder

“A noção binária de masculino/ feminino constitui não só a estrutura exclusiva em que essa especificidade pode ser reconhecida, mas de todo modo a “especificidade” do feminino é mais uma vez totalmente descontextualizada, analítica e politicamente separada da constituição de classe, raça, etnia e outros eixos de relações de poder, os quais tanto constituem a “identidade” como tornam equívoca a noção singular de identidade” (BUTLER, 2003, p. 21).

Ao analisarmos os conceitos gênero e poder (Ver seção 2.3), percebemos que

estes estão intrinsecamente relacionados, tornando-se mecanismos sociais de domínio

versus dominado, maioria versus minoria, prestígio versus desprestígio, inclusão versus

exclusão, entre outros (FROSH & PATTMAN, 2002). Segundo Gilbert (1997, p. 70), “os

nós, sujeitos sociais, somos sempre posicionados pelo nosso gênero e lidos através de

nosso gênero, mesmo quando tentamos nos escrever fora, ou além, de dualismos

generificados e sistemas de sentidos patriarcais”.

Para Thompson (2000), as relações de poder são assimétricas quando

indivíduos ou grupos de indivíduos particulares possuem um poder de maneira estável,

de tal modo que exclua outros indivíduos. Pode-se falar, nesses casos, de indivíduos ou

grupos dominantes e subordinados. Nesse sentido, uma relação de dominação pode

ser estabelecida de diversos modos: dominação de gênero, relações de dominação de

classe, de raça, entre outros (LOURO, 2001). Um tipo de dominação não é mais grave

do que o outro, pois o resultado é o agravamento do processo de exclusão, ou seja, são

extraídos das pessoas seus direitos à cidadania simplesmente por pertencerem à

determinada classe social, por serem de determinada raça, ou representarem um

gênero específico (THOMPSON, 2000).

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Portanto, mesmo reconhecendo que as relações de gênero são construídas

socialmente e que, por isso, estão sempre abertas a re-significações (BUTLER, 2003),

conforme apontei na seção anterior, é preciso, outrossim, compreender que as mais

variadas masculinidades e / ou feminilidades não coexistem de forma passiva na

sociedade, mas se inter-relacionam por meio de relações de poder (FOULCAULT,

1979). Existem, portanto, “relações hierárquicas em que algumas masculinidades são

consideradas dominantes, enquanto outras são subordinadas e marginalizadas”

(CONNELL, 2000, 10).

A busca, então, da reificação do binário assimétrico masculino / feminino ocorre

por meio de uma “unidade do gênero que é efeito de uma prática reguladora que busca

uniformizar a identidade de gênero por meio da heterossexualidade compulsória”

(BUTLER, 2003, p. 57). A força dessa prática é atribuída a relações de pode de efeito

regulador e, por conseguinte, excludente, uma vez que não contempla possibilidades

de re-significação e, até mesmo, de subversão.

Se a “masculinidade” e a “feminilidade” podem ser re-significadas e subvertidas,

então, podemos enxergar outras masculinidades e / ou outras feminilidades sem que se

atribua valor maior a nenhuma delas. Nesse aspecto, Connell (2000, p. 11) ainda

assevera que a forma “hegemônica não precisa ser a forma mais comum de

masculinidade. Na verdade, muitos homens vivem num estado de tensão, ou até

mesmo de distância, em relação à sua cultura ou comunidade”. Tal pressuposição

corrobora a idéia de que não existiria uma masculinidade ou feminilidade a partir da

qual as outras seriam constituídas, mas sim masculinidades coexistindo nas suas mais

variadas formas, cujo valor supostamente imputado a cada uma delas não seria tão

relevante para sua constituição.

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Por isso, para que possamos tecer considerações acerca dos “matizes de

gênero” (BUTLER, 2003), temos que pensar na dimensão desses conceitos presentes

nas relações sociais, não somente como a simbolização de identidades definidas na

sociedade que constroem um ser masculino ou um ser feminino, mas como uma teia de

relações que são estabelecidas em complexas redes de poder, que, através das

instituições, dos discursos, dos códigos, das práticas e dos símbolos, constituem

hierarquias entre os gêneros (LOURO, 2003).

Osterne (2001) expressa sua preocupação ao apontar que a condição masculina

passa pelo processo de dominação, isso porque, segundo Bourdieu (2004), ela

funciona como um princípio universal de visão e divisão, como um sistema de

categorias de controle. Nesse sentido, Fraser (2002), em uma análise sócio-política das

lutas de gêneros de políticas feministas, argumenta que uma das características da

injustiça de gênero é o androcentrismo que supervaloriza traços associados ao

masculino e desvaloriza traços associados ao feminino, e que padrões androcêntricos,

tendem a ser constantemente institucionalizados, criando sulcos de interação social e

se infiltrando, de um modo geral, em todas as áreas da sociedade (FRASER, 2002).

Percebemos, com isso, que o reconhecimento da história da dominação

masculina está presente em muitas culturas, sobretudo no ocidente, e que o

reconhecimento da autonomia conquistada pelas mulheres gera determinações sobre a

condição masculina e sobre as relações de gênero (LOURO, 2001). O homem é

socialmente percebido como poderoso e essas outras categorias são frágeis. Isso é

fruto do processo cultural de simbolização, como mostra Bourdieu (2001), e a

dominação masculina está suficientemente assegurada em vários contextos para exigir

justificativas.

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Desse modo, quando nos dispomos a discutir a construção da categoria de

gênero, temos que pensar que diferenças e desigualdades de gênero, com base em

todos esses desdobramentos, estão dentro da análise de processos sociais mais

amplos que marcam e discriminam sujeitos como diferentes (LOURO, 2001), tanto em

função de seu gênero, quanto na maneira em que este estabelece articulações,

conforme já apontei anteriormente, com outras identidades como: raça, sexualidade,

classe social, religião, aparência física, nacionalidade.

Nesse sentido, observar, por exemplo, as práticas de letramento nas quais nos

engajamos pode contribuir para compreendermos como as identidades sociais são

construídas nas práticas sociais por meio de relações de poder. Em face disso, dedico

o capítulo seguinte a discorrer acerca do letramento.

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___________________________

5 Kleiman (1995), ao discutir sobre a questão da origem do letramento, afirma que o termo advém da palavra inglesa Literacy. Aqui no Brasil, segundo a autora, o termo começou a ser utilizado por especialistas das áreas de educação e das ciências lingüísticas a partir da publicação da obra da Professora Mary Kato, em seu livro “No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística” de 1986.

4. LETRAMENTO

4.1. Letramento como Prática Social

“Os estudos de letramento como prática social têm passado a focalizar os contextos de construção de significado, os participantes, suas ideologias, identidades sociais, histórias, seus projetos políticos etc., entendendo o letramento […] como práticas discursivas, ou seja, como modos de usar a linguagem e fazer sentido tanto na fala quanto na escrita” (GEE 1994 apud MOITA LOPES, 2005, p. 49)

Ao se pensar sobre a questão do letramento5, a idéia que se tem, de imediato, é

única e exclusivamente a escola e os meios tradicionais nela desenvolvidos para

aprender a ler e escrever. Contudo, temos assistido, nos últimos anos, a uma explosão

de novas práticas de letramento, consubstanciadas pelas novas tecnologias, que vêm

fazendo parte, de forma cada vez mais crescente, das mais diversas esferas da vida

social. Por isso, quando, hoje, se reflete acerca de tipos de letramentos, pode-se

mencionar uma multiplicidade de novos tipos de interações por meio de textos e

hipertextos, gerados na / pela mídia eletrônica ao lado do, então, letramento

“tradicional” escolar que, por sua vez, passa a ser apenas mais um tipo de letramento

(LANKSHEAR & KNOBEL, 1997). E, com o fito de tentar compreender o letramento

como prática social – noção que subjaz à presente pesquisa – mostrarei, neste capítulo,

algumas visões acerca do letramento, que se estendem desde uma visão mais

tradicional a concepções de letramento mais recentes, como o letramento digital.

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Pesquisas e abordagens relativamente recentes no campo do letramento

(GRAFF, 1994, KLEIMAN, 1995; SCRIBNER & COLE, 1981; SIGNORINI, 1998;

SOARES, 1998; STREET, 1984) passaram a não mais enfocar o letramento como um

fenômeno universal, indeterminado social e culturalmente, responsável pelo progresso,

civilização, acesso ao conhecimento e mobilidade social, visto que, conforme assevera

Signorini (1994, p. 21):

Essa idéia de “letra” como a chave para se decifrar (ou conquistar) o “mundo”, independentemente de variáveis contextuais de qualquer natureza, nos remete a um mito consolidado nos dois últimos séculos via tradições culturais ocidentais de prestígio e que é constitutivo não só dos discursos institucionais sobre as vantagens de se saber ler e escrever, como também do senso comum: o “mito do letramento”.

Soares (1998, p. 39) define letramento como “o estado ou a condição que

adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da

escrita e de suas práticas sociais”. Nesse sentido, uma pessoa que sabe ler e escrever

(alfabetizada) não seria, necessariamente, letrada. Letrado seria, então, aquele sujeito

que “além de saber ler e escrever, faz uso freqüente e competente da leitura e da

escrita” (Ibidem, p. 36).

Tfouni (1995), por sua vez, vai mais além nessa questão. Para ela, o termo

letramento surgiu para suprir a necessidade de se ter uma palavra que pudesse

designar “o processo de estar exposto aos usos sociais da escrita, sem, no entanto,

saber ler e escrever” (Tfouni, 1995, p. 8).

Sob essa perspectiva, Tfouni (1995) conceitua o termo letramento em confronto

com a alfabetização: “enquanto a alfabetização ocupa-se da aquisição da escrita por

um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos

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da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade” (Ibidem., p. 20). A autora

reafirma essa diferença entre alfabetização e letramento insistindo no caráter individual

daquela e social deste. A alfabetização, portanto, refere-se à aquisição da escrita como

aprendizagem de habilidades para leitura. Isso é levado a efeito, em geral, por meio do

processo de escolarização e, portanto, da educação formal. A alfabetização pertence,

assim, ao âmbito do individual. O letramento, por sua vez, focaliza os aspectos sócio-

históricos da aprendizagem da escrita. Desse modo, procura estudar e descrever o que

ocorre nas sociedades quando adotam um sistema de escritura de maneira restrita ou

generalizada; procura ainda saber quais práticas psicossociais substituem as práticas

“letradas” em sociedades ágrafas.

Assim, para Tfouni (1995), letramento são as conseqüências sociais e históricas

da introdução da escrita em uma sociedade. Do mesmo modo, Bastista & Galvão (1999,

p. 33) ponderam que o conceito de alfabetização tem sido utilizado como “o processo

de aquisição das habilidades básicas de leitura e de escrita, enquanto o letramento se

refere aos usos efetivos que um indivíduo ou um grupo social fazem da leitura e da

escrita”. Dessa forma, o letramento estaria voltado para o estudo das influências de

uma sociedade letrada na vida de um indivíduo, ressaltando as mudanças

comportamentais, culturais e cognitivas que ocorrem nos sujeitos, alfabetizados ou não.

Nesse sentido, as pessoas que não são alfabetizadas, mas que vivem numa sociedade

letrada não poderiam, portanto, ser consideradas iletradas.

Kleiman (1995, p. 19), por sua vez, define letramento como “conjunto de práticas

sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em

contextos específicos, para objetivos específicos”. A partir desse conceito, pode-se

inferir que as práticas de letramento mudam conforme muda o contexto onde estão

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inseridas, e, por conseguinte, é possível dizer também que as orientações de

letramento são específicas em cada uma de suas agências, sejam elas: a escola, a

família, a igreja, o local de trabalho, o mundo virtual, dentre outras.

A autora vai mais longe em sua argumentação ao mostrar que a escola, principal

agência do letramento, “preocupa-se não com o letramento, prática social, mas apenas

com um tipo de prática de letramento, a alfabetização” (Ibidem, p. 20). Em outras

palavras, isso quer dizer que a escola privilegia a aquisição do código escrito em

detrimento ao desenvolvimento de habilidades para usar a leitura e a escrita em

diversos contextos sócio-culturais.

Com base nessa visão, Kleiman (1995), com base em Street (1984), distingue

dois modos de se pensar o letramento, que vêm aparecendo nas pesquisas das últimas

duas décadas: o “modelo autônomo” e o “modelo ideológico”. O primeiro, que se

coaduna com a concepção tradicional de letramento, segundo Kleiman (1995, p. 21),

“pressupõe que há apenas uma maneira de o letramento ser desenvolvido, sendo que

essa forma está associada quase que casualmente com o progresso, a civilização, a

mobilidade social”. Pode-se, por conseguinte, pensar que essa concepção de

letramento se define, principalmente, por pressupor uma maneira única e universal de

desenvolvimento do letramento, quase sempre associada a resultados e efeitos

civilizatórios, de caráter individual (cognitivos) ou social (tecnológicos, de progresso e

de mobilidade social). Nesse modelo que, segundo a autora, é o que prevalece em

nossas escolas, a escrita é considerada como um produto acabado, por isso, sua

interpretação independe do contexto de sua produção e é onde se valoriza a

dicotomização entre a oralidade e a escrita.

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Já no “modelo ideológico”, Kleiman (Ibidem, p. 22), baseada em Street (1984)

aponta que:

As práticas de letramento, no plural, são social e culturalmente determinadas e, como tal, os significados específicos que a escrita assume para um grupo social dependem de contextos e instituições em que ela foi adquirida. Não pressupõe, esse modelo, uma relação causal entre letramento e progresso ou civilização, ou modernidade, pois, ao invés de conceber um grande divisor entre grupos orais e letrados, ele pressupõe a existência e investiga as características, de grandes áreas de interface entre práticas orais e letradas.

Contrapondo-se ao modelo autônomo, o modelo ideológico permite que se

considere, por exemplo, a oralidade como instrumento importante para dar continuidade

ao processo de desenvolvimento lingüístico dos alunos, uma vez que isso traz aspectos

culturais e de poder para as práticas de letramento. Ou, nas próprias palavras de Street

(1984, p. 161), no modelo autônomo de letramento, estuda-se o letramento com base

em “seus aspectos técnicos, independentes do contexto social, e, no modelo ideológico,

as práticas de letramento são vistas como inextricavelmente ligadas às estruturas

culturais e de poder em uma dada sociedade”.

À luz dessa concepção, o letramento passa a ser entendido como práticas

sociais de leitura e escrita situadas nos eventos em que essas práticas são postas em

ação, bem como as suas próprias conseqüências sobre a sociedade. A esse respeito

Moita Lopes (2005, p. 49) assevera que:

Ainda que seja verdade que as habilidades decodificativas e cognitivas desempenhem um papel importante quando os participantes se envolvem em práticas de letramento, estudos mais recentes neste campo têm chamado atenção para o letramento como um evento social situado.

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Conseqüentemente, ao contrário do modelo autônomo, os pesquisadores que

adotam a perspectiva do modelo ideológico vão investigar práticas (plurais) de

letramento, contextualizadas em esferas sociais específicas (grupos, instituições,

contextos), em que funcionamentos discursivos particulares da esfera social estarão

atrelados a uma pluralidade de relações complexas, dentro de práticas letradas tanto

orais quanto escritas, que, portanto, não podem mais ser vistas de maneira dicotômica.

Podemos, então, argumentar que as relações de causa e efeito entre poder,

acesso (e sucesso) social e saber escolarizado, historicamente relacionadas à

universalização da racionalidade científica e tecnológica nas sociedades ocidentais

modernas, passam, portanto, no modelo ideológico, a ser questionadas, pois, em se

tratando de “grupos de maior prestígio na sociedade, as práticas letradas também estão

comprometidas com os mecanismos de dominação/ subordinação político-ideológicos

dos sócio-economicamente marginalizados” (SIGNORINI, 1994, p. 21).

Dentro dessa perspectiva de letramento, portanto, as próprias práticas letradas

escolares passam a ser consideradas apenas como um tipo de prática social de

letramento (ou uma agência de letramento dentre tantas outras como a família, a igreja,

o local de trabalho, etc.), que, embora continue sendo, nas sociedades complexas, um

tipo dominante - relativamente majoritário e abrangente -, desenvolve apenas algumas

capacidades e não outras (KLEIMAN, 1995).

Tomando como base, portanto, a concepção de letramento como prática social,

noção que subjaz a este capítulo, passo a discutir a seguir acerca das práticas sociais

de letramento consubstanciadas na Internet: o letramento digital.

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4.2. Letramento Digital

“Praticar letramentos tecnológicos dentro dos ambientes do ciberespaço fornece oportunidades valiosas para que os aprendizes possam explorar as implicações sociais de vários grupos e indivíduos de práticas discursivas particulares e ordens do discurso” (LANKSHEAR, C. & KNOBEL, 1997, p. 159).

As novas tecnologias do mundo virtual contribuíram para uma mudança profunda

no mundo em que vivemos: a economia da informação e a nova sociedade de rede

cresceram repentinamente e as aplicações da vida real relativas ao comércio eletrônico

e ao aprendizado reforçado pela Internet prosperaram (Ver seção 5.1).

Estamos vivenciando, segundo Soares (2002, p. 1), “a introdução, na sociedade,

de novas modalidades de práticas sociais de leitura e de escrita, propiciadas pelas

recentes tecnologias de comunicação eletrônica – o computador, a rede (a web), a

Internet”. Esse momento é, portanto, bastante privilegiado para buscar entender, a

partir da introdução dessas novas práticas de leitura e de escrita, a condição em que

estão se instituindo as práticas de leitura e de escrita digitais, uma vez que esse novo

tipo de letramento no ciberespaço nos leva, de fato, a um estado diferente daqueles

que sempre guiaram as práticas de leitura e de escrita antes da era da Internet

(SOARES, 2002).

Nesse sentido, é possível dizer que a tela como espaço de escrita e de leitura

traz não apenas novas formas de acesso à informação, mas também novos processos

cognitivos, novas formas de conhecimento, novas maneiras de ler e de escrever, enfim,

um novo letramento, isto é, um novo estado ou condição para aqueles que exercem

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práticas de escrita e de leitura no computador. A esse respeito, Cope & Kalantzis (2000,

p. 5) ponderam que:

Tem havido uma integração e multiplicidade crescentes de modos significantes de fazer sentido, em que o textual está também relacionado ao visual, ao áudio, ao espacial, ao comportamental, e assim por diante. E isso é particularmente importante na hipermídia eletrônica.

Essa multiplicidade cada vez maior de criar sentido através de meios

multimodais é tão imensa e complexa que proporciona uma mudança na própria

concepção que se tem sobre letramento (LÉVY, 1996). Em certos aspectos essenciais,

essa nova cultura do texto eletrônico, ao contrário do texto impresso, não é estável e é

pouco controlada. Não é estável porque os usuários, ao fazerem uso dos textos virtuais,

podem interferir neles, acrescentar, alterar, definir seus próprios caminhos de leitura; e

é pouco controlado porque a liberdade de produção de textos na tela não só é muito

grande como é, muitas vezes, ausente o controle da qualidade e conveniência daquilo

que é produzido e difundido no espaço virtual (MARCHUSCHI, 1999; XAVIER, 2005).

Esse novo tipo de letramento, batizado de letramento digital (ou informacional,

ou ainda computacional), é, segundo Carmo (2003), um conjunto de conhecimentos

que permite às pessoas participarem, por meio de práticas letradas mediadas por

computadores e outros dispositivos eletrônicos do mundo contemporâneo. Essa nova

prática de letramento surgiu a partir do desenvolvimento da Internet, junto com diversos

outros bancos de dados públicos e comerciais on-line, o que passou a permitir um

acesso pessoal sem precedentes às informações mundiais.

O letramento digital se refere, portanto, às habilidades interpretativas de leitura e

de escrita necessárias para que as pessoas se comuniquem efetivamente por meio da

mídia on-line. A esse respeito Xavier (2005, p. 2) assevera que:

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O Letramento digital implica realizar práticas de leitura e escrita diferentes das formas tradicionais de letramento e alfabetização. Ser letrado digital pressupõe assumir mudanças nos modos de ler e escrever os códigos e sinais verbais e não-verbais, como imagens e desenhos, se compararmos às formas de leitura e escrita feitas no livro, até porque o suporte sobre o qual estão os textos digitais é a tela, também digital.

Nesse sentido, os letramentos digitais envolvem desde o conhecimento

específico acerca do uso do computador, como o domínio de um programa de

navegação, a habilidades de letramento mais amplas, tais como a análise e a avaliação

das fontes de informações disponibilizadas no mundo virtual (XAVIER, 2005). E muitas

dessas habilidades também eram importantes na era pré-Internet, porém, assumiram

maior importância nesse momento, devido à grande quantidade de informações do

ciberespaço. Carmo (2003, p. 3), sobre a questão do “letrado eletrônico”, afirma que:

O letrado eletrônico seria aquele que dispõe não só de conhecimento sobre propriedades do texto na tela que não se reproduzem no mundo natural como também sobre as regras e convenções que o habilitam a agir no sentido de trazer o texto à tela. E é capaz ainda de interagir com uma gama ampla de textos e está mais apto a adquirir conhecimento sobre novos tipos de texto e gêneros discursivos no meio eletrônico.

Contudo, é preciso levar em consideração que, na mídia eletrônica digital, muitas

dessas informações on-line são, até mais freqüentemente do que em outros tipos de

mídia, de qualidade duvidosa, uma vez que o próprio controle de publicação pode ser

alterado: enquanto, na cultura impressa, editores, conselhos editoriais decidem o que

vai ser impresso, determinam os critérios de qualidade, portanto, instituem autorias e

definem o que é oferecido a leitores, o computador possibilita a publicação e

distribuição na tela de textos que escapam à avaliação e ao controle de qualidade:

qualquer um pode colocar na rede, e para o mundo inteiro, o que quiser (CARMO,

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2003). A exemplo disso, é possível encontrar artigos científicos expostos na rede sem

qualquer controle dos conselhos editoriais, ficando disponível para qualquer um ler e

decidir individualmente sobre sua qualidade ou não.

Com base nos vários pressupostos aqui feitos sobre a escrita e a leitura na

cultura da tela e no confronto entre tecnologias tipográficas e digitais de escrita e seus

múltiplos efeitos sobre quem as utiliza (SOARES, 2002), podemos, então, não mais

pensar em letramento como algo singular, mas sim sugerir que se pluralize a palavra e

que se reconheça que diferentes tecnologias de escrita criam diferentes letramentos. A

esse respeito, Soares (2002, p. 9) propõe que:

O uso do plural letramentos enfatiza a idéia de que diferentes tecnologias de escrita geram diferentes estados ou condições naqueles que fazem uso dessas tecnologias, em suas práticas de leitura e de escrita: diferentes espaços de escrita e diferentes mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita resultam em diferentes letramentos.

Em outras palavras, podemos afirmar que, dado esse caráter múltiplo que o

letramento assume, o uso do termo no plural letramentos seria mais adequado à

teorização sobre letramento que estamos procurando desenvolver aqui, cujo ponto

central é a idéia de que diferentes tecnologias de escrita e de leitura geram diferentes

estados ou condições naqueles que fazem uso dessas tecnologias, em suas práticas de

leitura e de escrita (CARMO 2003). Em outras palavras, diferentes espaços de escrita e

diferentes mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita e da leitura

resultam em diferentes letramentos. Ruddell & Singer (1994, p. 147), a esse respeito,

apontam que:

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O letramento está sendo continuamente definido, redefinido, construído, e reconstruído na vida social ou no grupo. O resultado desse processo não é uma definição simples de letramento, mas uma compreensão da multiplicidade de letramentos que os indivíduos enfrentam ao se tornarem membros de grupos e comunidades que estão sempre se expandindo.

Na verdade, essa necessidade de pluralização da palavra letramento e,

portanto, do fenômeno que ela designa já vem sendo bastante reconhecida na tentativa

de designar diferentes efeitos cognitivos, culturais e sociais ora em função dos

contextos de interação com a palavra escrita, ora em função de variadas formas de

interação com o mundo, não só a palavra escrita, mas também a comunicação visual,

auditiva e espacial (SEMALI, 2005).

Por isso, para que se possa pensar em construção de conhecimento numa

sociedade letrada, não basta apenas saber ler e escrever ou ter acesso às mídias de

informação e comunicação; é preciso, outrossim, que se interprete, através de um olhar

crítico, o que se leu ou que se ouviu, associando as informações apresentadas com as

experiências e vivências do dia-a-dia. A esse respeito Fróes (2001, p.05) indica que:

É possível reunir várias informações, seja em uma folha de papel ou em um hard disk de computador. Elas estão lá, disponíveis, insistentemente disponíveis, mas para que tenham algum significado para alguém, elas precisam que algo aconteça, elas precisam ser interpretadas, caracterizando assim um ato de criação interpretativa, uma atualização.

Uma pessoa que possui, portanto, letramento digital estaria mais preparada para

participar do mundo contemporâneo, porque, mesmo afastada dos bancos escolares,

poderá conhecer e se adaptar às mudanças decorrentes do aparecimento das novas

tecnologias de informação e comunicação e à conseqüente invasão de informações que

nos rodeiam (FRÓES, 2001). De fato, há uma grande diferença entre informação e

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6 Os links são um vínculo de hipertexto na Internet que aparecem nos documentos e se manifestam ora como palavras, ora como imagens grafadas em destaque, e que permitem ao usuário visualizar blocos de informações (outros textos, fragmentos de informação, gráficos, fotos, etc.). Por meio desse recurso, são estabelecidas ligações para arquivos de um mesmo site ou de diferentes sites. Os links também podem ser um dispositivo da codificação HTML, que acionam um sistema de comunicação, geralmente um e-mail (correio eletrônico). O termo foi empregado, pela primeira vez, por Theodor Holm Nelson em 1964, relacionando-o ao conceito de “hipertexto”, para a criação do primeiro software com links da história chamado Xanadu. Vinte anos depois, seus conceitos foram utilizados na criação da World Wide Web.

conhecimento, e o letramento digital pode ser decisivo para a capacidade de

transformar a primeira no segundo.

E uma das ferramentas mais comuns para construir sentido nas práticas de

letramento digital é o uso dos hipertextos, que, conforme pude observar, ocorre com

uma certa freqüência em um dos corpora desta pesquisa de dissertação (Ver seção

7.2).

Segundo Marchuschi (1999, p. 1), o hipertexto seria um modo de se construir

“uma escritura eletrônica não-seqüencial e não-linear, que se bifurca e permite ao leitor

o acesso a um número praticamente ilimitado de outros textos a partir de escolhas

locais e sucessivas, em tempo real”. Dentro de um hipertexto existem, de acordo com o

autor, vários links6, que permitem tecer o caminho para outras “janelas”, conectando

algumas expressões a novos textos, fazendo com que estes se distanciem da

linearidade da página e se pareçam mais com uma rede. Na Internet, cada site é um

hipertexto – clicando em certas palavras vamos para novos trechos, e vamos

construindo, nós mesmos, uma espécie de texto. De acordo com Jay Bolter (1991,

p.27), “as partes de um hipertexto podem ser agrupadas e reagrupadas pelo leitor”.

Cada uma das páginas da rede é construída, portanto, por vários autores:

programadores, designers, projetistas gráficos, autores do conteúdo do texto etc.

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É nesse sentido que podemos conceber o hipertexto digital como um meio

multimodal para acesso a informações no ciberespaço. Lévy (1996, p.44) aponta que:

O hipertexto digital permite novos tipos de leituras (e de escritas) coletivas. Um continuum variado se estende assim entre a leitura individual de um texto preciso e a navegação em vastas redes digitais no interior das quais um grande número de pessoas anota, aumenta, conecta os textos uns aos outros por meio de ligações hipertextuais [...] O hipertexto digital seria portanto definido como uma coleção de informações multimodais disposta em rede para a navegação rápida e “intuitiva”.

