Jornal da ABI 403

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403 J ULHO 2014 CIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA PÁGINA 3 VIDAS IVAN JUNQUEIRA • MAX NUNES • RUBEM ALVES PÁGINA 7 ABI DE OLHO NO FUTURO PÁGINA 3 JUSTIÇA DEFINE DATA DA ELEIÇÃO GERAL Pela primeira vez na História, sócios de outros estados poderão votar.

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403JULHO2014

CIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

PÁGINA 3

VIDAS IVAN JUNQUEIRA • MAX NUNES • RUBEM ALVESPÁGINA 7

ABI DE OLHO NO FUTURO

PÁGINA 3

JUSTIÇA DEFINE DATADA ELEIÇÃO GERAL

Pela primeira vez na História, sócios de outros estados poderão votar.

2 JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

EDITORIAL

CICATRIZESeleição que se avizinha é a mais importanteda história da ABI. Ela vai decidir a sobrevi-vência e o futuro da Casa de Barbosa Lima

Sobrinho, a mais longeva guardiã das liberdades. Cri-ada em 1908 pelo visionário Gustavo de Lacerda, aentidade vive momentos extremamente delicados.

A solução dos problemas que sitiam e flagelamnossa querida ABI exige uma extraordinária capa-cidade de doação dos seus futuros dirigentes. Essatarefa não pode ser exercida por qualquer um. O novocomando da Casa deve ter prestígio, visibilidade ecompetência para enfrentar os desafios do futuro.Sou testemunha das dificuldades que se enroscam,como cipós, pelas dependências da ABI, depois detanto tempo de inércia. Apesar da determinação je-suítica da atual Diretoria não se pode medir o esfor-ço despendido, em poucos meses, para tentar rever-ter o quadro de descaso e abandono em que se en-contrava a entidade. Foi uma tarefa que exigiu enormedesprendimento e capacidade de trabalho.

Quando assumi a presidência da ABI, em feve-reiro deste ano, ela enfrentava grave crise estruturale de credibilidade que drenava o pouco prestígio deque ainda desfruta junto à classe jornalística e àsociedade brasileira. Fiz o possível para que a maisnotável trincheira contra o arbítrio e a opressão sereconciliasse com seu passado e voltasse a ocupar opapel que historicamente sempre foi seu. Foi umamissão quase impossível diante das cercas de ara-me farpado que encontrei, dentro da própria insti-tuição. As maiores dificuldades estão em setoresinternos, herança da antiga administração, que re-presentam o atraso e impedem a entidade de cres-cer. Não se pode admitir que grupos que ainda con-trolam setores importantes do Conselho Delibera-tivo bloqueiem, desde março, o ingresso de novossócios ao reterem, na gaveta, dezenas de propostasde filiação. Isso é inaceitável em uma entidade quedefende o direito e a defesa das liberdades.

Não tem sido fácil tentar resgatar o espaço que aABI perdeu entre as entidades mais representativasda sociedade civil. A Casa de Herbert Moses preci-sa alongar sua sombra e projetá-la sobre a vida po-lítica e social do País, sob pena de ver sua identida-de transformar-se na sombra de si mesma, a se des-fazer nas dobras do tempo.

Não devemos ter medo do novo. A ABI precisa alar-gar seus horizontes e se erguer para enfrentar de péos desafios do futuro. Faz-se necessário convocar asgerações mais jovens de jornalistas para que se en-volvam na reconstrução da nossa entidade, a fim deque ela seja realmente capaz de lutar por uma soci-edade mais justa, humana e igualitária.

Não tem sido uma tarefa fácil libertar a ABI dosliames que a impedem de avançar em direção à mo-dernidade. Eles resistem a qualquer processo de trans-formação, sugando as energias de uma instituiçãocentenária que precisa mudar rapidamente para não

desaparecer. Os inimigos do futuro utilizam-se detodos os recursos para impedir que ela receba umhálito de vida. Seu objetivo é manter a Casa dos Jor-nalistas como está, mumificada, para que possamcontinuar nela incrustados como os microorganis-mos que se hospedam no casco das embarcações.

Ao ser empossado no comando da ABI por deci-são judicial, ao conquistar um direito que me forausurpado, de forma despudorada, acreditava, am-parado nos meus 60 anos de jornalismo, que pudes-se trazer uma lufada de esperança para uma enti-dade que respirava com a ajuda de aparelhos. Nãoimaginava os obstáculos e as vilezas que enfrenta-ria para tentar fazer a ABI caminhar em direção aofuturo. Confesso minha perplexidade diante dasagressões que sofro até hoje por ter desafiado asconfrarias interessadas em manter a Casa de Fernan-do Segismundo no mundo das trevas.

Minhas fantasias começaram a se dissolver na ses-são do Conselho em que deveria ser empossado nocargo do então Presidente Maurício Azêdo, quatro diasapós a sua morte, traído pelo coração. Ao chegar deBrasília, em outubro do ano passado, na condição device-Presidente da ABI, fui vítima da primeira trapa-ça. Imaginei que a cerimônia de posse seria breve. Nãofoi o que aconteceu. Inicialmente pressionaram paraque renunciasse. Como resisti, cassaram meu man-dato. Num açodamento incompatível com a nature-za do nosso ofício, transformaram ilegalmente umasessão ordinária em extraordinária, e elegeram FichelDavit Chargel Presidente da entidade até 2016.

Maurício Azêdo, a quem conheci no velho Jornal doBrasil, nos anos 1960, se vivo fosse não permitiria ta-manha demonstração de violência e mesquinharia.Em 2010, havia aceitado seu convite para ser o vice naChapa Prudente de Morais, Neto. Nos conhecíamos hámais de 50 anos. Várias vezes cheguei a substituí-lo, aseu pedido, como seu representante e legítimo sucessor,em diferentes ocasiões. Com sua morte, que a todosabalou, acreditei que minha posse ocorreria de formaprotocolar. Jamais poderia supor que fosse publicamentetão humilhado. Naquela sessão tresloucada , onde asambições afloraram sem nenhum pudor, não se ouviunenhuma palavra em homenagem ao Presidente quefalecera quatro dias atrás. Estavam todos possuídospela ambição e pelo poder.

Em fevereiro deste ano, a justiça restituiu o man-dato que fora cassado, ao arrepio da lei, pelos meusantigos companheiros da Chapa Prudente de Morais,Neto. Nunca mais tive paz. Até hoje sou diariamen-te linchado por eles através das redes sociais.

Uma das primeiras iniciativas que tomei, ao res-tabelecer a democracia interna da entidade, com oretorno do primado do Colegiado, em substituiçãoao modelo centralizador da antiga administração,foi apedrejada pela internet de forma infamante. Adistribuição de tarefas entre os diretores, que elimi-nou em pouco tempo o quadro de apatia e abando-

no que colocara o edifício-sede à beira de um colap-so, foi objeto de toda sorte de aleivosias.

O programa de gestão compartilhada foi igual-mente alvejado com uma fúria doentia. O expressi-vo volume de obras em curso, o maior já registradonos últimos 40 anos na história da ABI, foi atacadopelos integrantes da chapa Prudente de Morais, Neto,de forma enlouquecida. Fui levado ao cadafalso semcompaixão. Qualificaram-me como um interventorambicioso interessado em postergar a realização deeleições para me perpetuar no cargo. Nada mais in-jurioso para um homem de 78 anos que dedicou maisde 60 à profissão que acreditava ser o reduto natu-ral das pessoas de bem, empenhadas na defesa dodireito e da verdade. Lamento ter cometido tamanhoequívoco nessa quadra da vida.

agressividade dos meus detratores, que usama internet como biombo e estilingue para meferir pessoalmente, lembrou-me a selvageria

do repulsivo Mensur alemão, duelo que ocorria entrequatro paredes e que tanto excitava os universitári-os, no final do século 19.

Nessas lutas de sabres, com os braços e o tóraxprotegidos por almofadas, não havia risco de mor-te. Não era a perspectiva de quem sairia vitoriosoque despertava o interesse do público. O que atraíaa platéia era a dimensão dos ferimentos que os luta-dores sofriam quase sempre em dois lugares: no topoda cabeça e no lado esquerdo do rosto. Pedaços decouro cabeludo e bochechas estavam sempre voan-do pelos ares, tingindo de vermelho paredes man-chadas de cerveja e sebo de vela.

As cicatrizes, na verdade, eram o que mais inte-ressava aos circunstantes. O público refestelava-secom o sangue e a profundidade dos ferimentos.

No Mensur à brasileira, a lâmina do sabre é substi-tuída pela infâmia e a calúnia. A incontinência verbalque prospera sem controle pelas redes sociais foi defi-nida pelo escritor mexicano Henrique Krauze como “odiscurso do ódio”. O mais longo dos prazeres, como ob-servou certa vez, Byron, em Don Juan, ao falar sobre asraízes do ódio. Instintos primitivos que afloram emtextos falsificados, onde fingem pregar a purificaçãodos costumes, apesar de exalarem enxofre.

Na hora de votar e escolher os novos dirigentesda Casa, o associado da ABI precisa ter o que os ale-mães chamam de Zeitgeist ; ou seja, “o faro para o ardo tempo”. O futuro da Casa dos Jornalistas estánas mãos do seu corpo social. Ele é quem escolheráo candidato e os integrantes da chapa que conduzi-rá a ABI através do rubicão. Nesse caminho sem volta,um erro de avaliação será fatal. Diante das mani-festações da natureza, com vento forte e mar enca-pelado, não podemos nos deixar arrastar pelo auto-engano. Escapar do naufrágio depende mais da cepadaqueles que estão no comando do que da madeirausada no casco da embarcação.

TARCÍSIO HOLANDAPRESIDENTE DA ABI

A

A

3JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

SÃO PAULO (CAPITAL)Rua Martinico Prado 26, grupo 31.

Santa Cecília (em frente ao Pronto-Socorro

da Santa Casa)

BELO HORIZONTERua Bahia 1.450, Centro

MACEIÓRua Sargento Jaime Pantaleão, 370

BRASÍLIASCLRN 704, Bloco F, loja 20

Asa Norte (DF)

SÃO LUÍSRua Assis Chateaubriand, s/n, Renascença II

Em cumprimento ao texto do acor-do judicial, o presidente Tarcísio Ho-landa solicitou pessoalmente ao Pre-sidente da OAB Nacional, Marcus Vi-nicius Furtado Coêlho, a indicação deobservadores da entidade em todos oslocais de votação. Marcus Viníciuscomprometeu-se a designar represen-tantes das entidades regionais da OABpara acompanhar todo o processo elei-toral. A Federação Nacional dos Jor-nalistas (Fenaj) vai também enviar ob-servadores a todos os locais onde ocor-rerá a eleição.

A votação será realizada na sede daABI, no Rio de Janeiro, e nos endereçosindicados no quadro ao lado. Até o diada eleição, os associados receberão in-formações mais detalhadas sobre oslocais de votação mais próximos dascidades onde moram ou trabalham.

Todos os associados, mesmo aque-les que se encontravam há vários anosafastados da entidade, foram anistia-dos e poderão participar da eleição de26 de setembro, mediante o pagamentodo mês de agosto. Os sócios de qual-quer cidade do País poderão votar emum desses locais. Basta apresentar acarteira social, documento de identi-dade e o comprovante de quitação da

mensalidade. Aqueles que, por qual-quer motivo, não tenham recebido oboleto bancário pelos Correios pode-rão quitar seu débito no próprio localde votação. O pagamento (R$35,00)será efetuado contra-recibo, através detalonário próprio, emitido pela Tesou-raria da ABI. As dúvidas serão dirimi-das na hora, através de consulta viaSkype, com os funcionários da sede, noRio, colocados à disposição das repre-sentações estaduais, no dia da eleição.

A votação eletrônica, via internet,ou através da opção telefônica 0800,contestada em juízo pelo representante

A juíza Maria da Glória Bandeira deMello, da 8ª Vara Cível da Comarca doRio de Janeiro, marcou as eleições ge-rais da ABI para 26 de setembro. A novadata, fixada durante uma audiência deconciliação, foi conseqüência da avalan-che de recursos impetrados por integran-tes da Chapa Prudente de Morais, Neto,contrários à votação eletrônica e à co-locação de urnas nas representaçõesestaduais da entidade. A juíza haviamarcado inicialmente as eleições para1º de agosto, mas resolveu adiá-las atéque as partes chegassem a um acordo.

OAB vai acompanhar o pleito

JUSTIÇA MARCA NOVADATA DA ELEIÇÃO

A nova data foi fixada depois de julgados os recursos impetrados por integrantes da Chapa Prudente de Morais, Neto,contrários à votação eletrônica e à colocação de urnas nas representações estaduais da Casa dos Jornalistas.

DEMOCRACIA

Os representantes da Chapa Pru-dente de Morais, Neto, queriam que avotação fosse inicialmente realizadaem 11 de julho, antevéspera da finalda Copa do Mundo, o que foi negadopela juíza. A decisão foi, entretanto,contestada nos autos, sob a alegaçãode ser “uma falácia absoluta utili-zar a Copa como pretexto para pos-tergar a realização das eleições” (pá-gina 792 do processo). Na mesma pe-tição, os advogados da Chapa Prudentede Morais, Neto sustentaram que opleito não poderia também ser realiza-

do em todo o País, mas só no Rio deJaneiro, “considerando-se a impos-sibilidade de se montar tesourariasem diversos Estados do Brasil” (pá-gina 797). O mesmo documento afir-mou que “é da tradição da Casa” arealização de eleições apenas na sededa entidade, “não havendo razão,quer de ordem legal, quer de ordemprática, para se alterar tal costume”(página 791).

Como não havia consenso em rela-ção à data e aos locais de votação, ajuíza Maria da Glória Bandeira de Mello

convocou uma audiência de concilia-ção em 4 de agosto. No acordo firma-do entre as partes, que tem força dedecisão legal, foi decidido que serãorealizadas eleições gerais na sede daABI, no Rio, e nas representações es-taduais da entidade localizadas em SãoPaulo, Brasília, Belo Horizonte, Maceióe São Luís. No mesmo documento fi-cou estabelecido que a votação eletrô-nica só deverá ser adotada a partir de2015, quando ocorrerá a eleição paraa renovação do terço do Conselho De-liberativo da entidade.

da Chapa Prudente de Morais, Neto,que postulava a realização de eleiçõessó no Rio de Janeiro, impediu que todoo corpo social da ABI se manifestasselivre e democraticamente sobre a esco-lha dos novos dirigentes da Casa. Ape-sar de se submeter à decisão judicial,a atual Diretoria da ABI pretende cor-rigir essa anomalia nas eleições do ano

que vem. Não se pode admitir que as-sociados, por trabalharem e residiremem outras cidades, não possam serouvidos sobre os destinos da entida-de a que estão filiados. É inaceitávelque, por motivos políticos, sejam emu-decidos e tratados como “jornalistas desegunda classe”, em uma instituiçãoque prega a defesa das liberdades.

REREREREREPPPPPRRRRREEEEESSSSSEEEEENTNTNTNTNTAAAAAÇÕEÇÕEÇÕEÇÕEÇÕES - LOCS - LOCS - LOCS - LOCS - LOCAIAIAIAIAIS DE VS DE VS DE VS DE VS DE VOOOOOTTTTTAAAAAÇÃOÇÃOÇÃOÇÃOÇÃO

RAUL AZÊD

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Tarcísio Holanda cumprimenta o Presidente da OAB Nacional, Marcus Vinicius FurtadoCoêlho, que irá indicar observadores da entidade em todos os locais de votação.

4 JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

O hall recebeu novas luminárias e o prédio começa a ganharcara nova. Estão sendo trocadas quase duas toneladas e meia

de placas de mármore italiano em toda a fachada da ABI.

O programa de intervenções imediatas adotado pela atual Diretoria, nosúltimos meses, mudou a cara da ABI , além de impedir que o EdifícioHerbert Moses entrasse em colapso, depois de longo período de desca-so e abandono. O conjunto de providências conduzido pelos diretoresDomingos Meirelles e Orpheu dos Santos Salles destinou-se à recupe-ração de setores vitais da Casa, registrados no laudo de vistoria realiza-do em 2012 pelo arquiteto Fernando S. Krüger. Apesar dos problemasterem sido diagnosticados como de “caráter urgente”, nada foi feito, nos

últimos dois anos, para sanar pen-dências que colocavam em risco nãosó a segurança dos associados comoa dos inquilinos do prédio. Entre asmedidas emergenciais, apontadaspelo arquiteto, estava a substitui-ção imediata dos cabos dos eleva-dores, que só vieram a ser trocadosdois anos depois, juntamente comas 24 escovas dos motores.

Uma intervenção que merecedestaque especial é a obra da fa-chada que deveria ter sido inicia-da em fevereiro de 2013. A ABI foiobrigada a comprar recentemen-te cerca de duas toneladas e meia

de lajotas de mármore italiano travertino para substituir as placas quese encontram estufadas ou trincadas nas duas faces do prédio. O esta-do de deterioração das placas representava grave ameaça para as pesso-as que circulavam pelas calçadas da ABI, tanto na Rua México como naAraújo Porto Alegre. A reforma da fachada, que exige mão de obra espe-cializada, deverá ser concluída até o final de outubro.

VIDA NOVAA instalação de novas luminárias, na portaria central, deu também

vida nova ao prédio. A portaria deixou de exibir aquele aspecto lúgu-bre e cavernoso que durante décadas marcou a entrada da sede da ABI.O piso de granito do hall principal, cujo aspecto encardido causavamá impressão a quem entrava ou passava pelo edifício-sede, foi to-talmente polido e encerado. O piso não recebia nenhum tipo de tra-tamento há mais de 40 anos, quando foi realizada a última grande re-forma do prédio.

Uma casaem obras

ACONTECE NA ABI

5JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

FOTOS RAUL AZÊDO

O conjunto de intervenções imediatas recuperou a central de ar-con-dicionado em duas semanas. O equipamento encontrava-se paralisa-do, há cerca de um ano, privando a ABI de importante fonte de receitaalternativa representada pelo aluguel do auditório, que se encontravafechado desde outubro de 2013. Com o conserto da central de ar-condicionado, o auditório passou a ser alugado quase todos os dias. Asubstituição de encanamentos comprometidos pelo uso e pelo tempomelhorou a pressão do sistema hidráulico, ao permitir que a água vol-tasse a circular por todas as dependências do prédio, o que não ocorriahá mais de um ano. As letras ABI que se destacam na entrada principal,há muito que haviam perdido a cor. Na semana passada, voltaram a exibiro brilho original, depois de receberem um banho de metal.

As bombas d’água foram reformadas (acima) e o canos enferrujados (abaixo), substituídos.Com isso, a pressão do sistema hidráulico melhorou em todo o prédio.

