Lágrimas da Chuva, de Nora Roberts

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1o capítulo do livro.

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N o r a

R o b e r t s

Lágrimas da LuaTrilogia do Coração

Volume 2

TraduçãoA. B. Pinheiro de Lemos

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Para Bruce,

meu faz-tudo pessoal

Dê-me um beijo, amor,sinta saudade, amor,

e enxugue suas lágrimas amargas.

— CANÇÃO IRLANDESA DE PUB

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Prezado Leitor

Aqueles que sonham acordados trazem beleza ao mundo. A arte ea música, as histórias e o coração. A Irlanda tem o maior carinho porseus sonhadores. Apesar disso, ao mesmo tempo em que preza seuspoetas e artistas, a Irlanda também pode ser bastante prática. Por umlado, os irlandeses conservam sua magia; por outro, trabalham duro.

Em Lágrimas da Lua, juntei as mãos do sonhador Shawn Galla-gher e da objetiva e pragmática Brenna O’Toole. Carrick, o príncipedas fadas, terá muito trabalho com esses dois, se quiser uni-los e dar opasso seguinte para romper o encantamento que o separa de seu pró-prio amor e de seu destino.

Ele tem um presente para os dois, que, entretanto, o devem acei-tar — e um ao outro — com corações desprendidos. Orgulho e ambi-ção devem ser superados por amor e generosidade. Duas pessoas que seconheceram durante toda a vida terão de se contemplar agora comolhos diferentes.

Muito acima da fascinante aldeia de Ardmore, num penhascovarrido pelo vento, perto da fonte de um antigo santo irlandês, hámagia e música no ar. Sente-se no banco que há ali perto e escute.

Nora Roberts

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AIrlanda é uma terra de poetas e de lendas, de sonhado-res e rebeldes. E a música envolve a todos, por comple-to. São melodias para dançar ou chorar, para a batalha

ou para o amor. Em tempos antigos, os menestréis viajavam de umlugar para outro, tocando suas melodias por uma refeição e uma cama,por alguma generosa moeda que pudesse acompanhá-las.

Os menestréis e os seanachais — os contadores de histórias —eram bem recebidos por toda parte, num chalé, numa estalagem ou àbeira de uma fogueira de acampamento. O dom que espalhavam pelaIrlanda era sempre apreciado, até mesmo nos palácios do mundo dasfadas, sob as verdes colinas.

E continua a ser apreciado.Uma ocasião, não faz muito tempo, uma contadora de histórias

chegou a uma aldeia tranqüila, à beira do mar, e teve uma recepção afe-tuosa. Ali, ela encontrou seu coração e seu lar.

Um menestrel vivia na aldeia. Ali tinha seu lar e era onde se sen-tia contente. Mas ainda precisava encontrar seu coração.

Havia música soando em sua cabeça. Às vezes surgia suave esonhadora, como os sussurros de uma pessoa apaixonada. Em outrasocasiões, aflorava como um grito ou como uma risada. Uma velhaamiga, convidando-o para tomar uma cerveja no pub. Podia ser doce,

Capítulo Um

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veemente ou transbordando com lágrimas desesperadas. E ele sempresentia imenso prazer em ouvi-la.

Shawn Gallagher era um homem satisfeito com a vida. Natural-mente havia quem dissesse que ele se sentia feliz porque era raro ele sairde seus sonhos para verificar o que acontecia no mundo. E Shawn nãose importava de concordar com essas pessoas.

Seu mundo era a música e a família, o lar e os amigos é que con-tavam. Por que deveria incomodar-se com qualquer outra coisa?

A família vivia há gerações na aldeia de Ardmore, no condado deWaterford, na Irlanda. Os Gallagher eram donos do pub local, ofere-cendo canecas de cerveja, uma boa refeição e um lugar para conversarhá tanto tempo quanto a maioria poderia lembrar.

Desde que os pais haviam mudado para Boston, algum tempoantes, cabia a Aidan, o irmão mais velho de Shawn, dirigir o pub. Oque era ótimo para Shawn Gallagher, já que ele não hesitava em admi-tir que não tinha tino para os negócios nem queria ter. Sentia-se felizem ser o homem da cozinha, pois cozinhar relaxava-o.

A música era parte dele, no pub ou em sua cabeça, enquanto aten-dia aos pedidos ou preparava o cardápio do dia.

Claro que havia ocasiões em que sua irmã, Darcy — que tinhauma quota adicional da energia e ambição da família —, entrava nacozinha, quando ele preparava um ensopado ou fazia um sanduíche, eprovocava uma briga.