Um hipertexto digital, portanto, vai muito mais além da concepção tradicional de

leitura e escrita da qual sempre fizemos uso, como é possível perceber em algumas das

conversas do sujeito de pesquisa com outros interactantes no mundo virtual (Ver seção

7.2). Segundo Marchuschi (1999, p.2), ao permitir vários níveis de tratamento de um

tema, o hipertexto virtual “oferece a possibilidade de múltiplos graus de profundidade

simultaneamente, já que não tem seqüência nem topicidade definida, mas liga textos

não necessariamente correlacionados”. Nesse caso, podemos ponderar que o

hipertexto se torna um componente bastante subversivo quanto à forma, uma vez que

amplia os recursos expressivos do texto escrito com meios multimodais, articulando

sons, fotos, vídeos, cores e palavras, como é o caso das salas de bate-papo, em que

vários meios multimodais são usados para a comunicação entre os interactantes (Ver

sub-seção 6.3.1.2).

Sob essa perspectiva, podemos afirmar que o hipertexto digital muda a própria

concepção que temos acerca do texto. Os meios audiovisuais conquistam, cada vez

mais, o espaço da mensagem, como, por exemplo, os emoticons, hipertextos em forma

de diversas “figuras”, usados nas salas de bate-papo da Internet, que podem expressar

diversos sentimentos dos usuários e que se prestam a substituir certas palavras (Veja

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ANEXO 4). Alguns deles, por exemplo, apresentam, inclusive, links que, além de

exibirem um conteúdo com diversas imagens e sons, estabelecem uma conexão com

outros textos e / ou outros hipertextos. Os emoticons têm a capacidade de conduzir um

interactante a interpretações de ordem subjetiva – afetivas e/ou comportamentais – dos

significados que carrega, devendo, desse modo, exprimir aspectos que, em geral, só

eram possíveis no contato face-a-face.

É possível dizer, portanto, que a multiplicidade de hipertextos que existem no

mundo virtual traz consigo outros modos de construir sentido na comunicação social.

Nesse sentido, LANKSHEAR & KNOBEL (1997, p. 153) ponderam que:

Práticas sociais baseadas no texto digital deram um novo escopo à experimentação e à criatividade evidentes no desenvolvimento de novos vocabulários, sinais e códigos pelos participantes. Isto novamente reforça a vontade humana para a prática da atividade, da invenção e da transformação.

Essas informações do mundo virtual, consubstanciadas pelos hipertextos digitais,

são, por sua vez, provisórias, uma vez que obedecem a um ritmo específico de

pertinência mais ou menos imediata. A informatização instaura um novo tipo de regime

de circulação e de metamorfose das representações e dos conhecimentos. A esse

respeito Lèvy (1996, p. 36) aponta que:

Carteiros do texto, viajamos de uma margem à outra do espaço do sentido, valendo-nos de um sistema de endereçamento e de indicações que o autor, o editor, o tipógrafo balizaram. Mas podemos desobedecer às instruções, tomar caminhos transversais, produzir dobras interditas, estabelecer redes secretas, clandestinas, fazer emergir outras geografias semânticas.

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De fato, as novas produções hipertextuais, consubstanciadas pelas novas

tecnologias, nos permitem reavaliar e até (re)construir nossas práticas sociais, podendo

fazer com que elas “mudem e alterem de forma tal a constituírem um novo evento”

(MARCHUSCHI, 1999, p. 3). Nesse sentido, ser letrado digitalmente é, por conseguinte,

estar envolvido em certas práticas discursivas para construir sentidos, que buscam lidar

cada vez mais com meios hipertextuais multimodais que unem o textual, visual, áudio,

espacial, comportamental etc (COPE & KALANTZIS, 2000). Assim, podemos afirmar

que a possibilidade de se engajar em uma multiplicidade de discursos, de modo a

constituir-se como um ser discursivo na vida social, já é em si um ato de se tornar

letrado, uma vez que é a partir do discurso que podemos (re)construir quem somos nas

mais diversas comunidades de prática das quais fazemos parte (MOITA LOPES, 2005).

Como o contexto de pesquisa no qual este estudo se baseia é o ciberespaço

(Ver seção 5.2) e, conforme foi mostrado no presente capítulo, os letramentos e os

hipertextos digitais são mecanismos inerentes ao mundo virtual, dedico o último capítulo

do aporte teórico deste trabalho a compreender o ciberespaço e suas implicações na

(re)construção de múltiplas identidades sociais.

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5. CIBERESPAÇO

5.1. O conceito de Ciberespaço

“O ciberespaço é um fluxo. Suas inúmeras fontes, suas turbulências, sua irresistível ascensão oferecem uma surpreendente imagem da inundação de informação contemporânea. Cada reserva de memória, cada grupo, cada indivíduo, cada objeto pode tornar-se emissor e contribuir para a enchente. A esse respeito, Roy Ascott fala, de forma metafórica, em segundo dilúvio. O dilúvio de informações. Para melhor ou pior, esse dilúvio não será seguido por nenhuma vazante. Devemos portanto nos acostumar com essa profusão e desordem” (LÉVY, 1999, p. 9).

Antes de tratar do ciberespaço como contexto de pesquisa e um objeto de

estudo para a compreensão da (re)construção das identidades sociais, é conveniente

que sejam feitas algumas considerações conceituais, no sentido de tornar claro o

referencial sobre o qual se desenvolverão as reflexões sobre esse tema.

Segundo Filho (2003, p. 2), o ciberespaço se caracteriza “como um amplo

sistema ramificado que opera diretamente com a produção de trocas simbólicas e

processos de significação na esfera virtual”. O termo “ciberespaço” (do inglês,

cyberspace) foi cunhado pela primeira vez pelo escritor canadense de ficção científica

William Gibson em 1984 no seu livro Neuromancer. Esse termo veio dar novas

características a vários termos referentes ao mundo virtual usados atualmente, tais

como: cibercultura, ciberpunk e cibersexo.

A obra Neuromancer trata da história de Case, uma espécie de super-hacker do

futuro, especializado em penetrar em sistemas de grandes empresas para espalhar

vírus e obter informações sigilosas. No mundo em que ele habita, a tecnologia

consegue transformações espantosas na biologia do ser humano, como os muitos

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personagens que possuem seus corpos alterados através de implantes artificiais, tanto

de natureza biológica quanto eletrônica. Ao longo da narrativa, os personagens entram

em contato com drogas de fácil aplicação e efeitos imediatos, que oferecem muitos,

alguns novos, estados de consciência e percepção. Neuromancer é uma história que,

por suas características, extrapolou a condição de ficção e se tornou uma referência

acerca do ciberespaço tal qual o concebemos atualmente (LEVY, 1997). É uma

demonstração sobre como as tecnologias podem alterar as relações humanas, o ritmo

de sobrevivência e a própria percepção da vida real, na tentativa de redefinir o retrato

de um futuro no qual a vida humana será fortemente permeada pela intervenção de

muitas tecnologias, e onde a questão das identidades passa a ser, sobretudo, um ato

de escolha, determinação pessoal e até de consumo (HAMMAN, 1998).

Historicamente, as contribuições da Internet nas práticas sociais, logo no início

de seu aparecimento, se restringiam apenas às áreas militar e administrativa do

governo. Em seguida, passou também a permitir acesso restrito a certas instituições de

ensino e pesquisa em sua passagem para a sociedade civil. Mesmo assim, na sua fase

inicial, o computador era usado principalmente como máquina para automatizar cálculos

e efetuar estatísticas. Contudo, segundo London (1997), é somente a partir da década

de 80 que o computador se tornou uma tecnologia mais popular em virtude da redução

do seu tamanho e peso. A Internet pôde, então, ser estendida ao cidadão comum

quando os microcomputadores passaram a custar menos e se tornaram mais fáceis de

usar.

Ainda na década de 1980, nos países mais desenvolvidos, a mídia passou por

transformações importantes: de um lado, iniciou-se um processo de hibridismo entre as

várias mídias, suas linguagens e meios como o rádio-jornal, o tele-jornal etc (LONDON,

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7 Os termos Internet e World Wide Web são usados indistintamente, embora eles não sejam sinônimos. A Internet é a gigantesca rede das redes, uma imensa infra-estrutura em rede. Ela conecta milhões de computadores globalmente, formando uma rede em que computadores podem comunicar-se uns com os outros; a World Wide Web (WWW) é uma maneira de acessar informação por meio da Internet. É um modelo de compartilhamento de informações construído sobre a Internet. A WWW se serve de browsers, como o Internet Explorer, para acessar documentos chamados páginas (home pages), que estão ligados uns a outros por meio de hyperlinks. A WWW é apenas uma das maneiras pelas quais a informação pode ser disseminada pela Internet. A Internet, não a WWW, é ainda utilizada para acessar e-mails, Newsgroups, Instant Messaging. Portanto a WWW é apenas uma parte da Internet, embora uma grande parte.

1997). Ao mesmo tempo, novos produtos foram oferecidos aos consumidores

estimulando a escolha e o consumo individualizados de produtos culturais:

videocassetes, aparelhos para gravação de vídeos, equipamentos do tipo walkman,

videosclips, videogames, filmes em vídeo cassette, em DVD etc.

Contudo, foi no final do século XX, especificamente na década de 1990, que se

deu início à utilização comercial da Rede mundial de computadores a partir do

desenvolvimento do projeto da World Wide Web (WWW)7. E, com o advento da

Internet, a cultura das mídias passou a trazer e preparar o consumidor para a entrada

em um outro modo mais radical de pensar os próprios meios de comunicação em

massa: a cibercultura. A principal marca da cibercultura é a interatividade, pois, muito

embora ela até esteja presente em outras formas de cultura, podemos observar que os

processos de interatividade, assim como suas aplicações, se tornaram, de fato, muito

mais diferenciados e complexos na virtualidade (TURKLE, 1997).

Nas culturas de povos ágrafos, a construção da história se dava, e ainda se dá,

através das narrativas orais: o narrador relatava as experiências passadas a ouvintes

que participavam do mesmo contexto comunicativo ou, conforme Jones (1997, p. 2),

A história era encarnada nas / pelas pessoas. Quando as pessoas mais velhas morriam, muitas vezes, se apagavam dados irrecuperáveis pelo grupo social. O saber e a inteligência praticamente se identificavam com a memória; os mitos, a partir dos quais se geravam as grandes narrativas, funcionavam como estratégia para garantir a preservação de crenças e valores.

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Com o advento da escrita, instaurou-se uma segunda grande etapa na história

da humanidade. Com ela, as relações entre o indivíduo e a memória social mudaram. O

sujeito passou a poder projetar suas experiências, sua visão de mundo, sua cultura,

seus sentimentos e vivências no papel. Ao fazer isso, pôde, também, analisar o próprio

conhecimento das coisas e do mundo, e, o mais importante, fazer com que esse

conhecimento pudesse alcançar pessoas de outras culturas e outros tempos por meio

da escrita (TURKLE, 1997).

O ciberespaço, no entanto, se constitui como a terceira grande fase na

experiência da comunicação humana. A conexão simultânea dos atores sociais a uma

mesma rede traz uma relação totalmente nova para os conceitos de contexto, espaço e

tempo. Das narrativas e da linearidade das culturas da escrita, passamos a uma

percepção do tempo, muito mais do que simplesmente linhas, como segmentos da

imensa rede pela qual nos movimentamos (CARDOSO, 1997). Vivemos num ritmo de

grande velocidade em que não há horizonte, nem ponto-limite, um “fim” no término da

linha. Ao contrário, vivemos num tempo fragmentado, numa série de presentes

ininterruptos que não se sobrepõem uns aos outros, como páginas de um livro, mas

existem simultaneamente, em tempo real, com intensidades múltiplas que variam de

acordo com o momento (MEYROWITZ, 1994).

Com base nessa experiência de um tempo fragmentado, outro conceito passa a

ser considerado como central no ciberespaço: o da desterritorialização. A

desterritorialização diz respeito ao fato de uma pessoa, um ato, uma informação se

tornarem “não-presentes” quando se encontram no mundo virtual, produzindo, ainda,

um deslocamento radical nos conceitos clássicos de lugar e de tempo (BAUMAN,

2005). Apesar da desterritorialização dos elementos e da implosão do tempo e do

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espaço, o virtual não significa imaginário. A esse respeito, Du Gay (1994, p. 26)

assevera que:

A nova mídia eletrônica não apenas possibilita a expansão das relações sociais pelo tempo e espaço, como também aprofunda a interconexão global, anulando a distância entre as pessoas e os lugares, lançando-as em um contato intenso e imediato entre si, em um “presente” perpétuo, onde o que ocorre em um lugar pode estar ocorrendo em qualquer parte (...) Isto não significa que as pessoas não tenham mais uma vida local — que não mais estejam situadas contextualmente no tempo e espaço. Significa apenas que a vida local é inerentemente deslocada — que o local não tem mais uma identidade “objetiva” fora de sua relação com o global.

O ciberespaço pode ser, portanto, considerado como uma virtualização da

realidade, uma migração do mundo real para um mundo de interações virtuais (LÉVY,

2001). Nesse sentido, a desterritorialização é uma das vias régias da virtualização, uma

vez que, segundo Kumaravadivelu (2006 – Ver seção 2.1), as distâncias espacial e

temporal estão diminuindo, e as fronteiras estão desaparecendo. Essa migração em

direção a uma nova concepção da relação espaço-tempo estabelece uma realidade

social virtual, que, ao manter aparentemente as mesmas estruturas da sociedade real,

não possui, necessariamente, uma correspondência completa com esta, possuindo

suas próprias estruturas e códigos.

Sob essa perspectiva, Lévy (1999) apresenta o mundo virtual como uma grande

rede interconectada mundialmente, com um processo de comunicação “universal” sem

“totalidade”. Isso segue uma linha de comunicação que vem possibilitando aos

navegantes da grande “rede”, participar democraticamente de um modelo interativo

feito para todos, consolidando, assim, a idéia de uma “aldeia global”.

O autor ainda pondera acerca do que se compreende como virtual. O senso

comum entende virtual como a ausência de presença, em oposição ao real. No entanto,

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o termo virtual significa, atualmente, “aquilo que existe em potencial, derivado do termo

latino virtus que significa força, potência. É nesse sentido que a árvore está

virtualmente presente na semente” (LÉVY, 2001, p.16); o virtual não se opõe ao real,

mas ao atual: “a árvore produz a semente que tem em si a árvore” (Ibidem, p. 17). O

virtual, segundo o mesmo autor, portanto, difere do atual na medida em que, não

contém em si o real como fim, mas sim um complexo de possibilidades que, de acordo

com as condições e os contextos, irá se atualizar de maneiras distintas.

Nesse sentido, o virtual, portanto, é entendido como algo que dialoga e interage

com o atual, transformando-se de acordo com as peculiaridades de cada contexto.

Nessa relação, entende-se que os resultados finais (as atualizações) não estão

determinados, pois serão o resultado de um processo de atualização, efetivando-se

através do modo como os sujeitos se posicionam identitariamente (TURKLE, 1996). Por

isso, dedico a próxima seção a discorrer sobre o modo como o ciberespaço e a práticas

de letramento digital podem contribuir para propiciar um repensar e uma redefinição das

práticas de sociabilidade e, com isso, das próprias identidades sociais.

5.2. O ciberespaço e o letramento digital: novas formas de (re)pensar e redefinir

as construções identitárias

“A multiplicação contemporânea dos espaços faz de nós nômades de um novo estilo: em vez de seguirmos linhas de errância e de migração dentro de uma extensão dada, saltamos de uma rede a outra, de um sistema de proximidade ao seguinte. Os espaços se metamorfoseiam e se bifurcam a nossos pés, forçando-nos à heterogênese” (LÉVY, 1996, p. 25).

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Ao refletir, na seção anterior, acerca do ciberespaço, vimos que este não pode

ser considerado como um ambiente homogêneo e totalizante. Percebemos que, da

mesma forma que em sociedades complexas, a experiência da alteridade e de

constituição identitária é vivida de maneira bastante intensa (TURKLE, 1996). As

comunidades virtuais, listas de discussão, blogs e salas de bate-papo virtuais

inscrevem múltiplos e heterogêneos interesses e significados compartilhados no

ciberespaço. A exemplo disso, é possível mencionar “a nova civilização on-line” (Ver

ANEXOS 5 e 6), na qual, segundo CHAVES e LUZ (2007, p. 13), se desenvolveu uma

“geração que cresceu com a Internet e que vive em ritmo acelerado e já aboliu a

separação entre os relacionamentos do mundo real e aqueles do virtual”. As autoras

fazem uso da expressão “nativos da geração digital” para se referir a jovens que não

conheceram o mundo antes do e-mail. Os "nativos", segundo elas, dedicam muito do

seu tempo nos sites de relacionamento, nos quais podem compartilhar conhecimento,

músicas, fotos, filmes e conversas sobre todo o tipo de assunto, como o faz o próprio

sujeito da pesquisa (Ver subseção 7.1.2).

As particularidades desse novo mundo, segundo Lévy (2001), fazem com que as

estruturas gerais de determinados esquemas sofram mudanças para que se adaptem

às novas condições. Um exemplo disso seria a enorme gama possibilidades de

relacionamentos simultâneos que um sujeito pode estabelecer no ciberespaço. Nas

salas de bate-papo da Internet, um usuário pode, abrindo diversas janelas, manter uma

conversa com muitos (e variados) grupos simultaneamente (Ver subseção 6.3.1.2), o

que, de fato, torna o mundo virtual um lugar para novas adaptações das relações

humanas.

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Uma das fortes tendências teóricas sobre a constituição do mundo virtual se

origina a partir de estudos sobre a criação de vínculos sociais com interesses

interligados dentro de um espaço eletrônico. Nesse sentido, é possível inferir que as

comunidades da Internet contemplam a diversidade, a heterogeneidade, rendendo-se,

exclusivamente, aos interesses comuns (LÉVY, 1999). A proximidade geográfica não é

mais considerada um delimitador para a uniformidade social de um grupo, uma vez que,

conforme mencionei na seção anterior, todas as fronteiras geográficas caem por terra

no ciberespaço. Em primeira instância, o que se verifica é a gama de pessoas, etnias e

culturas diferentes que se encontram num mesmo espaço da rede, suprindo suas

necessidades de contato social sem que sejam obstruídos por questões de repressão

social (CARDOSO, 1997).

Sob essa perspectiva, é possível compreender o espaço virtual como uma

possibilidade de fazer emergir relações sociais potenciais, já que o meio eletrônico

digital apaga o fator território nas ações humanas, não mais ficando restrito ao contato

face-a-face, o que permite estabelecer novas formas de sociabilidade (TURKLE, 1996).

Isso nos faz refletir acerca das noções de sociabilidade, comunidade, comunicação e

relações sociais que se criam, em virtude da própria mudança espaço-temporal de um

universo físico para um imaginário.

A forma como pessoas de diferentes culturas vivenciam a virtualidade pode

indicar muito a respeito de suas próprias culturas, isso porque, a própria noção de

pertencimento, por exemplo, não é mais percebida como “algo que acontece

simplesmente a uma pessoa, mas que muito desse sentido de pertencimento é criado

no aqui e no agora” (RAMPTON, 2006, p. 114). Por isso, a forma como os indivíduos

passarão a construir a experiência de múltiplo pertencimento proporcionada pela

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Internet ainda está em aberto e só poderá ser respondida através de um trabalho de

pesquisa minucioso das diferentes tribos que povoam o ciberespaço (MILLER, 1995).

A natureza das relações estabelecidas via Internet, a forma como elas são

representadas pelos envolvidos, o desenrolar das histórias de amor e de amizade, as

formas, os limites e a estrutura de negociações do “cibersexo” (LÈVY, 1999), tudo isso

está ligado a questões que podem ser estabelecidas a partir desse universo de estudo.

As modalidades de articulação de identidades nas relações em que o encontro físico é

pouco provável (por questão de distância geográfica ou pela própria natureza da

relação), como é o caso do meu sujeito de pesquisa (Ver subseção 7.1.2), também se

constituem num terreno fascinante de interrogações. Com base na extrema facilidade

de manipulação e criação de identidades virtuais, as relações sociais ganham formas

cada vez mais heterogêneas e multifacetadas. A esse respeito Lankshear & Knobel

(1997, p.155) asseveram que:

Os ambientes do ciberespaço fornecem um acesso quase ilimitado à complexidade, à diversidade e à pura multiplicidade das subjetividades humanas a formas de vida culturais, junto com uma natureza altamente fluida da identidade e com possibilidades extensivas para construir identidades.

A exemplo disso, podemos mencionar a construção e manipulação de

identidades sociais, num ambiente virtual chamado Second Life (Ver ANEXOS 7 a 10),

um programa desenvolvido no ambiente do ciberespaço que propicia ao usuário criar um

personagem virtual chamado “avatar”, que interage com personagens eletrônicos (outros

“avatares”) de outros internautas. Esse “eu” digital pode passear, conversar, comprar,

namorar e até ganhar dinheiro no ciberespaço. O mais interessante é que o “avatar”,

criado pelo usuário, que irá transitar no mundo virtual, pode assumir diversas formas,

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8 Sobre essa questão, a Revista Veja Tecnologia destaca que a maioria dos usuários desses mundos virtuais em 3D como o Second Life cria seus avatares como o intuito de materializar a imagem de como gostariam de ser no mundo real. Se, no mundo virtual, todos podem ser de acordo com as suas fantasias e desejos, não haveria, segundo a revista, “lugar para a baixa auto-estima” (Ver Anexos 3 a 10).

possibilitando ao usuário “ser” outras identidades sociais, muitas das quais não

disponíveis no seu mundo real.

A emersão de novas identidades no ambiente virtual é ricamente explorada por

Turkle (1996), para quem a Internet tem contribuído para a idéia da identidade como

multiplicidade. Para essa autora, os bate-papos virtuais, por exemplo, permitem ao

sujeito desmembrar sua identidade em várias, de forma a permitir-lhe vivenciar muitas

outras novas identidades, de acordo com sua fantasia e desejo8.

A contribuição de Turkle (1996) foi de suma importância no sentido de transpor a

discussão sobre o sujeito e as identidades múltiplas para o âmbito da Internet. Para

essa autora, “real” e “virtual” possuem potenciais característicos, podendo um se

expandir e se enriquecer com o outro e vice-versa. Dessa forma, nas salas de bate-

papo virtuais, “real” e “virtual” se encontram, saboreando a alegria da não identificação

e o prazer da interpretação de identidades. Em virtude disso, podemos afirmar que a

experiência identitária parece se constituir de forma mais plena no mundo virtual do que

no real. A esse respeito, Turkle (1996, p. 167) pondera que:

O eu não está mais simplesmente desempenhando papéis diferentes em cenários diferentes, algo que as pessoas experimentam quando, por exemplo, alguém acorda como um amante, toma café da manhã como uma mãe e vai para o trabalho como uma advogada. A prática de vidas das janelas é a de um eu distribuído que existe em muitos mundos e desempenha muitos papéis ao mesmo tempo.

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Outra questão que contribue demasiadamente para a multiplicidade de

(re)construções identitárias no mundo virtual está relacionada ao fato de não ser

possível ver o corpo físico presente nas interações do ciberespaço, visto que a

mediação recai sobre os equipamentos tecnológicos (LÉVY, 2001). As limitações

impostas pelas mídias eletrônicas digitais foram vencidas por intermédio de

mecanismos lingüísticos e extralingüísticos que auxiliam na inteligibilidade dos

significados no decorrer de uma sessão comunicativa (marcadores discursivos,

marcadores de troca de turnos, de encerramento, hipertextos áudio-visuais etc). Em

contrapartida, as mídias interativas, para alcançar uma melhor utilização do potencial

humano na interação eletrônica, oferecem mecanismos técnicos que acrescem,

segundo Murray (1995), à interação a noção de presença. Portanto, somos levados a

compreender que, no ciberespaço, a obliteração do corpo faz com que novos

mecanismos sejam usados para contornar os limites impostos pelo meio (CARDOSO,

1997).

Dentro dessa concepção, podemos entender que a fisicalidade no ciberespaço

(o corpo virtual) passa a ser construída via discurso; o agente online vai fornecendo

informações sobre si e, com isso, construindo a si mesmo (LÉVY, 1996). O interlocutor,

por sua vez, também consegue construir uma imagem do agente, situando-o na

interação como um ser que detêm características sociais próprias. Nesse processo de

reconhecimento, o que se estabelece é o sentido de co-presença: termo empregado

para definir o significado de presença virtual.

Vemos, portanto, na virtualidade um espaço para construção de identidades que

fluem no universo eletrônico, uma vez que o corpo físico se encontra atrás de uma tela

de computador. Segundo Turkle (1996, p. 158), a Internet possibilita “a construção de

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uma identidade que é tão fluída e múltipla que expande os próprios limites da sua

noção. As pessoas se tornam mestres da auto-apresentação e da autocriação”. Por

isso, a Internet se tornou um espaço para experimentação de novas formas de

sociabilidade, em que a própria fisicalidade pode ser (re)construída.

Para entendermos as relações sociais que se formam no decorrer de uma

interação tendo o computador como mediador, devemos pensar, por conseguinte, como

o fator da presença é re-significado pela intervenção da técnica e de como o sujeito, de

forma muito mais radicalizada do que no mundo real, manipula suas informações

pessoais e sociais, que lhe são inscritas, para subsidiar suas ações no decorrer das

interações, uma vez que a vantagem do anonimato lhe proporciona isso (CARDOSO,

1997). Portanto, as marcas sociais ou pessoais são relevantemente necessárias para a

manutenção das relações entre os interactantes no mundo virtual. A esse respeito

Fabrício e Moita Lopes (2002, p. 25) apontam que:

As salas de bate-papo da Internet permitem que sejamos construídos de formas diferentes, ao assumirmos identidades sociais variadas. Ao mesmo tempo em que tal envolvimento midiático torna possível viver sob a pele de outros, diferentes de nós mesmos, trazendo à tona a natureza contingente dos discursos que nos fabricam, é também um meio de poder experimentar modos de ser não legitimados nas práticas sociais em que atuamos. Neste sentido, a Internet é um lugar de liberdade em que se pode vivenciar discursivamente a alteridade. O destino identitário é, portanto, questionado na prática social: você é quem você quiser se os discursos em que você se situa o permitem. Isso quer dizer que você pode se construir em outros discursos, diferentes daqueles traçados ou disponíveis para você até então. De algum modo, podemos dizer que é possível brincar de “Deus”, vivenciando o papel do “Criador”.

Nesse cenário, a Internet pode ser, então, pensada como uma imensa

comunidade de prática que pode possibilitar aos interactantes, até mais facilmente que

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outros meios, experimentarem outras vidas (LAVE & WENGER, 2002). E,

considerando-se que os interactantes que participam dessa pesquisa pertencem a

diferentes comunidades de prática, mas que, ao mesmo tempo, estão pertencendo a

uma mesma comunidade de prática virtual no ciberespaço, e que cada um está

construindo sua trajetória em todas essas comunidades de forma específica, o diálogo

entre eles pode ser um espaço privilegiado de vir a ser ao fazerem do processo de

construção do conhecimento no diálogo entre eles uma experiência de (re)construção

de identidades. Ou, nas palavras de Lèvy (1996, p.23):

A virtualização não é uma desrealização (a transformação de uma realidade num conjunto de possíveis), mas uma mutação de identidade, um deslocamento do centro de gravidade ontológico do objeto considerado: em vez de se definir principalmente por sua atualidade ("uma solução"), a entidade passa a encontrar sua consistência essencial num corpo problemático.

Sob essa perspectiva, é possível compreender que as a(s) maneira(s) como nos

posicionamos por meio das mais diversas práticas de letramentos nas quais nos

engajamos contribuem para (re)construir quem somos no mundo social. Isso significa

que podemos, com base nessa concepção, sempre é possível atribuir novos sentidos e

uma nova liberdade ao modo como interpretamos essa realidade.