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ASSOC IAÇÃO BR AS ILE IR A DE IMPRENSA

EDITAL DE CONVOCAÇÃOASSEMBLÉIA-GERAL ORDINÁRIA

Nos termos do artigo 20 do Estatuto da Associ-ação Brasileira de Imprensa-ABI, e obedecendoa decisão do juízo da 8ª Vara Cível, são convoca-dos os associados quites com suas obrigações es-tatutárias a se reunirem em sua sede, na Rua Ara-újo Porto Alegre, 71, 9º andar, Centro, Rio de Ja-neiro, no dia 25 de setembro do corrente ano, às10 horas, para: 1) tomar conhecimento do Rela-tório da Diretoria, do Parecer do Conselho Fiscale da decisão do Conselho Deliberativo sobreaquele e este e para discutir e resolver assuntosque lhe forem apresentados pela Diretoria ou porassociados por intermédio da Mesa; no dia 26 desetembro do corrente ano, das 10 às 20 horas, nasede da entidade, à Rua Araújo Porto Alegre, 71,9º andar, Centro, Rio de Janeiro; e nos seguintesendereços; em São Paulo, à Rua Martinico Pra-do, 26, Grupo 31, Santa Cecília, Cep 01224-010(SP); em Belo Horizonte, à Rua da Bahia, 1450 –Centro, Cep 30160-011 (MG); em Brasília, à

ASSENTADAEm 4 de agosto de 2014, às 14h01,

nesta cidade, na sala de audiências doJuízo da 8ª Vara Cível da Comarca daCapital, onde se encontrava presente DrªMaria da Glória Oliveira Bandeira deMello, Juíza de Direito, para a realizaçãode Audiência Especial. A hora designada,aberta a audiência depois de regularmen-te apregoadas, responderam as partes eseus patronos. Presentes na presenteaudiência o autor Domingos João Meire-lles, atual diretor financeiro, MarcosAntonio Mendes de Miranda, Conselhei-ro Suplente do conselho deliberativo,Roberto Monteiro de Pinho, atual secre-tário da diretoria executiva, com seusrespectivos advogados. O objetivo dapresente audiência foi tentar um consen-so entre as partes para viabilizar a curtoprazo as eleições da ABI, cessando a situ-ação atual de administração provisória,cuja duração obviamente não se faz idealpara a entidade, impondo-se a situaçãodefinitiva que consolidará pelas eleições.Em que pese as impugnações a reunião doconselho deliberativo cuja ata segue às fls.795/797, mormente no que tange aoquórum concordam as partes, inclusive oautor para efeito conciliatório sem pre-juízo de seu entendimento, que serámantida as deliberações da referida reu-nião no que tange à eleição da Comissão.Quando da discussão eleitoral apenascom a substituição do Sr. Orfeu SantosSales pelo Sr. Roberto Monteiro de Pi-nho. A ré se compromete a no prazo de 48horas trazer a declaração do referidoconselheiro Orfeu de que desiste de suaparticipação na Comissão. Quando dadiscussão da substituição foi levantadopelo patrono do assistente a impossibili-dade do Sr. Roberto participar da comis-são com direito a voto tendo em vista ocargo atualmente por ele ocupado o queencontraria óbice estatutário. Foi, toda-via ponderado inclusive com a interfe-rência da Magistrada, que independente-mente da discussão quanto ao impedi-mento estatutário a aceitação do Sr. Ro-berto com direito a voto disponibiliza-ria finalmente a formação da comissão,considerando-se que esta também é ocu-pada por membros da outra chapa, encon-trando-se assim um equilíbrio com rela-ção à posição deste. Acresce-se que a con-vocação de uma nova reunião do Conse-

A AUDIÊNCIA QUEPROMOVEU O ACORDO

Texto do acordo judicial firmado em 4 de agosto, na sala de audiência da 8ª Vara Cível da Comarca daCapital do Rio de Janeiro, onde foi fixada a data de 26 de setembro para a realização das eleições da ABI.

lho para o mesmo fim, além de retardar odesfecho da questão, ainda poderia sedeparar com a dificuldade de quórum quetambém impossibilitaria nova delibera-ção a curto prazo. Fica todavia desde logoconsignado que a inclusão do Sr. Rober-to com o voto é feita na situação especí-fica que ora se decide, atendo por objeti-vo como visto acima a solução de umconflito não implicando de forma algu-ma interpretação em qualquer sentidocom relação às disposições estatutárias arespeito. Com a formação da comissãonos moldes supra se prosseguirá o proces-so eleitoral em seus regulares trâmitesinclusive com a inclusão dos membrosindicados pela chapa. Com relação à for-ma de votação ficou assentado que avotação eletrônica se faz precipitada parao próximo certame tendo em vista que asituação de litígio demandaria providên-cias mais cautelosas para este fim, inclu-

sive com contratação de empresa escolhi-da em consenso o que sem dúvida impli-caria em um inevitável atraso e quiçáimpedimento do prosseguimento regulardo certame. Ficou todavia assentado queem nome de uma maior transparência, esalvaguarda em relação a futuros questi-onamentos quanto a restrição do eleito-rado, que serão colocadas urnas para vo-tação nas unidades representativas daAssociação, quais seja; Brasília, São Pau-lo, Belo Horizonte, Maranhão e Alagoas.A administração colocará no site à dispo-sição dos eleitores boleto para pagamentode suas mensalidades. Será feito ainda umcontrole para verificação quanto aoadimplemento dos eleitores quando davotação. As eleições se realizarão nos dias25 e 26 de setembro de 2014. Ficadeliberado ainda que o exame de aceita-ção dos novos sócios se fará já sobre agestão da administração a ser eleita, evi-

tando-se assim discussões acerca da lisu-ra do pleito. Foi deferido o pedido deassistência de Marcos Miranda. Fica as-sentado que os Editais das eleições serãoelaborados e publicados pelo ConselhoDeliberativo dentro das diretrizes fixa-das neste fato. Fica ainda assentado quea atual Diretoria deverá se abster de pu-blicações no site da Associação e no seujornal que envolvam nomes de represen-tantes das chapas concorrentes no con-texto das eleições, sob pena de ter de con-ferir o mesmo espaço a tais chapas pararesposta. Pelo autor foi requerido, aceitopelas demais partes e deferido pelo Juízoa expedição de Ofício à OAB para desig-nação de um representante da OAB noslocais de votação, ressaltando-se que ten-do em vista não ser um nome de consen-so, não será publicada no site e no Jornalda Associação. Nada mais havendoencerro presente às 15h43.

SCLRN 704 – Bl. F. Loja 20, Cep 70.730-536; emMaceió, à Rua Sargento Jaime, 370 – Prado, Cep57010-200 (AL); e em São Luís, à Rua Assis Cha-teaubriand SN – Renascença II – Cep 65.075-670(MA), para eleger: a) o Conselho Consultivo; b)o Conselho Fiscal; c) a Diretoria; d) dois terçosdo Conselho Deliberativo, efetivos e suplentes. ORelatório da Diretoria estará a disposição dos as-sociados a partir de 11 de setembro, na Secreta-ria da ABI. As chapas concorrentes, devidamentecompletas, deverão ter sido registradas no perí-odo de 28 de agosto a 6 de setembro, nos ter-mos do artigo 19 e 21 do Regulamento Eleitoralaprovado pelo Conselho Deliberativo da ABI em17 de fevereiro de 2014.

Rio de Janeiro, 15 de agosto de 2014

Vitor IórioPresidente do Conselho Deliberativo

JUSTIÇA

7JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

Homem de índole gozadora e literaturadiversificada, João Ubaldo, morto aos

73 anos, foi escritor múltiplo, quedeixa clássicos contemporâneos,

livro de contos inacabadoe roteiro inédito.

O SORRISOLARGO DO

GAIATO

POR MÁRIO MOREIRA

HOMENAGEM

m intelectual diferente – popular, gozador e meio macunaímico. Ao mesmo tempo,

profundo em sua literatura e arguto conhecedor da história e da alma brasileiras.

Essa é uma definição possível para o escritor, jornalista e acadêmico João Ubaldo Ribeiro,

morto aos 73 anos no último dia 18 de julho, no Rio, vítima de embolia pulmonar. Autor de pelo menos

dois clássicos contemporâneos – Sargento Getúlio e Viva o Povo Brasileiro, ambos ganhadores do

Prêmio Jabuti –, João Ubaldo deixa um livro de contos inacabado (Noites Lebloninas) e um roteiro

cinematográfico ainda inédito (O Sonho Erótico de Eugênia Mota), escrito em parceria com o

dramaturgo Domingos de Oliveira. Além de, talvez, um número incerto de poemas escritos em inglês.

Esse homem múltiplo, nascido na ilha de Itaparica, na Baía de Todos os Santos, Bahia, com formação

em Direito e Ciência Política, detinha também o Prêmio Camões, maior honraria para autores de

Língua Portuguesa, recebido em 2008. Mas sua obra já de há muito ultrapassara as fronteiras da

literatura, transbordando para o cinema, o teatro e a televisão.

O estilo marcadamente irônico e descontraído se fazia presente tanto nos escritos quanto na vida pessoal

de João Ubaldo. Se a informalidade – da linguagem, dos personagens, das situações – é uma das marcas

da sua literatura, foi também a principal característica do modus vivendi ubaldiano, fosse em

Itaparica ou no botequim que freqüentava no Leblon, no Rio, onde passou os últimos 23 anos.

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8 JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

Seus amigos, conhecidos e companhei-ros de Academia Brasileira de Letras o re-tratam como um sujeito despojado, qua-se sempre de bem com a vida, alegre e con-tador de causos, que preferia a bermudae o chinelo de dedo ao fardão acadêmico– alguns imortais, embora lhe enaltecen-do a obra, não deixam de observar queUbaldo pouco freqüentava a Casa deMachado de Assis, apesar de ter perten-cido a ela por 20 anos. Nem mesmo aostradicionais chás das terças e quintas eleia. Preferia mesmo um chopinho com osamigos do Leblon.

CONVERSA DE BOTEQUIMEra nessas ocasiões que o escritor se

embebia do mundo ao redor e, conscien-temente ou não, buscava inspiração parao trabalho. Ubaldo era habitué do Tio Sam,legítimo boteco carioca situado na RuaDias Ferreira, a duas quadras do seu apar-tamento. Rumava para lá todos os sába-dos, domingos e feriados. Aparecia porvolta das 11h30 com seus indefectíveischinelo de dedo, bermudão e camisa xa-drez. Se instalava em sua cadeira cativa,numa mesa na parte externa do bar, logona entrada. Chegava de mansinho, cum-primentava os amigos, pedia um chope –ou, conforme a fase, um prosaico guara-ná zero – e dedicava-se a seu passatempofavorito: jogar conversa fora.

Quando não encontrava nenhum dosparceiros da turma, telefonava para con-vocá-los, conta Roberto Ortega, freqüen-tador da mesa de Ubaldo e ele próprio umdos convocáveis. “Ele só falava sacana-gem, abobrinhas”, narra. Segundo seuirmão Eduardo Ortega, também freguêsdo bar, Ubaldo dizia que tanto o pai quan-to o avô tinham morrido aos 73 anos ecomentava a seguir: “Eu consegui passar”.“Para mim, no fundo ele tinha medo dechegar a essa idade”, avalia Roberto.

Outro cliente do botequim, ArturRey, embora fosse apenas um admiradorde Ubaldo, puxou conversa com eleduas vezes para falar sobre experiênciasde vida. “Não era uma pessoa espalhafa-tosa: chegava sempre na dele, queria vi-ver como um ser humano qualquer. Oimportante era estar no meio do po-vão”, acredita Rey. “Nas crônicas a gen-te percebia que ele tirava aquilo da vida,do cotidiano.”

O garçom José Pereira Rodrigues, hádez anos na casa, conta que Ubaldo pediasempre camarão à milanesa com arroz àgrega ou então tournedô mal passado comarroz e farofa de ovo. “A gente já pergun-tava: camarão ou carne?”. Para beber, oescritor limitava-se nos últimos temposa meros dois chopinhos. O expediente nobar terminava por volta das 14h30, nomáximo.

Segundo o dono do estabelecimento,o português Francisco Simões Esteves, oChico, João Ubaldo assistia aos jogos doBrasil nas Copas do Mundo de sua mesano Tio Sam – isso quando não estava nos

locais da competição, a trabalho. Foi dacadeira cativa no bar que viu a melancó-lica participação brasileira no últimoMundial, incluindo os 7 a 1 para a Alema-nha. “Ele ficou revoltado, chateado mes-mo”, conta Chico. Mas não chorou nemfez discurso sobre o papelão.

ATUALIDADEOs números de sua obra reforçam a

imagem de um escritor eminentementepopular. Nos últimos 15 anos, desde queela passou a ser publicada pela EditoraObjetiva/Alfaguara, João Ubaldo Ribei-ro vendeu ao todo 363 mil exemplares. Olivro que mais saiu nesse período foi ACasa dos Budas Ditosos, com 220 mil. Vivao Povo Brasileiro vendeu 35 mil somentenos últimos cinco anos. De acordo coma Objetiva, estima-se que as vendas doclássico lançado em 1984 alcancem 200mil exemplares por outras editoras.

Candidato à vaga de João Ubaldo naAcademia, o escritor e jornalista ZuenirVentura destaca a preocupação do ami-go com a atualidade, tanto nos roman-ces quanto nas crônicas. “Ele estava sem-pre pensando o Brasil e seus problemas,mazelas, momentos de grandeza. Comofoi jornalista, era muito ligado às ques-tões atuais.”

Zuenir conheceu o colega baiano naprimeira metade dos anos 1970, quandofoi a Salvador entrevistar o escritor Jor-ge Amado. Outro filho da terra, o cine-asta Glauber Rocha, o estimulou a co-nhecer Ubaldo, seu amigo de infância.O conselho foi reforçado pelo próprioAmado. “Simpatizei logo com ele, eramuito carinhoso e envolvente, comaquele sorriso e aquela voz de barítono.Mas também havia quem antipatizasse,porque era um temperamento muitoextrovertido”, conta Zuenir.

Ele e Ubaldo firmaram então umaamizade à distância, já que o baiano foiviver no exterior e os dois se encontra-vam esporadicamente, em feiras de livros.Numa dessas ocasiões, em 1986, em Paris,Zuenir flagrou Ubaldo burlando a proi-bição médica de ingerir bebida alcoólica.“Eu o peguei com um copo de uísque nobar do hotel e ele disse: ‘Tô aqui toman-do meu guaraná..’. Como se em Paris sevendesse guaraná...”, relembra, rindo, oautor de Cidade Partida.

O jornalista assinala que, mesmo sen-do uma espécie de herdeiro literário deJorge Amado, Ubaldo trilhou um rumodiferente, escapando do estilo Bahiamística e sensual. “Isso dá idéia da inde-

pendência estética, literária e até mesmopolítica dele, diferente do Jorge, que eracomunista militante. Jorge Amado era umdeus, uma pessoa adorável, generosa, queabrigava todos aqueles jovens, e seriamuito fácil trilhar o mesmo caminho li-terário. E o João Ubaldo manteve suaoriginalidade, um caminho próprio, massem antagonismo”. Zuenir desconfia atéque, em sua baianidade, Ubaldo – que sedefinia como um “cético político” – nu-trisse certa admiração por Antonio Car-los Magalhães, a exemplo de Glauber eJorge Amado. “Os dois achavam que oACM fez muito bem à Bahia. Nesse sen-tido os baianos são muito baianos!”.

O lado cronista de Ubaldo, exercitadoao longo dos últimos anos nas ediçõesdominicais de O Globo, também é lembra-do por Zuenir. “Às vezes as crônicas erammais políticas, muito enfáticas nas crí-ticas, fossem contra o Fernando Henri-que ou o Lula. Por outro lado, mantendoo pé presente na atualidade, ele introdu-zia os personagens de Itaparica, essascoisas mais engraçadas, folclóricas.” Se-gundo Zuenir, na vida real o amigo eratambém um grande contador de históri-as. “Numa roda, ele monopolizava as con-versas, até pelo vozeirão. Eram históriasdele, do botequim, de Itaparica. E tinhauma gargalhada interminável. Olhando,você não tinha idéia de que ali havia umintelectual. Era um personagem rico emultifacetado.”

Um desses causos, narrado pelo pró-prio Ubaldo, foi exibido recentementepelo programa de tv Observatório da Im-prensa e remete ao jogo Brasil x Áustria,

HOMENAGEM O SORRISO LARGO DO GAIATO

“Ele estava semprepensando o Brasil e

seus problemas,mazelas, momentosde grandeza. Comofoi jornalista, eramuito ligado às

questões atuais.”

LEO PINHEIRO/VALOR/FOLHAPRESS

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pela Copa de 1958: “Quando Nilton San-tos fez o gol, eu estava dando descarga nobanheiro. A partir daí, toda vez que oBrasil ia ao ataque meu pai me mandavacorrer para o banheiro e dar descarga”,contou ele, dando risada.

Engana-se, porém, quem pensa que oescritor se limitava aos causos e amenida-des. O poeta Geraldinho Carneiro, gran-de amigo de Ubaldo, relata conversasintermináveis, freqüentemente sérias eprofundas, nas mesas do restauranteDiagonal ou da pizzaria Guanabara,ambos também no Leblon, onde os doisse encontravam pelo menos uma vez porsemana. “Ele não gostava de falar de lite-ratura, aliás nem eu, e acabávamos falan-do. Mas conversávamos sobretudo davida. Ele ficava como um guia meu, falan-do da decrepitude futura que ia me atin-gir, já que sou 11 anos mais novo. Às ve-zes era jocoso, às vezes melancólico, pro-fético ou metafísico. Isso nos permitiaconversar horas sem cansar. Amigos meusbrincavam dizendo que nós tínhamos umcaso”, diverte-se Geraldinho.

O poeta conta que viu Ubaldo pelaúltima vez oito dias antes da morte doamigo, quando foi incitá-lo a escreversuas memórias e até sugeriu quatro mode-los literários diferentes, recomendandoque lesse alguns memorialistas famosos.“Não posso ler, senão plagio”, respondeuUbaldo, que na verdade não se empolgoucom a idéia das memórias: “Vou esperarficar velho”.

Ainda segundo Geraldinho, Ubaldo“demorava muito a gestar um livro”, masnão a escrevê-lo – redigia em média duas

páginas por dia. “O curioso é que primeiroele fazia o título, depois a epígrafe, e sóentão escrevia a história. Começava sem-pre de um esboço vaguíssimo, sem tercerteza do caminho a tomar.”

FORMAÇÃO DO PAÍSEntre seus pares de Academia, Ubaldo

desperta comentários de grande admira-ção. Para o poeta e africanólogo Albertoda Costa e Silva, ganhador do PrêmioCamões deste ano, Viva o Povo Brasileironão é apenas um romance. “Sendo ficção,é na verdade um tratado sobre o Brasil,sob a perspectiva da visão que o brasilei-ro tem de si e da formação do País. É umainterpretação do Brasil tão importantequanto as de Gilberto Freyre, Caio PradoJr., Florestan Fernandes ou Darcy Ribei-ro. Ele próprio me dizia, referindo-se aosmeus livros: ‘Você não se esqueça que aminha formação é também altamenteantropológica.’ E era verdade”, comentaCosta e Silva. Seu colega Cândido Men-des destaca no livro o “ineditismo doponto de vista de criar um épico brasilei-ro”. Para ele, o livro contém “a decanta-ção da cultura brasileira”.

Outros imortais exaltam igualmenteViva o Povo Brasileiro e Sargento Getúlio, quedeu a João Ubaldo o Jabuti de 1972, nacategoria revelação de autor. “Com essesdois livros, ele revolucionou a arte doromance no Brasil”, resume Cícero San-droni. “São obras-primas da literaturanacional”, define o Presidente da ABL,Geraldo Holanda Cavalcanti.

Nascido no sertão baiano, o acadêmi-co Antônio Torres prefere enaltecer tex-

tos menos falados do conterrâneo, comoo conto Era Diferente o Dia de Matar o Porco.“A leitura desse texto, que narra a mortevista por um menino, me remeteu muitoà minha infância na Bahia. E lembra umconto de Guimarães Rosa, As Margens daAlegria, em que um menino vê um perutendo a cabeça cortada”. Torres destacaainda A Casa dos Budas Ditosos (“umaproeza, mesmo sendo feito por encomen-da”) e O Albatroz Azul, último romance doJoão Ubaldo, lançado em 2009 (“um livropouquíssimo falado, que aborda vida,morte e renascimento”).