Mas isso servia para dar mais animação.Shawn não se incomodava em dar uma ajuda para servir os clien-

tes, ainda mais se alguém estivesse tocando ou se houvesse pessoas dan-çando. E ajudava na limpeza sem se queixar, depois que fechavam, poisos Gallagher mantinham um pub impecável.

A vida em Ardmore lhe convinha — o ritmo lento, as ondas sechocando contra os penhascos, as colinas verdes ondulantes, que se es-tendiam até as montanhas escuras. A ânsia de conhecer outras terras,onde os Gallagher eram famosos, não se manifestava nele. Shawn tinharaízes profundas no solo arenoso de Ardmore.

Não tinha o menor desejo de viajar, como fizera o irmão, Aidan,ou como Darcy planejava fazer. Podia encontrar ali mesmo tudo deque precisava. Não via sentido em mudar de paisagem.

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Embora, de certa forma, isso tivesse acontecido.Durante toda sua vida, Shawn olhara pela janela de seu quarto

para ver o mar, que estava sempre ali, desmanchando-se em espumana areia, pontilhado de barcos, sereno ou furioso, com todos os âni-mos intermediários. O cheiro de maresia era a primeira coisa que eleaspirava pela manhã, ao abrir a janela e se inclinar para fora.

Quando o irmão casara com Jude Frances Murray, uma linda ian-que, no outono passado, pareceu-lhe apropriado promover alguns ajustes.

De acordo com o costume dos Gallagher, o primeiro a se casar fica-va com a casa da família. Por isso, Jude e Aidan instalaram-se na casaenorme, na beira da aldeia, quando voltaram da lua-de-mel em Veneza.

Oferecida a opção entre o apartamento por cima do pub e o peque-no chalé que pertencia ao lado Fitzgerald da família de Jude, Darcy esco-lhera o apartamento. Pressionara Shawn, e quem mais se deixara envol-ver por seus encantos, a pintar e reformar, até que os aposentos, antesespartanos de Aidan, se transformassem em seu pequeno palácio.

Shawn não se incomodara.Preferia mesmo o chalé na colina das fadas, com sua vista dos

penhascos, seu lindo jardim e bendito sossego.Também não se importava com o fantasma que vagava pelo chalé.Ainda não o vira, mas sabia de sua presença. Era Lady Gwen, que

se lamentava de ter rejeitado seu amor, o príncipe das fadas. Esperavaagora que o encantamento chegasse ao fim, para libertar os dois.Shawn conhecia a história da jovem donzela que vivera trezentos anosantes. Naquele mesmo chalé, naquela mesma colina.

Carrick, príncipe das fadas, apaixonara-se por ela. Mas, em vez dedizer as palavras certas, em vez de oferecer seu coração, ele mostrara agrandiosidade da vida que proporcionaria à sua amada. Três vezes leva-ra a Lady Gwen, num saco de prata, as pedras mais preciosas domundo. Primeiro, foram diamantes moldados no fogo do sol, depoisas pérolas feitas com as lágrimas da lua e, finalmente, as safiras arran-cadas do coração do mar.

Mas, duvidando do coração de Carrick e de seu próprio destino,ela o recusara. E as pedras preciosas que ele despejara aos pés de Gwen,segundo a lenda, se haviam transformado nas flores que vicejavam nojardim do chalé.

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A maior parte das flores dormia agora, pensou Shawn, sob ovento frio do inverno que soprava ao longo da costa. Os penhascos,onde se dizia que Lady Gwen passeava, em lágrimas, estavam áridos einóspitos, sob o céu ameaçador.

Uma tempestade se concentrava ali, prestes a desabar.Era uma manhã gelada, com o vento sacudindo as janelas e se in-

filtrando por todas as frestas para esfriar o chalé. Como tinha um fogoaceso na cozinha e um chá bem quente nas mãos, Shawn não se impor-tava com o vento. Até apreciava sua música arrogante, enquanto, sen-tado à mesa da cozinha, comia biscoitos e pensava na letra de umamelodia que acabara de compor.

Só precisava ir para o pub dali a uma hora. Mas, para ter certezade que chegaria no horário, ligara o alarme de tempo do forno. Comoreforço, deixara o despertador também programado no quarto. Semninguém ali para arrancá-lo de seus sonhos e dizer que precisava partir,ele tendia a esquecer a hora por completo.