Nesse sentido, as ideologias reveladas no discurso dos interactantes, ao se

engajarem em práticas de letramento digital, são diretamente influenciadas pela

participação deles em diferentes comunidades de prática (LAVE & WENGER, 2002), ao

mesmo tempo em que revelam as identidades por eles constituídas no decorrer das

interações com o(s) outro(s) nessas comunidades. À medida que essas identidades

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entram em conflito, são questionadas e analisadas, o diálogo pode se tornar um espaço

para (re)construção de identidades para todos os participantes envolvidos.

Pode-se propor, assim, que a nossa participação nas práticas de diferentes

comunidades leva à construção de identidades em relação a essas comunidades. Sob

esse prisma, participar, por exemplo, de uma sala de bate-papo virtual na Internet

constitui-se, ao mesmo tempo, em ações e formas de pertencimento. Tal participação

influencia, por conseguinte, não apenas o que fazemos, mas também quem somos e a

forma como interpretamos aquilo que fazemos (MOITA LOPES, 2002).

É mister, portanto, pensar as identidades sociais de gênero, raça, sexualidade,

etnia, etc. como uma construção social, ou seja, como uma experiência de

pertencimento múltiplo. E, talvez assim, possamos nos imaginar, de acordo com a

epígrafe desta seção, como portadores de identidades sempre nômades, cujos

“espaços se metamorfoseiam e se bifurcam a nossos pés, forçando-nos à

heterogênese” (LÉVY, 1996, p. 25).

Nesse sentido, é possível afirmar que aquilo que o mundo virtual nos oferece de

mais interessante, no que diz respeito à constituição identitária, é justamente a

possibilidade, segundo Lévy (1996), de termos acesso não a uma, mas a várias novas

formas de viver a experiência humana no mesmo espaço de tempo. É, portanto, a partir

dessa multiplicidade de possibilidades que nos são disponibilizadas pelo ciberespaço, e

da forma como fazemos uso disso por meio da linguagem, que podemos pensar em

(re)criar nossos mundos sociais, nosso relacionamento com o outro e nossas

ideologias, assim como podemos pensar que tudo isso está intrinsecamente

relacionado com as nossas identidades sociais de gênero, raça, sexualidade etc que

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constituem e são constituídas pela atividade humana nas mais variadas esferas do

mundo social, em especial no mundo virtual (LÉVY, 1999).

E se podemos, portanto, manipular quem somos, ou melhor, se podemos ser

“outros”, de forma mais ampla, no mundo virtual, então, este pode, de fato se tornar um

“espaço libertário” para a própria experimentação (LONDON, 1997). Em outras

palavras, a virtualidade potencializa pessoas a interpretarem e se envolverem em

performances identitárias sem que, preliminarmente, sejam questionados sobre a sua

veracidade, daí podemos pensar o ciberespaço, de fato, como um local em que se pode

viver a multiplicidade do ser humano.

Isto posto, ao relacionar os conceitos de discurso, identidades sociais, letramento

virtual e ciberespaço, pretendo dar conta de questões de ordem social, cultural e

histórica ao analisar os vários posicionamentos interacionais de Johnny frente às outras

pessoas com as quais interage. Entendo, portanto, que o diálogo entre os participantes

desta pesquisa, o espaço virtual e as práticas de letramento em que estão inseridos

passam a ser os meios através dos quais seja possível refletir acerca do processo de

(re)construção de suas identidades sociais. Depois de apresentados esses

pressupostos teóricos, passo, então, no próximo capítulo, a tratar do contexto e da

metodologia de pesquisa que norteiam o presente estudo.

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6. CONTEXTO E METODOLOGIA DE PESQUISA

Uma exposição sobre uma pesquisa é, com efeito, o contrário de um show, de uma exibição na qual se procura ser visto e mostrar o que se vale. É um discurso em que a gente se expõe, no qual se correm riscos” (BOURDIEU, 1989, p.18).

6.1. O(s) sujeito(s) de uma pesquisa(s): buscando respostas para a eterna

pergunta sobre o quê pesquisar

Devo confessar, neste capítulo de metodologia de pesquisa, que quando resolvi

começar a minha pesquisa de dissertação já tinha mais ou menos em mente qual seria

meu corpus de análise. De fato, tudo começou no ano de 2005. Eu precisava encontrar

um material que pudesse gerar os dados da minha dissertação. Foi, então, que conheci

um colégio estadual de ensino médio, localizado no bairro de Jacarepaguá, na cidade

do Rio de Janeiro. A escolha por esse colégio se deu por ser localizado próximo do

lugar onde moro.

Procurei a diretora do colégio, apresentei-me a ela e lhe disse que gostaria de

realizar uma pesquisa com alguns alunos (inicialmente pensei numa única turma

porque achei que, assim, seria mais fácil pesquisar). Expliquei-lhe que a minha idéia era

a de investigar como alunos(as) constroem suas identidades sociais de gênero no

ambiente virtual (Internet) a partir da análise de textos escritos e alguns tipos de

elementos semióticos - tais como: cores, figuras e fotos – utilizados para a

comunicação na Internet, gerados por meio da interação entre esses(as) alunos(as).

Ela achou meu projeto bastante interessante e me concedeu um horário semanal

para que eu pudesse realizar a minha pesquisa. O acordo que fizemos foi o de utilizar

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os horários destinados para a disciplina de religião, que, na época, estavam vagos por

falta de professor, o que me pareceu, de início, um tanto cômico, já que estaria usando

o tempo destinado às aulas de religião para discutir com os alunos sobre temas como

gênero e sexualidade.

De fato, o colégio parecia ter as condições ideais para que pudesse realizar

minha pesquisa, não só por eu ter recebido um horário exclusivo para trabalhar com

os(as) alunos(as), como também pelo fato de o colégio possuir, na época, um

laboratório de multimídia com dez computadores com Internet que, posteriormente, foi

disponibilizado pela direção para que pudesse usar com os(as) alunos(as).

Comecei a trabalhar, então, com uma das turmas do segundo ano do ensino

médio, que tinha em torno de quarenta alunos(as) com idades entre dezesseis e

dezessete anos. Inicialmente, trazia textos da mídia impressa relativos aos temas de

gênero e sexualidade. Dizia-lhes que iria usar um gravador para registrar as conversas

e dava-lhes, então, algum tempo para discussão sobre os textos. Tudo parecia estar

indo muito bem até eu começar a observar o comportamento de um dos alunos da

turma.

A turma, de modo geral, se mostrava bastante interessada e, de fato, era muito

participativa. No entanto, ao perceber como um dos alunos era tratado por alguns de

seus colegas (alguns meninos), sobretudo quando abordávamos alguns assuntos

concernentes à sexualidade, não pude ficar inerte ao problema. O tal aluno, que chamo,

nesta pesquisa, pelo pseudônimo “Johnny” (Ver nota no capítulo 1) era, de uma certa

forma, discriminado por alguns de seus colegas por não se comportar, segundo eles,

“como um homem”.

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Johnny, talvez por essa implicância e discriminação por parte dos meninos da

sua turma, parecia ter mais intimidade com as meninas: sempre andava e se sentava

com as meninas da turma, gostava de participar das conversas com elas e acabava se

distanciado dos meninos da turma por considerá-los uns “chatos”, motivos esses que,

por sua vez, eram usados para justificar o comportamento “afeminado” de Johnny na

visão de alguns meninos.

Comecei, então, a me aproximar mais de Johnny. Ao final dos encontros com a

turma, eu o procurava para conversarmos. Foi, então, em meio a essas nossas

conversas, que descobri algo revelador sobre ele: Johnny se construía como uma

menina nas salas de bate-papo virtuais da Internet, chegando até a criar nome e foto

fictícios de uma menina nas salas de bate-papo virtuais das quais participa.

Tamanho foi meu interesse por aquilo que decidi ir mais a fundo. Fiz algumas

entrevistas com ele e pedi-lhe que me falasse a respeito de alguns de seus amigos

virtuais e dos assuntos sobre os quais conversava com esses amigos nas salas de

bate-papo virtuais, com o intuito de analisar se poderia usá-los como material para a

minha pesquisa. De fato, tudo o que ele me contou já parecia mais interessante do que

imaginava, aliás, mais interessante até do que as próprias gravações que realizei com a

turma. Naquele momento, já me encontrava mais inclinado a desistir de trabalhar com a

turma e realizar um estudo de caso com Johnny. Foi a partir daí que a dúvida se

instaurou.

Se por um lado meu interesse em trabalhar com Johnny só aumentava à medida

que ia conhecendo-o melhor, por outro, estava ficando cada vez mais preocupado em

tentar realizar uma pesquisa cujo objeto investigado seria um único sujeito. Cheguei até

a pensar se não estaria sendo ousado demais em querer pesquisar somente um único

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sujeito na minha dissertação, o que, de fato, não é algo ainda muito comum no mundo

acadêmico. Aliás, diga-se de passagem, quando contei para algumas pessoas que a

minha pesquisa investigaria um único sujeito, elas acharam aquilo estranho e vinham

com perguntas do tipo: é possível pesquisar uma pessoa só? Isso é ciência?

Segundo Yin (2001, p. 32), “o estudo de caso é uma investigação empírica que

investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real,

especialmente quando os limites entre os fenômenos e o contexto não estão

claramente definidos”. E, ao perceber, na prática, essa indefinição ou imprecisão em um

estudo caso com um adolescente, imaginei, já de início, que seria um trabalho muito

árduo e que, por isso, talvez não conseguisse realizá-lo, uma vez que estava lidando

com um contexto deveras micro-social. Eis que surgem, então, algumas perguntas

cruciais: a) como poderia fazer pesquisa analisando um único sujeito?; e b) como

poderia tecer generalizações sobre o que estava investigando a partir de um único

sujeito investigado?

Contudo, a partir das reuniões do projeto de pesquisa com o Professor Luiz

Paulo da Moita Lopes e com a professora Branca Falabella Fabrício (Ver capítulo 1),

das disciplinas de mestrado que cursei e de muitas leituras complementares que fiz ao

longo desses dois anos, as quais contribuíram para que construísse todo um aporte

teórico-metodológico, o que parecia ser uma grande dificuldade, na verdade serviu, ao

mesmo tempo, de motivação para que decidisse querer tentar entender cada vez mais

a fundo as particularidades do contexto de investigação, bem como a própria interação

entre mim (pesquisador) e o sujeito investigado.

Bem, após essa longa confissão, situarei, a seguir, a minha pesquisa dentro de

uma abordagem qualitativa de base interpretativista, já com o objeto de pesquisa

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definido. Antes, porém, mostrarei uma visão geral sobre pesquisa, onde discuto

brevemente sobre o paradigma interpretativista de investigação, que considero

pertinente para entender os próprios rumos que norteiam a presente dissertação.

6.2. Uma breve discussão sobre o paradigma interpretativista de pesquisa

“Em relação a seres humanos, uma interpretação subjetiva dos dados [...] parece, a meu ver, ser capaz de acrescentar uma dimensão humanística rica à exatidão exibida pelos números” (CAVALCANTI, 1989, p. 161).

Um dos grandes dilemas com que um pesquisador costuma se defrontar,

sobretudo o pesquisador das áreas das ciências humanas e sociais, está relacionado

ao tipo de pesquisa que pretende realizar. Contudo, o caminho a ser seguido

dependerá sobremaneira das bases epistemológicas por meio das quais o pesquisador

se pautará para construir os pressupostos teóricos que serão o alicerce de toda a sua

pesquisa. Existem, pois, duas grandes correntes de pesquisa: a pesquisa de base

positivista e a de base interpretativista.

A pesquisa de base positivista, típica dos tipos de pesquisas realizadas nas

ciências naturais, é marcada pela visão determinista sobre a realidade, cuja metáfora

utilizada para descrever o universo remonta ao pensamento cartesiano. Quanto à

finalidade deste tipo de investigação, pode-se dizer que a pesquisa positivista busca a

objetividade nos dados pesquisados, entendendo a objetividade na concepção de

Holmes (1992, p. 40) como “a separação entre o pesquisador e o fenômeno em estudo;

a idéia de que o pesquisador não deve se envolver com o que está investigando, ou

então isso poderia contaminar a pesquisa”. Com isso, é possível inferir, segundo Moita

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Lopes (1994, p.331), que, na perspectiva positivista, “só a experiência pessoal através

da observação do fato a ser estudado é possível”. Neste tipo de investigação, então, a

complexidade, os processos fluidos são meras ilusões, a realidade seria ordenada por

leis simples e universais que regem os fenômenos físicos, biológicos, sociais e

individuais, sendo que a descrição “exata” de tais fenômenos pressupõe a adoção de

instrumentos metodológicos válidos, de uma forma aparentemente independente do

sujeito do conhecimento, bem como do contexto cultural, social e histórico em que se

insere a atividade de pesquisa.

Por encarnar a forma “correta” do pensar, o pensar cientificamente, a filosofia

positivista é a base que sustenta um modelo de racionalidade como organizador da

sociedade (COHEN; MANION; MORRISON, 2000). De maneira geral, o positivismo

institui as ciências naturais como os modelos legítimos de sistemas de conhecimento, e

suas metodologias como fontes exclusivas de “revelação” de fatos verdade.

É parte da intuição básica desse tipo de investigação, portanto, a idéia de que o

mundo existe independentemente de seus observadores, de suas vidas, crenças e

práticas sociais (MOITA LOPES, 1994). É esse mundo exterior à humanidade que

constitui a base contra a qual os critérios de verdade e falsidade são forjados, e a partir

do qual estruturam-se os critérios e métodos empregados para o estabelecimento das

certezas – o que não passa de um processo de “desvelamento” da natureza pelo

conhecimento humano.

Em oposição a esse tipo de investigação positivista, existe um outro modo de

fazer pesquisa que começa a se fazer cada vez mais presente nas ciências sociais e

humanas, um tipo de investigação de base interpretativista, em cuja base

epistemológica se compreende, segundo Rey (1999, p. 37), que:

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O conhecimento é uma produção construtiva-interpretativa, ou seja, ele não representa a soma de fatos definidos pelas constatações imediatas do momento empírico. O caráter interpretativo do conhecimento aparece pela necessidade de dar sentido às expressões do sujeito estudado cuja significação para o problema estudado é somente indireta e implícita.

Isso passou a representar uma séria rejeição a um dos aspectos mais

importantes da metafísica positivista: o estruturalismo incondicional que postula a

reificação da direcionalidade epistemológica do geral para o particular, da teoria

universal para os casos específicos. Novas formas de escrita acadêmica são

introduzidas, como a escrita narrativa e as autobiografias, as histórias de vida, cada

qual com suas características específicas, mas atribuindo, de forma geral, inédito valor

a detalhes particulares do contexto específico de cada ambiente (FREITAS, 1997).

Essas inovações teórico-metodológicas estão relacionadas às novas

conformações dos objetivos de investigação. Conceitos importantes como a

“objetividade” da pesquisa científica e a “neutralidade” do discurso dentro do qual a

pesquisa se insere (do meio científico particular em questão e dos recursos discursivos

utilizados na pesquisa em questão, pelo próprio pesquisador) se vêem deslocados de

seus lugares tradicionais dentro da epistemologia, uma vez que, segundo Freitas (1997,

p. 27), na pesquisa interpretativista, “procura-se compreender os sujeitos envolvidos na

investigação para, através deles, compreender também o seu contexto”.

Uma pesquisa de base interpretativista, portanto, constitui-se por meio de uma

abordagem qualitativa de pesquisa, que, na minha opinião, torna-se mais adequada

para investigar como os seres humanos utilizam o discurso para agir socialmente e

construir o mundo e a si próprios, uma vez que estudar o ser humano e o discurso

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implica compreender subjetividades que não podem ser tratadas quantitativamente.

Nesse sentido, Moita Lopes (1994, p. 330) aponta que o que é específico, no mundo

social, “é o fato de os significados que o caracterizam serem construídos pelo homem

[sic], que interpreta e re-interpreta o mundo a sua volta, fazendo, assim, com que não

haja uma realidade única, mas várias realidades”.

Em virtude do exposto, decidi adotar, no presente estudo, uma visão

interpretativista de pesquisa, com um certo teor etnográfico, visto que pude perceber

que, nesse tipo de investigação, longe de tentar buscar “verdades” e “certezas” típicas

de uma lógica racionalista, o conhecimento é reconhecido como algo construído na

interpretação da linguagem, num processo de interação entre investigador e

investigado, e, por isso, sempre aberto a novas interpretações. Então, penso que não

se pode realizar este tipo de pesquisa ignorando “a visão dos participantes do mundo

social, caso se pretenda investigá-lo, já que esta que o determina: o mundo social é

tomado como existindo na dependência do homem [sic]” (Ibidem, p. 331). Em outras

palavras, na pesquisa de base interpretativista, os instrumentos deixam de ser vistos

como um fim em si mesmo para se tornar uma ferramenta interacional entre o

investigador e o sujeito investigado.

Depois de expor o paradigma de pesquisa com o qual opero neste estudo, passo

a situar, na seção seguinte, o contexto de pesquisa do meu trabalho para, em seguida,

discutir os pressupostos metodológicos da pesquisa.

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6.3. A pesquisa interpretativista no estudo de caso: observando e participando do

contexto de pesquisa

Os pontos centrais que norteiam o presente estudo consistem na compreensão

da (re)construção da identidade social de gênero de um adolescente (Johnny) por meio

de práticas sociais de letramento no ciberespaço. Este tema surge como um processo

de reflexão com base em investigações realizadas nos espaços de interação do

pesquisado: certos ambientes do ciberespaço. Por isso, busquei, nesta dissertação,

problematizar dois temas que se articulam para constituir os problemas de pesquisa com

os quais lido neste trabalho, com o fito de situá-los como práticas sociais e objetos de

investigação: as práticas de letramento digital nas quais Johnny se engaja (Ver seção

4.2) e suas (re)construções identitárias de gênero por meio dessas práticas, tendo como

contexto os ambientes virtuais nos quais ele transita (as salas de bate-papo da Internet –

Ver seção 5.2). Antes, porém, procuro mostrar como esses temas se articulam,

formando o contexto de pesquisa propriamente dito para, enfim, tratar da geração dos

dados.

6.3.1. O contexto de pesquisa

6.3.1.1. Os sujeitos de pesquisa

O contexto que propiciou a realização desta pesquisa foi inicialmente

desenvolvido num colégio estadual, localizado no bairro de Jacarepaguá, município do

Rio de Janeiro, no ano de 2005.

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Os dados foram gerados em um dos computadores da sala de multimídia do

colégio. Aliás, devo mencionar que este trabalho só pôde ser realizado porque, muito

embora não corresponda ainda a uma realidade na maioria das instituições públicas de

ensino, o colégio possuía uma pequena sala de multimídia com dez computadores que

foram gentilmente disponibilizados pela diretoria do colégio durante o tempo em que eu

e Johnny geramos os dados para a presente pesquisa.

Quanto aos sujeitos de pesquisa, devo, primeiramente, situar-me como um de

seus partícipes. Sou professor de língua portuguesa, 30 anos, solteiro, e resido

atualmente em Jacarepaguá, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro.

Johnny é um rapaz de dezessete anos e está no segundo ano do ensino médio

de um colégio da rede pública do Estado do Rio de Janeiro. Ele pertence a uma família

de classe média-baixa, cuja renda familiar gira em torno de dois mil reais. Além de

estudar, também mora no bairro de Jacarepaguá. Vive com os pais num apartamento de

dois quartos, sala, cozinha e banheiro. O imóvel é próprio, mas os pais de Johnny ainda

estão pagando as prestações do apartamento, que foi comprado através de

financiamento pela Caixa Econômica Federal.

Seu pai tem quarenta e seis anos e trabalha como assistente comercial num

laboratório farmacêutico; sua mãe, quarenta e quatro anos, acumula as funções de

dona-de-casa e autônoma (trabalha com vendas em domicílio de produtos de

cosméticos). Johnny tem uma irmã de onze anos que também é estudante de escola

pública e está na quinta série do ensino fundamental.

Na escola, com os colegas de classe, Johnny se mostrava um rapaz bastante

eloqüente. Pude observar, no entanto, que, se por um lado esse atributo era recebido de

forma acolhedora por parte das meninas, por outro, parecia se tornar o grande pivô de

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muitas repulsas por parte dos meninos da turma. Com isso, tive a impressão de que a

imagem de Johnny, em sala de aula, era construída a partir de duas visões antitéticas:

um grande apreço por parte das meninas e uma certa repugnância dos meninos. Foi,

justamente essa forma de discriminação com que Johnny era tratado pelos meninos da

turma que, conforme disse na primeira seção deste capítulo, chamou a minha atenção a

ponto de fazer com que mudasse o próprio rumo da minha pesquisa e me interessasse

em realizar um estudo de caso com ele.

Johnny, apesar de pertencer a uma família de classe média-baixa, possui

computador em casa, que, segundo ele, foi comprado à prestação pelo seu pai. A

família possui uma espécie de “banda-larga comunitária”, que é um plano de Internet via

rádio que muitos condomínios assinam, em conjunto, por ser mais barato.

Johnny me revelou que passa, pelo menos, seis horas por dia na Internet (na

maior parte do tempo conversando nas salas de bate-papo virtuais). Contudo, mesmo

despendendo tanto tempo no computador, ele ainda reclama, alegando que, muitas

vezes, não pode passar mais tempo usando o computador por causa da sua irmã mais

nova, que já começa também a participar desse mundo virtual; da sua mãe, que está

aprendendo a usá-lo para catalogar as suas vendas e pedidos; e do seu pai, que, às

vezes, também o usa para trabalhar. Percebe-se, portanto, que a prática de letramento

digital ocupa um espaço considerável na família de Johnny.

6.3.1.2. As Salas de Bate-papo do Ciberespaço

Com o intuito, então, de compreender como Johnny constrói sua identidade

social de gênero no ciberespaço, escolhi, como objeto de pesquisa a ser investigado,

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analisar, além da entrevista que realizei com ele (Ver subseção 7.3.2), suas conversas

escritas realizadas nas salas de bate-papo onde ele interage com outras pessoas.

As salas de Bate-Papo (termo traduzido do inglês Chat-Rooms) são um sistema

interativo que permite que duas ou mais pessoas possam conversar em tempo real

numa página do site. O modo de funcionamento do programa é bastante simples: cada

pessoa digita sua mensagem e toda vez que teclar “Enviar”, o texto aparece na tela do

computador de todas as pessoas que estiverem conectadas à sala de bate-papo. As

salas podem ter acesso livre ou podem ser protegidas por senha. Em geral, elas são

usadas para encontros virtuais, amizades, namoros, suporte técnico, economia em

ligações etc.

O usuário, na sala de bate-papo, pode escolher entre conversar com várias

outras ao mesmo tempo, ou apenas com uma, se quiser, não disponibilizando seu

conteúdo para as demais pessoas presentes na sala de bate-papo, embora possa

continuar observando os outros conversando entre si.

As salas de bate-papo já se tornaram, de fato, uma ferramenta bastante

interessante à disposição dos internautas que buscam relacionamentos: alguns

ambientes virtuais, por exemplo, possuem uma base de dados, onde é possível

cadastrar-se, fornecendo informações a respeito dos dados pessoais de alguém e das

características da pessoa que esse alguém procura. Essas informações são cruzadas

no banco de dados do sistema e uma lista de pessoas cujas características “conferem”

com o desejado é gerada. O que antes era realizado, antes do advento da

popularização da Internet, por empresas especializadas, foi transposto ao ciberespaço,

mantendo suas características básicas e adquirindo novas propriedades na medida em

que passa a adequar-se ao novo meio.

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Nesses ambientes, o sujeito pode escolher o tipo de “encontro” que deseja ter

com os interactantes. Na sala de bate-papo da UOL, da qual meu sujeito investigado

participa, por exemplo, a pessoa pode optar entre diversas modalidades de encontros,

chamados de “subgrupos”, dos quais é possível escolher entre “namoros”, “amigos”,

“paquera”, “românticos”, “gays e afins”, “lésbicas e afins”, “descasados” etc (Ver ANEXO

1). Ao clicar, então, em um dos “subgrupos”, uma outra tela se abre, mostrando as

salas de bate-papo disponíveis para interação, a quantidade de pessoas em cada uma

delas e a opção de entrar nas salas ou apenas “espiá-las” para ver o que está

acontecendo lá (Ver ANEXO 2).

Nesses tipos de sala de bate-papo, portanto, o usuário pode se comunicar com

um número ilimitado de pessoas, já que a proposta do sistema é justamente esta:

promover o maior número possível de encontros entre o público que interage nas salas.

No entanto, existem outros tipos de sala de bate-papo cujo objetivo é justamente o

contrário: o de particularizar os encontros, como o ICQ e o MSN (Ver ANEXO 3).

O ICQ é um programa de mensagens instantâneas, ou melhor, é um tipo de

comunicação instantânea que permite que um usuário da Internet converse com um

outro que tenha o mesmo programa em tempo real, podendo criar uma lista de amigos

"virtuais" e acompanhar quando eles entram e saem da rede. A sigla ICQ é um

acrônimo homófono da expressão inglesa “I Seek You” que, em português, significa "Eu

procuro você". O ICQ foi o pioneiro neste tipo de tecnologia tendo sua primeira versão

lançada em 1997 por uma empresa israelita chamada Mirabilis. O MSN Messenger (ou

apenas MSN), – que é o tipo de programa utilizado pelo sujeito na pesquisa – acrônimo

da empresa que o criou (Microsoft Service Network), é igualmente um programa de

comunicação instantânea que tem conquistado cada vez mais adeptos no

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mundo inteiro, sobretudo no Brasil, onde se encontra entre os programas mais

baixados nos sites de downloads locais.

Diferentemente dos demais tipos de sala de bate-papo, no ICQ e no MSN, o

objetivo dos usuários não é propriamente o de conhecer o maior número possível de

pessoas, mas sim o de manter e até estreitar vínculos com aqueles que já se conhece.

Nesses programas de comunicação instantânea, busca-se não somente manter

relações com pessoas que já eram conhecidas do usuário no mundo real, mas também

com as pessoas que se conhece no mundo virtual. Por isso, é comum, como é caso do

sujeito investigado, se fazer uso, primeiramente, dos tipos de salas de bate-papo

mostrados anteriormente, com o fim de estabelecer um “primeiro contato” com uma

determinada pessoa. Passada, então, essa fase, caso o usuário deseje continuar

mantendo contato com essa pessoa, ele lhe fornece seu e-mail do MSN, por exemplo, e

eles, então, começam a interagir por meio do programa, já com um caráter mais

privado.

Por apresentar, justamente, esse caráter mais particular, o MSN, por exemplo,

disponibiliza um espaço na página para que o indivíduo possa expor uma foto sua, se

desejar, e, todas as vezes que os interactantes quiserem conversar com aquele

indivíduo, eles verão a sua foto exposta na página.

Devo ressaltar aqui que Johnny, durante a entrevista, contou-me que, depois de

algum tempo de uso do MSN, passou a expor uma “suposta” foto sua para as pessoas

com as quais interage no mundo virtual. No entanto, como se construía identitariamente

como uma menina no ciberespaço, ele não usou uma foto real. Ele me confessou que

fez uma montagem com a foto de uma menina que encontrou na Internet e, com o

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auxílio de um programa de computador de edição de fotos (o PHOTOSHOP), criou a

“imagem” de uma garota para si (Ver seção 7.1.1).

Meu interesse em investigar as relações interpessoais que se constituem nas

salas de bate-papo encontra respaldo, portanto, na grande possibilidade que estes

apresentam na construção de relações sociais que, diferentemente de outros meios,

são geradas para além do espaço social imediato. Por isso, posso afirmar que esses

meios virtuais, mais até do que outros tipos de mídia eletrônica, se tornaram um

instrumento por meio do qual a vida local é cada vez mais deslocada para instâncias

globais, nas quais os sujeitos compartilham suas histórias de vida, conhecimentos,

crenças, valores e opiniões, que passam de um contexto mais íntimo ao um mais

público, re-significando, com isso, suas próprias identidades (Ver seção 5.2).