Para Cícero Sandroni, a obra de Ubal-do reflete um homem “de uma culturaenorme, leitor dos clássicos portuguesese brasileiros, europeus e americanos”. Atambém imortal Nélida Piñon vê uma“feliz combinação do culto e erudito como popular e uma oralidade muito rica, atémesmo escatológica. Nos momentos deerotismo, ele se expressa por um léxicomuito sofisticado, com uma impetuosi-dade absoluta”, analisa a escritora.

Embora lamentassem a pouca assidui-dade do colega baiano à ABL, os acadêmi-cos guardam uma lembrança carinhosa deJoão Ubaldo. “Viajamos muito juntos. Euadorava dar palestras com ele, tinha umaverve inacreditável”, diz Antônio Torres.Outro acadêmico, Arnaldo Niskier, lembra-se de uma palestra de Ubaldo a que assistiuna Sorbonne, em Paris. “Ele falou sobre Vivao Povo Brasileiro para 120 alunos e foi aplau-dido de pé, mas ficou sem jeito, não sabiaonde pôr as mãos. Era muito cheio de cau-sos, e a gente ria muito. Alguns eu descon-fio que ele inventava na hora”, diz.

“Era um homem muito agradável, doriso, que deixou em nós a melhor imagem.Tinha um jeito irônico, mas sempremuito fino, com uma certa jocosidade quealiviava essa ironia”, afirma GeraldoHolanda Cavalcanti. “Acho que ele nãovinha porque não usava paletó e gravata”,conclui, rindo.

CINEMA E TVA primeira obra de João Ubaldo a ser

adaptada para outra linguagem foi SargentoGetúlio, que o cineasta Hermano Penna ro-teirizou (junto com Flávio Porto) e dirigiu.O filme foi rodado em 1978, mas só fina-lizado em 1982. No ano seguinte, recebeudiversos prêmios no Festival de Gramado,incluindo o de melhor filme e o de melhorator para Lima Duarte, no papel do sargen-to que recebe a missão de levar um prisi-oneiro, inimigo de seu chefe político, dePaulo Afonso até Aracaju. O quadro polí-tico muda no meio da história e a missãoprecisa ser abortada, mas Getúlio insisteem levá-la até o fim a todo custo.

Segundo o diretor, uma produtora pau-lista, a Blimp Filmes, ganhara um concur-so da Embrafilme para rodar clássicos daliteratura brasileira e o convidou para apre-sentar um projeto. Um amigo lhe sugeriuentão filmar Sargento Getúlio. “Li e fiqueiencantado pela beleza e perfeição literá-ria. Foi um encontro com as minhas raí-zes, já que sou do Crato, no Ceará”, dizHermano Penna. Após a aprovação doprojeto, o cineasta foi à Bahia falar comJoão Ubaldo. “Antes eu cheguei a ler olivro em voz alta para o Flávio Porto duasvezes, explicando as expressões regio-nais. O Ubaldo ficou impressionado: ‘Pô,você conhece mais o meu livro do que eu!’”,conta o diretor.

“Muita gente já tinha querido filmaro livro. O Ruy Guerra chegou a escolheros atores e as locações. Ainda retardei umpouco o projeto porque li que o Glaubertambém pensava em filmar, e falei issopro Ubaldo, mas ele respondeu ‘Que nada,é conversa de Glauber, venha falar comi-go!’. Ele disse que já tinha uns oito rotei-ros do filme e me ofereceu para ler, masrecusei, para não me influenciar. Aí pas-samos quatro dias seguidos nos encon-trando”, conta Penna.

A idéia de convidar Lima Duarte foi daprodutora. “A história é absolutamente amesma do livro. O sofrimento em adap-tar foi a impossibilidade de filmar algu-mas cenas por restrição orçamentária. OLima já conhecia o personagem e cobrouum cachezinho bem baixo”, lembra ocineasta. “Ele vinha de fazer o Zeca Dia-bo (personagem de O Bem-Amado, nove-la da Globo) e quis trazer um pouco des-se personagem para o Getúlio, mas deci-dimos que não seria por aí.”

Hermano Penna conta que a críticaliterária norte-americana Judy Stonehavia lido o livro, um monólogo, e disse-ra que ele era infilmável. “Um dia ela co-mentou isso com o Hector Babenco, que

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No escritório de seu apartamento, no Leblon, o lugar de trabalho (esquerda). Para buscar inspiração, sua mesa no boteco Tio Sam era o ponto certo.

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Uma obra de tal maneira híbrida, diversificada e ori-ginal que se torna impossível classificá-la em qualquervertente da literatura brasileira, pois dialoga com to-das elas. É assim que uma das maiores especialistas emJoão Ubaldo Ribeiro, Rita Olivieri-Godet, vê a obrado escritor baiano. “A diversidade temática e a maes-tria em manipular os múltiplos registros lingüísticosfazem de cada romance de João Ubaldo uma obrasingular”, afirma ela. Professora titular de LiteraturaBrasileira da Universidade de Rennes 2, na França,Rita é autora do ensaio Construções Identitárias na Obrade João Ubaldo Ribeiro, que em 2010 recebeu o primeiroprêmio na categoria de ensaios críticos literários daUBE-RJ (União Brasileira de Escritores).

Em sua avaliação, não é possível sequer falar de in-fluências, “mas de diálogos fecundos” entre a obra deUbaldo e a tradição literária universal e brasileira.“Quando você lê João Ubaldo, a depender do texto,encontra referências explícitas e/ou sutis a WalterScott, Alexandre Dumas, Euclides da Cunha, Cervan-tes, Shakespeare, Dostoiévski, Mário de Andrade, DarcyRibeiro, Camões, Jorge Amado, Homero, Antônio Vi-eira, enfim, todos os que o formaram e fizeram dele umdos maiores escritores da língua portuguesa.”

Ainda segundo ela, Ubaldo dialogou, entre outros,com o Regionalismo brasileiro, “inovando-o ao escre-ver duas obras-primas, Sargento Getúlio (1971) e Vila Real(1979)”. O autor, diz, “compartilha com Jorge Amadoa exuberância, a irreverência, o humor, a admiraçãoe o respeito pela cultura popular afro-brasileira e, so-bretudo, a liberdade de pensamento, mas traça seu pró-prio caminho”.

Dentre os livros de João Ubaldo, Rita Olivieri-Go-det considera Viva o Povo Brasileiro (1984) o mais com-pleto, “exatamente porque ele condensa, no amplopainel que elabora revisitando quatro séculos de his-tória do Brasil, temáticas e estilos de romances ante-riores e posteriores”. Nele, afirma a estudiosa, Ubal-do “revisita as diversas visões interpretativas produ-zidas por intelectuais e escritores, ao longo dos sécu-los, questionando o exercício do poder em todos os ní-veis, discutindo os diferentes projetos identitáriosque integram o processo de construção da nação e in-corporando uma multiplicidade de pontos de vista”.

Dos muitos personagens criados por Ubaldo, o quea professora mais destaca é Maria da Fé, filha de umanegra estuprada por um representante das elites bra-sileiras em Viva o Povo Brasileiro. O itinerário da he-roína, diz, “é marcado pela experiência da segregação,da injustiça e dos preconceitos que marginalizam osnegros e pobres que constituem o povo do Recônca-vo, metonímia do povo brasileiro, herói anônimo doromance”.

A pesquisadora considera que, por todas as suasqualidades, Ubaldo é não somente um dos maioresescritores brasileiros, mas um dos maiores escrito-res contemporâneos. “Quanto aos que podem julgarum exagero equipará-lo aos melhores escritores bra-sileiros, convido-os a ler a obra de João Ubaldo, por-que só pode duvidar disso quem a desconhece ou entãoaqueles que elegem um modelo literário único comoexpressão máxima de ‘qualidade literária’. Lendo JoãoUbaldo também irão perceber que o interesse e a ri-queza da vida, e da literatura que a reinventa, estãona diversidade.”

Hibridismo torna obrainclassificável, diz estudiosa

O livro de contos que João UbaldoRibeiro escrevia nos últimos tempos,Noites Lebloninas, era inspirado notranqüilo bairro do Leblon, no Rio, ondeo escritor morava. A obra teria ao todo11 contos. Os dois primeiros estavamprontos, e Ubaldo trabalhava noterceiro. “Seriam todos histórias doLeblon, aventuras de moradores, coisasassim”, relatou ao Jornal da ABI a viúvado escritor, a psicanalista BereniceBatella, que leu os dois primeiros contos.

Segundo ela, os trabalhos são“absolutamente hilários”. Um delestrata de uma festa de porteiros,promovida por um deles, aniversariante,que trabalha num edifício chique dobairro e convida dois colegas, deprédios mais modestos, para umanoitada com mulheres. O outro sechama Dagoberto e Seu Cachorro FalaFino, sobre um cão que... falava fino. AEditora Objetiva, que já sabia do projetodo livro, tem planos de lançar os contosinéditos de João Ubaldo até o finaldeste ano, mas ainda sem data marcada.

Berenice conta que era sempre aprimeira leitora do marido e que, porvezes, o convencia a fazer alteraçõesnos textos. “Eu às vezes estranhavaalguma coisa, e ele mexia numa boa.O João era bem auto-suficiente (emrelação ao seu trabalho), mas gostavaque eu lesse e até ficava ansioso porisso. Posso dizer que quase cem porcento das vezes ele dava umamexidinha no texto quando eu faziaalguma observação”, conta ela. Asecretária de Ubaldo, Valéria dosSantos, confirma: “Ela era a únicapessoa que ele ouvia”.

Indagada sobre futuros projetos doescritor baiano, a viúva disse que ele“estava tentando escrever mais coisas,mas primeiro queria acabar esse (decontos)”. “Fora isso, o único projetoera passar o mês de janeiro emItaparica e fazer lá uma festa deaniversário (dia 23), como todo ano.”

Cachorro e festade porteirossão temas denovos contos

riu e contou que o filme já existia”, diz ocineasta, rindo. “Fiquei tão encantadocom o texto que decidi ser totalmente fiel,inclusive à oralidade. Eu não adaptei umlivro; eu documentei um livro.”

Hermano Penna cogitou adaptar paraas telas O Sorriso do Lagarto, lançado porUbaldo em 1989. “Não deu tempo nem dematurar o projeto, porque dois anos depoisvirou minissérie da Globo, aí abandonei”.O cineasta também chegou a pensar emrodar Viva o Povo Brasileiro, romance histó-rico de quase 700 páginas. “Cheguei a ela-borar o projeto, aí soube que o André LuísOliveira tinha comprado os direitos edesisti”. O negócio foi fechado em 1998,mas o filme jamais foi realizado.

A outra obra de João Ubaldo adaptadapara o cinema foi o conto O Santo que NãoAcreditava em Deus. O próprio autor rotei-rizou o filme com o cineasta Cacá Diegues,e o resultado foi a comédia Deus É Brasileiro(2003). Antônio Fagundes faz o papel deDeus, que deseja tirar férias e procura umsanto para substituí-lo na sua ausência.Ubaldo e Cacá se conheciam desde 1962,apresentados por Glauber Rocha. “Em1981, ele (Ubaldo) me deu de presente seulivro de contos recém-lançado, chamadoentão Livro de Histórias, reeditado maistarde como Já Podeis da Pátria Filhos. Meuprimeiro impulso foi o de fazer um filmemisturando todos os contos do livro, seriauma comédia sobre Itaparica”, explicouCacá ao Jornal da ABI. “Depois de muitastentativas, não consegui fazer essa misturade histórias e decidi fazer um filme base-ado em apenas um conto, O Santo que NãoAcreditava em Deus. Ubaldo concordou eescreveu o roteiro comigo.”

O filme foi “livremente inspirado” noconto, como anunciam os créditos inici-ais. “O conto original tinha apenas umameia dúzia de páginas que tínhamos quetransformar num roteiro de cerca de cempáginas. Partimos dos personagens (Deus,o pescador, etc.) e da situação básica dahistória (a busca por um santo), inventa-mos todo o resto. O processo de trabalhofoi mais que tranqüilo, foi muito diver-tido. Ubaldo, além de ser um autor inte-ligente e talentoso, era um homem degrande humor e ironia. Acabamos escre-vendo tanto que tivemos que cortar de-pois, para poder manter o filme numaduração de longa-metragem.”

Deus é apresentado no filme como umsujeito relaxado e espirituoso, mas tam-bém raivoso, eventualmente sedutor (aosolhos da personagem de Paloma Duarte)e exageradamente orgulhoso de suas cri-ações. “O Deus do filme é o Deus do livro.Nunca perguntei isso a Ubaldo, mas sem-pre achei que ele se inspirara muito maisno Deus furioso e sangüíneo do VelhoTestamento do que no Deus ausente doscristãos”, afirma Cacá. Segundo ele, essacaracterização não rendeu nenhum pro-blema com a Igreja Católica ou qualqueroutra, e o filme foi visto no Brasil por 1,7milhão de espectadores.

HOMENAGEM O SORRISO LARGO DO GAIATO

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“Till the day I die I’ll ever fretFor what I found and I have never met”

São esses os dois primeiros versos dopoema original de João Ubaldo Ribeirotraduzido por Geraldinho Carneiro eapresentado pelo poeta em texto publica-do em O Globo no dia 21 de julho, três diasapós a morte do escritor. No texto, Geral-dinho revelou o lado poeta de João Ubal-do, até então ignorado, e o fato de que obaiano escrevia seus poemas em inglês.

Procurado pelo Jornal da ABI, Geral-dinho recitou esses versos originais, osúnicos dos quais se lembra, e contou tertraduzido pelo menos mais um poemade Ubaldo, além de um terceiro, quenão se lembra se concluiu. Como semudou recentemente, ele afirmou nãosaber ao certo onde estão esses poemas,escritos há mais de dez anos. Mas reve-lou que fez uma tradução “bem livre”do poema já divulgado e que acrescen-

João Ubaldo Ribeiro tinha um roteirocinematográfico inédito escrito em parce-ria com Domingos de Oliveira. De acordocom o dramaturgo, o texto se chama OSonho Erótico de Eugênia Mota. “É um filmesobre a Academia”, contou com exclusivi-dade ao Jornal da ABI.

O roteiro narra a história de uma escri-tora que se candidata a uma vaga na ABL.“Aí sai a fofoca de que ela, se for eleita, vaiposar nua, só com o fardão. A partir daí elase redescobre como mulher. É bem JoãoUbaldo”, comenta Domingos. Ele disse quejá conversou com Patrícia Pillar para inter-pretar Eugênia Mota. O projeto, porém,não tem perspectiva imediata de sair dopapel. “Esses imbecis desses produtoresnão se interessam”, dispara Domingos.

NOS PALCOSO dramaturgo foi o responsável pela

adaptação para os palcos do livro A Casados Budas Ditosos, lançado em 1999. A su-gestão partiu de sua mulher, a atriz e rotei-rista Priscilla Rozenbaum, que achou que olivro daria um bom monólogo. “Primeiroliguei para a Vera Fischer, que não quis fazer.Aí procurei a Fernanda Torres, que se inte-ressou totalmente”, relembra Domingos.

O passo seguinte foi procurar João Ubal-do, a quem o dramaturgo não conhecia pes-soalmente, para convencê-lo a lhe venderos direitos para transformar o livro em peça.“Fiquei meia hora falando como eu sentiao livro. Quando acabei meu discurso, ele dis-se: ‘Os direitos são seus e somos amigos parasempre’”, conta Domingos. Ele afirma queprecisou cortar bastante o texto de Ubaldo– o livro, um relato em primeira pessoa feitopor uma mulher de 68 anos relembrando emdetalhes suas intensas e variadas aventurassexuais, tem 163 páginas.

Um ano depois, Domingos e Fernan-da Torres passaram a trabalhar juntos naformatação final do texto, já que a atriz

também fizera sua versão da peça. “Co-meçamos a cotejar as duas versões atésentir que dava certo. Dois meses depois,o espetáculo estava pronto”, diz ele.

Segundo Fernanda, esse método de tra-balho foi combinado. “Cada um foi sepa-rando o que achava mais dramático nolivro. No meu caso, redatilografei tudo queme parecia importante, para me aproxi-mar da linguagem do Ubaldo. O ofício deator é um trabalho de aprender a ler, e aescrita do Ubaldo foi brotando. Quandocomeçamos a ensaiar, eu e o Domingos se-paramos logo o que havia em comum en-tre as duas versões, e as outras partes nósfomos conversando”, explica ela. “O Do-mingos entende muito do arco dramático,foi importante para extrair o drama, con-tar a história afetiva da personagem, oshomens e mulheres que fizeram diferen-ça na vida dela, e não só a história sexual.”

De acordo com a atriz, Ubaldo não iaaos ensaios e se mostrou “totalmente de-sapegado” do texto. “Quando ele viu oensaio geral, foi horrível”, relembra ela, eexplica: “Aconteceu que, no processo deensaiar, o Domingos um dia me lembrouque a personagem era baiana. Aí, no ensaiogeral, na frente do Ubaldo, eu me vi pelaprimeira vez falando baiano, diante de umbaiano. Acabamos tudo meio mudos,achando que aquilo não daria em nada.Felizmente, na estréia a coisa funcionou.Mas teatro é assim mesmo”.

A peça estreou em 2004, rodou o Bra-sil durante sete anos, foi exibida em Por-tugal e ultimamente tem tido temporadasmais curtas uma vez por ano. Fernandadeve voltar a girar com a peça após o tér-mino da atual temporada da série Tapas& Beijos, da TV Globo. Em janeiro, vai re-apresentá-la em Portugal. “Já fiz centenasde apresentações, mas nunca me canso,porque é como estar com o Ubaldo, umautor extraordinário.”

O poeta que moravaem João Ubaldo

Na Sessão da Saudade promovida pelaAcademia Brasileira de Letras no dia 23de julho para homenagear Ubaldo, foilido um texto do acadêmico e crítico li-terário Antonio Carlos Secchin sobre suaconvivência com o escritor baiano emque ele também reproduzia o poema.Secchin não pôde ir à sessão, mas forne-ceu uma cópia de seu texto ao Jornal daABI. Leia a seguir a homenagem dele aJoão Ubaldo, com a íntegra do poematraduzido por Geraldinho Carneiro:

“Não vou falar de João Ubaldo ro-mancista, sobre o qual tantos confra-des já se manifestaram com percuciên-cia. Prefiro evocar nossa amizade: setivemos poucos encontros pessoais,por outro lado trocamos centenas demensagens via e-mail, sobre os maisvariados temas. Ousaria dizer que fo-mos mais amigos escritos do que ami-gos falados, não fora um detalhe: adep-to fervoroso das novidades tecnológi-cas, Ubaldo, nos últimos tempos, secomprazia em enviar e-mails com re-gistro de voz. Não à toa, a oralidade éuma constante em sua obra, mas não aoralidade difusa e disforme: antes, aoralidade pautada por extraordináriodomínio rítmico – períodos longos queenleiam o leitor. É provável que JoãoUbaldo tenha desenvolvido a excelên-cia de seu ritmo frasal na freqüentaçãoamorosa do discurso poético e na frui-

“Fomos mais amigos escritosdo que amigos falados”

tou um verso inexistente na versão ori-ginal: “Benditas Berenices, Beneditas”– era a época do lançamento do livroMiséria e Grandeza do Amor de Benedi-ta, do ano 2000. (Leia abaixo texto doacadêmico Antonio Carlos Secchin conten-do a íntegra da tradução do poema)

Segundo Geraldinho, o poema ori-ginal tinha uma métrica “inconstante”.“Traduzi tudo em decassílabos paraficar mais de acordo com a tradição dalíngua portuguesa”, conta o poeta.“Acho que baixava nele (Ubaldo) umamistura de William Butler Yeats comW. H. Auden. Eu dizia isso e ele falava‘Pô, é mesmo? Gosto tanto deles!”,conta Geraldinho. “Aquela foi umafase em que vinham muitos poemas.Teve outra, na época de Diário do Farol(2002). Ele me mostrou alguns poemastambém dessa época, mas jogava fora.Nem sei se guardou algum.”