Já que Aidan ficava irritado quando ele se atrasava e Darcy apro-veitava o pretexto para criticá-lo, Shawn fazia o melhor possível paraser pontual. O problema era que ignorava o alarme e não ouvia a cam-painha do despertador quando ficava absorvido demais na música.

Era o que acontecia agora, toda sua atenção concentrada numacanção de amor, um amor jovem e autoconfiante. O tipo de amor,pensou Shawn, caprichoso como o vento, mas divertido enquantodurava. Uma melodia para dançar, decidiu ele, que exigiria pés ágeis erápidos, um flerte incessante.

Poderia apresentá-la no pub, depois de mais algum polimento.Talvez conseguisse persuadir Darcy a cantá-la. A voz da irmã era a maisapropriada para a canção.

Muito aconchegado na cozinha para se dar ao trabalho de ir até asala, onde instalara o velho piano que comprara ao se mudar para ochalé, Shawn marcava o ritmo com o pé, enquanto trabalhava na letra.

Não ouviu as batidas na porta da frente, o barulho dos passos nocorredor nem a imprecação murmurada.

Era típico, pensou Brenna. Perdido em algum mundo de sonhooutra vez, enquanto a vida continuava a seu redor. Ela nem sabia por

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que se dera ao trabalho de bater na porta. Afinal, Shawn quase nuncaouvia; além disso, os dois estavam acostumados a entrar, sem bater, nacasa um do outro, desde a infância.

Só que não eram mais crianças. Por isso, ela preferia bater antesde entrar, para não deparar com alguma coisa que não gostaria de ver.

Shawn poderia ter uma mulher no chalé, por tudo o que ela sabia.Ele as atraía, como água com açúcar atrai abelhas. Não que ele fossedoce, necessariamente. Mas bem que poderia ser.

E como era bonito! O pensamento aflorou espontâneo em suamente, e Brenna detestou-se por isso. Mas, no final das contas, era difí-cil não perceber.

Aquele lindo cabelo preto parecendo um pouco desleixado, já queShawn nunca se lembrava quando era tempo de cortá-lo. Olhos tranqüi-los, de um azul sonhador... a não ser quando alguma coisa o excitava, enessas ocasiões eram capazes de se inflamar, frios ou quentes, em igualmedida. Shawn tinha pestanas pretas e longas, pelas quais as quatroirmãs de Brenna venderiam a própria alma. A boca era cheia e firme; naopinião de Brenna, feita para beijos longos e palavras suaves.

Embora ela não tivesse qualquer experiência pessoal, ouvira co-mentários.

O nariz era comprido e um pouco torto, resultado de uma linedrive, a bola arremessada no beisebol que sai baixa, rápida e reta. Foraela quem lançara, quando jogavam juntos, há mais de dez anos.

Em tudo e por tudo, Shawn tinha o rosto de um príncipe domundo das fadas. Ou de um galante cavaleiro andante numa buscainterminável. Ou de um anjo um pouco desleixado. Acrescentando-sea isso o corpo comprido e esguio, as mãos maravilhosas, de palmas lar-gas, dedos de artista, a voz como uísque aquecido por fogo de turfa, aembalagem admirável estava completa.

Não que ela tivesse algum interesse pessoal. Apenas apreciava ascoisas que eram bem feitas.

E era uma mentirosa incorrigível. Mentia até para si mesma.Sentia atração por Shawn antes mesmo de acertar a bola em seu

nariz... e tinha quatorze anos contra os dezenove dele na ocasião. Umaatração assim tendia a se tornar algo mais quente, mais intenso, quan-do a garota virava uma mulher de vinte e quatro anos.

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Só que Shawn nunca a contemplara como mulher.Ainda bem, Brenna pensou, enquanto mudava de posição. Não

tinha tempo a perder com homens como Shawn Gallagher. Algumaspessoas precisavam trabalhar.

Com um sorriso irônico, ela baixou devagar a caixa com as ferra-mentas, para depois deixá-la cair, com o maior estardalhaço. O fato deele ter saltado como um coelho ao ouvir um disparo deixou-a satisfeita.

— Santo Deus! — Shawn virou-se na cadeira, num movimentobrusco. Apertou o peito, como se estivesse fazendo o coração bater denovo. — O que aconteceu?

— Nada. — Brenna manteve o sorriso. — Escorregou. Falta dejeito mandou lembrança. — Ela falou em tom doce, tornando a pegara caixa. — Levou um susto, hem?

— Você quase me matou.— Bem que bati na porta, mas você não se deu ao trabalho de

levantar para abrir.— Não ouvi. — Shawn suspirou. Empurrou os cabelos para trás.