6.3.2. A metodologia de Pesquisa

Mais do que desenvolver uma metodologia de análise, procurei estabelecer,

neste trabalho de dissertação, uma relação de investigação entre o pesquisador e seu

objeto de análise. Assim, tentei trabalhar algumas etapas de pesquisa que considero

pertinentes na busca da compreensão dos objetos de estudo. Etapas essas que levam a

uma definição do objeto de pesquisa, tanto no que concerne à pesquisa de campo,

como no seu diálogo com o referencial teórico.

Devo ressaltar, antes de tudo, o compromisso ético que assumi com Johnny,

visto que, ao expor seus textos na minha pesquisa, procurei ter o cuidado de não só

usar pseudônimos para todos os interactantes, inclusive para o próprio Johnny (Ver

nota no capítulo 1), mas também o de explicar-lhe, ainda que em linhas gerais, a

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natureza da minha pesquisa e, sobretudo, de pedir sempre a sua opinião e permissão a

respeito dos textos que seriam usados neste trabalho.

Johnny ainda foi muito gentil comigo, fornecendo-me alguns materiais mais

pessoais, relativos a algumas conversas virtuais que realizava nas salas de bate-papo,

o que, particularmente, considerei mais interessante para os fins deste estudo. Acredito

que essa boa vontade e gentileza com que Johnny passou a me tratar, e isso se

refletindo até no fato de ele ter me fornecido materiais mais pessoais sobre suas

conversas virtuais, se devem a uma maior aproximação e até a uma certa amizade e

confiança que se construíram entre nós à medida que nos envolvíamos na pesquisa.

Em algumas dessas conversas nas salas de bate-papo entre Johnny e outros

interactantes virtuais, pude perceber que a questão da construção identitária de gênero

é bastante marcante, o que me fez refletir acerca dos próprios pressupostos teórico-

metodológicos que pretendia utilizar no presente estudo. Nesse sentido, a pesquisa,

então, se propôs a responder às seguintes questões: 1) Como o sujeito de pesquisa

(re)constrói sócio-discursivamente sua identidade social de gênero ao participar

de conversas em salas de bate-papo no ciberespaço?; e 2) Como as práticas de

letramento digital com as quais ele se envolve promovem outras possibilidades

de viver sua experiência identitária de gênero?

O que se pretende compreender com esses questionamentos é o modo como as

identidades sociais estão sendo deslocadas ou fragmentadas, ou ainda desconstruídas

no ciberespaço, possibilitando o surgimento de novas formas de visualizar a questão da

identidade social de gênero (Ver seções 5.2).

Procurei, portanto, realizar um estudo de caso, com um certo “sabor” etnográfico,

visto que este tipo de pesquisa “procura descrever um conjunto de entendimentos e

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conhecimentos específicos compartilhados entre participantes que conduzem seu

comportamento num determinado contexto” (CUMMING, 1994, p. 688). Por isso,

busquei, no presente trabalho, levar em consideração o contexto sócio-cultural no qual

Johnny estivesse situado, bem como suas atitudes e comportamentos, com o fito de

identificá-lo não como uma mera aplicação de certos métodos, mas sim como um estilo

de investigação comprometido com um tipo de pesquisa que possibilite compreender a

experiência humana por meio da co-construção do discurso entre os sujeitos

envolvidos.

Dentro dessa perspectiva de pesquisa, tentei, por conseguinte, mais do que

simplesmente observar o objeto investigado. Busquei, outrossim, me comprometer a

realizar uma espécie de observação reflexiva, “um tipo de investigação em que o

etnógrafo precisa estar sensível á natureza da sua participação como parte do

desenvolvimento da compreensão das pessoas que estuda” (DAVIS, 1999, p.19).

Meu objetivo neste trabalho foi, então, o de analisar a construção da identidade

de gênero de um sujeito ao interagir, por meio de práticas de letramento, num ambiente

bastante híbrido e multifacetado da mídia eletrônica digital: o ciberespaço. Desse modo,

o estudo focalizou, entre outras coisas, a compreensão do funcionamento da linguagem

na construção social de identidades de um adolescente em práticas sociais geradas por

meio do mundo virtual.

Para realização desta pesquisa, elaborei previamente um levantamento

bibliográfico teórico condizente com a temática proposta, que foi sendo ampliado e

revisto conforme as necessidades exigidas pela pesquisa.

Quanto aos meios para geração de dados da pesquisa, utilizei dois tipos de

instrumento. Como o meu objetivo era o de analisar a (re)construção identitária do

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sujeito da pesquisa com base nas suas práticas de letramento digital, o primeiro

instrumento usado neste trabalho foi o uso das conversas, em forma de textos escritos,

realizadas nas salas de bate-papo virtuais da UOL e do MSN (Ver seção 7.1.2) entre

Johnny e alguns de seus amigos(as) virtuais, gravadas em CD-ROM pelo próprio

Johnny a meu pedido. Após essa fase, selecionamos (eu e Johnny escolhemos juntos)

algumas das conversas escritas que ele registrou, que apresentassem alguma relação

com a temática da identidade social de gênero.

Como segundo elemento de geração de dados, também usado como um dos

corpora da pesquisa, servindo, portanto, de apoio para complementação dos dados do

estudo, optei pela realização de uma entrevista com o sujeito investigado (Ver seção

7.1.1), registrada por meio de um gravador de áudio, cujo conteúdo trata da questão da

identidade social de gênero. A entrevista me permitiu também obter informações mais

gerais acerca do sujeito investigado, tais como: organização e renda familiar, tipos

favoritos de entretenimento, freqüência de uso da Internet etc. Contudo, o aspecto

central da entrevista com Johnny busca, de fato, compreender algumas questões

referentes aos seus posicionamentos, com base em sua experiência de vida, dentro

das possibilidades de (re)construção de gênero disponíveis em suas relações sociais.

Minha intenção com a entrevista era, portanto, não só a de conhecer um pouco

melhor Johnny, como também a de analisar o seu grau de conhecimento sobre o tema

e investigar as relações e práticas sociais nas quais ele se engaja, que poderiam

influenciar na construção de sua identidade social de gênero.

Para tanto, realizei uma entrevista não estruturada, visto que, neste tipo de

entrevista, observa-se um modo de interação “muito mais próximo de uma conversa

ocorrendo naturalmente” (Davis, 1999, p. 94). Além disso, muito embora tivesse em

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mente alguns tópicos e questões pré-determinadas, pude perceber que as respostas e

os diálogos, como um todo, fluíam com tamanha naturalidade e diversidade que não

poderia promover um trabalho, cujo material de análise é o próprio ser humano, de

forma tão profícua sem fazer uso da entrevista não estruturada. E, com o intuito de

obter informações mais precisas, utilizei também, ainda durante a entrevista, notas de

campo com o fito de tentar recuperar alguns aspectos não-verbais, que não pudessem,

por ventura, ser captados apenas com as gravações em áudio.

Finalizo esta seção com uma observação acerca da entrevista: pude perceber

que esta foi, de fato, um momento em que tanto eu quanto Johnny estavam, a todo o

momento, tentando criar inteligibilidade não só em relação ao assunto tratado, mas,

sobretudo, em relação um ao outro, construindo, assim, nossas próprias identidades no

momento da entrevista. A esse respeito, Holstein & Gubrium (1995, p. 4) indicam que:

Ambas as partes da entrevista são necessária e inevitavelmente ativas. Cada um está envolvido em um trabalho para criar sentidos. O significado não é meramente obtido por meio de questionamento apropriado, nem simplesmente transportado através das respostas dos pesquisados; ele é ativamente e comunicativamente reunido no encontro da entrevista.

À luz dessa base metodológica e dos pressupostos teóricos expostos ao longo

deste trabalho, que norteiam a presente dissertação, passo, no próximo capítulo, para a

análise dos dados da pesquisa.

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7. ANÁLISE DOS DADOS

7.1. A (re)construção da identidade social de gênero de um menino por meio de

práticas de letramento no ciberespaço

Uma vez detalhados os pressupostos teórico-metodológicos e expostas as

razões que motivaram a realização do presente estudo, passo, neste capítulo, a

apresentar a minha interpretação dos dados gerados nesta pesquisa com o fito de

responder às seguintes questões:

1) Como o sujeito de pesquisa (re)constrói sócio-discursivamente sua

identidade social de gênero ao participar de conversas em salas de bate-papo no

ciberespaço?

2) Como as práticas de letramento digital com as quais ele se envolve

promovem outras possibilidades de viver sua experiência identitária de gênero?

Buscarei empreender aqui a análise dos trechos selecionados com base em dois

corpora: uma gravação em áudio da entrevista que realizei com Johnny e o registro em

CD-ROM, feito por ele mesmo, de algumas conversas por escrito entre ele e alguns de

seus amigos, realizadas numa sala de bate-papo do ciberespaço (Ver subseção 6.3.2).

Como a minha intenção é, em última análise, analisar o modo como Johnny

(re)constrói sua identidade social de gênero ao interagir com outras pessoas no

ciberespaço ao participar de conversas numa sala de bate-papo, realizei, nos dois

corpora de análise, certos recortes em sua extensão, descartando, com isso, as partes

que não condiziam com a temática proposta. Por isso, os fragmentos analisados abaixo

foram escolhidos porque os considero pertinentes para responder às indagações que

busco investigar neste estudo.

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É importante ressaltar que, como os dados foram também gerados em práticas

de leitura e de escrita no ciberespaço, as seqüências analisadas devem ser entendidas

teoricamente como práticas sociais de letramento (Ver capítulo 4). Dentro dessa

perspectiva, como já apontei, busca-se compreender os letramentos como processos

relacionados às práticas sócio-culturais e históricas dos indivíduos (STREET, 1985;

KLEIMAN, 1995; et alii).

Cumpre assinalar que a análise a ser encaminhada no presente trabalho é uma

leitura possível que não esgota outras possibilidades de análise dos dados gerados

relativos à temática da pesquisa. Isso porque acredito que, a exemplo de qualquer

texto, os textos gerados nesta pesquisa podem levar a interpretações variadas,

porquanto depende de quem é o leitor, dos discursos em que circula e quais são as

estruturas de poder da sociedade em que vive.

Por último, devo ainda ressaltar que, devido à grande quantidade de dados

gerados com as atividades e ao escopo limitado deste estudo, escolhi apenas as partes

que julguei mais representativas para ilustrar a análise dos dados. Contudo, o que me

instiga nessa análise é a possibilidade de (re)construir parte do múltiplos sentidos que

compõem e caracterizam o discurso de Johnny. Os segmentos selecionados foram

analisados à luz dos pressupostos teóricos dos posicionamentos discursivos e das

pistas de contextualização (DAVIES & HARRÉ, 1990; VAN LANGENHOVE & HARRÉ,

1999; GUMPERZ, 1999 – Ver seção 2.4). Fiz uso também da perspectiva

socioconstrucionista dos discursos e das identidades sociais, e dos conceitos

foucaultianos de poder, verdade e regimes de verdade (Ver seções 2.2 e 2.3).

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116

____________________________

9 Ver LISTA DE CONVENÇÕES E ABREVIATURAS no início desta dissertação.

7.1.1. A Entrevista

Nesta primeira parte do capítulo de análise dos dados, foram selecionadas

algumas partes da entrevista em áudio que realizei com Johnny em um dos nossos

encontros (Ver subseção 6.3.2). Nesta entrevista, foram abordados alguns assuntos

relativos à construção identitária de Johnny, com base nos seus relacionamentos na

escola, na Internet e no ambiente familiar. Para fins de análise, decompus a entrevista

em seqüências. No começo de cada seqüência, destaco um trecho, em negrito, que

considero como representativo do assunto central do qual os interactantes tratam em

cada seqüência no que diz respeito à temática das identidades sociais. Ainda aponto

que as convenções e abreviaturas usadas para transcrição de áudio nesta análise são

uma adaptação baseada em Marchuschi (1991)9.

Na primeira seqüência, inicio a entrevista questionando Johnny acerca da

primeira coisa que me chamou a atenção desde que ele me contou que conversa

bastante com outras pessoas nas salas de bate-papo da Internet: o motivo por que ele

prefere se identificar com um nome fictício de mulher (Rose) sempre que interage com

essas pessoas.

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Seqüência 1:

“na Internet, a gente tem a chance de ser, assim, tipo uma outra pessoa. Ser coisas que na vida real a gente, às vezes, não pode ser”

(1) P - A quanto tempo você usa a Internet, / quero dizer as salas de bate-papo

(2) da Internet?//

(3) JOHNNY – É::, deixa eu ver. // mais ou menos um ano.//

(4) P – E você usa um outro nome. É /, Rose, que não é seu nome verdadeiro,

(5) por quê?/

(6) JOHNNY – Ah:: Eu escolhi esse nome porque /, tipo, eu não queria que me

(7) descobrissem. // Mas, pô, acho que o mais importante é que,/ tipo, eu não

(8) queria ser a mesma pessoa,/ assim, que eu sempre sou no dia a dia./ Porque,

(9) na Internet,/ a gente tem a chance de ser, assim, tipo outras pessoas.// Ser

(10) coisas que na vida real a gente não pode ser, entende?/

(11) P – Ah:: / Mas houve um motivo especial para a escolha desse nome, é /

(12) Rose, que é um nome de mulher?/

(13) JOHNNY – Ah,/ porque eu gosto, na maioria das vezes, de conversar com

(14) meninas, tanto na escola quanto na Internet. // Aí, eu preferi escolher, tipo

(15) assim,/ um nome de mulher porque se eu escolhesse um nome de homem,/

(16) acho que as outras pessoas podiam estranhar./ E, aí, pô, elas, é/,

(17) então, não iam querer conversar comigo, entendeu?/

(18) P – Mas que outras pessoas?/

(19) JOHNNY – As pessoas que eu converso na sala./

(20) P – mas você não acha que a Internet é uma oportunidade pra todo mundo

(21) ser também [ outras pessoas?

(22) JOHNNY – [Ah:: Sei lá.// É::, mas, depende. // Pô, tem gente que conta muitos

(23) detalhes da vida na sala, tipo, a vida com os namorados, os ficantes, os

(24) problemas com os pais, assim, tudo/. E, então, eu acho que muitas pessoas

(25) usam pra desabafar e não pra inventar.//

(26) P – É,/ mas assim como você, elas também não poderiam estar fingindo ser

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(27) outras [pessoas?/

(28) JOHNNY – [É:://, é bem, é:: /, assim como eu, é verdade, eu sei que tem muita

(29) gente que faz isso, sim.//

Nesta primeira seqüência, o eixo central gira em torno do fato de Johnny ter

escolhido um nome fictício e feminino (Rose) para interagir nas salas de bate-papo

virtuais. E, ao assumir um posicionamento de primeira ordem (VAN LANGENHOVE &

HARRÉ, 1999 - Ver seção 2.4), perguntando-lhe sobre o motivo da escolha de um outro

nome (linhas 1 e 2), Johnny aponta que, embora uma das razões para tal escolha

esteja relacionada a um certo receio de vir a ser reconhecido por alguém (“Eu escolhi

esse nome porque, tipo, eu não queria que me descobrissem” – linhas 6 e 7), o motivo

principal pelo qual ele prefere usar outro nome se coaduna, segundo ele, com a

possibilidade de o sujeito construir outras pessoas na Internet (“Porque, na Internet, a

gente tem a chance de ser, assim, tipo outras pessoas” – linhas 8 e 9). Em outras

palavras, isso ajuda a corroborar a idéia de que, no mundo virtual, os usuários podem

construir para si várias identidades sociais cada vez mais heterogêneas e

multifacetadas (LÉVY, 1996 - Ver seção 5.2).

Ao reconhecer essa possibilidade de constituir outras identidades no ciberespaço

(linhas 8, 9 e 10), Johnny assume, portanto, um auto-posicionamento deliberado (VAN

LANGENHOVE & HARRÉ, 1999 - Ver seção 2.4) em que ele, claramente, demonstra

seu desejo de poder ser “outras pessoas” (linha 9) e, com isso, conseguir atingir um de

seus propósitos: o de construir determinadas identidades sociais, o que, segundo ele,

não seria possível no mundo real (“Ser coisas que na vida real a gente não pode ser,

entende?” – linhas 9 e 10).

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No decorrer da seqüência, assumo novamente um posicionamento de primeira

ordem para questionar Johnny a respeito da sua preferência pelo uso de um nome

feminino ao interagir na Internet, Johnny sinaliza seu interesse em se construir

identitariamente como uma menina, em virtude da sua própria experiência de

convivência e interação com meninas no ambiente escolar e no mundo virtual (“porque

eu gosto, na maioria das vezes, de conversar com meninas, tanto na escola quanto na

Internet” – linhas 13 e 14). Todavia, Johnny também afirma que o motivo da escolha de

um nome feminino se deu em função de um certo receio de que as outras pessoas com

as quais interage nas salas de bate-papo virtuais, ao saberem que é um menino, não

quisessem conversar com ele (“Aí, eu preferi escolher, tipo assim, um nome de mulher

porque se eu escolhesse um nome de homem, acho que as outras pessoas podiam

estranhar. E, aí, pô, elas, é, então, não iam querer conversar comigo, entendeu?” –

linhas 14 a 17).

Portanto, pode-se inferir que, nesse caso, Johnny assume, de fato, um auto-

posicionamento forçado (VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999 - Ver seção 2.4), uma

vez que é possível perceber que a sua escolha por um nome feminino, ou seja, o seu

posicionamento discursivo como uma menina, ocorre, outrossim, em virtude de uma

certa exigência do posicionamento dos outros interlocutores com os quais interage nas

salas de bate-papo da Internet que, em geral, são também meninas.

E mesmo sabendo, por experiência própria, que a Internet é um lugar onde os

indivíduos podem construir outras identidades para si, Johnny se posiciona

deliberadamente em relação ao outro ao dizer que muitas pessoas não a usam para

esse fim, mas sim, segundo ele, para conversar acerca dos seus relacionamentos,

problemas pessoais, familiares etc (“tem gente que conta muitos detalhes da vida na

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sala, tipo, a vida com os namorados, os “ficantes”, os problemas com os pais, assim,

tudo. E, então, eu acho que muitas pessoas usam pra desabafar e não pra inventar” –

linhas 22 a 25).

Contudo, ao ser interpelado por mim sobre a possibilidade dos outros indivíduos

com os quais interage estarem igualmente fingindo ser outras pessoas (linhas 26 e 27),

em que tomo novamente um posicionamento de primeira ordem, Johnny assume um

posicionamento reflexivo (posicionamento de segunda ordem) (VAN LANGENHOVE &

HARRÉ, 1999 – ver seção 2.4), em que ele se reposiciona ao meu favor depois de ter

tido seu posicionamento anterior questionado por mim (É, é bem, é, assim como eu, é

verdade, eu sei que tem muita gente que faz isso, sim” - linhas 28 e 29). Esse

posicionamento reflexivo da parte de Johnny é, a meu ver, ainda marcado por duas

pistas de contextualização (GUMPERZ, 1999 - Ver seção 2.4): a dupla repetição do

marcador conversacional “é” com o seu alongamento (“É:://, é:: bem, é” – linha 28); e o

uso da expressão “é verdade” (linha 28), o que ajudam a corroborar a idéia de uma

certa afiliação e concordância da parte de Johnny em relação à minha opinião. Ainda é

possível inferir que tal posicionamento reflexivo da parte de Johnny possa ter se

constituído também em virtude da própria relação assimétrica de poder (FOUCAULT,

1979 - Ver seção 2.3) presente na interação entre mim e ele, que embora, a meu ver,

tivesse sido bastante cordial, e até amigável, fez com ele reconhecesse em mim um par

mais velho e experiente, o que, possivelmente o fez refletir acerca da sua própria

opinião sobre o assunto.

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Seqüência 2:

“eu às vezes fico muito irritado porque se você, tipo, não tem uma namorada, então você é gay, quer dizer, ah, assim, todo mundo fica pensando

que você é gay”

(30) P – E,/ que assuntos você gosta de conversar com as pessoas nas salas de

(31) bate-papo?//

(32) JOHNNY – Ah::/ Eu converso sobre um monte de coisas ((risos de Johnny)).//

(33) Mas mais coisas,/ assim que as garotas gostam de conversar/. Por exemplo,

(34) eu não gosto de conversar sobre futebol./ Eu:: detesto futebol./ Então, tipo,/

(35) talvez se eu dissesse meu nome verdadeiro, ou um outro nome de homem,/

(36) aí acho que os outros iam pensar que eu fosse gay //, porque eu não gosto

(37) de falar de coisas, tipo, que os meninos gostam de conversar./ Por isso que

(38) eu preferi usar um nome de mulher, entendeu?/

(39) P – Aha!/ Então você acha que as pessoas pensariam que você é Gay só

(40) porque você não gosta de falar de alguns assuntos que são mais comuns

(41) entre os meninos?//

(42) JOHNNY – Aha! Acho que sim,/ eu vejo muito isso lá na escola.//

(43) P – E você se sentiria incomodado se te chamassem de [ Gay?

(44) JOHNNY – [ Claro, porque eu não sou Gay, não ((Johnny parece se sentir

(45) um pouco incomodado)).//

(46) P – tá,/ mas e o que você entende por “gay”?

(47) JOHNNY – Ah eu acho que “gay” é aquela pessoa que,// assim, que, por

(48) exemplo, gosta de outra pessoa do mesmo sexo, homossexual./ E eu, pô,

(49) não gosto mesmo de ninguém do mesmo sexo que o meu. //

(50) P – Entendo/. Mas você gosta de alguém do sexo oposto?

(51) JOHNNY – Bem, no momento não. / Mas, assim,/ eu às vezes fico muito::

(52) irritado porque se você,/ tipo, não tem uma namorada,/ então você é gay, quer

(53) dizer, ah::, / assim, todo mundo fica pensando que você é gay. // E eu acho que

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(54) as pessoas têm que respeitar a sua vontade, sabe?// Assim, às vezes eu

(55) quero ficar sozinho só saindo com os amigos, entendeu?/ E eu vejo que as

(56) pessoas são preconceituosas por causa disso. // Não só por causa disso, //

(57) mas, por exemplo,/ se o cara quer ser gay, aí, então isso foi uma escolha dele /

(58) e ninguém tem nada a ver com isso! ((Johnny aumenta o tom de voz)).

A seqüência 2 se inicia com o meu posicionamento de primeira ordem, uma

pergunta minha a respeito dos tipos de assuntos sobre os quais Johnny gosta de

conversar nas salas de bate-papo virtuais (linhas 30 e 31). Ele se auto-posiciona

deliberadamente ao afirmar que, como gosta de falar sobre assuntos que seriam típicos

das conversas de meninas e descarta, com isso, assuntos como futebol (“Mas mais

coisas, assim que as garotas gostam de conversar. Por exemplo, eu não gosto de

conversar sobre futebol. Eu detesto futebol” – linhas 33 e 34), poderia ser tachado de

“gay”, caso usasse seu nome verdadeiro ou um outro nome fictício masculino (“talvez

se eu dissesse meu nome verdadeiro, ou um outro nome de homem, aí acho que os

outros iam pensar que eu fosse gay” – linhas 35 e 36).

Pude perceber, neste trecho, que Johnny assume um posicionamento moral

(VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999 - Ver seção 2.4) ao reverberar construtos

cristalizados no senso comum, inclusive na sua própria escola, onde muitos “regimes de

verdade” são produzidos (FOUCAULT, 1988 – Ver seção 2.3), (“eu vejo muito isso lá na

escola” – linha 42), como o de que para ser “homem” seria necessário, por exemplo,

gostar de futebol, ou não se interessar por assuntos que, socialmente, seriam mais

comuns às mulheres. Johnny parece, portanto, estar ciente desses discursos que

essencializam modos de “ser homem e “ser mulher” (BUTLER, 2003 – Ver seção 3.2), e

que não reconhecem aqueles que, de alguma forma, não se enquadram no padrão da

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masculinidade hegemônica como os homossexuais, por exemplo. Tais discursos

parecem, com isso, invisibilizar muitas outras formas de constituição de masculinidades

e feminilidades, não contemplando a possibilidade de essas categorias serem

constantemente re-significadas e subvertidas (CONNELL, 2000 – Ver seção 3.2).

Nesta parte da seqüência, talvez tenha ficado mais evidente para mim o motivo

pelo qual Johnny, na seqüência anterior, disse preferir usar um nome fictício feminino: o

receio de ser tratado como “gay” (linhas 35 e 36). Isso, a meu ver, corrobora também o

seu posicionamento moral (VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999 – Ver seção 2.4). Isso

porque o seu posicionamento discursivo como uma menina ocorre, não somente em

função de uma certa exigência do posicionamento dos outros interlocutores com os

quais interage nas salas de bate-papo (auto-posicionamento forçado), como já havia

dito na análise da seqüência anterior, mas também pelo próprio medo de que esses

interlocutores o identificassem como “gay”, uma vez que esse rótulo traz em si certos

julgamentos depreciativos e estigmatizados por uma suposta ordem social moral.

Em seguida, ao tomar um posicionamento de primeira ordem para perguntar a

Johnny se o fato de ser chamado de “gay” o incomodaria (linha 43), ele prontamente se

auto-posiciona deliberadamente ao me responder que sim, inclusive se apressando em

dar uma resposta antes mesmo que eu terminasse a pergunta (linha 44). Isso parece se

mostrar de maneira mais contundente no momento em que ele, depois de ter dito sobre

o que entendia por “gay” (“Ah eu acho que gay é aquela pessoa que, assim, que, por

exemplo, gosta de outra pessoa do mesmo sexo, homossexual” – linhas 47 e 48),

replica, de forma veemente, que não gosta de “pessoas do mesmo sexo” (“E eu, pô,

não gosto mesmo de ninguém do mesmo sexo que o meu” – linhas 48 e 49). Isso, no

meu entender, ajuda a repercutir novamente a idéia de que o homossexualismo, por

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exemplo, conforme apontei acima, afilia-se a um tipo de masculinidade não-

hegemônica (CONNEL, 2000 – Ver seção 3.2), e, por essa razão, incomodaria àqueles

que se enquadrassem nessa categoria. Além disso, é possível dizer que o rótulo de

“gay” poderia também o incomodar porque a identidade social de “gay” talvez o faça se

sentir estigmatizado no ambiente escolar, uma vez que os “regimes de verdade”

construídos nesse contexto, em geral, só legitimam a masculinidade heteronormativa.

Contudo, depois de ter sido questionado se gostava de alguém do “sexo oposto”

(linha 50), Johnny novamente assume um auto-posicionamento deliberado ao mostrar-

se indignado por achar que o fato de ele não ter uma namorada, por exemplo, não o

tornaria homossexual (“Mas, assim, eu às vezes fico muito irritado porque se você, tipo,

não tem uma namorada, então você é gay, quer dizer, ah, assim, todo mundo fica

pensando que você é gay” – linhas 51, 52 e 53). Logo em seguida, e de forma

surpreendente, ele parece se posicionar contrário à visão essencialista de que para ser

considerado “homem”, por exemplo, o indivíduo tem que, necessariamente, estar

sempre se relacionando com mulheres (“E eu acho que as pessoas têm que respeitar a

sua vontade, sabe? Assim, às vezes eu quero ficar sozinho só saindo com os amigos,

entendeu? E eu vejo que as pessoas são preconceituosas por causa disso” – linhas 54,

55 e 56).