ção de clássicos da opulência do léxicoe da sintaxe, a exemplo do Padre Antô-nio Vieira. Mas, se constantemente mereiterava a paixão pela poesia, nuncame revelou que também a praticava.Segundo revelou Geraldo Carneiro, embelo depoimento sobre a amizade en-tre ambos, João Ubaldo escrevia poe-mas unicamente em inglês – como sea necessidade de exprimir-se nessa al-teridade poética lhe exigisse tamanhaentrega que se faziam necessárias nãosó outra linguagem, como também ou-tra língua para manifestá-la. E o ficci-onista Ubaldo, ocultando-se na más-cara de mil personagens ficcionais,acaba revelando-se na voz do sujeitolírico, conforme lemos na tradução deGeraldo Carneiro:Até a morte eu me atormentareiPelo que descobri e não encontrei,Pelo que, pascaliano como sou,Eu compreendi, e ainda assim maldigo.Sou o idiota mais perfeito, aliás,Por feito mais de carne que de gás.É esse o fado que me leva adiante,Num mundo para o qual não sou prestante.Tudo o que tenho as mulheres me deram,Consolação, razão para existir.Benditas Berenices, Beneditas.Também sejam benditos meus amigos,Pois gosto deles, tenham longa vida,E até eu mesmo que não a mereço,Mas que a observo e sei qual é seu preço.”

Em roteiro inédito, candidataà ABL redescobre feminilidade

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12 JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

arece, mas não é”. Se vocêjá passou dos 30 ou 40 anos,há de se lembrar deste slo-

gan de sucesso, veiculado em comerciaisque vendiam as maravilhas de um sham-poo, que prometia dar fim à caspa. A idéiaera simples: de tão eficiente, o tal produtobem poderia ser classificado como remé-dio. Contudo, na prática, era encontra-do nas prateleiras comuns de cosméti-cos, e não nas seções de medicamentos.Tal como Denorex, há muita coisa assimpor aí – que até parece, mas não é. Progra-mas populares de televisão estão lotadosde sósias de famosos. Humorísticos fa-zem esquetes a partir de semelhanças,por vezes mórbidas. Triste é quando al-guém não entende a piada. Ou, pior doque isso. Cai numa pegadinha, embarcanuma simples trollagem. Aí, o que eraapenas para fazer graça pode gerar desdo-bramentos sérios...

Foi o que aconteceu com Mario Ser-gio Conti. No dia 18 de junho, o jorna-lista embarcava na ponte-aérea do Riopara São Paulo quando, incrédulo, avis-tou em meio à multidão duas celebrida-des. Ninguém mais, ninguém menos, doque o técnico da Seleção Brasileira, o ga-úcho Luiz Felipe Scolari, e o seu princi-pal craque, o garoto Neymar, estavambem ali, espremidos entre passageiros co-muns, tentando furar a zaga e chegar àspoltronas. “Não, não pode ser! Que sor-te!”, certamente pensou o veterano pro-fissional da imprensa. Diante do que seus

olhos viam, mas sua mente não proces-sava, Conti apenas observou. Isso, so-mente no início. Logo na seqüência, in-terpelou. Aquilo mais parecia um sonho.Um delírio. Bobagem. Era apenas... De-norex!

Nada, nenhum surto de bom sensoou resquício de contato com a realidadeparecia poder evitar a tragédia que seanunciava. Em momento algum, o jor-nalista desconfiou ser ao menos ‘impro-vável’ que o técnico da Seleção penta-campeã do mundo, e seu maior trunfo,estivessem viajando numa simples aero-nave comercial, num vôo de carreira, dacidade maravilhosa para a terra da garoa,em plena hora do rush. Nem estranhouque isso ocorresse no dia seguinte à dis-puta com o México, em jogo de placarzero a zero, transmitido diretamente daArena Castelão, lá longe, na capital cea-rense. Tampouco questionou a si mesmopor qual razão eles estavam ali sozinhos,sem assessores ou seguranças, descoladosdo restante do grupo. Nem mesmo ofato de ambos terem passado despercebi-dos, sendo incomodados por um únicopedido de selfie, atiçou o faro de MarioSergio. Colocou-lhe uma pulga atrás daorelha. Pronto. Estava feito o estrago.

“Neymar e Luiz Felipe Scolari foramos últimos passageiros a embarcar noavião, às 17h30 de ontem. Como o vôoda ponte-aérea, do Rio para São Paulo, es-tava lotado, ambos se espremeram empoltronas entre passageiros, Felipão na

25E e Neymar na fileira da frente”, nar-rou o jornalista no início de sua ‘reporta-gem’, que trazia a patética reprodução dediálogos entre o técnico e seu pupilo. Pu-blicada ainda na noite do dia 18, às 21h24,no site da Folha de S.Paulo, a matéria logoobteve grande repercussão nas mídias so-ciais. Em pouco tempo, estava tambémna versão online de O Globo. E por pou-co, muito pouco, não chegou às bancasna edição impressa da Folha de S.Paulo de19 de junho. Detectado o erro, deu-seuma corrida contra o tempo. Não man-daram parar as máquinas, porque o jor-nal já estava quase todo impresso. Cercade 75% dos exemplares estavam rodadose no caminhão: foram trazidos de voltaà gráfica.

Achando ter a notícia quente do dia,Conti escreveu rapidamente o texto, queenviou para os dois jornais. Alertado deque o verdadeiro Felipão ainda estava emFortaleza, Conti ligou para o número docartão do sósia e confirmou: aquele quesentara junto a ele no avião até que erabastante parecido com Felipão. Mas, não.Não era ele... Denorex! “Desliguei ime-diatamente e fui apagar o ‘incêndio’, li-gando para as Redações”, contou. O tex-to ficou no ar por mais de uma hora, nosite de ambas as publicações. “Realmentefoi um erro tolo. Agi de boa fé. Percebi oerro e corrigimos, deu para corrigir. Hojeeu preferia ser um sósia de mim mesmo,preferia ser um homônimo, não ser eu.Mas, enfim, fiz um erro tolo”, repetiu.

POR PAULO CHICO

Não só pelo vexame dos nossos craques ficará marcada,na memória dos brasileiros, a Copa de 2014. Entrevistacom sósia de Felipão, publicada como sendo um furo

de reportagem, já entrou para a História como uma dasfaltas mais graves já cometidas pela imprensa nacional.

O OUTROMICO DA

COPA

Reimpressa, a página D10 do cadernoCopa, onde antes chamava a atenção o tí-tulo “‘O principal problema do Brasil éa zaga’, diz Felipão”, da entrevista ficci-onal feita por Conti, passou a estampara seguinte manchete fria: “Felipão ava-lia modificar meio e ataque da Seleção”.Mas, como assim? Aquela, afinal, não erauma matéria exclusiva? Parecia um furo.Mas, não. Era apenas uma barriga. É as-sim que casos de ‘Denorex’ costumam serchamados no jargão jornalístico. Maisuma vez, parecia. Só parecia. Bola fora!

O OUTRO “FELIPÃO”TRABALHA NO ZORRA TOTAL

O suposto Felipão era Wladimir Palo-mo, ator de 54 anos. Onze a menos queo Luiz Felipe legítimo, aquele mesmo,que não treina, nem tem esquema táti-co. E que, diante da Alemanha, solta astiras. Aposentado, corintiano, Palomovoltava para casa após mais uma grava-ção no Projac, os estúdios da TV Globo,na zona Oeste do Rio, onde há tempos dáexpediente como sósia do técnico emquadros do Zorra Total. O erro cometidopelo colunista parece ter sido detectadopela própria Folha de S.Paulo já tarde danoite do dia 18. Às 23h26 foi feita umaedição no site do jornal, em que foi inclu-ída a suposta cena do sósia se revelandopara o cronista, para dar a impressão deuma reportagem ficcional – um merotrote nos leitores. De pouco adiantou.Não colou.

IMPRENSA

“P

RAQUEL CUNHA/FOLHAPRESS

13JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

A princípio, a publicação do ‘erramos’pela Folha e pelo O Globo passou a impres-são de ter sido aplicado um trote do só-sia no jornalista. O Globo, inclusive, logotratou de apagar todas as cópias da repor-tagem. Contudo, a realidade dos fatosera bem mais grave. E, àquela altura,indisfarçável. Palomo jamais tentou sepassar por Felipão enquanto conversoucom o jornalista. Talvez nem mesmo ele,considerado sósia oficial do treinador,acreditasse poder ser tão convincentenaquela esdrúxula situação. A leitura deque aqueles eram Scolari e Neymar par-tiu, única e espontaneamente, de Con-ti, nutrido por sua falta de percepção.Como bem esclareceria o jornal ZeroHora, em matéria publicada ainda no dia19 de junho. Essa sim, um furo.

“Estávamos dentro do avião, sentei aolado dele. Foi uma conversa com umapessoa comum, como eu converso comvocê. Cinco a dez minutinhos no vôo, sóisso. E outra coisa: nem sabia que ele erajornalista. Só na hora de ir embora, euperguntei quem ele era, e ele disse queera repórter. Entreguei um cartão ondediz que eu faço eventos como sósia. Eusou aquele rapaz que trabalha no ZorraTotal. Ele se confundiu... Você acha queo Felipão ia ficar andando sozinho emum avião em plena Copa?”, esclareceuWladimir Palomo à reportagem do jornalde Porto Alegre.

Conti também falou com o ZeroHora. “Pensei realmente que era o Scolari.Nunca estive com Felipão. Sequer vi en-trevistas dele na televisão; só nas parti-das, ao lado do campo. Achei todas asrespostas dele sensatas. Nossa conversadurou cerca de meia hora. O tempo dovôo do Rio a São Paulo. Não desconfieiem nenhum momento que não fosseele. Lera em algum lugar que a Seleçãoestava de folga”, disse Mario Sergio, quenem mesmo diante do cartão que lhe foientregue por Palomo, com a devida iden-tificação do sósia, percebeu aquilo que,pelo visto, não lhe parecia óbvio. “Quan-do perguntei se toparia ser entrevistadona televisão, na GloboNews, ele disseque sim, mas que estava muito ocupadonaqueles dias. Aí me deu o cartão e ri-mos. Imaginei que era uma piada dele:entreviste esse sósia meu...”, resumiuConti, que buscou minimizar o ocorri-do. “Perdão pela confusão. Felizmente,ela não prejudica ninguém. Não afetaráa Bolsa, a Copa ou as eleições”.

EPISÓDIO EVIDENCIACRISE NA IMPRENSA

Há quem não veja a coisa assim. Ojornalista Fernando Brito, ex-assessor deimprensa de Leonel Brizola e editor doblog Tijolaço, escreveu um dos artigosmais contundentes sobre o episódio. “Er-rar, todo mundo erra. A diferença é queos arrogantes, mesmo quando diante daevidência do erro, tentam ficar justifi-cando. O jornalista Mario Sergio Continão acreditou – prefiro esta hipótese aachar que ele desejou enganar seus leito-res, deixando para citar apenas nas últi-mas linhas – quando Wladimir Palomo

entregou-lhe um cartão esclarecendoque não era o técnico da Seleção. Aliás,não reparou o jornalista que, com 1,75mde altura, nosso bem-humorado mode-lo dificilmente poderia ter sido zaguei-ro no simpático Caxias, do Rio Grande doSul. O Felipão-Felipão tem 1,82m, porisso é ‘Felipão’. Mas a Folha prefere sedizer vítima de ‘trote’. Negativo. Quemfaz trote – e com os leitores – é quem pu-blica uma entrevista como sendo do téc-

nico da Seleção, em plena Copa do Mun-do, como se fosse a do próprio. O ‘erra-mos’ da Folha está entre os tópicos maisacessados do jornal, mas este vetou qual-quer comentário sobre o assunto. Quebeleza! A qualidade moral da imprensabrasileira faz dela uma espécie de sósia dojornalismo. Parece, mas não é”, escreveu.

“O título inicial do desmentido noUol – ‘Colunista da Folha é vítima de tro-te’ – foi rapidamente modificado por um

mais neutro: ‘Erramos: Felipão não faloucom colunista da Folha’. Na nota, publi-cada também no site de O Globo, os lei-tores foram informados de que ‘Felipãonão estava no vôo do Rio para São Paulo.Ele passou o dia em Fortaleza’. Aliás, ogrande furo não seria a conversa em si,mas o fato de Scolari abandonar a dele-gação. Sou jornalista e sobrinha do Wla-dimir. Ele trabalha como sósia, mas emnenhum momento deu entrevista sefazendo passar por ninguém. Ele nemsequer sabia que o cara ao lado era jorna-lista. Eles conversaram como pessoasnormais. O colega, com más intenções,e provavelmente tentando um furo, deucom os burros n’água”, escreveu MarcelaPalomo, que atua como assessora do tio,cuidando da concorrida agenda do sósiade Felipão.

NINGUÉM ASSUME O ERRO.SÓ O COLUNISTA

Na própria Folha de S.Paulo, o chama-do ‘Conti do vigário’ foi alvo da crítica deVera Guimarães Martins, ombudsmando jornal. No artigo ‘Arrogância, 2 a 0’,publicado no dia 22 de junho, ela escre-veu: “Nem bem assentado o pó da vaia,na noite de quarta, o jornal encalhounum rochedo – ou numa monumentalbarriga, como se denomina nas Redaçõesuma notícia errada. Não chega a ser con-solo (nem desculpa), mas, nesta, a Folhanão embarcou sozinha. A barriga foi com-partilhada com O Globo e um dos maisconhecidos jornalistas brasileiros. Contitem currículo incomum. Foi diretor deRedação do Jornal do Brasil e das revistasVeja e Piauí. Na tv, mediou o Roda Viva, na

Detalhe da página com a polêmica reportagem, que chegou a ser impressa na Folha de S.Paulo do dia 19: só a foto era do verdadeiro Felipão.

Wladimir Palomo, em foto publicada em sua página no Facebook: “Eu sou aquele rapaz que trabalhano Zorra Total. Você acha que o Felipão ia ficar andando sozinho em um avião em plena Copa?”

REPROD

UÇÃO

14 JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

Cultura, e atualmente ancora o programaDiálogos, na GloboNews. Escreveu o livroNotícias do Planalto, sobre o impeachmentde Fernando Collor. O erro foi percebidofora da Redação, por um dos repórteres daequipe que acompanha a Seleção e leu osite. O post foi retirado. Parte da edição na-cional já impressa foi recolhida e destru-ída. Sobrou a perplexidade diante de errotão primário”, pontuou ela, que seguiucom sua avaliação.

“Não vou listar aqui todas as impro-babilidades que deveriam ter ligado osinal amarelo do colunista ou de quemeditou o material. Blogs, sites noticiosos,leitores e diletantes já fizeram isso àexaustão. Erros, por mais crassos, acon-tecem. A diferença está em como se lidacom eles e, neste aspecto, a Folha ficoudevendo. Na primeira versão, o ‘erramos’do site dizia que o colunista havia sidovítima de trote, versão difícil de engolirquando o próprio entrevistado entregouum cartão escancarando sua condição deimitador. O segundo foi mais direto: ‘Fe-lipão não falou com colunista da Folha’.Na quinta à noite, o site publicou maté-ria com as explicações de Conti e o con-teúdo original da entrevista – no que fezmuito bem, só que fez muito tarde. Ahistória já tinha ganhado o mundo vir-tual, levando o jornal a reboque. No im-presso, o caso foi relatado na sexta, em re-portagem menor e no pé de página. Em am-bas, só Mario Sergio Conti se explica e sedesculpa. Ninguém da Folha se pronun-cia. O colunista assumiu a falha sozinho.‘Foi um erro tolo. Não prejudiquei nin-guém, a não ser eu mesmo’, declarou. Émuita modéstia. Faltou lembrar dos pre-juízos materiais e do arranhão na credi-bilidade dos jornais, um ativo que nãotem preço. Fim do jogo (e da semana):Arrogância, 2 x Autocrítica, 0.”

O GLOBO USA DE EVASIVASE FOGE DA RESPONSABILIDADENa matéria “Colunista do Globo con-

funde sósia com Felipão”, o jornal cari-oca, que também publicou a barriga mo-numental, tergiversou. “O colunista doGlobo Mario Sergio Conti achou quetinha ‘esbarrado com a notícia’ na pon-te-aérea, no fim da tarde de quarta-feira.Sentou-se ao lado de um sósia do técni-co da Seleção Brasileira, Luiz Felipe Sco-lari, e achou que se tratava do próprioFelipão e que este viajava com ninguémmenos que o garoto de ouro da Copa,Neymar. A dupla de sósias não causoualarde no vôo que saiu do Rio para SãoPaulo, mas Conti notou que as comissá-rias olhavam para o garoto parecido comNeymar com interesse e deferência. Ocolunista puxou conversa com o ‘técni-co’, que respondeu a todas as perguntas:sobre o zero a zero com o México, o timeda Itália, os favoritos para o Mundial...‘Achei que era o Scolari, tive certeza deque era ele. Eu estava lá esperando o vôo,ele entrou, sentou-se ao meu lado. Eu fuiperguntando e o cara respondendo. Nãoé que ele queria ter me enganado. Longedisso’ – disse Conti, que contou quenunca se encontrou pessoalmente com

o técnico e que só o via pelos jogos na tv”.Ascânio Seleme, Diretor de Redação deO Globo, apenas afirmou. “Foi um equí-voco, por isso tiramos a história do ar.Estava errada”, finalizou.

Flavio Gomes é jornalista, com gran-de experiência na área de esportes, ondeatuou em publicações como o Lance!.Além disso, é dublê de piloto, escritor eprofessor de Jornalismo. E sarcástico. Foiesse o tom do artigo ‘Big Barriga’, publi-cado em seu blog no dia 19 de junho.“Durante a conversa no avião, segundoPalomo, Conti não disse que era jornalis-ta. Só no final revelou que era repórter.Achou que estava abafando, certamen-te. Descolou, no papo, uma exclusiva. Pa-lomo não se sentiu na obrigação de dizerque era um sósia. Afinal, não tinha dadoentrevista alguma, tinha apenas conver-sado com o vizinho de poltrona sobrefutebol — todo mundo só faz isso porestes dias. Depois, porque lhe deu o car-tão onde estava escrito que ele trabalhavacomo sósia de Felipão. Mais claro, im-possível. Não? Não”, contextualiza para,logo na sequência, detonar.