Franziu o rosto. — A O’Toole veio fazer uma visita. O que está que-brado aqui?

— Sua mente é igual a um balde enferrujado. — Brenna tirou ocasaco e largou-o no encosto de uma cadeira. Acenou com a cabeçapara o fogão. — Seu forno não funciona há uma semana. E a peça queencomendei acaba de chegar. Quer que eu conserte ou não?

Ele soltou um grunhido de concordância, acenando com a mão.— Biscoitos? — disse Brenna, enquanto passava pela mesa. —

Que tipo de desjejum é esse para um homem crescido?— Estavam aqui. — Shawn sorriu, do jeito que a deixava com

vontade de aninhá-lo em seu colo. — É um saco cozinhar apenas paramim de manhã. Mas, se está com fome, posso fazer alguma coisa paranós dois.

— Não precisa se incomodar. Já comi. — Ela tornou a largar acaixa no chão, ao lado do fogão. Abriu-a e começou a vasculhar lá den-tro. — Sabe que mamãe sempre faz mais comida do que o necessário.Ela ficaria feliz se você aparecesse por lá qualquer dia para um café damanhã.

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— Dispare um foguete de sinalização quando ela fizer aquelaspanquecas especiais. Mas não quer tomar um chá? O bule ainda estáquente.

— Não me importaria. — Enquanto escolhia as ferramentas epegava a peça nova, Brenna observou os pés de Shawn, circulando pelacozinha. — O que estava fazendo? Compondo?

— Procurando palavras para a letra de uma melodia — respon-deu ele, distraído. Seus olhos haviam focalizado o vôo de um pássarosolitário, preto e lustroso, contra o céu cinzento. — Parece que estámuito frio lá fora.

— Frio e úmido. O inverno mal começou e já estou torcendopara que acabe logo.

— Esquente um pouco os ossos.Shawn abaixou-se com uma caneca de chá, preparado como sabia

que ela gostava, forte, com bastante açúcar.— Obrigada.O calor da caneca passou para as mãos de Brenna quando ela a

pegou. Ele permaneceu agachado, tomando seu chá. Os joelhos se encos-

tavam, numa atitude de companheirismo.— O que vai fazer com esse ferro velho?— Que importância isso tem para você, desde que volte a fun-

cionar?Shawn alteou uma sobrancelha.— Se eu souber o que você fez, posso consertar pessoalmente na

próxima vez.O comentário a fez rir tanto, que teve de sentar no chão, para não

perder o equilíbrio.— Você? Ora, Shawn, não é capaz de sequer dar um jeito em sua

unha quebrada.— Claro que sou.Sorrindo, ele fez o gesto de roer uma unha, o que levou Brenna a

nova gargalhada.— Não se meta com o que vou fazer nas entranhas desta coisa, e

também não me envolverei com o próximo bolo que você prepararaqui. Afinal, cada um tem suas habilidades.

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— Parece até que eu nunca usei uma chave de fenda — murmu-rou ele, pegando uma na caixa.

— E eu também já usei uma batedeira. Mas sei qual das duas coi-sas se ajusta melhor em minha mão.

Brenna tirou a chave de fenda dele. Mudou de posição, enfiandoa cabeça dentro do forno, para começar a trabalhar.

Ela tinha mãos pequenas, pensou Shawn. Um homem poderiaconsiderá-las delicadas, se não soubesse o que eram capazes de fazer. Jáa observara manejar um martelo, empunhar uma furadeira, levantarmadeira, apertar uma rosca. Na maior parte do tempo, aquelas peque-nas mãos de fada estavam cortadas, arranhadas ou machucadas nasarticulações.

Era uma mulher pequena para o trabalho que escolhera... ou forao trabalho que a escolhera, pensou Shawn, enquanto se erguia. Sabiacomo era isso. O pai de Brenna consertava tudo, e a filha mais velhasaíra a ele. Assim como se dizia que Shawn saíra à mãe de sua mãe, quemuitas vezes se esquecia de lavar a roupa ou fazer o jantar, enquantotocava sua música.

Enquanto ele começava a recuar, Brenna se mexeu, a bundarequebrando ao fazer força para tirar um parafuso. Shawn franziu assobrancelhas, no que considerou apenas o interesse reflexivo de umhomem por uma parte atraente da anatomia feminina.