E, embora tenha anteriormente se posicionado, perante a mim, como não

homossexual (linhas 47 a 49), Johnny encerra seu turno, num tom veemente,

apontando que a opção do sujeito em querer ser “gay” é unicamente sua e que os

outros não têm nada a ver com isso, o que, mais uma vez, corrobora seu discurso

contra-hegemônico (“se o cara quer ser gay, aí, então isso foi uma escolha dele e

ninguém tem nada a ver com isso!” – linhas 57 e 58). Assim, pude perceber que

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Johnny, pelo menos na parte final desta seqüência, assume, portanto, um auto-

posicionamento deliberado, cujo propósito dessa vez, a meu ver, seria não mais o de

ser “outras pessoas”, como o da seqüência anterior, mas o de ter a sua vontade

respeitada no que diz respeito a sua vida afetiva e sexual. Tal posicionamento

discursivo também é ratificado em seu discurso por meio de duas pistas de

contextualização: o uso dos marcadores conversacionais “sabe” e “entendeu” (linhas 54

e 55, respectivamente); e do tom enfático (tom de voz mais alto) que Johnny emprega

na última frase da sua fala (“ninguém tem nada a ver com isso!” – linha 58), com o

objetivo de não só confirmar sua opinião em relação ao direito irrestrito à opção sexual

que todos deveriam ter, mas também de obter uma certa adesão minha a respeito do

que pensa sobre isso.

Seqüência 3:

“As meninas me adoram! Elas gostam muito de mim. Assim, elas me respeitam e não têm vergonha de falar as coisas comigo”

(59) P – E você mencionou a sua escola,/ como é o seu relacionamento com os

(60) seus colegas lá?//

(61) JOHNNY – Ah::/ É mais ou menos.// Eu não ando com os garotos, /gosto de

(62) andar com as meninas.// Sabe, eu sinto que eu me dou melhor com elas./

(63) Assim./ Pô, elas deixam eu, tipo,/ conversar sobre tudo com elas. E:: // Eu

(64) não gosto muito dos papos e das brincadeiras dos garotos.//

(65) P – E como as meninas e os meninos te tratam?/

(66) JOHNNY – Ah:: As meninas me ado::ram/ e eu adoro elas também!/ Elas

(67) gostam muito de mim.// Assim, elas me respeitam e não têm vergonha de falar

(68) as coisas comigo.// Me falam dos namorados delas, dos garotos que elas

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(69) ficam, assim, até de transar, essas coisas./

(70) P – E os garotos?//

(71) JOHNNY – Sei lá, assim,/ os garotos, eu sinto que no começo eles me

(72) tratavam mal.// Eles ficavam me sacaneando e me chamando de “gay”, de

(73) “boiola”, mas eu não gostava. //Ah:: /Eles são muito chatos./ Mas aí, agora eu

(74) não ligo muito,/ assim, eles deram um tempo.//

(75) P – Você ainda se incomoda quando eles te chamam de gay?

(76) JOHNNY – Ah::/ Não gosto não,/ mas às vezes eu nem ligo e finjo que não

(77) aconteceu nada//. Por isso que eu gosto muito de ir pra Internet,/ porque,

(78) assim,/ lá eu me sinto à vontade, entendeu?// E ninguém me descrimina ou fica

(79) falando alguma sacanagem pra mim lá.//

Nesta seqüência, depois de tomar um posicionamento de primeira ordem por

meio de uma pergunta a respeito do seu relacionamento com os colegas no ambiente

escolar (linhas 59 e 60), Johnny se auto-posiciona deliberadamente ao afirmar que

prefere se relacionar com as meninas da sua turma por achar que tem mais afinidades

com elas, ao mesmo tempo em que reconhece não gostar dos assuntos e brincadeiras

dos meninos (“gosto de andar com as meninas. Sabe, eu sinto que eu me dou melhor

com elas” e “Eu não gosto muito dos papos e das brincadeiras dos garotos” – linhas 61,

62 e 64). Tal afinidade com as meninas é corroborada, primeiramente, pelo fato de elas

permitirem sua presença em suas conversas (“Pô, elas deixam eu, tipo, conversar

sobre tudo com elas” – linha 63). Isso mostra que a noção de pertencimento a um

grupo, bem como as trajetórias em diferentes comunidades de práticas, são construídas

principalmente em função da forma como são avaliadas pelo(s) outro(s) nos mais

diversos contextos sociais, e, por isso, estão constantemente atreladas a relações de

poder (GEE, 2001 – Ver seção 5.2).

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Um outro fator que contribui para ratificar essa noção de pertencimento de

Johnny em relação ao grupo das meninas da sua turma se faz presente no seu discurso

no momento em que ele se reporta às meninas, relatando-me que elas o adoram, o

respeitam e não têm vergonha de contar para ele assuntos mais íntimos sobre os quais

elas conversam entre si, o que, a meu ver, o faz se sentir cada vez afiliado ao grupo

(“As meninas me adoram e eu adoro elas também! Elas gostam muito de mim. Assim,

elas me respeitam e não têm vergonha de falar as coisas comigo. Me falam dos

namorados delas, dos garotos que elas ficam, assim, até de transar, essas coisas” –

linhas 66 a 69).

Johnny parece assumir, nesta parte, um posicionamento deliberado do outro

(VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999 – ver seção 2.4), em que ele expressa

claramente sua opinião em relação às meninas (“eu adoro elas também” – linha 66), o

que, por sua vez, é legitimado, conforme apontou, pelo sentimento de amizade e

respeito que elas alimentam por ele ao engajarem-no em suas conversas mais íntimas

(linhas 65, 66 e 67). Isso, outrossim, se confirma por meio de algumas pistas de

contextualização, certas escolhas lexicais que atribuem valores apreciativos, das quais

Johnny faz uso para se referir às meninas, e elas em relação a ele (linhas 66 e 67). Tal

posicionamento discursivo contribue para ratificar a idéia de que Johnny estaria

construindo para si uma outra masculinidade, dando, com isso, visibilidade a outras

maneiras de se constituir identitariamente como um menino ao se relacionar com as

meninas da sua turma.

No entanto, depois de dois posicionamentos de primeira ordem meus (linhas 70

e 75, respectivamente), em que busco, até de forma um tanto insistente, saber acerca

do seu relacionamento com os meninos da sua turma, Johnny me confessa que eles

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costumavam tratá-lo mal e se referiam a ele por meio de palavras ofensivas quanto à

sua sexualidade, o que, no começo, o incomodava (“os garotos, eu sinto que no

começo eles me tratavam mal. Eles ficavam me sacaneando e me chamando de “Gay”,

de “boiola”, mas eu não gostava” – linhas 71, 72 e 73). Nesse momento, Johnny

assume novamente um posicionamento deliberado do outro, em que ele não somente

fornece informações a respeito dos meninos, mas também expressa sua opinião em

relação a eles; opinião essa consubstanciada por uma pista de contextualização: a

escolha lexical “chatos” (linha 74). No momento atual, porém, Johnny afirma não estar

mais se importando tanto com as ofensas, e os meninos, por sua vez, pararam de tratá-

lo desse jeito (“Mas aí, agora eu não ligo muito, assim, eles deram um tempo” – linhas

73 e 74).

Embora essa constatação de que Johnny não estaria mais dando tanta

importância para o que os meninos falavam a seu respeito ainda se configure logo em

seguida na sua resposta à minha pergunta (“Não gosto não, mas às vezes eu nem ligo

e finjo que não aconteceu nada” – linhas 76 e 77), pude notar que isso, mesmo que de

forma mais tênue, ainda o incomoda. Isso porque existem, na nossa sociedade,

“relações hierárquicas em que algumas masculinidades são consideradas dominantes,

enquanto outras são subordinadas e marginalizadas” (CONNELL, 2000, p. 10 – Ver

seção 3.3). E, como Johnny estaria se construindo dentro de uma concepção de

masculinidade não hegemônica em relação aos meninos da sua turma, ele seria,

portanto, estigmatizado por eles. Essa seria também uma das razões pelas quais

Johnny prefere interagir com pessoas na Internet, porquanto este ambiente fornece

àqueles que dele fazem uso um acesso quase ilimitado à complexidade e à pura

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multiplicidade da experiência das subjetividades humanas (LANKSHEAR & KNOBEL,

1997 – Ver seção 5.2).

Nesse sentido, o mundo virtual pode ser, portanto, entendido como um lugar,

antes de tudo, não discriminatório (Ver seção 5.2), o que faz com que Johnny se sinta à

vontade, sem medo do que os outros poderiam pensar ou falar sobre ele. Em face

disso, Johnny, novamente, assume um auto-posicionamento deliberado, pois expressa,

de forma contundente, sua opinião em favor desse mundo libertário do ciberespaço,

onde os modos de viver a sua experiência humana não seriam discriminados, ou

mesmo questionados (“Por isso que eu gosto muito de ir pra Internet, porque, assim, lá

eu me sinto à vontade, entendeu? E ninguém me descrimina ou fica falando alguma

sacanagem pra mim lá” – linhas 77 a 79).

Seqüência 4:

“Um dia, por causa da foto que eu mostrei pra uma amiga na Net, ela disse que um amigo dela viu a foto e aí ele quis muito me conhecer”

(80) P – Sei,/ mas tem alguém com quem você conversa virtualmente que sabe

(81) que você não se chama Rose?//

(82) JOHNNY – Ah:: / sim tem uma amiga que sabe, sim,/ mas assim ela é uma

(83) grande amiga e não vai nunca contar pra ninguém.// Não tem erro, pô, eu

(84) confio mui::to nela.//

(85) P – E::/ você nunca passou por uma situação difícil que,/ por exemplo, alguém

(86) pudesse estar ameaçando descobrir que você não se chama Rose/ e que

(87) você não é uma [mulher fora dali?

(88) JOHNNY – [Ah:: Assim, / é muito difícil de alguém descobrir que meu nome

(89) não é Rose porque /, na verdade,/ eu só converso com essas pessoas

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(90) online./ E, fora dali, eu não falo com eles.//

(91) Mas é verdade que têm,/ por exemplo, duas pessoas que a gente ta

(92) tentando um tempão marcar pra sairmos juntos./ Só que, aí,/ isso não

(93) aconteceu ainda porque elas pensam que eu sou uma garota,/ e aí, / elas tão

(94) loucas para me conhecer,/ e eu também quero conhecer elas,/ mas eu acabei

(95) me enrolando e até agora elas tão esperando.// Mas elas moram noutra

(96) cidade,/ assim, bem longe.//

(97) P – Aha,/ mas,/ além disso, eu sei que o MSN oferece a oportunidade de você

(98) colocar fotos suas lá.// E então,/ nenhuma dessas pessoas nunca te pediu

(99) para ver suas fotos?/

(100) JOHNNY – Ah::/ assim, eu também no começo não colocava nada. / Mas aí

(101) eu aprendi a mexer com Photoshop e,/ aí, pô,/ tipo,/ você não vai acreditar,/ eu

(102) criei uma própria imagem para mim mesmo//. Fiz uma montagem,/ assim,/ com

(103) vários pedaços de outras pessoas e aí montei a minha imagem.// Ficou muito

(104) engraçado,/ mas ficou maneiro/ eu fiquei bonita! ((risos meus e de Johnny)).

(105) P – Pôxa, que legal! [ E...

(106) JOHNNY – [ Ah::! ((risos de Johnny)) desculpa te cortar,/ mas é que eu

(107) lembrei, assim, // de uma situação mui::to engraçada que aconteceu na Net

(108) comigo.// Um dia,/ por causa da foto que eu mostrei pra uma amiga na Net,/ ela

(109) disse que um amigo dela viu a foto e aí ele quis muito me conhecer. Sério! /

(110) E eu não sabia, assim, o que fazer!/

(111) P – Mas e aí?//

(112) JOHNNY – Ah::/ eu falei /, tipo, que tava saindo com outro cara e que não

(113) tava afim,/ assim, de sair com ninguém,/ mas fiquei desesperado,/ sem saber

(114) o que fazer,/ mas também foi muito engraçado poder fazer isso,/ assim!//

(115) P – Bem,/ já que todo mundo acha que você é uma menina na Internet,/

(116) você já pensou em arrumar um namorado na Internet?//

(117) JOHNNY – Ah::/ acho que,/ de repente,/ ia ser legal arrumar alguém na

(118) Internet só de brincadeira,/ assim. // Acho que ia ser engraçado!//

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Inicio a seqüência 4 com um posicionamento de primeira ordem, em que procuro

instigar Johnny, perguntando-lhe se há alguém com quem conversa nas salas de bate-

papo que saiba que seu nome não é Rose (linhas 80 e 81). Ele me diz que tem apenas

uma amiga que sabe disso, mas que, segundo ele, jamais contaria para alguém (“tem

uma amiga que sabe, sim, mas assim ela é uma grande amiga e não vai nunca contar

pra ninguém” – linhas 82 e 83). Nesse momento, percebe-se que Johnny assume um

posicionamento deliberado do outro, em que ele justifica sua falta de medo de ter seu

nome verdadeiro descoberto por meio da confiança e do apresso, expresso também

pela pista de contextualização (a escolha lexical “grande” (linha 83)), para com a sua

amiga (“ela é uma grande amiga e não vai nunca contar pra ninguém. Não tem erro, pô,

eu confio muito nela” – linhas 82, 83 e 84).

Novamente tomo um posicionamento de primeira ordem para saber se, alguma

vez, Johnny já havia passado por alguma situação em que alguém estivesse

ameaçando descobrir que seu nome não é “Rose” e que ele não é uma mulher no

mundo real (linhas 85, 86 e 87). Ele, então, me diz que isso dificilmente aconteceria, já

que as pessoas com as quais conversa nas salas de bate-papo virtuais não são suas

amigas no mundo real (linhas 88, 89 e 90). Tal asserção nos permite discorrer que as

relações sociais que se formam no decorrer de uma interação no mundo virtual

contribuem na re-significação do fator da presença, não só por meio da intervenção da

técnica, mas principalmente através do modo como o usuário da Internet manipula suas

informações pessoais e sociais para subsidiar suas ações, uma vez que a vantagem do

anonimato lhe proporciona isso (CARDOSO, 1997 – Ver seção 5.2). Nesse sentido,“as

salas de bate-papo da Internet permitem que sejamos construídos de formas diferentes,

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ao assumirmos identidades sociais variadas” (MOITA LOPES, 2002, p. 25 – Ver seção

5.2).

Em seguida, retomo o posicionamento de primeira ordem, em que insisto na

questão da possibilidade de Johnny vir a ser descoberto pelas outras com as quais

interage, perguntando-lhe se alguém já quis ver alguma foto sua no MSN (linhas 97, 98

e 99). De fato, o usuário do MSN não é obrigado a exibir uma foto sua na página inicial

(Ver subseção 6.3.1.2), por isso Johnny, no começo, também não expunha qualquer

foto sua (“eu também no começo não colocava nada” – linha 100). No entanto, ele mais

uma vez me impressiona, ao me contar que “criou uma imagem sua” a partir da foto de

uma menina que encontrou na Internet, usando o Photoshop, um programa de

computador usado para edição de fotos, com o qual ele realizou algumas mudanças

para poder inventar um novo rosto para si (“Mas aí eu aprendi a mexer com Photoshop

e, aí, pô, tipo, você não vai acreditar, eu criei uma própria imagem para mim mesmo.

Fiz uma montagem, assim, com vários pedaços de outras pessoas e aí montei a minha

imagem” – linhas 100 a 103). Nesse momento, Johnny assume um auto-

posicionamento deliberado, em que ele demonstra seu contentamento em relação à

criação da sua “nova imagem”, que é também corroborada pelas pistas de

contextualização, os itens lexicais “engraçado”, “maneiro” e “bonita” (linha 104).

Johnny continua o assunto relatando-me que, depois de ter mostrado sua nova

foto a uma amiga sua, um amigo dela chegou a se interessar por ele, pedindo até a

essa sua amiga que o apresentasse a ele (“Um dia, por causa da foto que eu mostrei

pra uma amiga na Net, ela disse que um amigo dela viu a foto e aí ele quis muito me

conhecer. Sério! E eu não sabia, assim, o que fazer!” – linhas 108, 109 e 110). Isso

mostra que a possibilidade que o ciberespaço oferece para construir outras identidades

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através de meios multimodais, como é o caso do programa Photoshop, está

intimamente relacionada às práticas de letramento digital, visto que essa nova forma de

lidar com o computador traz não apenas novas formas de acesso à informação, mas

também novos processos cognitivos e sociais, novas formas de conhecimento, enfim,

novas formas de viver a vida social (COPE & KALANTZIS, 2000 – Ver seção 4.2).

Logo em seguida, tomo novamente um posicionamento de primeira ordem para

saber se Johnny já havia pensado na possibilidade de arrumar um namorado,

porquanto ele estava se construindo identitariamente como uma menina (linhas 115 e

116). Ele, então, se auto-posiciona deliberadamente ao exprimir a opinião de que isso

não só poderia ser possível como também interessante e divertido, o que, por sua vez,

também se confirma por meio de suas escolhas lexicais em “legal” e “engraçado” (“Ah::

Acho que, de repente, ia ser legal arrumar alguém na Internet só de brincadeira, assim.

Acho que ia ser engraçado!” – linhas 117 e 118).

Sob essa perspectiva, a Internet pode se tornar para Johnny um lugar em que

ele possa viver novas experiências. Isso porque a própria fisicalidade no ciberespaço (o

corpo virtual) passa a ser construída via discurso: o agente online vai fornecendo

informações sobre si e, com isso, construindo a si mesmo (LEVY, 1997 – Ver seção

5.2). O usuário, por sua vez, também consegue construir uma imagem da pessoa que

está do outro lado da tela, situando-o na interação como um ser que detêm

características sociais próprias. Por isso, a Internet, de forma mais expressiva do o

mundo real, se tornou um espaço para experimentação de novas formas híbridas de

sociabilidade, em que a própria fisicalidade pode ser (re)construída.

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A presente análise da entrevista que realizei com Johnny serviu-me de base para

compreender algumas questões relativas à sua (re)construção identitária, o que será

comentado na seção destinada a responder às questões de pesquisa (Ver seção 8.2).

A seguir, passo a analisar o segundo corpus desta pesquisa: as conversas nas salas de

bate-papo virtuais.

7.1.2. As conversas nas salas de bate-papo ciberespaço

Nesta seção, analisarei algumas das conversas, em forma de texto escrito, entre

Johnny e outros interactantes, alguns de seus amigos virtuais, em dois tipos de salas

de bate-papo do ciberespaço: as salas de bate-papo da UOL, um ambiente virtual do

qual os interactantes, em geral, fazem uso para estabelecer um primeiro contato entre

si; e o MSN, uma sala de bate-papo mais restrita, onde só se conversa com pessoas

que foram escolhidas (“adicionadas”) pelo usuário (Ver subseção 6.3.1.2).

Como as conversas selecionadas nesta parte da análise foram realizadas por

pessoas diferentes, em datas diferentes, e, portanto, não seguem uma seqüência,

considerei mais oportuno distribuí-las em excertos. Cada excerto representa fragmentos

de conversas entre Johnny, que nas salas de bate-papo usa o nome “Rose” (Ver nota

no capítulo 1), e cada um de seus amigos(as) virtuais. Assim como na entrevista

(subseção 8.1.1), destaquei para cada excerto o trecho que considero representativo do

assunto central do qual os interactantes tratam e que tematizam a questão das

identidades sociais.

Os três primeiros excertos foram retirados de interações das salas de bate-papo

da UOL; os demais (os outros seis excertos), do MSN. O primeiro excerto é uma forma

de interação típica da sala de bate-papo da UOL, cujo objetivo é o de estabelecer um

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primeiro contanto entre seus interactantes. Nessa conversa, Rose conhece Marcinha,

depois de vê-la conversando com uma outra pessoa sobre o uso de piercing no corpo.

Rose, então, convida-a para conversar.

Excerto 1: ROSE E MARCINHA

“to doida pra botar piercing mas minha mãe fica me enchendo!!” (1) ROSE – oi, td bem? vi q vc tava falando com uma menina q vc gosta de

(2) piercing. Fiquei interessadiiiiiiissima!!!

(3) MARCINHA – oi, rose, adoro sim!!! é eu tenho até uma comunidade no orkut

(4) de piercing. entra no link www.orkut.com/Community.aspx?cmm=120298

(5) ROSE – ai, vou entar sim. mas me conta, e verdade q doí muito botar???

(6) MARCINHA – naum so dói um pouquinho, mas fica show!!!

(7) ROSE – to doida pra botar piercing mas minha mãe fica me enchendo!!

(8) MARCINHA – ai, minha mãe tambem enchia o saco com isso. Po, mais aí

(9) tava geral colocando,minhas amigas todo mundo. Ai eu botei também. eu

(10) escondi três dias da minha mãe e do meu pai duas semanas!!! credita????

(11) ROSE – serio!!! mas e aí?

(12) MARCINHA – ah, no começo não gostaram mas aí ficou td bem!!

(13) ROSE – eos gatinhos?

(14) MARCINHA – ai, menina, maior sucesso. Agora so fico pagando

(15) barriguinha!!! Ainda mais agora q eu to mais magra!!!

(16) ROSE – ai , eu tenho uma amiga q usa q fica lindo. ela também e toda

(17) linda!! mas naum tenho coragem de botar na barriga, naum, acho q só ia

(18) botar na sobrancelha;

(19) MARCINHA – na sobrancelha fica show também. Mas não deixa de entrar lá

(20) na comunidade

(21) ROSE – vou sim. gostei de conhecer. tem msn?

(22) MARCINHA – eu tb. me add. meu email e [email protected]

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(23) ROSE – vou te add sim, bjos

Este excerto se inicia com Rose tomando um auto-posicionamento deliberado

em que ela, ao observar uma menina (Marcinha) conversando com uma outra pessoa

sobre um assunto que também lhe interessa, convida essa menina para conversar (“oi,

td bem? vi q vc tava falando com uma menina q vc gosta de piercing. Fiquei

interessadiiiiiiissima!!!” – linhas 1 e 2). Perceber-se, portanto, já no começo deste

excerto, que Rose, ao mostrar seu interesse em conversar com uma outra pessoa

sobre um assunto que, no senso comum, seria típico das mulheres, está, de fato,

buscando construir-se identitariamente como uma menina. Isso é igualmente

indexicalizado por uma pista de contextualização, o alongamento excessivo da sílaba

tônica da palavra, que é também uma das formas estereotípicas de se marcar a “fala

feminina” para manifestar intensamente o desejo por alguém ou por alguma coisa

(“interessadiiiiiiissima!!!” – linha 2). Nesse sentido, é possível inferir que Rose, ao fazer

uso de tais recursos lingüísticos, está se auto-posicionando como uma mulher e,

portanto, construindo sua identidade social de gênero.

Marcinha, em seguida, assume um auto-posicionamento deliberado não só para

confirmar sua opinião em relação ao uso do piercing, mas também para convidar Rose

a participar de uma comunidade num site de relacionamentos (o Orkut), através de um

dos meios mais usados nas salas de bate-papo para isso: o envio de um link (um tipo

de hipertexto – Ver seção 4.3), no qual o usuário clica e entra direto na página da

Internet que se deseja (linha 4).

É possível perceber que Rose, ao tomar um posicionamento de primeira ordem,

por meio do qual ela ratifica seu desejo não somente de usar piercing, mas também de

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fazer parte de uma comunidade no Orkut de pessoas que o usam (linha 5), busca, com

isso, uma forma de pertencimento a partir de seu engajamento numa comunidade de

prática específica (no caso, a comunidade do Orkut), o que a possibilitaria construir

para si para outras identidades sociais (LAVE & WENGER, 2002 – Ver seção 5.2).

Mesmo tendo um certo receio usar piercing, em função de uma possível dor que

poderia sentir ao colocá-lo (linha 5), Rose parece cada vez mais querer usar um, e, só

não o fez ainda, segundo ela, porque sua mãe não estaria permitindo que ela usasse

(“to doida pra botar piercing mas minha mãe fica me enchendo!!” – linha 7). Nesse

momento, Rose estaria assumindo um auto-posicionamento forçado, uma vez que a

sua posição de não usar piercing ocorre, não por vontade própria, mas em função de

uma suposta proibição da parte de sua mãe, o que se confirma por meio do uso da sua

escolha lexical “me enchendo” (linha 7) para se referir a uma suposta pressão que sofre

da parte de sua mãe.

E, embora ela afirme sofrer tal repressão da sua mãe em relação ao uso do

piercing, isso não parece desanimá-la, especialmente porque essa situação de

repressão também é vivida por sua amiga Marcinha, que, mesmo assim, decidiu usar

piercing (“ai, minha mãe tambem enchia o saco com isso. Po, mais aí tava geral

colocando, minhas amigas todo mundo. Ai eu botei também” – linhas 8 e 9). Nessa

parte, Marcinha apresenta um auto-posicionamento deliberado, em que ela, mesmo

contrariando a opinião do seus pais, posiciona-se a favor da sua própria vontade de

usar piercing (linha 9), o que poderia ser, outrossim, uma motivação para que Rose

fizesse o mesmo.

Rose, então, toma um posicionamento de primeira ordem para saber de

Marcinha a respeito da opinião dos meninos, o que também poderia ser mais uma

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razão para que ela passasse a usar piercing (linha 13). Tal suposição é corroborada

pelo posicionamento deliberado do outro, assumido por Marcinha ao dizer a Rose que o

uso do piercing na barriga é o “maior sucesso” entre os meninos e pela sua escolha

lexical “pagando barriga” (linhas 14), o que remete à construção da uma suposta

sensualidade feminina. Nessa parte da análise, acredito que seja possível tratar o

sujeito da pesquisa como Johnny / Rose (Ver nota no capítulo 1), uma vez que esse

suposto interesse pela opinião dos meninos em relação ao uso do piercing pode

assumir uma posição ambivalente: tanto pode ser um indício de que Rose não só quer

ser reconhecida como uma menina no mundo virtual do qual faz parte, já que as

meninas com as quais conversa também se mostram interessadas por meninos, como

também pode estar querendo, já como Johnny, expressar seu próprio desejo pelos

meninos. Nesse sentido, o ciberespaço, por ser um ambiente no qual circulam múltiplos

discursos, pode se tornar também um “espaço libertário” para a própria experimentação

de outras práticas, como a sexualidade (TURKLE, 1997 – Ver seção 5.2).

Contudo, logo em seguida, Rose parece tomar posicionamentos um tanto

contraditórios no que concerne à sua própria vontade. Isso porque, embora assuma um

posicionamento deliberado do outro no que diz respeito ao uso do piercing por parte de

uma de suas amigas, na tentativa de ratificar sua opinião favorável em relação ao

assunto (“ai, eu tenho uma amiga q usa q fica lindo. ela também e toda linda!!” – linha

16 e 17), ela, por outro lado, se auto-posiciona deliberadamente ao dizer que não tem

coragem de usar peircing na barriga (“mas naum tenho coragem de botar na barriga,

naum, acho q só ia botar na sobrancelha” – linhas 17 e 18). Acredito que tal contradição

encontra respaldo no fato de Rose estar consciente de que, muito embora possa

circular por vários discursos no ciberespaço que lhe possibilitem se construir sócio-

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discursivamente como muitos outros sujeitos, ela sabe que, no mundo real (como

Johnny), tal possibilidade é sócio-culturalmente mais limitada, a tal ponto de ela, por

exemplo, não se sentir à vontade de usar piercing na barriga. E, mesmo quando

participa do mundo virtual, tais conceitos ainda parecem ecoar em seus discursos.

No excerto 2, Rose é convidada por Beto para conversar. É preciso mencionar

que, nesta interação, diferentemente das outras aqui apresentadas, o propósito dos

dois interactantes não era, propriamente, o de fazer uma “nova amizade”, mas o de se

“paquerarem”. Isso porque, em geral, Rose, ao entrar nas salas de bate-papo da UOL,

escolhe a opção “entre amigos” (Ver subseção 7.3.1.2 e ANEXO 1). Dessa vez, no

entanto, Rose preferiu a opção da sala de “paquera”, onde conheceu Beto.