“Se o colunista cometeu uma gafe ina-creditável é porque não tem a menorcondição de escrever sobre futebol nemhoje, nem nunca. Talvez não possa escre-ver sobre nada, porque a um jornalistanão é dado o direito de ostentar tal graude alienação no meio de uma Copa doMundo no seu País. Mas a coisa é aindapior. Alguém recebe, lê, edita e fecha essematerial. Em geral, um editor. Sendo oassunto importante, é de se imaginar queas maiores autoridades em esportes dosjornais leiam o que vão publicar. E comoé que um editor engole isso sem questi-onar: o Felipão numa ponte Rio-SP juntocom Neymar, e nenhuma câmera de tvpor perto? Neymar num vôo de carreira,sem multidões enlouquecidas tirandofotos e pedindo autógrafos? A declaraçãomais sem sentido do mundo, que o pro-blema é a zaga da Seleção, justamente oque de melhor o time tem? A pura im-

possibilidade de um técnico de Seleçãocriticar abertamente, no meio de umaCopa do Mundo, seus jogadores? Quemé o sósia do tal cartão mencionado no fimda matéria (um Google impediria essacatástrofe)? Pois tudo isso passou batido.Ninguém nas Redações dos dois jornaisnotou nada de esquisito e a entrevista foipublicada alegremente. Grande furo,grande cara, esse colunista! Sempre nahora certa, no lugar certo! Os jornais es-tão acabando, como se diz, mas não é porcausa da internet.”

DINES: “NOSSA IMPRENSA NÃO ÉTREINADA PARA PEDIR DESCULPAS”

No dia 24 de junho, em seu site Ob-servatório da Imprensa, Alberto Dinescontemporizou. “Mario Sergio Contiadmitiu o disparate, a burrada ou quenome tenha. Não ensaiou qualquer jus-tificativa: percebeu o tamanho do desas-tre, desculpou-se prontamente, reconhe-ceu de forma inequívoca que não tinhaqualquer argumento em seu favor. Nempoderia admitir que errou traído pelasedução virtuosística de escrever umamatéria e, no fim, invalidá-la com a re-velação da fonte falsa. Jornalista de altoquilate, preparadíssimo, um dos melho-res do País, ele sabe que com notícia nãose brinca. No entanto, tentou brincar: estápagando por isso. Na Veja, em 1983, umabrincadeira (ou ingenuidade) semelhanteproduziu o episódio do ‘boimate’, memo-rável barriga científica corrigida somentemeses depois e com enorme má vontade.”

Por fim, Dines condenou a espécie delinchamento público a que foi submeti-da a imagem do jornalista. “Nossa im-prensa não é treinada para pedir descul-pas. Assume-se infalível, inquestionável,usa a mitra pontifícia mesmo não a me-recendo. A periodização absurda do rodí-zio de colaboradores (quinzenais oumensais), somada à falta de editores tra-quejados e cultos, capazes de detectar echamar a atenção para eventuais impro-priedades, torna nossos jornais uma vas-

ta terra de ninguém em matéria de res-ponsabilização. Injustificável o lincha-mento a que está sendo submetido Ma-rio Sergio Conti. Os ressentimentoscom a grande imprensa levam muitos adescontar nele suas frustrações. Conver-teu-se em bode-expiatório de culpas quenão tem. Na Botucúndia pratica-se a crí-tica da mídia com os tacapes do preconcei-to e do rancor. Não é esse o caminho.”

Jornalista, escritora e professora daUniversidade Federal Fluminense, SylviaMoretzsohn também escreveu para oObservatório da Imprensa. “Vamos dis-cutir isso a sério: um jornalista experien-te como o Mario Sergio Conti, colunis-ta da Folha de S.Paulo e de O Globo, rea-liza uma entrevista com o Luiz FelipeScolari. Os dois jornais publicam a entre-vista em seus sites. Só que o Felipão nãoé o Felipão, é um sósia dele. Aí os jornaispublicam um desmentido e tiram o textooriginal do ar. A história cai na rede eprovoca uma série de comentários con-traditórios e especulações. Uma jornalis-ta recupera o texto no cache do Googlee sugere que pode ter havido um erro dequem fez o título, considerando o finalda entrevista, em que Conti convida osuposto Felipão para o seu programa naGloboNews e o sósia lhe entrega umcartão, identificando-se como ‘VladimirPalomo – sósia de Felipão – eventos’. Emsuma, os redatores de ambos os jornaisteriam se empolgado e tomado por ver-dade o que era fake. Outra jornalista dizque o texto era claramente uma ironia.Faz sentido?”, provocou.

“O caso acabou esclarecido no fim datarde de quinta-feira, quando o jornalZero Hora publicou entrevista com o jor-nalista e o sósia entrevistado por ele. Logodepois, apareceria matéria no site da Fo-lha e, pouco mais tarde, também no doGlobo, nas quais o jornalista reconheciao erro. A matéria não havia sido escritaem tom de farsa; ele de fato acreditara teresbarrado com o verdadeiro Felipão. Omais relevante, entretanto, é a maneiracomo os jornais trataram o episódio:inicialmente, com um sucinto pedido dedesculpas e a eliminação do link para otexto original, só ressuscitado depois darepercussão que o caso ganhou nas redessociais. Não vivem dizendo que o leitordeve tirar suas próprias conclusões? Aque conclusões o leitor pode chegar (mes-mo a essa, hoje sabidamente equivocada,de que teria sido uma ironia mal compre-endida), se não tem acesso ao texto?”,questiona Sylvia.

Além de repercutir intensamenteem colunas e publicações especializa-das em temas da mídia, a entrevista deMario Sergio Conti com o sósia do téc-nico da Seleção Brasileira também‘bombou’ na internet. A pedido do Por-tal dos Jornalistas, a Obiit Business In-telligence, empresa especializada emmensuração e análise do noticiário daweb por meio da plataforma MediaAnalytics, fez um levantamento da dis-seminação da gafe na rede. De sua publi-cação, na noite do dia 18 de junho, atéas 10h do dia 24 do mesmo mês, foram

IMPRENSA O OUTRO MICO DA COPA

Reprodução daentrevista com o

falso “Felipão”publicada tambémno site de O Globo

e a correção, quefoi postada no

mesmo dia.

15JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

Neymar e Luiz Felipe Scolari foram os últimos passagei-ros a embarcar no avião, às 17h30 de ontem. Como vôo daponte-aérea, do Rio para São Paulo, estava lotado, ambosse espremeram em poltronas entre passageiros, Felipão na25E e Neymar na fileira da frente.

“Vê se dorme, moleque”, disse o técnico ao jogador. Ney-mar desligou o celular, mas não dormiu, apesar de apenasum passageiro ter-lhe pedido um selfie durante o vôo. Tam-pouco Felipão pregou o olho. Um tanto apreensivo com océu carregado, ele respondeu de bom grado tudo que lhe foiperguntado.

“Acho que, até agora, os melhores times foram a Holan-da e a Alemanha”, disse. “Eles vão dar trabalho. A Itália tam-bém. Ela sempre chega às semifinais. É como o Brasil: temtradição, empenho, torcida”.

O zero a zero com o México não o abalou: “Pode ter sidoaté positivo, na medida em que jogou um pouco de água friano oba-oba, na idéia de que é fácil ganhar uma Copa”. Numcampeonato de nível tão alto, ele acha imprevisível fazerprognósticos. “Quem diria que a Espanha sairia da Copa logode cara?”, indagou.

O mesmo raciocínio ele aplica à seleção sob a sua respon-sabilidade. “O Oscar fez uma excelente partida na estréia,mas não foi bem no segundo jogo”, disse, mastigando um sal-gado de gosto insosso. “O Neymar foi bem, mas não teve agenialidade da partida anterior. São coisas que acontecem.E quem esperaria que o goleiro mexicano defendesse todas?”

Felipão concordou com o raciocínio que Neymar parecemais centrado agora do que antes, não se joga tanto no chãonem faz demasiado teatro. “É verdade, ele está mais obje-tivo. Mas pode melhorar ainda mais. Não dá para apressarmuito esse processo: ele é muito moço, tem que aprenderas coisas na prática”. Mas não tem dúvidas: “se tivéssemostrês como ele, a Copa seria uma tranquilidade”.

O avião deu solavancos e o técnico comentou: “isso simé que é um especialista, repare como o piloto conduz o aviãocom mão firme, fazendo mil coisas ao mesmo tempo”. O queseria mais difícil: pilotar um avião ou a seleção nacional?“Não tem comparação, avião é muito mais difícil. O pilotolida com vidas humanas, é responsável por elas. Se a seleçãoperder, será muito triste para o Brasil, para os jogadores, aminha família e eu. Mas ninguém corre risco de morte”.

Felipão se disse satisfeito com o ambiente geral da Copa.Não esperava que tantos mexicanos e chilenos viessem,nem que as torcidas se confraternizassem. “Até os argen-tinos estão se dando bem com os brasileiros. Pelo menos,até agora”. Disse que os estádios são bons e a organizaçãodos jogos funciona. “E te digo: tive dúvidas, mas os aero-portos onde estive até agora estão uma maravilha”.

Contou que ninguém do governo o procurou, em mo-mento algum. E ouviu com agrado o relato de meu encon-tro recente com um ministro, seu fã atilado. “Pelo que ouçodizer, o governo está torcendo pela seleção, e a oposiçãonem tanto”, disse. “Acho uma bobagem misturar futebole política. Eu mantenho essa separação custe o que custar,não dou uma palavra sobre política”. Os xingamentos a Dil-ma no jogo de abertura, portanto, não lhe dizem respeito.

Perguntado se lia comentários de especialistas nos jor-nais, ou ouvia o que diziam na televisão, Scolari sorriu: “Atépapagaio fala”. Ao ouvir os nomes de alguns, ex-jogadorese ex-técnicos, repetiu, divertido: “Papagaio fala!”.

MARIO SERGIO CONTICOLUNISTA DA FOLHA

“O principal problema doBrasil é a zaga”, diz Felipão

ORIGINAL Leia a íntegra do texto publicado pela Folha de S.Paulo no dia 19 de junho e a reprodução do ‘erramos’

Felipão terminou de tomar a caixinha de suco de laranjae se explicou melhor: “os comentários são necessariamentefrios, distantes. A experiência de jogar no Maracanã lotado,de cobrar um pênalti, de ouvir vaias, são coisas que mexemcom o jogador, com o indivíduo. Não é questão de aplicar umareceita”. Para ele, as variáveis envolvidas numa partida são inú-meras, não é possível reduzi-las ou quantificá-las.

Deu como exemplo a seleção da Alemanha: “Ela está naBahia, no sol, entre mulatas lindas. Claro que isso os influ-encia”. Felipão riu de novo: “Desconfio que alguns delesnem voltarão para a Alemanha”.

Se não acompanha os comentaristas da imprensa, ele estáciente de dificuldades táticas e de entrosamento na seleção.“O principal problema é a zaga”, disse. “Ela cai para o lado,quando deveria ir em frente, buscar o jogo lá na frente”.

O que mais o irritou até agora foram os boatos, divul-gados pela imprensa européia, que o Brasil já ganhou aCopa, já que a Fifa teria orientado juízes a facilitarem a vidada seleção. “Mais que um absurdo, é um desrespeito. Vocêimagina comprar a Itália, a Alemanha? Isso não existe”. Oavião sobrevoava São Paulo, coberta por nuvens. “É comodescer a serra de Santos com um nevoeiro fechado, semenxergar nada”, disse. “Esse comandante sabe tudo”.

Neymar e o técnico tinham participado da gravação doprograma “Zorra Total”, no Projac, o estúdio da Globo emJacarepaguá. “Não gosto de passar muito tempo longe deSão Paulo: veja que cidade interessante”, apontou.

Felipão estava curioso em saber como seu filho se saíranuma prova naquele dia. Ele estuda Economia nas Facul-dades São Judas Tadeu, e pegara uma recuperação. “Mas ogaroto vai bem, é estudioso”.

Perguntei se toparia dar uma entrevista ao programa Di-álogos, da GloboNews. “Claro, vamos lá. Só que ando meioocupado...”, disse, rindo. Pegou sua carteira, tirou um car-tão de visitas e me entregou, afirmando: “Mas isso pode teajudar, por enquanto”.

O cartão de visitas dizia: “Wladimir Palomo - Sósia de Fe-lipão – Eventos”. Depois das gargalhadas, apertou a mão edisse: “Deus te proteja”.

computados mais de 2,5 milhões depageviews de audiência sobre o assun-to, distribuídas em matérias produzidaspor dezenas de veículos de peso. Nofacebook e no twitter, proliferaramposts com piadas sobre a entrevista deMario com Felipão, que jamais ocorreu.

“O erro, em si, não ficou mais do queduas horas no ar, tanto no site da Folhacomo em O Globo. Mesmo assim, foitempo suficiente para que a inserção naFolha alcançasse mais de quatro 4 milpage-views. Porém, o breve tempo de per-manência foi o suficiente para que a re-percussão fosse implacável. Coleguinhasde Conti não o pouparam e diversas ma-térias começaram a pipocar nos maioresveículos do País. Foram entrevistas, cha-cotas, análises e até protestos pelo fato teracontecido com jornalista tão eminen-te”, analisa Alexandre Martins, da ObiitBusiness. Segundo o levantamento, ossites em que o caso teve maior audiênciaforam R7 (1.286.873 de pageviews, comdestaque para a coluna de Barbara Gan-cia), Folha Online (318.137), A Tarde(271.615), Conversa Afiada (blog de Pau-lo Henrique Amorim – 226.891), GGN(de Luís Nassif – 134.568), Estadão(125.899) e Terra (77.287).

Em tom de desabafo, Mauro Betingescreveu no Lance!, alertando para o ris-co que é apostar em colunistas no lugar derepórteres. “Não conheço jornalista espor-tivo que tenha confundido ministro comsósia. Mas conheço muito colunista pre-miado por chefia padrão Fifa, que ganhacredencial de Copa como se fosse promo-ção de patrocinador da entidade. Em 1998,uma cara colega mais se divertia com Parisdo que com a Copa que, a princípio, esta-va escalada para cobrir para mostrar o ‘ou-tro lado’ do Mundial. Sim, ela podia nãover alguns jogos. Mas não deixar de verquase todos, como fez. E agora? Um cul-to e letrado colega que tudo sabe dos bas-tidores da notícia não erraria jamais!Onde já se leu?!!! Nós, limitados jornalis-tas esportivos, vamos continuar contan-do nossas tacanhas historinhas. Nos ve-mos na Rússia 2018, colegas colunistas.Ou, provavelmente, não. Lá só vai colu-nista para fazer paralelo com a Revoluçãode 1917, Glasnost, queda da URSS, Pu-tin... É muito areia pro nosso aviãozinhoda ponte-aérea”, ironizou.

De tudo isso, como balanço da Copade 2014 no Brasil, ficam algumas lições.Primeiro, a de que as aparências, e tam-bém nossas crenças, podem nos trair apercepção, subverter a lógica. A despei-to das previsões pessimistas, o Brasil con-seguiu realizar a contento o mais desta-cado evento esportivo internacional. Osestádios ficaram prontos a tempo, e ae-roportos funcionaram sem atrasos. Aocontrário do que desejava nossa sempreotimista torcida, a Seleção da casa nemchegou perto de conquistar o hexa. Deuvexame em campo. Da euforia, fez-se,mais uma vez, a decepção. Bem, amigosdo Jornal da ABI... Há muitas coisas nes-te País que não são exatamente aquilo queparecem ser. Dentro e fora de campo. Dáaté vergonha.

16 JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

A grande platéia presente no CinePE,Festival de Cinema de Pernambuco, ex-plode em gargalhadas. Na tela, nenhumacomédia, mas sim um documentário. Emais: um documentário que tem o Jorna-lismo como tema. Explica-se: o filme emquestão é O Mercado de Notícias, dirigidopor Jorge Furtado, um cineasta que con-segue colocar saborosas doses de humore ironia em tudo o que faz. Até num do-cumentário sobre Jornalismo.

Além de ter realizado alguns dos cur-tas-metragens mais significativos do ci-nema brasileiro (Ilha das Flores, Barbosa,O Dia em que Dorival Encarou a Guarda),e dirigido longas premiados (O Homemque Copiava, Saneamento Básico, Meu TioMatou um Cara), Furtado também assi-nou como roteirista, diretor (ou ambos),marcantes trabalhos para a televisão,como Comédias da Vida Privada, A Inven-ção do Brasil e Doce de Mãe.

Uma de suas marcas registradas é saberabordar temas sérios e importantes comleveza, bom humor e pitadas de sarcasmo.Em O Mercado de Notícias não foi diferen-te. Entremeando a encenação de umapeça teatral do século 17 com depoimen-tos de alguns dos mais importantes jorna-listas em atividade, o documentárioaborda, de acordo com as palavras do seudiretor, “os processos de novelização e deespetacularização pelas quais o Jornalis-mo vem passando, o que afasta os leito-res mais sérios, minando a credibilidadeda atividade”.

Os depoentes que aparecem no filmenão deixam dúvida quanto à seriedade dotrabalho: Bob Fernandes, Cristiana Lôbo,Fernando Rodrigues, Geneton MoraesNeto, Janio de Freitas, José Roberto deToledo, Leandro Fortes, Luís Nassif, Mau-rício Dias. Mino Carta, Paulo Moreira Lei-te, Raimundo Pereira e Renata Lo Prete.

O documentário abre espaço tambémpara analisar, com diferentes graus deprofundidade, quatro casos que até hojeenvergonham a atividade jornalística bra-sileira. O primeiro, e mais icônico, é o daEscola Base, uma pequena instituição pau-listana de ensino infantil que foi acusa-

DOCUMENTÁRIO

O showda vida

Filme de Jorge Furtado discute,com bom humor, o processo deespetacularização do Jornalismo.

POR CELSO SABADIN

da de acobertar a prática de pedofilia, ga-nhou a imprensa com estardalhaço sen-sacionalista, destruiu as vidas de seus pro-prietários, para mais tarde ser inocenta-da. Como se trata do episódio mais conhe-cido e alardeado, o cineasta fez a feliz op-ção de retratá-lo apenas com a contrapo-sição das manchetes da época, sem ne-nhum tipo de narração ou explicação ver-bal, apenas escancarando, na tela, a absurdadesproporção do espaço destinado pelamídia para as acusações, em contraposi-ção à minúscula notinha de esclarecimen-to, depois que a verdade veio à tona. Tardedemais. O segundo caso abordado é o dademissão do então Ministro dos Esportes,Orlando Silva, envolvido em acusaçõesde corrupção igualmente alardeadas demaneira sensacionalista, e igualmentedesmentidas em minúsculas notinhas.

Outros dois episódios causam risos naplatéia. Num deles, uma reprodução ba-rata de uma obra de Picasso é encontra-da enfeitando um escritório do INSS emBrasília, e reportada pela imprensa comosendo verdadeira e, portanto, valiosíssi-

ma. A não autenticidade da obra, que po-deria ser comprovada facilmente em mi-nutos por qualquer estudante de Artes,ganha contornos de espionagem inter-nacional, arrancando risos do público edenunciando a fragilidade atual da im-prensa em lidar com a velha, desgastadae “fora de moda” questão da checagem deinformações.

Mas é no famoso caso da bolinha de pa-pel que o auditório realmente vem abai-xo. Analisando minuciosa e ironicamen-te as imagens de cinco câmeras (quatroprofissionais e uma amadora) que cobri-am a campanha do então candidato JoséSerra, em outubro de 2010, Jorge Furta-do comprova, sem deixar margem a dúvi-das, que o suposto “atentado” contra Ser-ra (que inclusive o levou a fazer tomogra-fia num hospital) foi na verdade “come-tido” por uma bolinha de papel atiradacontra sua cabeça. E mais: que o “autor”do crime foi um dos próprios homens dasegurança do candidato do PSDB.