Afinal, Brenna tinha um corpo esguio e firme. E um homempoderia apalpar tudo aquilo com apenas uma das mãos. Mas, se alguémtentasse, Shawn imaginava que Brenna O’Toole o deixaria estendidono chão, apagado.

A idéia o fez sorrir.De qualquer maneira, preferia sempre contemplar o rosto de

Brenna. Era extraordinário. Os olhos faiscavam, de um verde profundo,sob sobrancelhas elegantes, apenas um pouco mais escuras do que oscabelos ruivos lustrosos. A boca estava sempre preparada para sorrir,entreabrir-se em desprezo ou contrair-se em fúria. Brenna raramenteusava batom — ou qualquer outra maquilagem no resto de seu rosto,diga-se de passagem —, embora fosse unha e carne com Darcy, que nãopunha os pés fora de casa enquanto não estivesse pintada com perfeição.

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O nariz era pequeno e arrebitado, com a tendência para tremerem desaprovação ou desdém. Na maioria das vezes, os cabelos ficavampresos sob o boné, onde ela pregara a pequena fada que Shawn lhedera, anos antes, por algum motivo que não conseguia mais lembrar.Mas, quando Brenna tirava o boné, parecia haver quilômetros de cabe-los de um ruivo forte e brilhante, todo encrespado.

O que combinava com ela.Como queria ver de novo aquele rosto, antes de partir para o pub,

Shawn encostou-se no balcão, relaxado. Sorriu na expectativa.— Ouvi dizer que você anda saindo com Jack Brennan.Brenna levantou a cabeça abruptamente, batendo no teto do

forno, com um estrondo. Shawn estremeceu. Por uma questão de sen-satez, tratou de reprimir o riso.

— Não estou, não! — Como ele esperava, Brenna tirou a cabeçade dentro do forno. Havia um pouco de fuligem no nariz. Enquantoesfregava a cabeça dolorida, ela entortou o boné. — Quem disse?

— Hum... — Com ar inocente, como três cordeiros, Shawn deude ombros e terminou de tomar o chá. — Pensei ter ouvido por aí, emalgum lugar. Sabe como são essas coisas.

— Você vive com a cabeça nas nuvens e não presta atenção anada. Não estou saindo com ninguém. Não tenho tempo para essasbesteiras.

Irritada, Brenna tornou a enfiar a cabeça dentro do forno.— Nesse caso, estou enganado. O que pode acontecer com a

maior facilidade neste momento, quando a aldeia está cheia de roman-ce. Noivados, casamentos e bebês a caminho.

— Pelo menos essa é a ordem apropriada.Shawn soltou uma risada. Tornou a se ajoelhar ao lado de Brenna.

Num gesto cordial, encostou a mão em sua bunda, mas não notou queela ficou subitamente imóvel.

— Aidan e Jude já estão escolhendo nomes, e ela mal completoudois meses de gravidez. É um casal adorável, não acha?

— Acho. — Brenna sentia a boca ressequida com o anseio, peri-gosamente próximo da necessidade. — É bom vê-los felizes. Judegosta de pensar que o chalé é mágico. Apaixonou-se por Aidan aqui,

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iniciou uma vida nova, escreveu seu livro. Diz que todas as coisas comque tinha medo até de sonhar aconteceram ao mesmo tempo. Tudoaqui.

— É um chalé adorável. Tem alguma coisa diferente. — Shawn fa-lava em parte para si mesmo. — Pode-se sentir em momentos inespera-dos. Quando se cai no sono ou se acaba de acordar. É como... uma sen-sação de espera.

Com a nova peça no lugar, Brenna tirou a cabeça do forno. Elesubiu a mão por suas costas, tranqüilo, depois afastou-a.

— Já viu Lady Gwen?— Não. Às vezes sinto uma espécie de movimento no ar, à beira

de meu campo de visão. Mas, quando viro a cabeça, não vejo nada. —Shawn afastou-se dela. Sorriu e levantou. — Talvez ela não queira queeu a veja.

— Eu diria que você é o candidato perfeito para um fantasma decoração partido. — Brenna desviou os olhos da expressão surpresa deShawn. Mexeu nos controles do fogão, enquanto acrescentava. —Deve funcionar direito agora. Vamos ver se está esquentando.

— Pode verificar para mim, querida? — O alarme do fornotocou, provocando um sobressalto em ambos. — Tenho de ir agora.

Ele se inclinou para desligar o alarme.— É esse o seu sistema de alerta?— Um deles. — Shawn levantou um dedo. Como se fosse uma

deixa, o despertador no quarto começou a tocar. — É a segunda roda-da. Mas vai desligar automaticamente, quando a corda acabar. Se nãofosse assim, eu teria de subir correndo para desligá-lo todos os dias.