Excerto 2: ROSE E BETO

“sei lá gosto de caras que falem coisas interessantes. Naum gosto de cara machão, sabe? Gosto assim de caras que sabem conversar”

(24) ROSE – oi, beto. td bem?

(25) BETO – tudo. e aí, vc ta sempre teclando?

(26) ROSE – ah, as vezes. geralmente a noite. E vc?

(27) BETO – eu tb. E vc mora aonde?

(28) ROSE – No RJ e vc?

(29) BETO – vitória – espírito santo. E aí, conhece vitória? Tem praias lindas

(30) ROSE – eu sei. mas naum conheço lá naum. E quantos anos vc tem?

(31) BETO – 18 e vc?

(32) ROSE – 17

(33) BETO – que vc faz?

(34) ROSE – estudo. To no 2º ano e vc?

(35) BETO – to no 3º. Me diz que tipo de cara, assim vc gosta?

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(36) ROSE – ah naum gosto de cara chato!!! cara, assim que só fica falando de

(37) si.

(38) BETO – e como um cara poderia chegar em vc e se da bem?

(39) ROSE – Ah:: sei lá gosto de caras que falem coisas interessantes. Naum

(40) gosto de cara machão, sabe? Gosto assim de caras que sabem conversar,

(41) sabe falar de muitas coisas e naum fique falando sempre o mesmo assunto.

(42) BETO – Poxa, acho que sou esse tipo de cara!!

(43) ROSE – Ahã! Acho q não. já to achando vc muito convencido, hein!!!

(44) BETO – que nada, so to vendendo meu peixe. Se eu naum fala bem de mim

(45) como eu vou conquista vc?

(46) ROSE – mas quem disse que eu quero ser conquistada por vc?

(47) BETO – vc é difícil, hein???

(48) ROSE- ah, fala sério,naum sou nada!!!

(49) BETO – mas mesmo assim já gostei de conhecer vc!!

(50) ROSE- é até que eu tb. vc naum é mt convencido naum!!!

(51) BETO – mas eu ainda vou conquistar vc!!! pode ter certeza!

(52) ROSE – vamo ver, vai ser difícil, mas que sabe...

(53) ROSE – tenho que ir agora. bjinhos.

(54) BETO – espera aí. me da seu msn

(55) ROSE – [email protected]

(56) BETO – vou te add. mt bjos.

(57) ROSE – bjos.

A conversa entre Rose e Beto se inicia da forma um tanto padrão nessa opção

de interação das salas de bate-papo: os interactantes se alternam na tomada dos

turnos (posicionamentos de primeira ordem) para se apresentar informalmente um ao

outro por meio de perguntas sobre informações mais gerais, como: lugar onde vivem,

idade, se estuda ou trabalha etc (linhas 24 a 35). O tópico central da conversa entre os

dois começa a se desenvolver quando Beto interpela Rose acerca do tipo de homem

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que lhe interessa (“Me diz que tipo de cara, assim vc gosta?” – linha 35). Rose, então,

assume um auto-posicionamento deliberado para expor sua opinião, se construindo

identitariamente, a meu ver, como uma menina que tem preferências por um

determinado tipo de homem (“ah naum gosto de cara chato!!! cara, assim que só fica

falando de si” – linha 36).

Em seguida, Beto toma um posicionamento de primeira ordem na tentativa de

imprimir à conversa um certo tom de “paquera” (“e como um cara poderia chegar em vc

e se da bem?” – linha 38). Rose, então, se auto-posiciona deliberadamente ao apontar

novamente para o seu interlocutor (Beto) o tipo de homem que prefere (“Ah:: sei lá

gosto de caras que falem coisas interessantes. Naum gosto de cara machão, sabe?

Gosto assim de caras que sabem conversar, sabe falar de muitas coisas e naum fique

falando sempre o mesmo assunto” – linhas 39 a 41). Percebe-se, com isso, que Rose

vai tecendo sua identidade social de gênero por meio da sua relação sócio-discursiva

com Beto. Isso nos conduz a uma visão de identidade como construção social, em cujo

princípio está implicado o fato de que somos criados, ou melhor, criamos nossas

identidades sociais por meio dos outros a nossa volta, pois “ao antecipar como os

participantes podem responder na interação, com base em quem eles são, nos

compomos de formas diferentes” (SHOTTER apud MOITA LOPES, 2002, p. 34 – Ver

seção 3.1).

Nesse momento, Beto se auto-posiciona deliberadamente para enaltecer a si

mesmo e na tentativa de convencer Rose de que ele seria o tipo de homem que ela

descrevera (“Poxa, acho sou esse tipo de cara!!” – linha 42). Todavia, Rose toma um

posicionamento deliberado do outro, como uma espécie de reação à asserção de Beto,

em que ela o posiciona como alguém “convencido”, não se adequando, portanto, ao

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esteriótipo de homem que ela idealiza (“Ahã! Acho q não. já to achando vc muito

convencido, hein!!!” – linha 43). Tal posicionamento de Rose ainda é corroborado por

algumas pistas de contextualização no seu discurso: os marcadores conversacionais

“Ahã!” e “hein!!!”, típicos do discurso oral, e o item lexical “convencido”, usados, no

contexto em questão, para indexicalizar uma suposta atitude de ironia e desdém em

relação à fala anterior de Beto.

Em seguida, Beto se auto-posiciona deliberadamente ao reconhecer que, apesar

de uma suposta dificuldade enfrentada para conquistar Rose, gostou de conhecê-la

(“mas mesmo assim já gostei de conhecer vc!!” – linha 49). Rose, por sua vez, toma um

posicionamento reflexivo (de segunda ordem) em relação ao seu interlocutor (Beto),

pois, embora não tenha tido seu posicionamento anterior questionado por ele, ela

parece ter se (re)posicionado em favor da idéia de que Beto não seria talvez tão

convencido quanto imaginava (“é até que eu tb. vc naum é mt convencido naum!!!” –

linha 50). Beto, então, assume novamente um auto-posicionamento deliberado com o

intuito de ratificar sua posição de conquistador na interação (“mas eu ainda vou

conquistar vc!!! pode ter certeza!” – linha 51). Rose, por sua vez, parece tomar essa

idéia como algo possível não só na linha 52 (“vamo ver, vai ser difícil, mas que sabe...”),

mas também na linha 55, em que ela, depois do pedido de Beto, disponibiliza o link

(hipertexto – Ver seção 4.3) do seu e-mail para ele, na tentativa de promover outros

encontros virtuais entre eles, já como um caráter mais privado no MSN (Ver seção

6.3.1.2). Percebe-se, com isso, que Rose está novamente (re)construindo sua

identidade social de gênero como uma menina ao se permitir criar um relacionamento

supostamente heterossexual com um menino no mundo virtual.

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Ao longo do excerto, é possível ponderar, do mesmo modo, que Rose estaria

construindo sua identidade social de gênero de forma um tanto ambígua: por um lado,

ela parece fazer prevalecer a sua opinião acerca do tipo de homem que prefere; por

outro, ao se permitir participar desse jogo discursivo com Beto, ela sinaliza, outrossim,

sua construção identitária como uma menina heterossexual, uma vez que sabe, por

exemplo, que o comportamento esperado de uma menina, dentro de uma visão

essencialista cristalizada no senso comum, deveria ser o de se preservar o quanto

puder e até mesmo o de criar uma certa resistência em relação às supostas investidas

do menino, que, por sua vez, teria sempre o papel de “conquistador”.

Essa idéia de um suposto comportamento estereotipado imputado aos “papéis

dos sexos” (BUTLER, 2003 – Ver seção 3.3) continua sendo desenvolvida ao longo do

excerto. Beto, então, toma um auto-posicionamento deliberado para reiterar sua

posição de conquistador na interação, típica da masculinidade hegemônica (“que nada,

so to vendendo meu peixe. Se eu naum fala bem de mim como eu vou conquista vc?” –

linhas 44 e 45). Rose, por sua vez, continua exercendo sua função passiva, típica de

um ideal feminino, que se restringe unicamente a criar uma certa resistência às

“investidas” de Beto (“mas quem disse que eu quero ser conquistada por vc?” – linha

47). Nesse sentido, é possível afirmar que os interactantes se encontram numa relação

assimétrica de poder (FOUCAULT, 1888 – Ver seção 2.3), em que Beto assume a

posição de “conquistador”, enquanto Rose, a de “conquistada”. Isso se ratifica

igualmente através da pista de contextualização, o uso do verbo “conquistar” por parte

de cada um deles: Beto, por exemplo, o usa na voz ativa, o que o constrói na posição

de agente da ação da conquista (linha 45); Rose, por sua vez, usa-o na voz passiva, o

que contribui para construí-la de forma passiva na interação (linha 47).

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Contudo, ao co-construírem um típico jogo de “paquera”, alternado

posicionamentos compatíveis com esse jogo de linguagem, ambos atualizam na

interação relações hierárquicas naturalizadas, cujas funções Rose parece conhecer

muito bem. Nesse sentido, é possível fazer uma outra interpretação, na qual Rose é

quem, de fato, assume uma posição hegemônica de poder na interação, já que é ela

que parece conduzir Beto a querer continuar mantendo o jogo discursivo da “paquera”,

inclusive permitindo que ele a adicione no seu MSN para futuros encontros (linha 55).

No excerto 3, Rose conhece pela primeira vez Joana na opção sala de bate-

papo “entre amigos” da UOL. Rose, então, convida-a para conversar. O assunto entre

elas gira em torno do ideal de homem que cada uma possui.

Excerto 3: ROSE E JOANA

“acho q naum precisa ser um Brad pit, mas pelos menos tem q ser gatinho e

educado!!!” (58) ROSE – oi, vc da onde? (59) JOANA –Mogi das cruzes , SP, e vc? (60) ROSE – do rio (61) JOANA – ai todo mundo fala q tem um monte de menino saradão aí!!! me (62) conta (63) ROSE - até tem mas tb tem mto menino feio! (64) JOANA – é verdade, mesmo. mas qual e o seu tipo preferido? (65) ROSE - ah, sei lá, tem q ser bonitinho, gatinho. (66) JOANA – sabe porque to perguntando é q minha amiga tem uma

(67) comunidade no orkut e Homens bonitos de boca fechada. conhece?

(68) ROSE – naum. me manda o link

(69) JOANA - http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=153522 a gente

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(70) acha q homem bonito e td burrão!!!!

(71) ROSE – ai é verdade, quando eu vejo assim um cara saradão, pô ele todo

(72) metidão mais naum sabe nem falar!!! mas nem todos. tem um menino q

(73) estuda comigo q é muito lindo, assim td de bom e ele naum e burrão não!!!

(74) JOANA – é verdade, mas tem poucos, ne? e é uma pena por que tem assim

(75) uns q são legais mas são tão feinhos, né!!!

(76) ROSE – tem mesmo!!! naum dá pra ser perfeito, né?

(77) JOANA – ai mas tem que ter também uns músculos. Naum precisa ser

(78) fortão. Mas magrinho tb naum dá.

(79) ROSE – eu tb naum gosto de menino mto fortão, bombado. E tb naum gosto

(80) de baixinho. Tem q ser alto tb. acho q naum precisa ser um Brad pit, mas

(81) pelos menos tem q ser gatinho e educado!!!

(82) JOANA – ai, mas isso já e impossivell!! Acho q eles nunca vão ser perfeitos.

(83) É por isso que eu naum to saindo com ninguém.

O assunto central abordado no excerto 3 se inicia quando Joana, ao saber que

Rose reside no Rio de Janeiro (linha 60), toma um posicionamento deliberado do outro

para discorrer sobre os meninos do Rio de Janeiro (“ai todo mundo fala q um monte de

menino saradão aí!!! me conta” – linhas 61 e 62). Além disso, a meu ver, é possível

afirmar que Joana também assume um posicionamento moral ((VAN LANGENHOVE &

HARRÉ, 1999 – Ver seção 2.4), em que ela constrói sua opinião de que o Rio de

Janeiro seria uma lugar de “um monte de menino saradão” (linha 61), com base em

uma suposta vox populi, cristalizada no senso comum e, portanto, legitimada

socialmente, marcada pela pista de contextualização “todo mundo fala” (linha 61). Rose

igualmente se posiciona deliberadamente em relação ao outro, porém, diferentemente

de Joana, ela assume tal posicionamento na tentativa de desnaturalizar tal concepção

(“até tem mas tb tem mto menino feio!” – linha 64). Isso faz com que Joana se posicione

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reflexivamente (posicionamento de segunda ordem) em relação ao que Rose disse (“é

verdade” – linha 65).

Ainda na mesma linha, Joana toma um posicionamento de primeira ordem com o

fito de interpelar Rose a respeito do seu tipo preferido de homem (linha 64). Rose,

então, assume um posicionamento deliberado do outro para expressar sua opinião em

relação ao seu tipo preferido (linha 65). Percebe-se, com isso, que Rose continua se

construindo identitariamente como uma menina heterossexual, visto que ela se permite

não somente conversar sobre meninos, mas, principalmente, tecer suas escolhas

acerca do seu tipo preferido de homem.

Tal posicionamento ainda é indexicalizado pelo uso sufixo diminutivo “inho” em

“bonitinho” e “gatinho” (linha 65), que, a meu ver, contribui para corroborar a idéia de

que Rose estaria construindo sua identidade social de gênero ao utilizar

propositadamente escolhas lingüísticas que, no senso comum, seriam típicas do

discurso das mulheres. E, ainda que seja possível afirmar que ela também faz uso do

sufixo quando interage com pessoas no mundo real, e que, por isso, estaria assumindo

um posicionamento ambivalente como Johnny / Rose (Ver nota no capítulo 1),

poderíamos considerar isso como um exemplo de desconstrução da visão essencialista

de gênero, que atribui tal uso especificamente às mulheres.

Em seguida, Joana assume um posicionamento deliberado do outro para se

referir a uma amiga que criou uma comunidade no Orkut cujo nome é “Homens bonitos

de boca fechada” (linha 67). Ela, então, convida Rose a participar da comunidade por

meio do envio de um hipertexto (um link), e encerra seu turno novamente se

posicionando deliberadamente em relação ao outro (aos homens), baseada numa visão

cristalizada no senso comum de que todo homem bonito seria burro (linha 70). A esse

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respeito, considero pertinente comentar que tal posicionamento de Joana encontra

respaldo na comunidade de prática a que ela pertence (LAVE & WENGER, 2002 – Ver

seção 6.2), que pode contribuir para desconstruir ou mesmo legitimar, como é o caso,

visões essencialistas que ecoam no mundo social (“a gente acha q homem bonito e td

burrão!!!!” – linhas 69 e 70).

Rose, então, toma um posicionamento deliberado do outro com o intuito de

corroborar sua opinião favorável à asserção anterior de Joana de que os homens

bonitos e “saradões” seriam burros (“ai é verdade, quando eu vejo assim um cara

saradão, pô ele todo metidão mais naum sabe nem falar!!!” – linhas 71 e 72). Contudo,

Rose, ainda no mesmo turno, se mostra contraditória ao buscar, de uma certa forma,

desmistificar tal construto, se posicionando deliberadamente em relação a um menino

da sua turma que não se enquadraria em tal visão (“mas nem todos. tem um menino q

estuda comigo q é muito lindo, assim td de bom e ele naum e burrão não!!!” – linhas 72

e 73). Essa opinião de Rose faz com que Joana se posicione reflexivamente

(posicionamento de segunda ordem), embora ela considere que só uma minoria de

homens bonitos não poderia ser, de fato, burros (“é verdade, mas tem poucos, ne?” –

linha 74). Ela, ainda no seu turno, reverbera um outro construto equivalente, também

bastante enraizado no senso comum, de que o contrário, os homens que seriam

“legais”, são feios (“e é uma pena por que tem assim uns q são legais mas são tão

feinhos, né!!!” – linha 75), o que, por sua vez, é ratificado por Rose (“tem mesmo!!!

naum dá pra ser perfeito, né?” – linha 76).

Logo abaixo, Joana e Rose parecem chegar a um consenso sobre o que seria

um “homem ideal” para elas, em que cada uma assume um posicionamento deliberado

do outro para se referir ao seu tipo de preferido de homem (“ai mas tem que ter também

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uns músculos. Naum precisa ser fortão. Mas magrinho tb naum dá” – linhas 77 e 78

(Joana); e “eu tb naum gosto de menino mto fortão, bombado. E tb naum gosto de

baixinho” – linha 79). Ainda no turno de Rose, ocorre algo interessante quando ela, ao

descrever qual seria seu tipo ideal de homem, menciona um ator da mídia internacional,

o ator Brad Pitt (linha 80), que é reconhecido pela opinião pública como um ideal de

beleza masculina (“Tem q ser alto tb. acho q naum precisa ser um Brad pit”, mas pelos

menos tem q ser gatinho e educado!!! – linhas 80 e 81). Nesse sentido, é possível

afirmar que, de fato, o discurso da mídia exerce uma grande influência na construção

de crenças, opiniões, valores, ou seja, das identidades sociais dos sujeitos, sobretudo

dos adolescentes (Ver seção 2.1).

Joana, então, encerra a conversa, assumindo um posicionamento deliberado do

outro, em que ela afirma categoricamente ser “impossível” existir um homem bonito e,

ao mesmo tempo, educado, ecoando novamente a visão essencialista do senso comum

e usando isso para justificar o fato de estar sozinha no momento (“ai, mas isso já e

impossivell!! Acho q eles nunca vão ser perfeitos. É por isso que eu naum to saindo

com ninguém” – 82 e 83).

Isso mostra, de fato, como Rose e Joana, por meio das práticas discursivas nas

quais se engajam, estão constantemente inseridas num processo de posicionar não só

a si próprias, como nos auto-posicionamentos deliberados, recorrentes nos excertos

anteriores, mas também ao posicionarem seus interlocutores nessas práticas

discursivas, negociando sempre novas posições, como nos posicionamentos

deliberados do(s) outro(s), como foi o caso deste excerto. A esse respeito, Van

Langenhove & Harré (1999, p. 2 – Ver seção 2.4) apontam que em qualquer prática

discursiva “o posicionamento constitui o falante inicial e os outros de uma certa maneira

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e, ao mesmo tempo, é um recurso por meio do qual todas as pessoas envolvidas

podem negociar novas posições (e novos significados)”.

Os excertos a seguir são fragmentos de interações realizadas na sala de bata-

papo do MSN (Ver subseção 7.3.1.2). E, diferentemente dos três anteriores, no MSN,

os interactantes com os quais Rose conversa já são seus conhecidos e, portanto, já

foram adicionados à sua lista de amigos. Por isso, o tipo de interação (os assuntos, o

grau de intimidade etc) é distinto daqueles normalmente realizados nas salas de bate-

papo da UOL. No Excerto 4, Sabrina conversa com Rose sobre um menino que

conheceu na escola e no qual ficou interessada.

Excerto 4: ROSE e SABRINA

“o gatinho é td de bom!!! ai, ja to azarando ele tem um tempo, mas não sei. me

ajuda, amigaaa!!!”

(84) ROSE – oi, Sabri, td bem com vc?

(85) SABRINA – ai, td ótimo, amiga!!! vi hj na escola um gatinho lindo, mto fofo.

(86) fiquei por ele!!!

(87) ROSE – como? me conta!!!

(88) SABRINA – ah eu tava no pátio com as minha amigas aí eu vi aquele

(89) menino tdo fofinho aí a gente falou dele, olha, geral ficou louca por ele,

(90) assim, o gatinho é td de bom!!! ai, ja to azarando ele tem um tempo, mas

(91) não sei. me ajuda, amigaaa!!!

(92) ROSE – pede as menina pra te apresentar!

(93) SABRINA – uuuu... ai, tô até nervosa!!! manhã eu falo com elas. eu vou

(94) pega aquele gatinho pra mim!!!. eu posso te contar tudo, neh... ai, mas fala

(95) de vc!!!

(96) ROSE – na mesma! tô toda enrolada na escola, matemática, não entra na

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(97) cabeça!!!

(98) SABRINA – ai, fala sério!!!!

No excerto 4, a interactante Sabrina inicia seu discurso assumindo um

posicionamento deliberado do outro ao contar para Rose a respeito de um menino da

escola que, no dia anterior, chamou muito a sua atenção por ser, segundo ela, muito

“lindo” (“ai, td ótimo, amiga!!! vi hj na escola um gatinho lindo, mto fofo” – linha 85). Ela,

então, descreve para Rose como o conheceu na escola e lhe pede ajuda para tentar,

de alguma maneira, conseguir conquistá-lo (linhas 88 a 91). Sabrina, portanto, se

posiciona discursivamente como o foco central na interação, tomando para si o turno e

esperando de Rose apenas alguma atitude responsiva em relação ao assunto do qual

está tratando.

Com o objetivo de mostrar que seu interesse pelo menino encontra respaldo na

opinião de outras pessoas, Sabrina ainda toma um posicionamento deliberado do outro

para se apoiar numa suposta opinião de outras meninas da sua escola que também se

mostraram bastante efusivas em relação ao mesmo menino (“aí a gente falou dele,

olha, geral ficou louca por ele” – linha 89).

Rose, então, assume um posicionamento de primeira ordem para incentivar

Sabrina a conhecer o menino (“pede as menina pra te apresentar!” - linha 92). E, após

ter ouvido o que supostamente esperava de Rose em relação ao modo como deveria

agir para se aproximar do menino no qual estava interessada, Sabrina se auto-

posiciona deliberadamente ao emitir uma resposta não propriamente verbal, uma pista

de contextualização típica da prática de letramento na qual os interactantes estão

envolvidos, que se aproxima da oralidade e que sinaliza para o outro (Rose) seu

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posicionamento de dúvida ao que foi dito (“uuu...” – linha 06), seguido do uso de um

emoticon sorrindo, uma espécie de figura virtual que se caracteriza como um tipo de

elemento hipertextual (Ver seção 4.2 e ANEXO 4), que se presta, em diálogos

realizados nas salas de bate-papo virtuais, para mostrar algum tipo de aprovação ou

reprovação em relação a alguma idéia. No exemplo, Sabrina o usou com o intuito de

deixar claro para Rose que aprovou seu conselho ( - linha 93).

Logo em seguida, Rose se auto-posiciona deliberadamente para responder à

pergunta de Sabrina, desviando o foco do assunto da conversa ao se reportar a uma

suposta dificuldade sua com uma das disciplinas da escola (“na mesma! tô toda

enrolada na escola, matemática, não entra na cabeça!!! – linhas 96 e 97). Isso, de uma

certa forma, parece ter gerado uma frustração em Sabrina, que se auto-posiciona

deliberadamente para proferir apenas uma atitude responsiva de repulsa em relação à

fala anterior de Rose e de encerramento do assunto (“ai, fala sério” – linha 98).

Contudo, analisando o posicionamento discursivo de Rose em relação a sua

amiga, podemos observar aspectos que a constroem sócio-interacionalmente como

uma menina, como no momento em que ela faz uso de duas pistas de

contextualização: dois vocábulos marcados com a marca lingüística de gênero a, com o

intuito de enfatizar sua construção social de gênero como uma menina (“tô toda

enrolada na escola” – linha 07). Isso, de fato, contribui para a corroborar a idéia de que,

no ciberespaço, os sujeitos estão envolvidos em “formas de interação social em que as

‘palavras’ são sempre manifestamente componentes de práticas sociais com intenções

e valores relacionados com papéis, identidades e formas de produção” (LANKSHEAR,

C. & KNOBEL, 1997, p. 158 – Ver seção 5.2).

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O uso da marca de gênero “a”, no entanto, passa a ser um cuidado constante

para o qual Rose deve atentar sempre que estiver interagindo em práticas de

letramento na Internet com alguém para quem queira ratificar seu posicionamento como

uma menina, visto que o não uso dessa marca de feminino em seu discurso poderia até

desfazer sua construção social como tal.

Um segundo aspecto que legitima sua constituição identitária de gênero se

coaduna com reconhecimento da alteridade, já que é a partir do outro que construímos

quem somos (BAKHTIN, 1981; FAIRCLOUGH, 1992 – Ver seção 2.2). No excerto, o

outro, representado por Sabrina, usa o vocábulo “amiga” (linhas 02 e 04) para se referir

a Rose, o que também ajuda a ratificar a idéia de que Sabrina, de fato, a constrói sócio-

discursivamente como uma menina.

Pude notar ainda que, muito embora a interação seja entre duas amigas (Rose e

Sabrina), parece existir, de fato, uma relação assimétrica de poder entre elas. Isso se

torna evidente na distribuição irregular de turno entre os interactantes, em que Sabrina

é quem parece determinar o limite do seu turno e o momento de dar voz a Rose, o que

se percebe por meio das próprias tomadas de posicionamentos discursivos (auto-

posicionamentos deliberados e posicionamentos deliberados do outro) que, em geral,

são realizadas por Sabrina. Tal constatação parece encontrar respaldo no fato de elas

estarem tratando de um assunto sobre o qual Rose não se sente tão à vontade para

discorrer, o que faz com que ela assuma uma posição passiva em relação à Sabrina.

Nesse sentido, podemos compreender o poder como o meio através do qual é possível

levar o sujeito ao enaltecimento ou mesmo à subordinação discursiva, como parece ser

o caso de Rose, dentro de rituais sociais nos quais nós, sujeitos, somos constituídos,

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com base nas relações de poder nas quais nos engajamos. (FOUCAULT, 1979 – Ver

seção 2.3).

No excerto 5, Rose, em uma outra conversa, discute com Sabrina a respeito de

uma amiga em comum (Rê), comentando sobre fotos de uma festa em que essa amiga

esteve, a roupa que usou e um suposto namorado com quem esteve na festa.

Excerto 5: ROSE E SABRINA (outra conversa)

“ela me disse que ele era só ficante. mas se sou ela ficava direto com ele!!!”

(99) ROSE – ai, a Rê me mostrou as fotos da festa da prima dela. vc viu?

(100) SABRINA – vi... que vestido era aquele!!!

(101) ROSE – um verde mto lindo com decotão nas costas. arrasou ela!!!

(102) SABRINA – eh as fotos ficaram ótimas...

(103) ROSE – ela ficou mto linda nas fotos. vc viu a irmã dela? bonita tb, né?

(104) SABRINA – é irmã dela? nem sabia q ela tinha irmã! Ah:: vc conhece ela melhor!

(105) ROSE – é sim. mas naum da nem pra finjir. elas são igualzinhas!!!

(106) SABRINA – eu só vi as fotos mas ainda naum falei com ela da festa.

(107) ROSE – ai ela disse q foi ótima. deu tudo certo. e o namorado dela? achei

(108) bonitinho ele. q vc achou?

(109) SABRINA – mto fofo ele. mas é namorado ou ficante dela?

(110) ROSE – ela me disse que ele era só ficante. mas se sou ela ficava direto

(111) com ele!!!

Neste excerto, os diálogos são mais distribuídos, havendo uma alternância maior

em relação ao excerto anterior na troca de turnos entre os interactantes. Contudo,

percebe-se que Rose apresenta uma participação mais expressiva na interação em

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virtude do seu provável grau maior de amizade com Rê, o que Sabina deixa

transparecer no seu discurso (“Ah:: vc conhece ela melhor!” – linha 104).

O excerto se inicia com Rose, que assume um posicionamento de primeira

ordem ao perguntar a Sabrina acerca das fotos de uma festa da Rê, uma amiga virtual

que elas têm em comum (linha 99). Sabrina, então, toma um posicionamento deliberado

do outro para elogiar o vestido que Rê estava usando na festa (“que vestido era

aquele!!!” – linha 100), que, por sua vez, chamou a atenção de Rose, que, do mesmo

modo, se posiciona deliberadamente em relação à Rê ao buscar descrever com

detalhes o seu vestido (“um verde mto lindo com decotão nas costas. arrasou ela!!!” –

linha 101).