Muito mais do que simplesmente cri-ar humor a partir desta revelação, o filme

levanta a falta de empenho e interesse daprópria imprensa em cumprir sua funçãoinvestigativa, posto que da mesma formaque Furtado teve acesso fácil às imagensdas cinco câmeras, qualquer outro órgãode imprensa igualmente poderia ter. Masa necessidade do sensacionalismo temfalado muito mais alto e forte que qual-quer tentativa de investigação mais séria.Afinal, como diz Bob Fernandes, numde seus depoimentos no filme, “O Jorna-lismo, dependendo de quem faz, podeser tudo. Pode ser negócio, pode ser pi-lantragem, escada pra subir na vida. Podeser tudo”.

A própria “verdade jornalística” é umconceito relativizado por Janio de Frei-tas, em depoimento ao documentário.“Se um chefe de governo tem um casocom uma repórter, dependendo de quemseja este chefe de governo, isso é publica-do ou não. Seja verdade ou não”, diz ojornalista. Após participar e ser premia-do em festivais de cinema pelo Brasil, OMercado de Notícias estréia nos cinemasno mês de agosto.

FOTOS FÁBIO REBELO

Antônio Carlos Falcão, Eduardo Cardoso e Thiago Prade: Negociando as melhores notícias no salão da barbearia.

Elisa Volpatto (esquerda) numa cena do filme e as comadres sendo orientadas por Jorge Furtado durante as filmagens.

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Jornal da ABI – Você é conhecido comocineasta e roteirista, e tem grande atu-ação no campo da comédia. Como sur-giu a idéia de fazer um documentáriosobre jornalismo?

Jorge Furtado – Bom, eu sou cineasta,mas também sou um jornalista frustrado[risos]. Na verdade eu até comecei a estu-dar Jornalismo, mas acabei abandonan-do o curso exatamente para fazer Cine-ma. Profissionalmente, quase tudo o queeu faço se desenvolve nas áreas do cine-ma e da televisão, mas pessoalmente eunão consigo imaginar minha vida sem lerjornais, sem procurar notícias na inter-net, sem me atualizar muito sobre todasas coisas. Gosto tanto de jornalismo quejá há algum tempo eu venho fazendo umblog falando de vários assuntos, entreeles, o jornalismo. (digite em seu navega-dor o endereço goo.gl/CYYnDr)

Jornal da ABI – Mas, pelo menos noseu documentário, sua postura em re-lação ao jornalismo é bastante crítica.

Jorge Furtado – Já há algum tempo queeu vinha notando que o jornalismo estáem risco. Num primeiro momento pelamudança brutal da tecnologia, que trans-formou toda a lógica da profissão, e fezcom que o jornalismo tradicional perdesseespaço. Mas este risco acontece tambémporque o jornalismo começou a abdicardos seus próprios princípios fundamen-tais, como a investigação, a imparcialida-de, a busca pela verdade, e tudo o mais. Eujá estava com esta inquietação, com estaindignação, e de repente, ao ler o livro AHistória Social da Mídia, de Peter Burke,fiquei sabendo da peça The Staple of News,

Jorge Furtado: “Sou umjornalista frustrado”

que o dramaturgo inglês Ben Johnson es-creveu no século 17. Fui atrás de uma tra-dução, e não encontrei nada, nem em por-tuguês de Portugal. Resolvemos, então, eumesmo e a professora Liziane Kugland, fa-zermos a tradução, que passou a ser a pri-meira tradução de The Staple of News parao idioma português, passando a se chamarO Mercado de Notícias. Encenar a peça den-tro do filme foi uma forma que encontreide tornar o documentário menos formal,de fugir pelo menos um pouco daquela for-matação clássica das entrevistas e depoi-mentos, embora o filme tenha, obviamen-te, vários entrevistados dando seus depo-imentos.

Jornal da ABI – Qual foi seu critériopara escolher os depoentes do filme?

Jorge Furtado – O critério foi escolherbasicamente jornalistas da área de Políti-ca, de hard news, de repercussão nacional,de vários veículos. Foi um critério bastan-te pessoal também, de entrevistar genteque eu leio e sigo.

Jornal da ABI – Quantos jornalistas dãodepoimento no documentário?

Jorge Furtado – Pensei em colocar 14 jor-nalistas. Defini primeiramente este nú-mero porque usei 14 atores para a ence-nação da peça, e usar 14 depoentes dariaum certo equilíbrio. Na verdade, a peçatem mesmo 36 personagens, mas iria fi-car demais, e resolvemos fazer uma adap-tação para 14 atores. Fizemos tudo pen-sando em 14 nomes depoentes, mas aca-baram ficando apenas 13, porque deu umprobleminha para gravar o Caco Barce-llos. Já estava tudo acertado com ele, mas

tivemos um problema de agenda e o de-poimento dele acabou não saindo.

Jornal da ABI – Você convidou alguémque não aceitou?

Jorge Furtado – Apenas o Elio Gaspari.E por um simples motivo: ele não dá en-trevistas para ninguém. Nunca. Todos osdemais aceitaram sem problemas. Eumandava a peça para eles, e adiantava queas perguntas seriam sobre jornalismo,seus rumos, o mercado, critérios, etc.Todos toparam.

Jornal da ABI – O filme cita vários ca-sos importantes, até divertidos, degrandes erros da Imprensa. Imaginoque não deva ter sido fácil escolherquais entrariam no documentário, equais não caberiam.

Jorge Furtado – No filme há quatro ca-sos interessantes de jornalismo mal fei-to ou mal apurado: o da Escola Base acu-sada de pedofilia, a bolinha de papel ati-rada no então candidato José Serra, ademissão do Ministro dos Esportes, Or-lando Silva, e o caso do suposto quadro doPicasso encontrado na sede do INSS. Mas

há vários outros a serem levantados e quenão estão no filme. Por exemplo, no finalde 2008, começaram a sair na imprensanotícias “denunciando” um “absurdo”: apublicação de receita de caipirinha no Di-ário Oficial da União. O problema é queisso não é absurdo nenhum, pois como acaipirinha é produto de exportação, é umanorma legal e obrigatória que o Diário Ofi-cial publique a sua receita. Não só da cai-pirinha, mas de qualquer produto brasilei-ro de exportação. E a publicação da recei-ta foi divulgada com estardalhaço e indig-nação porque nenhum jornalista se preo-cupou antes em querer saber os motivos dareceita estar ali, publicada.

Jornal da ABI – Casos parecidos nãofaltarão nunca.

Jorge Furtado – Por isso a idéia é atuali-zar o filme através de um site. Fizemos o site(omercadodenoticias.com.br) que será sem-pre atualizado com novos casos como este.Também colocaremos no site, aos poucos,as entrevistas em suas versões integrais.Cada entrevistado rendeu aproximada-mente uma hora de material, que obvia-mente não cabe no filme, mas cabe no site.

FÁBIO

REBELO

Jornal da ABI

O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, COMO ADMITE O DECRETO Nº 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.

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Conselheiros Suplentes 2012-2015Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro

Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, HildebertoLopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt,Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto,Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.

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COMISSÃO DE SINDICÂNCIACarlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha),Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda.

COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃOAlberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti.

COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOSPresidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; AlcyrCavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro,Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, GilbertoMagalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy MaryCarneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva,Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri, Vitor Iório e Yacy Nunes.

COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIALIlma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do PerpétuoSocorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda.

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20 JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

Quando resolveu dedicar 16 anos depesquisas e 175 entrevistas a seu ídolo,Paulo Cesar de Araújo não imaginava quesua iniciativa, fruto de legítima admira-ção, teria como resposta a irritação e afúria de seu homenageado. Lançado emnovembro de 2006 pela editora Planeta,Roberto Carlos em Detalhes acabou sendoalvo de duro embate judicial, que tevecomo desfecho a vitória do artista biogra-fado e a derrota, ao menos temporária, daliberdade de expressão. O jornalista, noentanto, não se deu por vencido. E desdo-brou, em novo volume, a relação contro-versa com o mais popular cantor e com-positor brasileiro, com o lançamento deO Reú e o Rei – Minha Relação com RobertoCarlos, em Detalhes, dessa vez pela Com-panhia das Letras.

“A idéia de produzir este segundo livrosurgiu logo depois da proibição da pri-meira obra. Participei de debates em bie-nais e outros eventos, como a Flip emParaty. E nestes locais, invariavelmente,quando contava sobre os encontros comRoberto Carlos no fórum, e todos os des-dobramentos daquela disputa, as pessoasme perguntavam detalhes. Na verdade,pediam para que eu organizasse tudoaquilo e publicasse em um novo livro. Asugestão final, que me fez iniciar pra valero projeto, veio do Luiz Schwartz, da Ciadas Letras. Sabíamos que havia um peri-go, de também esta obra ser proibida, masdecidimos correr o risco. Fechamos con-trato em janeiro de 2009, e trabalhei emO Réu e o Rei por cinco anos, em absolu-to sigilo, que se fazia necessário dado ocontexto e o perfil do personagem, paraque o livro não fosse abortado antesmesmo de ficar pronto”, contou PauloCesar de Araújo ao Jornal da ABI.

A obra, que chegou ao mercado no dia25 de maio deste ano, causou novo rebu-liço no mercado editorial brasileiro, e foimuito bem recebida por crítica e público.Desde então, figurou por seis semanas nalista dos mais vendidos, segundo rankingpublicado pela revista Veja. E segue emfase de lançamento. Em agosto, novasnoites de autógrafos estão programadaspara o Rio de Janeiro e Belo Horizonte,por exemplo. Da primeira edição, comtiragem inicial de 30 mil exemplares, jáfoi providenciada a reimpressão de mais15 mil volumes.

“Na verdade, o livro estava quase pron-to, prestes a ser lançado, no final de 2013,quando ocorreu todo aquele episódio doProcure Saber, grupo liderado pela PaulaLavigne, que acirrou ainda mais a polêmi-ca sobre a chamada Lei das Biografias, ouseja, o confronto entre o direito à priva-cidade e a liberdade da prática jornalísti-ca e de expressão, no que diz respeito àspersonalidades públicas. Ninguém jamaisimaginaria que, a partir do Roberto Carlos emDetalhes, haveria um debate nacional,mobilizando escritores, inclusive estrelascomo Paulo Coelho, passando por políti-cos e artistas como Chico Buarque e Cae-tano Veloso. Decidimos então que, assimque fosse arrefecida a polêmica, chegariao momento ideal de lançar a obra com odesdobramento do caso da biografia deRoberto nos tribunais”, conta.

Meio esquecidaCitada por Paulo Cesar, a chamada Lei

das Biografias, que ocupou lugar de des-taque na mídia nos últimos anos, andameio esquecida. Depois de três anos emtramitação, o Plenário da Câmara dosDeputados aprovou no dia 6 de maio oProjeto de Lei 393/11, que modifica oCódigo Civil e libera a publicação de

“imagens, escritos e informações” biográ-ficas de personalidades públicas, semnecessidade de autorização do biografa-do ou de seus descendentes. Desde então,a imprensa tem tratado pouco do assun-to. O texto da Lei ainda deve ser votadopelo Senado e, se aprovado, seguirá parasanção da Presidente Dilma Rousseff.

Mas, quando isso acontecerá? Com apalavra, o Deputado Federal NewtonLima (PT/SP), autor do projeto.

“A Comissão de Constituição, Justiça eCidadania (CCJ) do Senado deve realizar,no início de agosto, uma audiência públi-ca para debater o meu projeto. A propos-ta partiu do Senador Ricardo Ferraço(PMDB/ES), relator da matéria naquelecolegiado. Eu espero que depois disso oprojeto seja rapidamente aprovado nacomissão e em seguida no plenário, paraque a Presidente Dilma possa sancioná-lo.O ideal é que o Congresso decida sobre ofim da censura às biografias, antes doSupremo Tribunal Federal. Até porque foio Poder Legislativo que errou ao aprovar oCódigo Civil de 2002, com o artigo 20 queprevê a censura”, contou o parlamentar ementrevista ao Jornal da ABI.

Segundo Newton Lima, a censura pré-via às obras biográficas está inibindoproduções teatrais, cinematográficas e delivros que se destinam a contar a históriade pessoas públicas que, de alguma forma,

O ‘REI’ESTÁ NU!

POR PAULO CHICO

Livro do jornalista Paulo Cesar de Araújo conta os bastidoresda batalha judicial travada com Roberto Carlos, devido

à publicação de biografia não autorizada em 2006.Aprovado na Câmara, projeto de Lei que trata do tema

deverá ser discutido no Senado em agosto.

CENSURA

Quem ri por último? Em nova obra, ojornalista Paulo Cesar de Araújo conta emdetalhes a luta judicial contra Roberto Carlos eprovavelmente irá relançar o livro proibido.

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21JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

foram importantes para a história e me-recem ser conhecidas pela sociedade.“Autores e diretores estão receosos detocar projetos de cunho biográfico, commedo de terem a obra censurada depois detodo um trabalho concluído. As própriaseditoras têm medo de apostar em obrasdeste tipo. Quem perde com isso é a soci-edade”, explica ele, que garante não temerque o projeto seja barrado no Senado.“Não percebo a existência de uma resis-tência organizada no Congresso. Existemopiniões divergentes, mas isso é da essên-cia do Poder Legislativo. Acredito que amatéria será aprovada. Os senadores te-rão a sensibilidade para perceber que énecessário acabar com esse entulho auto-ritário que é a censura prévia. O Brasil éum único país democrático do mundoonde existe a possibilidade de censura àsobras biográficas”.

Newton Lima acompanhou com espe-cial interesse o embate jurídico entre ojornalista e o artista capixaba, nascido emCachoeiro do Itapemirim, em 19 de abrilde 1941. “Vejo este segundo livro – O Réue o Rei – como uma importante iniciati-va no sentido de esclarecer a controvér-sia. Essa polêmica não deve se restringirao ambiente jurídico, por tratar-se da li-berdade de expressão, uma conquista daluta democrática, que precisa ser efetiva-

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A DELICADA RELAÇÃO ENTREBIÓGRAFO E BIOGRAFADO

Roberto Carlos em Detalhes tinha tudopara ser um tremendo sucesso de vendas.Afinal, lançava luzes sobre a história pes-soal e artística do ‘Rei’ da Música PopularBrasileira. Sua infância, o acidente como trem que resultou na amputação daperna direita aos seis anos de idade, oinício da carreira, a Jovem Guarda e asdiferentes fases posteriores, a constru-ção do mito, sua personalidade contro-versa, religiosidade, superstições, a rela-ção com os colegas, relacionamentos, ca-samentos, os filhos legítimos ou não.Estava tudo lá. No entanto, por poucotempo. Cerca de dois meses após o lança-mento de sua biografia, mais precisamenteem 10 de janeiro de 2007, Roberto bateuàs portas dos tribunais contra o autor e suaentão editora. Foi o início da batalha ju-dicial, e também de uma das mais gravesagressões à liberdade de expressão na his-tória brasileira recente. A reação que seseguiu à notícia de que o artista propuse-ra ações nas esferas cívil e criminal con-tra Paulo Cesar – que resultaram na apre-ensão dos livros, que ao que tudo indicaseguem armazenados em um depósito –ocupou os principais veículos de comuni-cação no País e até no exterior.

“Até hoje, o livro continua fora domercado, mas circula livremente pelarede de internet. Seu recolhimento aca-bou ocorrendo por causa do acordo firma-do entre os advogados de Roberto e aeditora da época que, infelizmente, ame-drontou-se e resolveu não brigar pelaobra. Aguardo apenas essa desejada mu-dança da Lei para retomá-la e publicá-lacom outra editora, uma vez que o contra-to com a Planeta já venceu”, antecipaPaulo Cesar, que analisa com objetivida-de a reação aparentemente blasé do can-tor à sua segunda investida autoral.

“É preciso entender que, quando dolançamento recente de O Réu e o Rei, o Paísjá vivia um momento diferente daquele dequando o primeiro livro chegou ao merca-do. Após o fiasco do Procure Saber, já vi-víamos num contexto favorável à liberda-de de expressão... Roberto, na verdade,agiu no piloto automático quando proibiumeu livro, assim como fez em relação àobra do antigo mordomo, Nichollas Ma-riano, escrita em 1979. Fez o mesmo con-tra Ruy Castro, em 1983, por matéria es-crita pelo jornalista para a revista Status.Processou até jornais, como o NotíciasPopulares. Em todos esses casos, não hou-

ve maiores polêmicas ou reações. Contu-do, hoje, o momento é outro. A sociedadeestá mais vigilante, atenta e consciente,não só em relação ao direito à liberdade deexpressar-se, mas também à discussão deoutros temas, como a homofobia, porexemplo”, diz Paulo Cesar que, no entan-to, acredita não terem ocorrido avançosno posicionamento do artista quando otema em questão são as biografias.

“Em nota emitida por seus advogados,Roberto deixou bem claro que não toma-ria uma atitude em relação a O Réu e o Reisimplesmente por considerar este segun-do livro uma biografia,escrita por mim,sobre a minha própria história. Ou seja,se ele considerasse esta obra também umabiografia dele teria, sim, adotado a mes-ma postura de censurá-la”. Diz a notaoficial divulgada por Roberto e assinadapor Marco Antonio Campos, advogado:“Com relação ao livro O Réu e o Rei, Ro-berto Carlos não vai tomar qualquermedida jurídica, em face de: a) o livro nãoser uma biografia sua, mas uma autobio-grafia do autor; b) ao contrário do livroanterior, não conter invasão de sua priva-cidade e/ou injúrias ou difamações à suapessoa. O livro Roberto Carlos em Detalhesnão foi censurado ou apreendido, mas saiudo mercado em face de um acordo judici-al, irrevogável e definitivo, assinado es-pontaneamente pelo au-tor do livro, o editor e aeditora”.

“A nota divulgada peloadvogado, que, aliás, épersonagem de O Réu e oRei, mostra que eles aindaestão se agarrando ao quelhes resta, que é proibir olivro anterior. Dizer que oacordo foi assinado ‘es-pontaneamente’ é um si-nal de que não leram meunovo livro. A luta conti-nua. Roberto Carlos em De-talhes não será proibidopara sempre, como diz anota do advogado de Ro-berto Carlos. Lamentoque eles insistam nisso”,reagiu o autor. A Compa-nhia das Letras tambémposicionou-se. “Conside-ramos O Réu e o Rei – como relato da pesquisa e dospassos que fizeram comque a biografia de Roberto Carlos fosseretirada do mercado – um marco na histó-ria da luta pela liberdade de expressão noBrasil, e em particular da luta pela liberdadede publicação de biografias e livros que re-tratem a história do nosso País. Comotodos os editores, aguardamos agora que oSenado dê continuidade à tramitação doprojeto da nova Lei das Biografias.”

Num trecho de O Réu e o Rei, PauloCesar relata o que teria dito a RobertoCarlos, antes de assinarem o acordo proi-bindo a biografia de 2006: “Roberto, este

acordo, da forma que está proposto aqui,é um absurdo. Isso é ruim para mim, paraa editora Planeta, para o mercado edito-rial, para a sociedade, e é ruim principal-mente para você. Proibir e queimar li-vros em pleno século 21 é barbárie. Istonos remete à Inquisição, ao nazismo, àsditaduras militares. Protagonizar um atodesses a essa altura de sua carreira seráuma mácula na sua biografia. Não a queescrevi, mas à sua própria”. De nada adi-antou. Roberto foi até o fim e, em plenotribunal, anunciou que lançaria em bre-ve a própria biografia autorizada. E –surpresa! – que a mesma chegaria às livra-rias pelas gráficas da Planeta. Sim, issomesmo: a mesma editora que assinaria oacordo de recolhimento, entregando ao‘Rei’ mais de 10 mil exemplares da bio-grafia escrita por Paulo Cesar.