— Você é bastante esperto quando precisa, não é mesmo?— Tenho meus momentos. O gato saiu. — Shawn pegou o casa-

co, pendurado num gancho. — Não tenha pena dele, se voltar paraarranhar a porta. Bub sabia em que estava se metendo quando insistiuem se mudar para cá comigo.

— Lembrou-se de lhe dar comida?— Não sou um idiota rematado. — Sem se sentir ofendido,

Shawn passou o cachecol em torno do pescoço. — Ele tem comidasuficiente... e, se não tiver, vai suplicar na porta de sua cozinha. É capaz

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de fazer qualquer coisa só para me envergonhar. — Shawn pôs o bonéna cabeça, enquanto acrescentava: — Vai aparecer no pub?

— É bem provável.Brenna não suspirou, até ouvir a porta da frente ser fechada.Qualquer anseio por Shawn Gallagher era um absurdo, ela disse

a si mesma. Pois Shawn nunca sentiria a mesma coisa por ela. Pensavanela como uma irmã... ou, pior ainda, compreendeu Brenna, comouma espécie de irmão honorário.

E era também culpa dela, admitiu Brenna, olhando para a surra-da calça de trabalho e as botinas arranhadas. Shawn gostava dos tiposfemininos, e ela estava longe disso. Poderia dar um jeito de se arrumar.Entre Darcy e suas irmãs, além de Jude, é claro, não haveria limite deconsultas sobre o embelezamento de Brenna O’Toole.

Mas, além do fato de que ela detestava todo aquele trabalho econfusão, qual seria o sentido? Se por acaso se arrumasse e se maquilas-se, se apertasse e se enfeitasse para atrair um homem, ele não seria atraí-do pelo que ela era de fato.

E, de qualquer maneira, se passasse batom e pusesse jóias, acom-panhando algum vestido insinuante, Shawn provavelmente cairia nagargalhada, para depois fazer algum comentário idiota, que não lhedeixaria outra opção senão acertar um soco em sua cara.

Não havia mesmo qualquer sentido.Deixaria a fantasia para Darcy, que era a campeã da aparência

feminina. E para suas irmãs, que gostavam dessas coisas, pensouBrenna. Quanto a ela... continuaria com suas ferramentas.

Brenna voltou a concentrar-se no forno. Ligou-o em diferentestemperaturas. Verificou a grelha, apenas por precaução. Satisfeita deque funcionava em perfeita ordem, desligou-o e guardou suas ferra-mentas.

Pretendia sair sem demora. Afinal, não havia qualquer motivopara ficar por mais tempo. Mas o chalé era muito aconchegante. Umlugar em que sempre se sentira à vontade. Quando a velha MaudeFitzgerald vivera ali, por mais anos do que Brenna poderia contar,Brenna aparecia com freqüência para uma visita.

Depois, Maude morrera, e Jude viera dos Estados Unidos para

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passar uma temporada no chalé. Haviam se tornado amigas. Por isso,fora fácil retomar a rotina de parar ali de vez em quando, ao voltar paracasa ou a caminho da aldeia.

Brenna ignorava o impulso de parar com mais freqüência, agoraque Shawn morava ali. Mas era difícil resistir. Gostava do sossego dochalé e de todas as coisas bonitas que Maude acumulara ao longo dosanos. Jude deixara tudo no lugar, e Shawn parecia contente em fazer amesma coisa. A pequena sala continuava alegre como sempre, comseus bibelôs, as estatuetas encantadoras de fadas e magos, com os livrose o velho tapete desbotado.

É verdade que agora, depois que Shawn pusera o piano de segun-da mão no espaço restrito, quase não dava para uma pessoa se virar. MasBrenna achava que o piano aumentava o charme. E a velha Maudesempre gostara de música.

Ela ficaria satisfeita, pensou Brenna, enquanto passava um dedopela madeira preta escalavrada, porque havia alguém fazendo músicaem seu chalé outra vez.

Distraída, ela deu uma olhada nas partituras que Shawn deixaraem cima do piano. Ele estava sempre compondo uma nova canção oumudando alguma coisa numa canção antiga. Brenna franziu o rosto,enquanto estudava os rabiscos e pontos. Podia cantar, é verdade, depreferência uma canção de protesto, sem fazer com que algum cachor-ro uivasse em resposta. Mas tocar era muito diferente.