É possível notar que Rose, ao fazer isso, constrói sua identidade social como

uma menina, até de forma mais evidente que no primeiro excerto, por meio dos itens

lexicais dos quais faz uso em seu discurso (“decotão” e “arrasou” – linha 101), que,

numa prática de letramento dentro de uma visão essencialista, com a qual Rose parece

lidar muito bem, contribuem para corroborar sua constituição identitária como tal, uma

vez que tais itens lexicais, na concepção do senso-comum, seriam típicos do discurso

das mulheres. Nesse sentido, a meu ver, pode-se considerar que Rose estaria usando

tais pistas de contextualização lingüísticas de forma intencional com o intuito de ser, de

fato, reconhecida como uma menina no ciberespaço.

As interactantes, então, assumem, logo em seguida (linhas 103 a 105), um

posicionamento deliberado do outro em relação à irmã de Rê, de quem Rose parece,

de fato, ser uma amiga mais íntima (“é irmã dela? nem sabia q ela tinha irmã! Ah:: vc

conhece ela melhor!” – linha 104). Rose, então, se posiciona deliberadamente para

mencionar que a festa tinha sido um sucesso e para se referir a um suposto namorado

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de Rê, que apareceu nas fotos (“ai ela disse q foi ótima. deu tudo certo. e o namorado

dela? achei bonitinho ele. q vc achou?” – linhas 107 e 108).

Nota-se, nesta parte, que Rose estaria se construindo identitariamente como

uma menina de duas maneiras distintas que, no senso comum, seriam típicas do

comportamento das mulheres: primeiramente, por meio do uso do sufixo diminutivo

“inho” em “bonitinho” (linha 108), que indexicaliza lingüisticamente o discurso “feminino”;

e na sua própria atitude de elogiar a beleza de um menino, o namorado da Rê, o que

poderia sinalizar seu interesse, como menina, por pessoas do “sexo oposto” (“achei

bonitinho ele” – linha 108).

Sabrina, por sua vez, depois de se posicionar deliberadamente em relação ao

suposto namorado de Rê, toma um posicionamento de primeira ordem para questionar

Rose sobre o tipo de relação que Rê teria com ele (“mto fofo ele. mas é namorado ou

ficante dela?” – linha 109). Rose, então, assume dois tipos de posicionamentos: em

primeiro lugar, ela se posiciona deliberadamente no que diz respeito ao menino com

quem Rê estava na festa para dizer a Sabrina que, segundo Rê, ele não seria um

namorado sério (“ela me disse que ele era só ficante” – linha 110); e, logo em seguida,

assume um auto-posicionamento deliberado para expressar sua opinião ao ponderar

que se estivesse no lugar da sua amiga Rê ficaria com ele (“mas se sou ela ficava

direto com ele!!!” – linha 111).

No final deste excerto, portanto, ao assumir tais posicionamentos, Rose, de

forma ainda mais contundente, parece querer se posicionar sócio-interacionalmente

como uma menina, o que, a meu ver, contribui para construir Rose como alguém que,

de fato, se interessa por meninos e, por conseguinte, ajuda a ratificar, perante Sabrina,

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sua identidade social de gênero (uma menina), que vai sendo co-construída

discursivamente ao longo da relação dialógica entre ambos os interactantes.

Sob essa perspectiva, parece-me coerente a proposição de que cada um dos

sujeitos neste excerto (Rose e Sabrina) co-constroem uma identidade social própria no

espaço discursivo virtual, no momento da interação, que faz com que seja reconhecida

e avaliada pelo outro, na comunidade de prática da qual estão participando, como um

certo tipo de pessoa e não outra, o que se torna bastante evidente na presente análise.

Nesse sentido, Rose, ao interagir com Sabrina na Internet, não está, portanto, somente

agindo como autor do seu texto, mas também, e principalmente, de si mesma

(TURKLE, 1996, p.157 – Ver seção 5.2).

No excerto a seguir, Rose e Rê conversam sobre o menino que Rê conheceu na

festa da sua prima. Rose, então, a incentiva a continuar saindo com ele.

Excerto 6: ROSE E RÊ

“vc só vai saber se namorar com ele. tem q tentar. To com inveja de vc!!!”

(112) ROSE – Oi, Rê, td bem?

(113) RÊ – td ótimo. Vc viu as fotos da festa da minha prima?

(114) ROSE – que vestido verde lindo era aquele que vc tava usando!!!

(115) RÊ – Aí, gostou? Arrasei . Gostei tb do decote.

(116) ROSE – aí, era lindo mesmo!!! Mas me conta do gatinho da festa!!!

(117) RÊ – vc viu ele. q gatinho lindo!

(118) ROSE – vi, mto fofo ele. me conta é namorado ou ficante?

(119) RÊ – a gente ta começando a namorar. confesso q to por ele!!!

(120) ROSE – que lindo!!! Vc e ele formam um casal lindo!!!

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(121) RÊ – vc acha? Eu to gostando dele mas ach q nam vai dar certo. Ah, não sei se

(122) ele gosta de mim.

(123) ROSE – vc só vai saber se namorar com ele. tem q tentar.

(124) RÊ – é vc tem razão acho q vou tentar. e vc ta com alguém?

(125) ROSE – to solteriiiiiisima!!! os carinhas que conheço são td chatos.

(126) RÊ – não ta nem ficando?

(127) ROSE – fiquei com um mas não gostei. ele é bonitinho mas mto chato. Me

(128) dava

(129) RÊ – vc é mto engraçada, mas vc vai encontrar alguém pra vc. E vc vai ficar

(130) por ele tb.

(131) ROSE – ai tomara!!! mas tem que ser um gatinho que vale a pena, né?

(132) RÊ – rô, é ele no cel. depois a gente se fala. Te adoro

(133) ROSE – eu tb

A interação deste excerto é iniciada por Rê, que toma um posicionamento de

primeira ordem para perguntar a Rose se ela viu as fotos da festa da sua prima (linha

113). Rose, então, assume um posicionamento deliberado do outro para elogiar o

vestido que Rê estava usando na festa (“que vestido verde lindo era aquele que vc tava

usando!!!” – linha 114). Rê, por sua vez, se auto-posiciona deliberadamente para

mostrar seu contentamento ao ter usado o vestido, o que se verifica por meio de duas

pistas de contextualização: item lexical “Arrasei” (linha 115) e do emoticon expressando

alegria ( - linha 115 – Ver Anexo 4).

Em seguida, Rose toma um posicionamento de primeira ordem para introduzir

um novo assunto: o menino da festa no qual Rê ficou interessada (“Mas me conta do

gatinho da festa!!!” – linha 116). Nesse momento, então, ambas se posicionam

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deliberadamente em relação ao menino para elogiá-lo (linhas 116, 117 e 118). É

possível perceber que, ao se posicionar dessa maneira, Rose estaria se construindo

identitariamente como uma menina ao fazer uso das escolhas lexicais “gatinho” e “fofo”

(linhas 116 e 118, respectivamente), para se referir ao menino, uma vez que tais

escolhas, dentro de uma visão essencialista do senso comum, seriam típicas do

discurso das mulheres.

Rê, então, assume um auto-posicionamento deliberado com o objetivo de

mostrar para Rose o que sente pelo seu namorado (“confesso q to por ele!!!” –

linha 119), marcado também pelo uso do emoticon. Rose, por sua vez, se posiciona

deliberadamente em relação aos dois (Rê e seu namorado), na tentativa de manifestar

seu apoio ao relacionamento entre eles (“que lindo!!! Vc e ele formam um casal lindo!!!”

– linha 120). Nesse momento, Rê parece se sentir insegura em relação ao seu

namorado, o que a faz duvidar se, de fato, eles poderiam ficar juntos. Isso se configura

por meio de dois posicionamentos antitéticos que ela assume: um auto-posicionamento

deliberado, para deixar claro para Rose que gosta dele (“vc acha? Eu to gostando

dele”– linha 121); e um posicionamento deliberado do outro, ao se mostrar incerta

quanto ao que seu namorado estaria sentindo por ela, o que a faz achar que o seu

relacionamento com ele não será bem sucedido (“mas ach q nam vai dar certo. Ah, não

sei se ele gosta de mim” – linha 122).

Em virtude disso, nota-se que Rose se constrói identitariamente como um tipo de

menina “conselheira” ao tomar um posicionamento de primeira ordem com o intuito de

manifestar sua opinião e apoio ao relacionamento dos dois, dizendo a Rê que deveria

insistir na relação (“vc só vai saber se namorar com ele. tem q tentar” – linha 123). Na

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seqüência, Rê, então, se posiciona reflexivamente (posicionamento de segunda ordem)

em relação ao que Rose disse, o que a faz repensar quanto ao seu relacionamento com

o namorado (“é vc tem razão acho q vou tentar” – linha 134). Em seguida, Rê assume

um posicionamento de primeira ordem para desviar de si o foco da atenção,

questionando Rose acerca da sua vida amorosa (linha 124). Rose, então, se posiciona

deliberadamente em relação ao outro na tentativa de atribuir a razão de estar solteira

ao fato de considerar como “chatos” os meninos que disse ter conhecido (“to

solteriiiiiisima!!! os carinhas que conheço são td chatos” – linha 125).

Rê novamente toma um posicionamento de primeira ordem para indagar Rose se

ela estaria, pelo menos, saindo com alguém (“não ta nem ficando?” – linha 126). Rose,

então, assume um posicionamento deliberado do outro para se referir a um suposto

menino com quem já teria “ficado”, dizendo, porém, não ter gostado dele por considerá-

lo um “chato” (“fiquei com um mas não gostei. ele é bonitinho mas mto chato. Me dava

” – linhas 127 e 128). Rê, então, se posiciona deliberadamente em relação à Rose,

não só ao expressar uma opinião sobre ela, como também ao achar que ela encontrará

alguém por quem se apaixonará igualmente (“vc é mto engraçada, mas vc vai encontrar

alguém pra vc. E vc vai ficar por ele tb” – linhas 129 e 130). Isso é, outrossim,

ratificado por Rose ao assumir também um posicionamento deliberado do outro para se

referir a um desejo seu de também encontrar um menino bonito e de quem ela goste

(“ai tomara!!! mas tem que ser um gatinho que vale a pena, né?” – linha 131).

É possível notar aqui que, ainda de forma mais contundente que nos excertos

anteriores, Rose constrói sua identidade social de gênero como uma menina, pois não

só sinaliza para a sua amiga seu interesse por meninos, mas também, pela primeira

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vez, assume já ter tido um relacionamento com um. Isso, a meu ver, contribue para

corroborar a idéia de que Johnny / Rose poderia estar construindo identitariamente para

si outras masculinidades no mundo virtual para manifestar seus desejos não apenas de

“ser outras pessoas”, como também de poder se relacionar intimamente com outras

pessoas. Isso porque estou compreendendo as masculinidades, bem como a categoria

de gênero, não como entidades fixas, mas sim, segundo Connell (2001, p. 12 – Ver

seção 3.2), como algo “ativamente produzido, usando os recursos e estratégias

disponíveis num dado cenário social, que passa a existir na medida em que as pessoas

passam a agir no mundo”.

Nesse sentido, a Internet pode, conforme já mencionei, se configurar como um

“espaço libertário” para a própria experimentação, em que as pessoas podem

interpretar e atuar identidades sem que, preliminarmente, sejam questionadas sobre a

sua veracidade (LONDON, 1997 – Ver seção 5.2). Portanto, acredito que o ciberespaço

possa se tornar um meio através do qual Rose tenha a oportunidade de começar a

construir relacionamentos afetivos e amorosos, como o que foi mostrado no excerto 2

entre ela e Beto, e, com isso, poder experimentar outros modos de viver a multiplicidade

da sua experiência humana.

No excerto 7, Rose interage novamente com Rê. Dessa vez, no entanto, o

motivo da conversa gira em torno do fato de Rê achar que seu namorado não está mais

lhe dando atenção. Ela desconfia de que ele estaria a traindo com uma outra pessoa.

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Excerto 7: ROSE E RÊ II (outra conversa)

“eu acho,assim que nem todo homem é safado. Naum sei. tem mulher mais safada do que homem”

(134) ROSE – Oi, Rê, td bem?

(135) RÊ – Oi, ah, mais ou menos.

(136) ROSE – Por que amiga?

(137) RÊ – Ah:: Sei lá, eu e meu namorado não tamos muito bem. acho que ele naum

ta

(138) mais afim de mim.ele ta meio estranho comigo. Acho até que ele deve ta ficando

(139) com outra. Sabe como é que é homem, né! To dele!!!

(140) ROSE – Ah, naum sei. Talvez ele esteja com algum problema.

(141) RÊ - sei qual é o problema dele!!! to morrendo de dele.

(142) ROSE – Ah eu acho, assim que nem todo homem é safado. naum sei. tem

(143) mulher mais safada do que homem.

(144) RÊ – é, eu tenho uma amiga que, putz, é muito galinha, meu!!! Mas ele

(145) também é, ta?

(146) ROSE – mas como vc pode ter certeza que ele ta te traindo?

(147) RÊ – sei lá. O jeito dele. ta mt frio comigo. Assim, já naum ta mais afim de

(148) sair muito, po nem me chama mais pro cinema, tomar um sorvete...

(149) ROSE – ah se eu fosse vc eu conversava com ele. fala que a situação ta chata

(150) que vc quer mais atenção. fala com ele, rê!!!

(151) RÊ – ta bom. vou tentar, amiga!!!

O excerto se inicia com Rê se auto-posicionando deliberadamente para mostrar

para Rose que não está muito bem (“ah, mais ou menos” – linha 135). Rose, então,

assume um posicionamento de primeira ordem para interpelar Rê sobre o motivo pelo

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qual ela estaria se sentindo assim (linha 137). Como explicação, Rê se posiciona

deliberadamente em relação ao seu namorado, dizendo que ele parece não estar mais

interessado nela (“acho que ele naum ta mais afim de mim. ele ta meio estranho

comigo” – linhas 137 e 138). Ela ainda acredita que ele poderia estar a traindo com uma

outra menina e atribui isso ao fato de ele ser homem (“Acho até que ele deve ta ficando

com outra. Sabe como é que é homem, né!” – linhas 138 e 139). Percebe-se que, ao

afirmar isso, Rê se posiciona moralmente (VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999 – Ver

seção 2.4) ao ecoar um discurso legitimado socialmente que imputa aos homens certos

comportamentos (o de traidor, por exemplo) como sendo algo inerente a uma suposta

natureza masculina.

Rose, por outro lado, busca desmistificar tal construto, se posicionando

deliberadamente a respeito do namorado da Rê, ao ponderar que o seu comportamento

de indiferença em relação a ela poderia estar ocorrendo em virtude de algum problema

pelo qual ele estaria passando (“Ah, naum sei. Talvez ele esteja com algum problema” –

linha 140). Logo abaixo, Rose ainda ratifica, de forma mais contundente, seu discurso

anti-essencialista ao afirmar que nem todos os homens seriam “safados” e que há

mulheres que seriam ainda mais “safadas” do que muitos homens” (linhas 142 e 143).

Como uma das identidades sociais que Rose assume no mundo real é a de um tipo de

homem que não se enquadraria no esteriótipo de masculinidade hegemônica

apresentado por Rê, acredito que essa poderia ser uma das razões pelas quais Rose

tenha tentado desconstruir o discurso essencialista de sua amiga.

Em seguida, percebe-se que Rê se posiciona reflexivamente (posicionamento de

segunda ordem), ainda que de forma exígua, em relação à asserção de Rose ao fazer

uso de uma pista de contextualização, a forma verbal “é” (linha 144), indicando sua

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concordância com o que foi dito anteriormente; e ao reconhecer que tem uma amiga

que se enquadraria na categoria das mulheres “safadas” que Rose descreveu (“é, eu

tenho uma amiga que, putz, é muito galinha, meu!!!” – linha 144), embora ela ainda se

posicione deliberadamente em relação ao seu namorado para ratificar sua opinião de

desconfiança a respeito dele (“Mas ele também é, ta?” – linha 145).

Na tentativa de amenizar a situação, Rose assume um posicionamento de

primeira ordem com o intuito de questionar Rê acerca da sua certeza em relação à

suposta traição do seu namorado (linha 146). Rê, então, se posiciona deliberadamente

em relação a ele ao buscar encontrar respaldo para as suas suspeitas de que ele não

estaria mais interessado nela, com base no seu comportamento para com ela (“sei lá. O

jeito dele. ta mt frio comigo. Assim, já naum ta mais afim de sair muito, po nem me

chama mais pro cinema, tomar um sorvete...” – linhas 147 e 148). Por fim, Rose toma

um auto-posicionamento deliberado para expressar sua opinião sobre o assunto ao

tentar se construir identitariamente na posição da sua amiga Rê, na tentativa de

convencê-la a conversar com ele sobre os problemas pelos quais estão passando (“ah

se eu fosse vc eu conversava com ele. fala que a situação ta chata que vc quer mais

atenção. fala com ele, rê!!!” – linhas 149 e 150).

É possível notar que Rose, ao assumir tal posicionamento, estaria, com isso,

solidarizando-se com a sua amiga, com quem compartilha assuntos que dizem respeito

à sua vida pessoal. Nesse sentido, podemos afirmar que tal confiança atribuída à Rose

se dá em virtude do fato de ela ser realmente reconhecida pelo outro (Rê) como uma

menina. Por isso, podemos dizer que, de fato, é por meio da presença do outro com

quem interagimos que nos faz ser quem, como e por que somos através do nosso

envolvimento no discurso (MOITA LOPES, 2003 – Ver seção 2.2). Isso nos possibilita

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inferir que as identidades sociais dos sujeitos estão constantemente sendo

(re)inventadas para si e para o outro, construindo-se, dessa forma, a própria realidade

por meio do discurso.

O excerto 8 é uma interação entre Rose e um de seus amigos virtuais mais

antigos: André. O assunto da conversa se baseia numa nova namorada de André.

Rose, então o chama de “machista” por ele dizer que não contaria sobre a sua

intimidade com a namorada para uma mulher.

Excerto 8: ROSE E ANDRÉ

“ai, vc ta sendo machista!!! só porque eu sou mulher vc naum quer falar!”

(152) ANDRÉ – oi, rose, como vc ta?

(153) ROSE – tb bom. q vc conta de novo?

(154) ANDRÉ – tenho uma nova pra contar. to namorando agora

(155) ROSE – serio!!! vc sempre foi tão galinha!!!

(156) ANDRÉ – era nada, tu q pensa assim!

(157) ROSE – ta bom!!! vc nunca para com ninguém!!!

(158) ANDRÉ – q isso! eu sou um anjinho!!!

(159) ROSE – ai vcs são tudo igual mesmo!!! nunca admitem!!

(160) ANDRÉ – vc sabe q eu sou maneiro!

(161) ROSE – mas e ai e ela como é?

(162) ANDRÉ – ela é massa, pô acho ela linda e maneira, tem um papo maneiro, mas

(163) naum vo te falar do resto porque tu é mulher!!!!!

(164) ROSE – ai nada a ver!!! ai, fala aí, já rolou coisa seria?

(165) ANDRÉ – Ah naum rolou nada ainda de serio!!!

(166) ROSE – aha!!! Acredito. vc sabe q eu sou mto curiosa, fala logo!!!

(167) ANDRÉ – ah q tu quer sabe os detalhes? Naum te conto, ah tu e mulher!!!

(168) ROSE – ai, vc ta sendo machista!!! Só porque eu sou mulher vc naum quer

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(169) falar!

(170) ANDRÉ – é, ta certo nada a ver mesmo!!! então quando rolar o machista te

(171) conta!! vou sair amiga, bjo.

(172) ROSE – me conta mesmo! to esperando, bjo e sorte com a nova lindinhaaa!!

O excerto 8 se inicia propriamente com André se auto-posicionando

deliberadamente para dizer a Rose que está namorando (“tenho uma nova pra contar.

to namorando agora” – linha 154). Rose, então, toma um posicionamento deliberado do

outro, em que ela se mostra surpresa por não achar que André seria um tipo de homem

que teria um relacionamento mais sério com alguém (“serio!!! vc sempre foi tão

galinha!!!” – linha 155). Eles, então, se alternam nos turnos, em que André se auto-

posiciona deliberadamente para se defender e afirmar que sempre foi sério (linhas 156,

158 e 160), e Rose, por outro lado, continua se posicionando deliberadamente em

relação a ele com o intuito de confirmar sua opinião de que ele não seria um homem

sério (linhas 155 e 157).

Ao considerar André como um tipo de homem que não admite ser “galinha”,

Rose assume um posicionamento moral na tentativa de enquadrá-lo num esteriótipo de

masculinidade hegemônica, portanto socialmente legitimado pela sociedade, que

nunca admite seus atos (“ai vcs são tudo igual mesmo!!! nunca admitem!!” – linha 159).

Ao fazer isso, Rose, a meu ver, estaria sendo contraditória em relação à sua própria

condição de estar construindo para si uma outra identidade social de gênero, uma vez

que, no mundo real, ela se constrói, como já foi mencionado neste capítulo de análise,

como um tipo de menino que não se encaixaria no padrão hegemônico de

masculinidade. Contudo, acredito que tal discurso, que busca tentar uniformizar o

comportamento do homem, se deve também em função do fato de ela estar se

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construindo identitariamente, no mundo virtual, como uma menina que se enquadraria

num padrão de feminilidade hegemônica, o que poderia, de uma certa forma, justificar

sua reprodução de discursos essencialistas.

Em seguida, Rose toma um posicionamento de primeira ordem para perguntar a

André a respeito de sua namorada. Ele, então, se posiciona deliberadamente em

relação a sua namorada, fazendo elogios sobre ela (“ela é massa, pô acho ela linda e

maneira, tem um papo maneiro” – linha 162). Ainda no seu turno, André se posiciona

moralmente ao se recusar querer contar para Rose sobre sua vida sexual, por ela ser

uma mulher (“mas naum vo te falar do resto porque tu é mulher!!!!!” – linha 162). Cabe

aqui ressaltar que André se posiciona dessa maneira por legitimar um construto

cristalizado no senso comum de que homens e mulheres não deveriam confidenciar

entre si assuntos relativos a sua vida amorosa ou sexual, por exemplo.

Na seqüência, Rose se auto-posiciona deliberadamente na tentativa de

desmistificar tal construto (“ai nada a ver!!!” – linha 164), e, ainda nesse turno, toma um

posicionamento de primeira ordem com o intuito de buscar saber sobre o

relacionamento íntimo de André com sua namorada (“ai, fala aí, já rolou coisa seria?–

linha 164). Ele, então, assume um auto-posicionamento deliberado para confirmar que

ainda não houve algo mais sério entre os dois (“Ah naum rolou nada ainda de serio!!!” –

linha 165). Rose, no entanto, se mostra um tanto incrédula acerca disso, o que se

percebe por meio do uso de duas pistas de contextualização: o marcador

conversacional “aha!!!” e o item lexical “Acredito” (linha 166), que contribuem para

imprimir um tom irônico ao seu discurso. Rose ainda se auto-posiciona deliberadamente

para insistir que ele fale a respeito do assunto, lembrando-o de que ela é uma pessoa

muito curiosa (“aha!!! Acredito vc sabe q eu sou mto curiosa, fala logo!!! – linha 166).

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André, então, continua se posicionando moralmente, ratificando que não poderia

contar para Rose detalhes de sua vida sexual com sua namorada por ela ser uma

mulher (“ah q tu quer sabe os detalhes? Naum te conto, ah tu e mulher!!!” – linha 167).

Rose, novamente, busca desconstruir o discurso hegemônico de André ao afirmar que

ele estaria sendo “machista” por pensar assim (“ai, vc ta sendo machista!!! Só porque

eu sou mulher vc naum quer falar!” – linha 168 e 169). Isso faz com que André encerre

seu turno assumindo um posicionamento reflexivo (de segunda ordem) ao reconhecer

que, de fato, não haveria problema algum em conversar com sua amiga a respeito do

seu relacionamento com sua namorada (“é, ta certo nada a ver mesmo!!! então quando

rolar o machista te conta!! vou sair amiga, bjo” – linhas 170 e 171).

Nesse sentido, é possível compreender que o posicionamento moral, assumido

tanto por Rose quanto por André, se constitui como um saber, e, como todos os

saberes socialmente legitimados, não são universais, mas se instituem enquanto

verdades, ou melhor, como “regimes de verdade” num processo que produz poder, cuja

relatividade não pode ser validada em nenhuma instância metafísica ou exterior à

realidade social (FOUCAULT, 1981 – Ver seção 2.3). Em outras palavras, esses

saberes socialmente construídos, que se instituem enquanto verdadeiros (num sentido

não absoluto, mas relativo), estão imbricados em relações de poder particulares, como

na prática de letramento digital na qual Rose e André se engajam, que representam a

instrumentalização do poder associado aos saberes que legitimam essa prática.

E, ao construírem identidades sociais por meio desses “regimes de verdade”,

presentes na interação que estabelecem entre si, tanto Rose quanto André estão,

outrossim, assumindo algumas de suas características mais marcantes, dentre elas o

próprio caráter contraditório através do qual as identidades sociais também se

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constituem. Tal concepção se coaduna com a base epistemológica com a qual estou

operando no presente estudo, que compreende as identidades sociais dentro de uma

visão socioconstrucionista (MOITA LOPES, 2003 – Ver seção 2.2), na qual as relações

de sujeitos e de sentidos (nas quais as identidades sociais são constituídas) e seus

efeitos podem ser múltiplos e variados, e, portanto, heterogêneos e contraditórios,

constituintes das práticas discursivas nas quais atuamos (ORLANDI, 2001).

No último excerto da presente análise dos dados, Rose interage com uma de

suas amigas virtuais: Aline. Na conversa, elas tratam do comportamento de Aline em

relação ao seu namorado e de do fim do relacionamento de um amigo seu que é “gay”.

Excerto 9: ROSE E ALINE

“ai eles tiveram uma briga e vc sabe como é “gay” quando brigam é porque a coisa ta feia”

(173) ROSE - Oi, Aline, td bem?

(174) ALINE – td bem. meu namorado é q ta comigo

(175) ROSE - porque?

(176) ALINE – ah vc sabe q eu naum paro em casa. saio direto com as minhas

(177) amigas. Se tiver festinha to em todas!!! e ele fica naum gosta

(178) ROSE – mas bem q ele tem razão, né!!! vc apronta!!!

(179) ALINE – ai ele é legal, amiga adoro ele mas vc sabe como é (rsrs...)?

(180) ROSE – mas vc gosta dele?

(181) ALINE – ai eu gosto mas naum gosto de me sentir presa, sabe?

(182) ROSE – e vc fica com outros carinhas?

(183) ALINE - a já fiquei e ele nem sabe de nada!!!

(184) ROSE – ai, amiga, me desculpa ach q vc ta errada. se vc gosta dele naum

(185) da só pra ficar saindo assim muito menos ficando com outros carinhas.

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(186) ALINE – nossa amiga, naum briga!!!! Mas ach q vc tem razão. Vou pegar

(187) leve!!!

(188) ROSE – ta bom.

(189) ALINE –ai, falando nisso..... sabe aquele meu amigo “gay” q tem

(190) falei, o Luizinho. O namorado dele terminou com ele. ele ta arrasado!!!!

(191) ROSE – me conta como foi!!

(192) ALINE – ai eles tiveram uma briga e vc sabe como é “gay” quando brigam é

(193) porque a coisa ta feia. Foi o seguinte. meu amigo me contou q e viram o

(194) namorado dele saindo com outro cara. ai já vc viu. Po e agente até estranha

(195) porque vc sabe q “gay” é assim bem mais certinho, naum fica traindo o parceiro.

(196) ROSE – é verdade acho q é mais difícil de “gay” trair, mesmo. Mas ele ta bem?

(197) ALINE – agora ele ta até melhor mais ele ainda gosta muito dele.