Com a expectativa de aprovação doprojeto de Lei no Senado, e a posteriorsanção da Presidente da República, o cená-rio será outro, aposta Paulo Cesar de Ara-újo, reconhecido pesquisador da históriada MPB e autor de Eu Não Sou Cachorro,Não (Record) – outra obra de sucesso,dedicada à produção de artistas do chama-do gênero brega, e sua relação com a Dita-dura Militar. “Roberto Carlos em Detalhesentrará para a história como o último livroproibido no Brasil, e o popular cantor vai

figurar como o últimocensor do País”, prevê ojornalista que, apesar detoda a batalhada com o‘Rei’, garante não teremsido abalados seu interes-se ou posição de fã no quese refere ao artista.

“Tenho ainda o mesmosentimento, e falo issocom toda a sinceridade.Entenda bem: minha rela-ção com o Roberto semprefoi estritamente musical,sempre gostei de ouvirsuas músicas, admirei suascomposições. Mas, poroutro lado, sempre fomosmuito diferentes, estive-mos mesmo quase que emlados opostos. Ele é muitosupersticioso; eu não. Écatólico fervoroso; eu souagnóstico. Enquanto pes-soa pública, ele não gostade se envolver com a polí-

tica; eu sempre tive atuação neste campo...Ele é vasco, eu sou flamengo... Sempre fo-mos muito diferentes, mas suas músicasnão ficaram feias só porque ele me proces-sou. Roberto ajudou a construir algumasdas mais belas passagens da história daMPB. Continuo acompanhando sua car-reira, pesquisando, e não posso ter ressen-timentos em relação ao meu objeto de es-tudo. Apenas lamento o que todo este epi-sódio agregou de negativo à sua imagemenquanto artista”, conclui Paulo Cesar,pesquisador sempre atento aos ‘detalhes’.

da com a remoção definitiva de qualquerpossibilidade de censura prévia, como nocaso do artigo 20 do Código Civil”. Emparalelo, a liberação das biografias nãoautorizadas também é discutida no Su-premo Tribunal Federal. “Estamos aguar-dando a posição do STF, e nossa expecta-tiva é positiva em relação à MinistraCármen Lúcia, Presidente da Casa”, ava-lia Paulo Cesar de Araújo.

Deputado Newton Lima: Quem perde com acensura às biografias é a sociedade.

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Agradeço a Jorge Amado ter conheci-do o admirável e saudoso ser humano quefoi Heráclito Fontoura Sobral Pinto, dequem me tornei amigo, amizade que du-rou mais de quarenta anos, décadas delições aprendidas para não desaprenderjamais. Mineiro de Barbacena, onde nas-ceu em 5 de novembro de 1893, SobralPinto estudou na Faculdade de CiênciasJurídicas e Sociais do Rio de Janeiro e, em1917, estava formado. Sua banca de advo-cacia entra em atividade dois anos depois.Faleceu no Rio de Janeiro em 30 de no-vembro de 1991, deixando bem mais po-bre a sua Pátria e o seu povo. Com o seu de-saparecimento perdeu o Direito a suagrande voz, a liberdade o seu amanteamantíssimo, dedicado que lhe foi extre-mamente fiel.

Sendo o segundo maior advogado queo Direito brasileiro produziu em toda asua existência (o primeiro foi Ruy Barbo-sa), transformou a sua Banca de Advoca-cia e Saber numa policlínica popular, paratodos os doentes, em todas as épocas quenecessitassem de liberdade. Por lá passa-ram – além de Luís Carlos Prestes –, Gra-ciliano Ramos, Adauto Lúcio Cardoso,Juscelino Kubistchek, Carlos Lacerda, Mi-guel Arraes, Hélio Fernandes, Mauro Bor-ges, Carlos Marighela, Francisco Julião,Gregório Bezerra, Oswaldo Pacheco, LuísTenório de Lima e uma infinidade de ví-timas do arbítrio que se instalou no Bra-sil, em 1937, com a ditadura de Getúlio Var-gas, e em 1964, com o golpe militar contrao Governo João Goulart.

Tínhamos a mesma paixão pelo timedo América do Rio de Janeiro: pertence-mos durante anos ao seu Conselho Deli-berativo. Nunca vi o velho Sobral maisalegre do que quando o clube do nossocoração levantou o Campeonato Cario-ca de 1960. O vi extremamente triste, in-dignadíssimo quando o Conselho ao qualpertencíamos aprovou o nome do Gene-ral Médici, então Presidente da República,como Presidente de honra do nosso Amé-rica. Ele esteve ausente dessa reunião. Nareunião seguinte compareceu. Foi à tribu-na, fez um violentíssimo discurso contrao ato e contra o ditador, e perguntou:“Quem foi o responsável por esse ato? Seeu estivesse aqui teria impugnado essaproposta e teria votado contra. O Améri-ca não precisa disso!”.

Vivíamos uma ditadura cruel, o pró-prio Sobral Pinto havia sido preso e jogadobrutalmente no camburão, na cidade de

sedutores. A tudo resistiu, porém, paraficar fiel às suas idéias, erradas e funestas,é verdade, mas adotadas e seguidas comrara sinceridade”.

Na ditadura de Getúlio não havia umadvogado com coragem suficiente paradefender Luís Carlos Prestes e Sobral Pin-to assume a sua defesa. A batalha é travadaem favor de Prestes e, também, para sal-var a sua filha Anita Leocádia, nascidanum campo de concentração da Alema-nha nazista, para onde fora enviada OlgaBenário Prestes, sua mãe.

O JULGAMENTO DE OLGAAntes, em 3 de junho de 1936, o advo-

gado Heitor Lima ingressou na SupremaCorte – como era chamado o Supremo Tri-bunal Federal – com um pedido de HabeasCorpus em favor de Olga, a fim de evitar asua expulsão do Território Nacional. Napetição ele apela para o Presidente da Cor-te, Ministro Edmundo Lins, que “o presentepedido se processe sem custas (...) porque apaciente se encontra absolutamente des-provida de recursos. O vestido que traz hojeé o mesmo que usava quando foi presa; e o

Goiânia. Após o discurso, deixou o plená-rio, acompanhei-o até a sua residência, naRua Pereira da Silva, no bairro das Laran-jeiras, onde morou por mais de 75 anos.Despediu-se de mim dizendo: “Não pisomais no América”.

VIDAS INTERLIGADASJá tentei diversas vezes escrever sobre

Sobral Pinto sem citar Luís Carlos Prestes,coisa absolutamente impossível. Essasduas existências, esses dois grandes ho-mens, tiveram suas vidas interligadas.Prestes, marxista, ateu; Sobral Pinto, lídercatólico, conservador, anticomunista.Ambos nos deram exemplos de dignidadehumana diária. Sobral Pinto, aos 95 anos,ainda trabalhava para viver. Prestes, deixoque sobre ele fale o mestre Sobral Pinto:

“Por maiores que sejam as suas culpas,há nele alguma coisa de grande e elevado.Se ele tivesse pensado somente em si,como aconteceu com Góis Monteiro,Getúlio, Juarez, e tantos outros, seria es-tas horas General do Exército brasileiro,e quiçá, Ministro da Guerra. Em 1930,não lhe faltaram oferecimentos, os mais

DEPOIMENTO

Sobral Pinto e Prestes:duas vidas que se cruzam

Amigo fiel de Sobral Pinto, o jornalista GERALDO PEREIRA DOS SANTOS gravou preciosos depoimentos do grandejurista desde 1970. Aqui, ele relata alguns deles. Em especial, seu encontro com Luís Carlos Prestes.

POR GERALDO PEREIRA DOS SANTOS

pouco dinheiro, os valores e as roupas quea polícia apreendeu na sua residência, nãolhe foram restituídos; e que faça submetera paciente a uma perícia médica, no senti-do de precisar seu estado de gravidez”. Olgaestava grávida de sete meses.

O pedido foi indeferido. O advogadoHeitor Lima vai à réplica: “Se a justiçamasculina, mesmo quando exercida poruma consciência do mais fino quilate,como o insigne Presidente da Corte Su-prema, tolhe a defesa a uma encarceradasem recursos, não há de a história da civi-lização brasileira recolher em seus anaisjudiciários o registro dessa nódoa: a con-denação de uma mulher, sem que a seufavor se elevasse a voz de um homem noPalácio da Lei. O impetrante satisfará adespesa do processo. Rio de Janeiro, 4 dejunho de 1936. Heitor Lima, advogado.”

As custas do processo totalizaram qua-torze mil e oitocentos réis (14$800). Oprocesso foi julgado e a decisão pela Su-prema Corte foi a seguinte: “Nº 26155 –Vistos, relatados e discutidos estes autosde habeas corpus, impetrado pelo Dr. Hei-tor Lima, em defesa de Maria Prestes, que

Sobral Pinto e Luís CarlosPrestes (na página ao lado):

uma fraterna amizade quecomeçou na prisão.

LEWY M

ORAES/FO

LHAPRESS

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ora se encontra recolhida à Casa de De-tenção, a fim de ser expulsa do territórionacional, como perigosa à ordem públi-ca e nociva aos interesses do País.

A Corte Suprema, indeferindo não so-mente a requisição dos autos, do respec-tivo processo administrativo, como ocomparecimento da Paciente e bem assima perícia médica a fim de constatar o seuestado de gravidez, e atendendo que amesma Paciente é estrangeira e a sua per-manência no País compromete a seguran-ça nacional, conforme se depreende dasinformações prestadas pelo Exmo. Sr. Mi-nistro da Justiça; atendendo a que emcasos tais não há como invocar a garan-tia constitucional do habeas- corpus, avista dos dispositivos artigo 2, do Decretonº 702, de 21 de março deste ano;

ACCÓRDA, por maioria, não tomarconhecimento do pedido.

Custas pelo impetrante.Corte Suprema, 17 de junho de 1936.Edmundo Lins, Presidente, Bento de

Faria Relator.”Uma decisão vergonhosa e mesquinha

que cobriu de vergonha todos os membrosdaquela Corte: entregar aos carrascos na-zistas uma mulher grávida de sete meses,casada com um brasileiro. A sessão foi pre-sidida pelo Ministro Edmundo Lins, coma presença de todos os Ministros, compo-nentes da mesma, a saber: Hermenegildode Barros, vice-Presidente; Bento de Faria,relator; Eduardo Espínola, Plinio Casado,Carvalho Mourão, Laudo de Camargo,Costa Manso, Octávio Kelly, Ataulpho dePaiva e Carlos Maximiliano. A decisão daSuprema Corte foi a seguinte: “Não conhe-ceram ao pedido contra os votos dos Mi-nistros Carlos Maximiliano, CarvalhoMourão e Eduardo Espínola, que conheci-am e indeferiam.”.

Olga foi metida no navio La Coruña,que partiu do Rio de Janeiro, em 23 de se-tembro de 1936; chegando a Hamburgoem 18 de outubro. É imediatamente en-tregue aos seus carrascos, levada paraprisão feminina nazista de Barnimstras-se, onde dá à luz uma menina, em 27 denovembro, que recebeu o nome de Ani-ta Leocádia. Ficando com a filha, na fasede amamentação até os 14 meses. Depois,a menina é entregue à Dona Leocádia,mãe de Prestes, sua avó, que se encontravana Europa, lutando, clamando pela liber-dade do filho. Graças à solidariedade re-cebida, conseguiu salvar a criança das gar-ras das bestas nazistas.

Em março de 1938 Olga é transferidapara o campo de concentração Lichten-burg, sendo um ano após levada para outrocampo de concentração, esse só de mulhe-res, o Ravensbrück, onde como cobaiasserviam para experiências médicas. Olgafoi assassinada em 1942 no campo de ex-termínio de Bernburg, onde centenas demilhares de judeus tiveram o mesmo fim.Sobre este episódio, Sobral Pinto deu-meo seguinte depoimento:

“Se eu fosse advogado de Olga, ela nãoteria sido expulsa, não teria sido expulsa!O advogado escolhido foi o Heitor Lima,era a coisa mais simples desse mundo. OCódigo Civil Brasileiro declara no artigo

6º que a personalidade humana começacom o nascimento, mas, a lei assegura egarante desde a concepção o direito do nas-cituro, ela estava grávida de 7 meses, grá-vida de quem? De um brasileiro. Ficougrávida onde? No Rio de Janeiro, territó-rio Nacional. Então, aquele feto era brasi-leiro, sendo brasileiro não podia ser extra-ditado porque a lei de extradição, de expul-são, não permitem que o brasileiro seja ex-pulso ou extraditado. O brasileiro que pra-tica um crime no estrangeiro vem para oBrasil, a Nação pede ao Brasil para extra-

ditar, o governo não pode extraditar. Com-promete a processá-lo aqui, mas não extra-dita, ele não manda. Uma das partes tinhaque ter isso. A Lei não permite a expulsãode brasileiro e esse feto é brasileiro. Eracanja isso e o advogado não fez isso.”

Sobral Pinto, então, é questionado senão poderia ter orientado o colega em suadefesa de Olga. “Nem eu sabia, só vim asaber depois, porque isso foi em setembrode 1936, e eu só fui advogado do Prestesem janeiro de 1937. Eu fui convidadopelo Tragino Ribeiro, Presidente da Or-dem dos Advogados, que bateu à porta deseis advogados, alguns dos quais, supôs eleque fossem comunistas ou esquerdistas,ele me disse que procurou aqueles que, porsuas idéias, tinham obrigação de defendê-lo, mas todos recusaram. Tragino então re-correu a um advogado católico que tam-bém recusou, em nome do catolicismo.Nessa altura, ele louco porque o juiz es-tava a exigir a indicação de um nome. Eleentão vem a mim e diz: ‘Sobral, não é pos-

sível que a Ordem não tenha...’ E eu dis-se: ‘Não! Você está sendo generoso, por-que a lei autoriza você indicar e ninguémpode recusar, e se recusar você pode sus-pender. O Conselho suspende, está na Lei’.Mas esse católico não sabe o que é a cari-dade cristã. Ele não conhece o evangelho:‘Aquele que é do reino de Deus tem que seramigo, não só do amigo, mas do inimigo’.Fazer bem àquele do qual recebeu o malestá no Evangelho, isso que Santo Agos-tinho resumiu numa frase lapidar: ‘Odi-ar o pecado e amar o pecador ’”.

Indicado pela Ordem, Sobral contacomo foi o seu primeiro encontro comPrestes, na condição de seu advogado. “Eufui a primeira pessoa com a qual ele se en-tendia após a prisão. Ele tinha sido inter-rogado pelo juiz do Tribunal de Segurançaque tinha o processo dele. Foi apenas in-terrogado e saiu. A primeira pessoa comquem ele conseguiu falar francamente fuieu. Então, durante uma hora e meia,numa exaltação tremenda, ele atacou ogoverno, atacou o Tribunal de Segurança,atacou o tratamento brutal que lhe esta-va sendo aplicado em incomunicabilida-de rigorosa, atacou a Ordem dos Advoga-dos, atacou a mim dizendo o que é que eupoderia fazer se o Senador Chermont, quehavia requerido um habeas corpus ao Tri-bunal, com autorização do Senado, esta-va preso e sendo processado. O que é queo senhor, um ‘advogadozinho’ pode fa-zer? E durante aquela uma hora e meia deum discurso extraordinariamente exalta-do, nesse discurso muita coisa era verda-

de. Muita coisa não era. Então, ele meproibiu de apresentar a defesa”, contaSobral Pinto, que segue em seu relato.

“No dia que eu entrei com a petição aoTribunal, em defesa do Prestes, eu fui à pri-são onde ele se encontrava, para lhe en-tregar uma cópia. Mandei levar. Eu nãofui ao quarto dele, porque foi uma coisadesagradável, o que tinha acontecido an-tes. Ele levou mais de meia hora e pediupara vir à minha presença, o comandan-te autorizou. Ele veio com dois guardas,um de cada lado. Disse-me: ‘Eu queria per-guntar ao senhor, se o senhor realmenteentrou com essa petição?’. Eu respondi:‘É evidente que sim. Eu não seria capaz detrazer ao senhor palavras que não tivesseapresentado ao Tribunal, sobretudo ao se-nhor que não tem meios de verificar seentrei. O senhor não tem ninguém em con-tato, a única pessoa em contato com o se-nhor sou eu’. E perguntei ‘por que?’, e elerespondeu-me: ‘A petição está muito bemfeita, sobretudo, muito corajosa. Meus pa-rabéns!’. A censura esqueceu de avisar osjornais que não publicassem nenhuma de-fesa no Tribunal de Segurança Nacional.Um comunista pediu uma certidão dela elevou para o jornal O Radical, que a publi-cou, na primeira página. E outro comunis-ta, marinheiro francês, mandou para adona Leocádia, que se encontrava em Pa-ris. Ela leu a petição e se entusiasmou. Es-creveu a Prestes dizendo: ‘tenha confiançano doutor Sobral. Não há motivo para re-cusar a sua defesa’. Ele mudou de orienta-ção e aceitou a minha defesa”.

AS CARTAS DE SOBRALE DONA LEOCÁDIA

A correspondência entre Dona Leocádiae Sobral Pinto é constante. Em 19 de mar-ço de 1937, ele dá ciência ao Ministro da Jus-tiça, José Carlos de Macedo Soares, atravésde uma carta sua: “Honrando o apelo an-gustioso que Dona Leocádia Prestes medirige, do seu penoso exílio, passo às mãosde V.Exa. a carta que ela, aflita e esperança-da, escreveu ao senhor Ministro da Justiçado Brasil. Católico e patriota, eu me honrocom o desempenho desta missão, de que mevi investido pela veneranda mãe de LuísCarlos Prestes. Tudo farei, na medida dasminhas energias morais e da minha capaci-dade profissional, para evitar que o Governobárbaro e odiento de Hitler pratique amonstruosa iniquidade de tirar das mãos desua mãe uma tenra criança de dez meses. Seme dirijo agora à V.Exa., na qualidade deadvogado ex-officio de Luís Carlos Prestes,é porque não posso alijar da minha convic-ção a certeza de que cabe ao Governo bra-sileiro a maior responsabilidade desse cri-me contra os direitos da maternidade, queora se prepara, fria e cruelmente no recin-to de uma prisão da outrora e gloriosa Ger-mânia. Como admitir, assim, justificativapara o ato do Governo Brasileiro, que en-tregou, consciente e deliberadamente, OlgaBenário Prestes à vingança do racismoodiento e perseguidor de Hitler. Cruzar asautoridades brasileiras, os braços, ante a ini-quidade que ora se projeta levar adiante con-tra um coração materno, num dos presídi-

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24 JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

os políticos da Alemanha, é procedimentoque não se compreende que a consciênciacristã profliga”.