Como estava sozinha, ela decidiu satisfazer sua curiosidade.Tornou a largar a caixa de ferramentas no chão, pegou uma partitura,e sentou-se ao piano. Com alguma dificuldade, mordendo o lábio,encontrou o dó médio no teclado. Lentamente, passou a tocar, umanota de cada vez.

Era adorável, é claro. Tudo o que Shawn compunha era lindo.Nem mesmo a maneira lamentável como ela tocava poderia acabarcom a beleza da música.

Ele acrescentara palavras àquela melodia, como fazia com fre-qüência. Brenna limpou a garganta, e tentou adaptar a voz a cada nota.

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À noite, quando estou sozinho e a lua derramasuas lágrimas,sei que o mundo voltaria a ser maravilhosose você estivesse aqui.Sem você, meu coração fica vazio,apenas com as lembranças que guarda.Você, só você, existe dentro de mim, à noite,quando a lua chora.

Brenna parou. Suspirou, já que não havia ninguém para ouvi-la.As canções de Shawn sempre a deixavam comovida, mas desta vez eraum pouco mais profundo. E um pouco mais genuíno.

Lágrimas da lua, pensou ela. Pérolas para Lady Gwen. Um amorque pedia, mas não conseguia ser atendido.

— É muito triste, Shawn. O que há dentro de você para comporuma música de tanta solidão?

Por melhor que o conhecesse, Brenna não sabia qual era a respos-ta para essa indagação. E bem que gostaria de saber. Sempre quiseraconhecer a chave para Shawn. Mas ele não era como um motor ouuma máquina, que ela podia desmontar para saber como funcionava.Os homens eram mais complicados, enigmas frustrantes.

Era o segredo de Shawn, o seu talento, pensou Brenna. Tudointerior e misterioso. Enquanto suas próprias habilidades eram... Elaolhou para as mãos pequenas e eficientes. Suas habilidades eram asmais simples possíveis.

Mas pelo menos ela tirava um bom proveito e ganhava a vida como que sabia fazer. E o que Shawn Gallagher fazia com seu enormetalento, a não ser sentar e sonhar? Se ele tivesse um pingo de ambição,ou um orgulho sincero por seu trabalho, venderia suas canções, em vezde apenas compô-las e guardá-las em caixas.

O homem precisava de um bom chute no rabo por desperdiçar otalento que Deus lhe dera.

Mas isso, pensou Brenna, era uma irritação para outro dia. Agora,tinha seu trabalho a fazer.

Ela começou a se levantar, estendendo a mão para a caixa de ferra-

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mentas. E foi nesse instante que um movimento atraiu sua atenção.Empertigou-se toda, mortificada ao pensar que Shawn voltara — ele vi-via esquecendo alguma coisa — para surpreendê-la tocando sua canção.

Mas não era Shawn quem parara à porta.A mulher tinha cabelos dourados, mais para claros, caindo em

torno dos ombros. Usava um vestido cinza, simples, que descia até ochão. Os olhos eram de um verde suave, o sorriso tão triste que partiao coração ao primeiro olhar.

Reconhecimento, choque e um excitamento inebriante envolve-ram Brenna ao mesmo tempo. Ela abriu a boca, mas qualquer coisaque tencionava falar saiu num chiado, enquanto seu coração disparava.

Tentou de novo, um pouco embaraçada ao descobrir que seusjoelhos tremiam.

— Lady Gwen... — balbuciou ela.E achou que era admirável ainda ter conseguido dizer isso, quan-

do deparava com um fantasma de trezentos anos.Enquanto ela observava, uma única lágrima, brilhante como pra-

ta, deslizou pelo rosto da mulher.— O coração dele está na canção. — A voz era tão suave quanto

pétalas de rosa, mas, mesmo assim, deixou Brenna tremendo. — Presteatenção.

— O que você...Mas antes que pudesse concluir a pergunta, Brenna descobriu-se

sozinha, apenas com a fragrância de rosas silvestres pairando no ar.— Essa não! — Ela tinha de sentar. Não havia como evitar. E

arriou no banco do piano. — Essa não! — murmurou outra vez.Teve de respirar fundo, várias vezes, até o coração parar de bater

forte dentro do peito.Quando achou que as pernas seriam capazes de sustentá-la de

novo, decidiu que era melhor contar a história a alguma pessoa, sábia,sensata e compreensiva. E não conhecia ninguém que se ajustasse aesses requisitos tão bem quanto sua mãe.