(198) ROSE – mas ele vai ficar bem.

No começo do excerto 9, o foco do assunto gira em torno da relação entre Aline

e seu namorado. Aline inicia seu turno se posicionando deliberadamente em relação ao

seu namorado para dizer que ele estaria furioso com ela (“meu namorado é q ta

comigo” – linha 174). Em seguida, ela assume um auto-posicionamento deliberado para

explicar a Rose que o motivo pelo qual ele estaria assim com ela se deve ao seu

comportamento, do qual ele não gosta (“ah vc sabe q eu naum paro em casa. saio

direto com as minhas amigas. Se tiver festinha to em todas!!! e ele fica naum gosta” –

linhas 176 e 177). Rose, então, se posiciona deliberadamente em relação à Aline ao

afirmar que seu namorado teria, de fato, razões para estar com raiva dela (“mas bem q

ele tem razão, né!!! vc apronta!!!” – linha 178).

Logo em seguida, Aline toma um posicionamento deliberado do outro para se

referir ao seu namorado, em que ela se mostra contraditória quanto aos seus desejos:

por um lado, reconhece que ele é “legal” e que o “adora”, mas, por outro, deixa

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transparecer, de forma até irônica (por meio da pista de contextualização “(rsrs...)” –

linha 179) ser um tipo de pessoa que teria dificuldades de construir vínculos amorosos

muito sérios (linha 179). Rose, então, assume um posicionamento de primeira ordem

com o intuito de questioná-la acerca do que ela sentiria por ele (linha 180). E Aline,

mesmo reconhecendo que gosta do seu namorado, se auto-posiciona deliberadamente

para ratificar sua idéia de que não gosta de se sentir “presa” (linha 181).

Ainda na função de questionadora, Rose assume novamente um posicionamento

de primeira ordem com o fito de saber se Aline já teria, alguma vez, “ficado” com outros

meninos (linha 182). Aline, então, se auto-posiciona deliberadamente para confessar a

sua amiga que já fez isso e que o seu namorado sequer tem idéia disso (“a já fiquei e

ele nem sabe de nada!!!” – linha 183). Ao saber disso, Rose toma um posicionamento

deliberado do outro para mostrar sua opinião de reprovação em relação às atitudes da

sua amiga (“ai, amiga, me desculpa ach q vc ta errada. se vc gosta dele naum da só pra

ficar saindo assim muito menos ficando com outros carinhas” – linha 184 e 185). Em

face disso, Aline se posiciona reflexivamente (posicionamento de segunda ordem), em

que, depois de ter tido suas atitudes questionadas por Rose, ela passa a reconhecer as

suas críticas e se posiciona a seu favor (“nossa amiga, naum briga!!!! Mas ach q vc tem

razão. Vou pegar leve!!!” – linhas 186 e 187).

Contudo, se nos dispusermos a olhar para o contexto sócio-histórico mais amplo,

perceberemos que o comportamento de Aline talvez não pareça ser tão contraditório,

uma vez que os relacionamentos amorosos, sobretudo para os mais jovens, tendem a

se tornar na contemporaneidade, segundo Bauman (2005, p. 70 – Ver seção 2.1), um

“modo consumista”. Dentro dessa concepção de relacionamento, deseja-se que a

“satisfação precise ser, deva ser, seja de qualquer forma instantânea, enquanto o valor

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exclusivo, a única “utilidade”, dos objetos é a sua capacidade de proporcionar

satisfação”.

Sob essa perspectiva, ainda podemos afirmar que o embate discursivo gerado

entre Rose e Aline se deve ao fato de elas estarem construindo para si identidades

sociais diferentes, mesmo sendo ambas meninas: Rose, se construindo

identitariamente como uma menina com ideais mais conservadores; e Aline, por sua

vez, com uma visão mais condizente com o ideal de relacionamento da juventude

global do mundo atual. Nesse sentido, devemos, pois, pensar as relações de gênero e,

em particular, as feminilidades como realizações plurais de categorias construídas

socialmente e, por isso, sempre abertas a re-significações (BUTLER, 2003 – Ver seção

3.3).

Ao tomar o turno, Aline muda o foco do assunto para conversar sobre o

relacionamento de um amigo “gay”: o Luizinho. Ela, então, assume um posicionamento

deliberado do outro, em que afirma que Luizinho, depois de ter sido deixado por seu

namorado, ficou, segundo ela, muito “arrasado” (“ai, falando nisso..... sabe aquele meu

amigo “gay” q tem falei, o Luizinho. O namorado dele terminou com ele. ele ta

arrasado!!!!” – linhas 189 e 190). Na seqüência, Aline continua se posicionando

deliberadamente em relação ao seu amigo para contar para Rose sobre o motivo pelo

qual o casal teria terminado o relacionamento (linhas 192 a 195).

Ainda no seu turno, no entanto, Aline assume um posicionamento moral, em que

ela, ao se referir ao seu amigo “gay”, toma como base aspectos da vida social,

supostamente cristalizados e legitimados socialmente, como o de que todo casal “gay”

só brigaria quando o problema fosse realmente sério, e o de que os “gays” não trairiam

seus parceiros (“vc sabe como é “gay” quando brigam é porque a coisa ta feia”. Po e

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agente até estranha porque vc sabe q “gay” é assim bem mais certinho, naum fica

traindo o parceiro” – linhas 192 a 195). Rose, do mesmo modo, se posiciona

moralmente ao corroborar tal asserção de que os “gays” seriam supostamente mais

fiéis aos seus parceiros (“é verdade acho q é mais difícil de “gay” trair, mesmo” – linha

196).

No tocante à parte final deste excerto, é possível perceber que, se por um lado

Rose busca construir para si outras identidades ao transitar por outros contextos e

discursos, o que a possibilitaria compreender o quanto as identidades sociais podem

ser múltiplas e heterogêneas, por outro, ela, junto com sua amiga, ainda reverbera

discursos essencialistas que tentam, de outro modo, atribuir às identidades sociais um

caráter fixo e homogêneo. Isso nos conduz a afirmar que neste excerto, assim como no

anterior, Rose se constitui igualmente por meio de discursos contraditórios que ora

buscam desestabilizar determinados “regimes de verdade” (FOUCAULT, 1981 – Ver

seção 2.3), ora os reforçam como verdades inquestionáveis.

8.2 Respondendo às questões de pesquisa

Com base na análise das seqüências da entrevista e dos excertos extraídos das

conversas nas salas de bate-papo, apresentados na seção anterior, e nos pressupostos

teóricos explicitados ao longo da presente pesquisa, procuro a seguir destacar os

pontos mais relevantes do processo de interpretação, com o fito de responder às

perguntas que norteiam esta investigação, a saber:

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1) Como o sujeito de pesquisa (re)constrói sócio-discursivamente sua

identidade social de gênero ao participar de conversas em salas de bate-papo no

ciberespaço?

2) Como as práticas de letramento digital com as quais ele se envolve

promovem outras possibilidades de viver sua experiência identitária de gênero?

Ao analisar os dois corpora desta pesquisa, busquei investigar o modo como

Johnny (re)constrói sua identidade social de gênero com base nos seus

posicionamentos discursivos e nos significados que co-constrói comigo (na entrevista –

Ver subseção 8.1.1) e com os seus amigos(as) virtuais (nas salas de bate-papo do

ciberespaço – Ver subseção 8.1.2).

Desse modo, com o objetivo de responder à primeira questão de pesquisa, pude

perceber que Johnny / Rose se posiciona de várias formas no processo de sua

construção identitária. Como parto do princípio de que a análise dos posicionamentos

discursivos propicia acesso aos processos de construção de nossas identidades sociais

(Ver seção 2.4), entendo que os múltiplos e variados posicionamentos de Johnny

possibilitaram a compreensão dos processos de (re) construção de sua identidade

social de gênero. Não houve, portanto, a construção de uma identidade homogênea e

unificada, ou seja, Johnny / Rose não se construiu como homem ou como mulher da

mesma forma em todos os seus posicionamentos discursivos. Ao contrário, se

constituiu sócio-discursivamente por meio de idéias múltiplas e, por vezes,

contraditórias acerca do que é ser homem ou ser mulher.

Essas contradições, que, a meu ver, se mostraram muitas vezes antagônicas,

ocorreram com uma certa freqüência, tanto nas seqüências da entrevista quanto nos

excertos relativos às conversas das salas de bate-papo do ciberespaço. Isso parece

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revelar que Johnny, de fato, conhece os pressupostos que caracterizam a

masculinidade e feminilidade hegemônicas e aqueles que, por outro lado, indexicalizam

outras formas do que significa ser homem ou ser mulher que não são legitimadas

socialmente pelos regimes de verdade tradicionais (Ver seção 2.3).

Quanto à entrevista, pude perceber, nas seqüências 1 e 3, por exemplo, que

Johnny, por um lado, demonstra um grande entusiasmo em relação à possibilidade de

poder construir outras identidades sociais para si no mundo virtual. Todavia, ao ser

interpelado por mim sobre a possibilidade das pessoas com as quais interage estarem

igualmente construindo outras identidades e, portanto, estarem fingindo ser outras

pessoas, ele parece, de uma certa forma, duvidar de que isso possa ser possível (Ver

seqüência 1).

Na seqüência 2 da entrevista, por exemplo, Johnny se constrói discursivamente

como alguém que não se enquadraria no padrão da masculinidade hegemônica por

meio de discursos não-hegemônicos (CONNELL, 2000 – Ver seção 3.2), não só ao

ponderar que o fato de uma pessoa não ter uma namorada não faz dessa pessoa um

“gay”, como também ao se posicionar veementemente contra as pessoas que não

respeitam a sexualidade dos outros. Contudo, ainda na seqüência 2, mesmo

reconhecendo que seja possível se construir através de outras formas de

masculinidade, como é o seu próprio caso, Johnny admite que ser chamado de “gay”

pelos meninos da sua turma o incomoda. Isso porque essa identidade social de “gay”

talvez o faça se sentir estigmatizado no ambiente escolar, uma vez que os “regimes de

verdade” construídos nesse contexto, em geral, só legitimam a masculinidade

heteronormativa.

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É importante ressaltar que é provável que esses posicionamentos de Johnny na

entrevista tenham ocorrido dessa maneira devido à minha presença como homem que

ele vê como heterossexual na interação. Acredito que se a pesquisa tivesse sido

conduzida por uma mulher heterossexual, por exemplo, seus posicionamentos

possivelmente seriam outros. Em outras palavras, a minha presença como pesquisador

e interlocutor homem heterossexual pode ter influenciado o modo como ele

(re)construiu sua identidade social de gênero e sua masculinidade.

No que diz respeito aos excertos analisados, relativos às conversas nas salas de

bate-papo virtuais, Johnny / Rose parece, de fato, ter se apropriado de diversos

recursos lingüístico-discursivos (pistas de contextualização) que o construiriam

identitariamente como uma menina (usando inclusive o nome fictício Rose – Ver

seqüência 1) dentro do padrão de feminilidade hegemônica (Ver excertos 1, 3, 4, 5, 7 e

8). Tal construção identitária se torna ainda mais evidente no excerto 2, em que Rose

começa a se envolver num relacionamento heterossexual como um menino (Beto).

Muito embora Johnny / Rose, em princípio, construa para si uma identidade

social de gênero como uma menina no padrão hegemônico heteronormativo, seus

posicionamentos, por vezes, evidenciam contraditoriamente também que ele / ela não

aceita algumas das imposições discriminatórias dos padrões de masculinidade e

feminilidade hegemônicos referendados por alguns de seus amigos virtuais (Ver

excertos 8 e 9).

Percebo, por conseguinte, a construção da identidade social de Johnny / Rose

como um fato um tanto curioso, pois, de um lado, trata-se de um menino cuja

masculinidade não se enquadraria no padrão hegemônico, mas que, por outro lado, se

constrói identitariamente no ciberespaço como uma menina nos moldes do esteriótipo

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feminino heteronormativo. Se esse caráter contraditório que as identidades sociais

podem assumir já se constitui como um fator presente no mundo real, na Internet, isso

parece se tornar uma das características mais notórias. Tal asserção nos encaminha,

portanto, para a resposta a minha segunda questão de pesquisa.

Com base na análise de todas as práticas de letramento digital com as quais o

meu sujeito de pesquisa se envolve ao interagir com as pessoas no ciberespaço, é

possível notar que este, de fato, disponibiliza múltiplas possibilidades de (re)construção

da identidade social de gênero de Johnny.

Pude perceber isso logo na entrevista, em que ele já manifesta, nas seqüências

1 e 3, que a principal razão pela qual ele prefere interagir com pessoas na Internet seria

porque este ambiente fornece àqueles que dele fazem uso um acesso quase ilimitado à

complexidade e à pura multiplicidade da experiência das subjetividades humanas

(LANKSHEAR & KNOBEL, 1997 – Ver seção 5.2). Isso porque, no ciberespaço, o fator

da presença é re-significado pela intervenção da técnica e de como o usuário manipula

suas informações pessoais e sociais, que lhe são inscritas, uma vez que a vantagem do

anonimato lhe proporciona isso (CARDOSO, 1997 – Ver seção 5.2).

É por meio das análises das conversas entre Johnny / Rose e seus amigos

virtuais que essa possibilidade de ele viver outras experiências identitárias se torna

mais notória. No excerto 3, por exemplo, Johnny, já identitariamente assumido como

Rose, se posiciona perante a Joana como uma pessoa que não só sente atração por

meninos, como também descreve para a sua amiga o esteriótipo de homem que mais

lhe interessa, o que a constrói identitariamente como uma menina. No excerto 2, isso se

torna ainda mais evidente quando Rose interage com um menino (Beto) que se mostra

interessado por ela. Ela, por sua vez, se permite envolver num jogo de sedução em que

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Beto se auto-posiciona como o “conquistador”, posição típica da masculinidade

hegemônica, e Rose, por outro lado, numa posição relacional passiva de “conquistada”,

se construindo, portanto, como um exemplo de feminilidade hegemônica. Chamo ainda

a atenção para o excerto 6, em que Rose afirma para sua amiga Rê já ter tido um

relacionamento com um menino que, segundo ela, seria bonito mas chato (linha 127), o

que corrobora, de fato, sua construção identitária como uma menina.

Nesse sentido, a Internet pode, como apontei anteriormente, se configurar como

um lugar, antes de tudo, não discriminatório, um “espaço libertário” para a sua própria

experimentação (LONDON, 1997 – Ver seção 6.2), o que faz com que Johnny possa

interpretar identidades sem que, preliminarmente, seja questionado sobre a sua

veracidade e, por conseguinte, se sentir à vontade, sem medo do que os outros

poderiam pensar ou falar sobre ele.

E, muito embora Johnny se construa algumas vezes por meio de discursos

contraditórios acerca dos seus posicionamentos quanto à sua construção identitária,

pude perceber que as práticas de letramento digital se constituem para ele como o meio

mais importante de desestabilizar sentidos hegemônicos cristalizados acerca da

identidade social de gênero, possibilitando, com isso, a construção para si de um novo

olhar para os diferentes modos de se produzir sentido sobre as identidades sociais na

contemporaneidade.

Tendo em vista a complexidade da questão, que busca compreender o modo

como as práticas de letramento digital com as quais Johnny se envolve podem

promover outras possibilidades de (re)construção identitária do seu gênero, reconheço

que acenar com respostas definitivas e imediatas seria, no mínimo, incoerente. No

entanto, acredito veementemente que o ciberespaço seja um meio através do qual

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Johnny, não só tenha a oportunidade de se (re)construir identitariamente de forma

múltipla, mas também, e principalmente, um lugar onde ele possa vislumbrar a

possibilidade de construir relacionamentos afetivos e amorosos, como o que foi

mostrado no excerto 2 entre ele e Beto, por exemplo, e, com isso, poder experimentar,

de forma ainda mais plena, outros modos de viver a multiplicidade da sua experiência

humana, ou seja, para além dos esteriótipos e moldes do que podemos ser e viver.

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8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente estudo, propus-me a investigar o processo de (re)construção

identitária de gênero de um menino em práticas de letramento digital do ciberespaço.

Com isso, procurei observar como seus posicionamentos relativos à sua identidade

social de gênero, tanto na entrevista quanto nas salas de bate-papo virtuais, são sócio-

discursivamente (re)construídos.

Para realizar tal investigação, realizei um estudo de caso (ver seção 6.3), com o

intuito de tentar explorar, em profundidade, um contexto e um sujeito de pesquisa

específicos. Procurei também filiar minha pesquisa a um paradigma interpretativista,

que se pauta por uma compreensão do conhecimento como “uma produção construtiva-

interpretativa” (REY, 1999, p. 37). Para dialogar com essa concepção de pesquisa,

adotei neste estudo uma visão socioconstrucionista do discurso e das identidades

sociais (MOITA LOPES, 2003), cuja base epistemológica compreende que os seres

humanos estão constantemente (re)construindo suas identidades, as identidades dos

outros e o mundo social por meio das práticas discursivas das quais participam.

Sob essa perspectiva, busquei, ao longo deste trabalho, operar com uma visão

das identidades sociais como um processo de construção social, cujo eixo central é

corroborado pelo princípio de que as relações de sujeitos e de sentidos (nas quais as

identidades sociais são constituídas) são múltiplas e variadas, isto é, são entendidas

como heterogêneas, contraditórias, e em fluxo, constituintes das práticas discursivas

nas quais atuamos (ORLANDI, 2001).

Ao tentar relacionar a questão das identidades sociais com as práticas de

letramento, filiei-me a uma concepção de letramento como prática social (Ver capítulo

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4), portanto, “sócio-culturalmente determinada e, como tal, os significados específicos

que a escrita assume para um grupo social dependem de contextos e instituições em

que ela foi adquirida” (KLEIMAN, 1995, p. 22). Nesse sentido, as práticas de letramento

passam a ser um meio através do qual os sujeitos estabelecem e negociam relações e

identidades sociais (MOITA LOPES, 2005). Foi, então, partindo dessa visão de

letramento que situei as conversas nas salas de bate-papo virtuais como uma prática

social, na qual o sujeito de pesquisa, num processo dialógico (BAKHTIN, 1981) com

outros participantes, (re)constrói e negocia significados e identidades sociais.

Para interpretação dos dois corpora da pesquisa (Ver seção 8.1), utilizei a noção

de posicionamento discursivo (VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999 – Ver seção 2.4)

como construto teórico-metodológico, por compreender, em consonância com Davies &

Harré (1990, p. 48), que, ao interagir a partir de uma posição, as pessoas estão

“trazendo para a situação particular suas histórias como um ser subjetivo, isto é, a

história de alguém que esteve em múltiplas posições e engajado em diferentes formas

de discurso”. Ainda fiz uso também do conceito de pistas de contextualização

(GUMPERZ, 1999 – Ver seção 2.4), cuja função se presta a designar quaisquer traços

nas formas lingüísticas e paralingüísticas presentes nas estruturas discursivas que

contribuem para assinalar as pressuposições contextuais do falante e que os

interlocutores interpretam. Desse modo, é possível inferir que é, portanto, por meio de

nossos posicionamentos discursivos e das pistas de contextualização das quais

fazemos uso que constituímos o mundo e nossas identidades sociais, o que ficou

bastante evidente no modo como Johnny (re)constrói sua identidade social de gênero.

Esses construtos ainda possibilitaram-me, outrossim, investigar como práticas

sociais de letramento digital (ver seção 4.2) permitem a (re)construção das identidades

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sociais. Em minha primeira questão de pesquisa, cujo foco central era o de observar a

maneira como o meu sujeito de pesquisa (re)construía sócio-discursivamente sua

identidade social de gênero ao participar de conversas em salas de bate-papo no

ciberespaço, procurei analisar sua (re)construção identitária de gênero com base nos

posicionamentos discursivos ao interagir comigo (na entrevista – Ver subseção 7.1.1) e

com os seus amigos(as) virtuais (nas salas de bate-papo do ciberespaço – Ver

subseção 7.1.2). Pude perceber, com base na interpretação dos dados, que os

múltiplos e variados posicionamentos que ele assume constroem sócio-discursivamente

sua identidade social de gênero de maneiras diferentes nas suas interações (ver seção

7.2).

Na segunda questão de pesquisa, minha intenção era a de investigar o modo

como as práticas de letramento digital com as quais Johnny se envolve promovem

outras possibilidades de (re)construção identitária do seu gênero. Para tanto, busquei

entender como o ciberespaço fornece àqueles que dele fazem uso um acesso quase

ilimitado à complexidade e à multiplicidade da experiência das subjetividades humanas,

devido à maneira como o fator da presença é re-significado não só pela intervenção da

técnica que o ambiente virtual disponibiliza ao usuário, mas também pelo modo como

este é capaz de manipular suas informações pessoais e sociais, já que a vantagem do

anonimato lhe permite fazer isso (Ver seção 5.2).

Ao analisar os dois corpora da pesquisa, pude perceber que Johnny se constrói

por meio de alguns discursos não hegemônicos, como na seqüência 2 da entrevista,

em que ele se posiciona veementemente contra as pessoas que não respeitam a

sexualidade dos outros. Contudo, mesmo reconhecendo que seja possível se construir

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através de outras formas de masculinidade, como é o seu próprio caso, Johnny admite

que ser chamado de “gay” pelos meninos da sua turma o incomoda.

Essas contradições, que, conforme mencionei anteriormente (Ver seção 8.2),

puderam me mostrar que Johnny, de fato, conhece os pressupostos que caracterizam a

masculinidade e feminilidade hegemônicas e os que, por outro lado, indexicalizam

outras formas do que significa ser homem ou ser mulher que não são legitimadas

socialmente pelos regimes de verdade vigentes (Ver seção 2.3).

Desse modo, a análise dos dados mostrou que, apesar de apresentar, por vezes,

discursos contraditórios acerca dos seus posicionamentos quanto à sua construção

identitária, as práticas de letramento digital se constituem para Johnny como o meio

mais importante de desestabilização de estereótipos e crenças naturalizados sobre a

identidade social de gênero, possibilitando, com isso, a construção para si de um novo

olhar para os diferentes modos de se produzir sentido sobre as identidades sociais.

A realização desta pesquisa indica, portanto, que não existe uma receita pronta

para a construção social do gênero. Por outro lado, se estamos buscando compreender

as identidades sociais como entidades múltiplas, heterogêneas e até contraditórias,

devemos, por conseguinte, buscar uma interpretação ativa frente a uma realidade sem

sentido metafísico, que possibilite a criação constante de novas formas de agir.

Devemos, então, tentar sempre construir identidades, e subvertê-las quando estas não

mais nos servirem (BUTLER, 2003), sempre com base em princípios éticos.

E, ao tratar do mundo virtual, a compreensão desse construto se evidencia

ainda mais, uma vez que o ciberespaço nos permite que sejamos sempre nômades,

pois “em vez de seguirmos linhas de errância e de migração dentro de uma extensão

dada, saltamos de uma rede a outra, de um sistema de proximidade ao seguinte. Os

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espaços se metamorfoseiam e se bifurcam a nossos pés, forçando-nos à heterogênese”

(LÉVY, 1996, p. 25).

O que quero dizer é que se entendemos que (re)construímos quem somos de

forma discursiva, e isso, é claro, se configura nas mais diversas práticas de letramento

nas quais nos engajamos, isto é, por meio da interação que estabelecemos com o(s)

outro(s) frente a uma certa realidade, ainda que esta seja uma realidade virtual, então,

isso significa que podemos, a partir dessa perspectiva, sempre atribuir novos sentidos e

uma nova liberdade ao modo como interpretamos essa realidade.

À luz dessa visão socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais,

entendemos que nós não somos, no sentido metafísico, homens, mulheres,

heterossexuais e homossexuais, mas estamos, como poderíamos estar outra coisa.

Johnny pode estar se construindo como um tipo de homem em algumas de suas

comunidades de prática, como no contexto escolar, mas está se construindo e sendo

construído como uma mulher ao interagir com outras pessoas numa comunidade de

prática virtual. Isso me leva a crer que, de fato, uma pessoa, ao se ver como mulher ou

homossexual, não está expondo sua natureza, uma suposta essência do seu ser, mas

está se interpretando e se construindo de uma forma que a permita criar sentidos no

mundo social. Nesse sentido, deveríamos, portanto, pensar não mais em identidades

estanques, mas em posições fluídas e múltiplas, em que a repressão e a desigualdade

existem sim, mas que podem ser substituídas pelo próprio movimento dessas

identidades.

E, apesar de estarmos longe de viver em uma sociedade justa no que se refere

às relações de gênero, já é possível encontrar outros discursos que contemplem outras

possibilidades de se constituir como homem ou como mulher na vida contemporânea.

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Nesse sentido, a mídia, sobretudo, a mídia eletrônica digital, pode ser um forte aliado

na contra-mão de discursos hegemônicos excludentes e discriminatórios (Ver seção

5.2).

Ao se engajar, portanto, em práticas de letramento virtual no ciberespaço,

Johnny se expõe a uma multiplicidade de discursos. Discursos esses que disponibilizam

visões de mundo, conhecimentos, crenças e valores diferentes que podem,

diretamente, colaborar na compreensão da diferença alteritária. Nesse sentido, o

mundo virtual se torna um meio através do qual Johnny não só tenha a oportunidade de

se (re)construir identitariamente de forma múltipla, descobrindo outras formas de “ser

homem” ou “ser mulher”, mas também, e principalmente, um lugar onde ele possa

vislumbrar a possibilidade de construir relacionamentos afetivos e amorosos, por

exemplo, e, com isso, poder experimentar, de forma ainda mais plena, outros modos de

ser humano.

Por isso, tendo em vista a importância das práticas de letramento digital na

constituição das identidades sociais, ou seja, no próprio modo como compreendemos

quem somos e como nos construímos, já que o ciberespaço está deixando de ser

apenas um mundo virtual para se tornar parte cada vez mais integrante do nosso

mundo real, corroboro a idéia de que é crucial que se continuem a desenvolver estudos,

a exemplo dos que já existem e que foram citados no presente trabalho, sobre a

construção identitária em práticas de letramento digital.

Para concluir, espero que os significados gerados nas discussões ao longo desta

pesquisa tenham colaborado, ainda que de forma modesta, para fomentar um repensar

não só sobre os modos como concebemos as identidades sociais, mas também sobre

as próprias práticas sócio-discursivas que possibilitam tais concepções. Talvez tenha

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chegado o momento de “reinventarmos” as identidades sociais, reinventado, com isso,

as nossas próprias vidas, pois, como nos diz brilhantemente Cecília Meireles na poesia

citada no começo deste trabalho, “a vida só é possível reinventada”. Acredito que esta

dissertação possa ser uma contribuição para isso.

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ANEXOS

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(ANEXO 1) Como acessar uma sala de bate-papo da UOL

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(ANEXO 2)

A opção da sala de bate papo da UOL “entre amigos” foi escolhida

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(ANEXO 3)

A tela da sala de bate-papo do MSN

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(ANEXO 4)

Alguns exemplos de Emoticons

- zangado

- contente

- Beijão

- com raiva

- piscada

- ok

- louco

- indeciso

- gargalhada

- espanto

- desejo

- careta

- com sono

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(ANEXO 5)

A matéria da Revista Veja Tecnologia: “A nova geração on-line” (página 13)

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ANEXO 6

A matéria da Revista Veja Tecnologia: “A nova geração on-line” (página 14)

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(ANEXO 7)

A matéria da Revista Veja Tecnologia: “Do jeito que eu quero ser” (página 21)

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202

(ANEXO 8)

A matéria da Revista Veja Tecnologia “Do jeito que eu quero ser” (página 24)

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203

(ANEXO 9)

A matéria da Revista Veja Tecnologia “Do jeito que eu quero ser” (página 30)

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(ANEXO 10)

A matéria da Revista Veja Tecnologia “Do jeito que eu quero ser” (página 31)

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