Acalmou-se ainda mais no curto percurso até sua casa. Ficavarecuada da estrada, quase como se fosse um quebra-cabeça, comcômodos acrescentados ao longo dos anos aqui e ali. Ela própria aju-

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dara a construir alguns. Quando o pai tinha uma idéia para aumentara casa, Brenna sentia o maior prazer em ajudá-lo, serrando e marte-lando. Algumas de suas lembranças mais felizes eram do trabalho aolado de Michael O’Toole, que gostava de assobiar enquanto fazia ascoisas.

Ela parou atrás do carro velho da mãe. Precisavam pintar aqueleferro velho, pensou Brenna, distraída, como sempre fazia. A fumaçasaía pela chaminé.

Lá dentro, havia aconchego e calor, o cheiro da comida damanhã. Ela encontrou a mãe, Mollie, na cozinha, tirando o pão doforno.

— Mãe...— Doce Maria, menina! Você me deu um susto.Com uma risada, Mollie pôs o tabuleiro em cima do fogão.

Virou-se para a filha, sorrindo. Tinha um rosto bonito, ainda jovem eliso, com os cabelos ruivos que legara à filha presos no alto da cabeça,por conveniência.

— Desculpe. Está ouvindo música.— É pela companhia.Mollie estendeu a mão para desligar o rádio. Por baixo da mesa,

Betty, a cadela amarela da família, virou-se e soltou um gemido.— Por que voltou para casa tão cedo? Pensei que tinha trabalho a

fazer.— Tinha. E tenho. Preciso ir à aldeia para ajudar papai. Mas pas-

sei no Faerie Hill para consertar o forno de Shawn.— Hum...Mollie virou-se, para tirar os pães do tabuleiro, e deixá-los numa

armação até esfriarem.— Shawn saiu antes que eu acabasse. Por isso, fiquei mais algum

tempo no chalé. — Quando Mollie tornou a soltar o mesmo grunhi-do distraído, Brenna mudou de posição. — E quando eu já ia sair...Lady Gwen apareceu.

— Hum... Como?Finalmente registrando as palavras da filha, Mollie virou a cabeça

para fitá-la.

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— Eu a vi. Eu estava tocando algumas notas no piano. Quandovirei a cabeça, avistei-a na entrada da sala.

— Deve ter sido um susto e tanto.Brenna suspirou. Mollie O’Toole era mesmo uma pessoa sensata,

abençoada fosse.— Fiquei tão atordoada que quase engoli a língua. Ela é mesmo

muito bonita, como a velha Maude costumava dizer. E triste. Umatristeza tão profunda que parte o coração.

— Sempre tive a esperança de vê-la. — Uma mulher prática,Mollie serviu duas xícaras de chá e levou-as para a mesa. — Só que issonunca aconteceu.

— Sei que Aidan falou durante anos que a via. E depois foi a vezde Jude, quando se instalou no chalé. — Relaxada de novo, Brennasentou-se à mesa. — Eu tinha acabado de conversar com Shawn sobreLady Gwen. Ele disse que nunca a vira... sentira, mas não vira. E, derepente, lá estava ela, aparecendo para mim. Por que acha que issoaconteceu?

— Não sei, querida. O que você sentiu?— Além de um choque pela surpresa, acho que compaixão. E

depois perplexidade, porque não entendi o que ela me disse.— Lady Gwen falou com você? — Os olhos de Mollie se arrega-

laram. — Nunca soube que ela tenha falado com qualquer pessoa.Nem mesmo com Maude, que teria me contado. O que Lady Gwendisse?

— O coração dele está na canção. E acrescentou que eu deveriaprestar atenção. Quando recuperei o controle, para perguntar o queisso significava, ela já havia desaparecido.

— Já que é Shawn quem mora ali agora, e era seu piano que vocêtocava, eu diria que a mensagem foi bastante clara.

— Mas escuto a música dele durante todo o tempo. Não se podeficar cinco minutos em companhia de Shawn sem ouvi-la.

Mollie fez menção de falar. Mas mudou de idéia. Limitou-se apôr a mão sobre a da filha. Sua querida Mary Brenna, pensou ela, tinhaa maior dificuldade para reconhecer qualquer coisa que não pudessedesmontar e montar de novo.

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— Eu diria que você vai acabar compreendendo, quando chegaro momento.

— Ela faz com que a gente sinta vontade de ajudá-la — murmu-rou Brenna.

— Você é uma boa menina, Mary Brenna. Talvez, antes que tudoacabe, você possa mesmo ajudá-la.

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