Respondendo a outra carta recebida deDona Leocádia, diz o notável jurista que umdelegado de polícia vai falar com Prestes, naCasa de Correção para saber “em que País,e em que data Luís Carlos Prestes teria se ca-sado com Olga Benário Prestes. Das respos-tas do filho de V.Exa. é que irá depender a si-tuação da menina Anita Leocádia”. Antesfoi a luta para encontrar um Tabelião a fimde lavrar a escritura pública de reconheci-mento, por parte de Luís Carlos Pres-tes, de sua filha Anita Leocádia. So-bral bateu às portas de quase todosos cartórios e só encontrou o medoe a má vontade. Isto sem falar em al-guns membros do Partido Comunis-ta que não se mostravam satisfeitoscom a sua atuação no processo. Aesse respeito, Sobral escreve:

“Consolo-me, porém, com as de-clarações do filho de V.Exa. feitasde público, de que ‘estando cerca-do na Polícia Especial, só de vermes,apareceu-lhe, afinal, um homem’.Este homem fui eu”. Mais adiante,na sua defesa oral, acrescentouLuís Carlos Prestes: “O senhorSobral Pinto exerce a advocaciacomo um sacerdócio”. O prazo parao reconhecimento da paternidadede Anita Leocádia praticamenteestava no seu final, mas Sobral Pin-to consegue um tabelião e envia di-retamente à Gestapo uma certidãocom a respectiva versão alemã daescritura de reconhecimento damenor Anita Leocádia. O que pou-ca gente sabe, o que o Brasil precisa saber,é que esse documento pelo qual SobralPinto tanto lutou, salvou a menina dasgarras odientas da Gestapo.

Em outra carta, datada de 12 de maio de1937, Sobral Pinto escreve para DonaLeocádia: “Obtive ontem, finalmente,autorização do Chefe de Polícia para entre-gar ao seu filho os objetos que me remeteupara tal fim. Hoje, se Deus quiser, irei atéa Polícia Especial para, na presença do Co-mandante dessa Força, passar às mãos deLuís Carlos Prestes as roupas e objetos deuso que ele estava realmente necessitado.Parece incrível que a supressão das liber-dades tenha atingido, no Brasil, tais extre-mos que um advogado precise fazer as pe-regrinações às quais tive que me entregarpara conseguir dar a um preso político al-gumas roupas que a sua velha mãe, tam-bém exilada, lhe mandara de longas terras”.

Pergunto ao Dr. Sobral: “O Prestes só secomunicava com a mãe através do senhor?Ele tinha liberdade de ler jornais e livros?”.O velho mestre, com a memória privilegi-ada, responde: “Eu estabeleci uma corres-pondência permanente minha com a donaLeocádia e consegui que o juiz do processoestabelecesse uma correspondência sema-nal do Prestes com a mãe. Ela, primeiramen-te, em Paris, depois, com a Segunda Gran-de Guerra Mundial, em 1939, foi para oMéxico. Ele semanalmente escrevia à Mãee recebia uma carta dela. Eu consegui tam-bém para Prestes a assinatura do Jornal do

Commercio e do Correio da Manhã. Ele rece-bia diariamente esses dois jornais. Conse-gui também a autorização para o Prestesreceber livros, e chegou a ter mais de milvolumes na prisão onde se encontrava, naCasa de Correção, na Frei Caneca.”

A DEFESA DE PRESTESSobral Pinto falava ainda da expecta-

tiva de conseguir a absolvição de LuísCarlos Prestes e os seus companheiros darevolução comunista. “Eu não podia deforma nenhuma tentar obter a absolvi-

ção, por duas razões muito simples. Aprimeira é que o Prestes e o Berger tinhamdeclarado à Polícia, quando foram pegos,que eram os organizadores da Revoluçãode 1935. De modo que eles assumiramnobremente a responsabilidade por ela.Em segundo lugar, ao prendê-los junta-mente com o Bonfim, que era o secretá-rio do Partido Comunista, a polícia ficoucom todo o arquivo desses personagens.Ela tinha a prova concreta e documentalda participação deles de modo que nãopodia pensar em absolvição. O que eu pre-tendia e tentei fazer em relação ao Bergere ao Prestes era obter uma condição depessoa humana que lhes estava sendo ne-gada pelas autoridades policiais da época,que consideravam ambos como uns ani-mais hidrófobos. Prestes, de início, estavaem incomunicabilidade rigorosa. Coloca-do numa prisão sem livros, sem jornal. Eo Berger num socavão de escada, como sefosse um cão hidrófobo. Então, eu tinha aobrigação de tentar que eles fossem colo-cados numa prisão condigna, numa prisãoà altura da sua situação de pessoas huma-nas, membros da família humana. Isso erao que achava que devia fazer”.

O brilhante advogado ainda explicou-me as razões que o levaram a pedir paraBerger a Lei de Proteção dos Animais. “Eleestava num socavão de escada, e a lei deproteção aos animais não permite que secoloque o animal numa situação impró-pria para sua natureza. Alguns utilizavam

o exemplo do cavalo. O cavalo precisa deespaço, e se colocar o cavalo numa baiasem poder sair, sem poder correr, depois decerto tempo começa a entristecer... Semquerer comer, ele acaba morrendo. Colo-car um homem num socavão de escadacom acesso para o primeiro andar, pela qualdia e noite desciam e subiam os soldados,e com uma grade externa e frontal, erapositivamente uma monstruosidade. Eraa prática de um ato criminoso até para umanimal, quanto mais para um ser humano.Eu levei seis meses para conseguir tirá-lo

desse lugar. Quando eu consegui me enten-der com o Berger, ele estava preso há maisde um ano nessa situação, e já estava umpouco perturbado. Eu consegui que ummédico psiquiatra fosse examiná-lo e eleme disse que a perturbação que o Bergertinha era proveniente da situação em quese encontrava. E se fosse retirado logodesse local, ele ainda poderia salvar-se,poderia readquirir o seu juízo perfeito.Mas se ele continuasse assim, poderia seagravar. E aí seria irremediável a loucura.E foi o que aconteceu, quando eu o tireiele estava inteiramente perturbado.”

LIBERDADE E ELEIÇÃODepois de cumprir nove anos de prisão,

Luís Carlos Prestes é anistiado por Getú-lio Vargas, em 19 de abril de 1945, próxi-mo ao término da Segunda Grande Guer-ra Mundial, juntamente com os demaispresos políticos. Já em liberdade, Prestesdá uma entrevista coletiva à imprensa,pregando a União Nacional com Getúlioe também a “Constituinte com Getúlio”.Uma semana após, mais precisamente em28 de abril, Sobral Pinto escreve a LuísCarlos Prestes: “O respeito que lhe devo,a amizade que nos une, a magnitude doassunto, e os altos interesses do Brasil nãome permitem guardar silêncio em face dasua atitude, corporificada nessa entrevistade ontem. Julgo-me, assim, no dever inde-clinável de lhe expor, com franqueza esinceridade, o que eu penso da sua atitude

de agora, não só no que diz respeito ao seufuturo, mas, também, no que se refere aofuturo da nossa Pátria”, introduziu Sobral.

“Quero fixar, de início, a posição dra-mática em que me encontro. Sou seuadvogado ex-officio até ontem, vivemosjuntos e solidários oito longos anos desofrimentos, inquietações e incertezaspermanentes, animados sempre, todavia,pela certeza da vitória final contra a pre-potência sombria e brutal da ditadura doSr. Getúlio Vargas, que oprimia, com des-respeito às prerrogativas de homem, a dig-

nidade do próprio cidadão brasilei-ro. Nada valho, nada sou, modestoobreiro do Direito, minha vida sevem processando em lutas cotidi-anas, ásperas e bravias, em prol doreinado da Justiça. A nada aspiro,senão lutar pela liberdade, efetivae real, no seio de nossa Pátria. Eisporque, magoado e triste li sua en-trevista. Ora, Capitão Luís CarlosPrestes, para que possamos chegarno Brasil ao entendimento dessanatureza, é indispensável que nósnão nos aproximemos do Sr. Getú-lio Vargas”.

Nas eleições de 2 de dezembro de1945, Prestes se elege Senador peloDistrito Federal, antiga capital da Re-pública, como se chamava a cidadedo Rio de Janeiro. Eleito para omandato de cinco anos, só cum-priu dezoito meses. Vivíamos o Go-verno do General Eurico GasparDutra, um governo arbitrário naacepção da palavra – para ele nãohavia Constituição. Ele agia comoum subalterno do governo america-

no, fiel cumpridor de todas as suas ordens:intervir nas entidades sindicais de esquer-da; prender, espancar e processar seus di-rigentes; proibir comícios do Partido Co-munista, empastelar seus jornais, cassar oregistro do Partido Comunista e os man-datos dos seus parlamentares. “Presteslevou meses sem aparecer no Senado, mes-mo sem ter sido cassado”, me diz SobralPinto.

O Senador Bernardes Filho avisou aoDr. Sobral que a polícia estava esperandoPrestes no Senado para prendê-lo. SobralPinto de imediato comunicou ao Prestes,através do Capitão Rolemberg. Uma cer-ta tarde, Prestes chega ao Senado, faz umdiscurso de alguns minutos e vai embora.Perguntei ao Dr. Sobral por que nunca secandidatou a cargo eletivo, ao que elerespondeu-me: “Eu poderia ter-me feitoDeputado tranqüilamente, pelo Rio deJaneiro ou por Minas Gerais. Eu tive aoportunidade de ser Senador em condi-ções excepcionalíssimas. Em 1947 fez-sea eleição do terceiro Senador. Lembre-seque a Constituição de 1946 criou só doisSenadores, mas no curso de 1946 resolve-ram fazer o terceiro. Então, nessa ocasiãotrês partidos no Rio de Janeiro reuniram-se e me ofereceram a senatoria, dispen-sando-me dos seus respectivos progra-mas. Foi anunciado isso nos jornais.Nessa época, o Partido Comunista eralegal. Prestes era Senador pelo Rio deJaneiro e mandou me convidar através de

O jornalista GeraldoPereira ouve o jurista

Sobral Pinto: umamante da liberdade.

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DEPOIMENTO SOBRAL PINTO E PRESTES: DUAS VIDAS QUE SE CRUZAM

25JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

um grande amigo dele e meu, o comunis-ta Rolemberg (oficial que foi expulso doExército e voltou pela anistia 16 anos depois).Ele vinha toda semana aqui no meu escri-tório. E veio me consultar se, na realida-de, eu era candidato porque, se fosse, oPartido Comunista votaria fechado comi-go. Logo que eu vi as notícias nos jornais,comuniquei imediatamente aos três par-tidos que eu não aceitava, e não aceitavapor isso: porque eu não confiava nospartidos. Eis a razão porque eu nunca fuinem Senador nem Deputado.”

AS PRISÕES DE SOBRAL PINTOTanto na ditadura de 1937, como na de

1964, Sobral Pinto foi preso. A primeiradetenção ocorreu na Casa de Detenção,quando o tenente Canepa, seu temíveldiretor, tentou agredi-lo, chamando-o dementiroso. “Mentiroso é você”, respon-deu-lhe o corajoso Sobral. De outra feita,revoltado com a agressão covarde come-tida por meia dúzia de policiais, diante docomandante da polícia especial, coronelEuzébio Queiroz, contra Prestes, SobralPinto sai em sua defesa. O coronel Euzé-bio Queiroz, era um homem forte e vio-lento, partiu para cima do Sobral Pinto,que era franzino, agarrando-o e rodopi-ando seu corpo. Sobral agarrou-se ao pes-coço do coronel, para não ser arremessa-do ao chão. Recordei, certo dia, na casa dePrestes, esse episódio covarde e violento,quando ele ressaltou a coragem de SobralPinto: “Nesse momento, também, so-brou para ele”.

Em 18 de dezembro de 1968, Costa eSilva assina o Ato Institucional nº 5.Sobral Pinto encontrava-se em Goiânia,para onde fora paraninfar a turma daFaculdade de Direito da Universidade deGoiás. Depois, me confidenciou o queacontecera com ele naquele dia. “Geral-do, Goiânia é muito quente. Eu estava dechinelo, sem meias, de manga de camisa,bateram à porta. Era um emissário de umimportante político de Goiás, que coloca-va à minha disposição, com total seguran-ça, um carro completamente equipado,com um motorista que conhecia minuci-osamente toda a região, inclusive comcondições de levar-me para o exterior, poiseu seria preso à tardinha, o que seria umavergonha para o Estado de Goiás.”

Sobral Pinto agradece o zelo pela suapessoa, mas não aceita a oferta. Declarapara o mensageiro: “Devo dizer que dos70 bacharelandos, até o momento em quea comissão foi ao Rio de Janeiro, comis-são constituída de três bacharelandos,para me dizer que tinham me eleito para-ninfo da turma, eu não conhecia o nomede nenhum só desses bacharelandos, nemsabia quem eram. Evidentemente, essaspessoas me convidaram pelo meu passa-do que não é de covardia, nem de medo.Então, nessa hora eu vou dar a esses rapa-zes uma demonstração de medo e covar-dia? Em hipótese alguma! Agradeço mui-to o seu interesse e do seu amigo. Mas, eufico aqui. Eu apenas não acato a ordem deprisão que querem me dar.”

E realmente, mais tarde, o que era pre-visto aconteceu. “Um militar bateu à

porta e me disse o seguinte: ‘O Presiden-te da República, Marechal Costa e Silva,mandou ao senhor uma ordem por meuintermédio, para o senhor me acompa-nhar ’. E respondi: ‘Ordens ilegais comoessa, eu não as obedeço’. Então, ele me dis-se: ‘Nós temos que quebrar o senhor’. ‘En-tão, quebre! Pouco me interessa. Eu nãovou absolutamente. Com os meus passos,não vou.’ Eles tiveram que me arrastar, eme jogaram no camburão.”

Levaram-no para o quartel do Exército,em Goiânia, e depois para Brasília, ondeficou preso durante três dias. Mas SobralPinto protesta, em carta enviada ao Presi-dente Costa e Silva: “... através do referi-do Ato, V.Exa. instituiu em nossa Pátria aDitadura Militar. Sou, senhor Presidente,uma das vítimas do Ato Institucional n.º5. A Polícia Federal de Goiás, invocando onome de V.Exa. deu-me voz de prisão, or-dem que não acatei, declarando que nemV.Exa., nem ninguém, nesse País, é dono daminha pessoa e da minha liberdade. Nadafizera para esta perder.”

“Recusava altivamente acatar ordemtão absurda e tão ilegal. Mal pronuncieiessas palavras, quatro homens de complei-ção gigantesca lançaram-se sobre mim,como vespas sobre a carniça, imobilizan-do-me os braços e apertando-me o ventrepelas costas. Em seguida, empurraram-me,como autômato, do quarto ao elevador,onde me empurraram. Deste até o carro,que se encontrava à porta do hotel, fize-ram idêntica manobra. Colocado no carrode mangas de camisa, como me encontra-va no quarto, conduziram-me a um bata-lhão, que fica nos arredores de Goiânia.Neste permaneci uma hora, mais ou me-nos. Depois de um atrito com o Coman-dante da Unidade, que tentou desrespei-tar-me, fui levado ao Quartel da Polícia doExército, em Brasília, onde fiquei trêsdias, sempre respeitado pela oficialidade,desde o coronel comandante até o maismodesto dos tenentes”.

PARA PAGAR AS CONTASAdvogado criminalista,professor uni-

versitário, Sobral Pinto não cobrava ho-norários dos políticos, nem dos pobres,que eram a sua grande clientela. “Cobra-va de quem?”, perguntou-se, certa vez,o mestre Evandro Lins e Silva. Na déca-da de 1940, para adquirir a carne verde(como se chamava a carne de boi, naépoca), só no câmbio negro. O chefão docâmbio negro, na cidade de São Paulo,estava com a polícia no seu encalço. Eleé aconselhado a procurar um grande ad-vogado para defendê-lo. O indicado erao famoso advogado carioca Sobral Pinto.Segue para o Rio de Janeiro e procuraSobral, cujo escritório ficava na Rua daAssembléia, e tinha como vizinho de salaoutro grande advogado. Era Evandroque, tomando conhecimento do caso,disse para o colega: “Esse fulano tem mui-to dinheiro, na hora de cobrar os honorá-rios quem acerta sou eu”. Sobral Pintoconcordou, mas pediu a Evandro que nãocobrasse muito. Essa his-tória quem mecontou, rindo muito, foi o saudoso Evan-dro Lins e Silva.

Sempre que visitava o doutor Sobral,conversávamos longamente, sobre osmais diversos assuntos. Lembro que numadessas vezes, o encontrei muito preocu-pado. “Dr. Sobral, se precisar de mim,disponha. Estou vendo que o senhor estámuito preocupado”. Era fim de mês. Ele merespondeu: “Tenho que pagar minha secre-tária, dona Marlene, telefone, luz”. Digo-lhe, estou indo para São Paulo, se o senhorme autorizar, falarei com Caio Graco, fi-lho de Caio Prado, editor da Brasiliense,muito meu amigo, que pode tirar umanova edição dos seus li-vros Lições de Liberdadee Porque Defendo os Co-munistas, ambos esgota-dos. Dr. Sobral concor-da. Em São Paulo, faleicom Caio que ficou con-tentíssimo. Na hora eletelefonou para a EditoraComunicação, de BeloHorizonte, e foi infor-mado que havia umaponta de estoque de 800exemplares de um títuloe 700 do outro, o que im-possibilitava que a Brasi-liense editasse os referi-dos livros.

Com o apoio de meusamigos Luís Tenório e Afonso Delelis,assessor para assuntos sindicais do Gover-nador Franco Montoro, chego à sua pre-sença e lembro-lhe do Congresso da De-mocracia Cristã, realizado no Uruguai, em1946, cujos representantes do Brasil seri-am Sobral Pinto e Alceu Amoroso Lima, asmaiores expressões do catolicismo brasi-leiro. Sobral telefona para Alceu e diz: “Al-ceu, tem em São Paulo um jovem de mui-to futuro, ele vai com você no meu lugar”.Esse jovem era André Franco Montoro.Expus as dificuldades em editar o livro.De imediato ele se prontificou a adquirirtodos os exemplares para distribuí-los nasescolas do Estado. Saí dali muito satisfei-to. À tardinha já estava no escritório domestre Sobral Pinto. Dou-lhe a notícia.Ele me encara e com uma impostação devoz, até então, desconhecida por mim,diz: “Montoro não pode gastar o dinhei-ro do Estado comprando os meus livros.Não aceito. Você não está autorizado afalar mais nesse assunto, se quiser sermeu amigo”. Não disse mais nada.

UM SONHO DE SOBRALCerta tarde, em seu escritório, num

longo bate papo, dizia-me que o seu so-nho era ser Ministro do Supremo. Deimediato lhe respondi: “Dr. Sobral, essesonho não se tornou realidade porque osenhor não quis, não é verdade?”. Recor-demos um pouco a história: JuscelinoKubitschek havia vencido a eleição, em1955, e as forças mais retrógradas do Paísqueriam impedir a sua posse. Sobral Pin-to, com o seu saber e, acima de tudo, coma sua reconhecida força moral, que lheconferia a mais alta respeitabilidade pú-blica da Nação, saiu em defesa do Jusce-lino. Foi a ‘pá de cal’ no sonho dos golpistasda UDN. Ao tomar posse, Juscelino con-

vida Sobral Pinto para ser Ministro doSupremo Tribunal Federal. O velho So-bral, com aquela dignidade que era o seumaior patrimônio, não aceita o convite.Fixando-me bem nos olhos, disse: “Iriamdizer que eu defendi a posse dele para serMinistro. Não! Não podia aceitar.”

“Para ser um bom advogado não é su-ficiente só estudar o Direito. É preciso terum temperamento próprio para a profis-são, pois a profissão requer luta, trabalho,coragem, esperança, a profissão requerum ideal pela aplicação justa e razoável

do Direito. Não basta,portanto, conhecer asleis e interpretá-las. Sãoindispensáveis todasessas qualidades que aca-bei de enumerar. Umgrande advogado não sefaz sem esses elementosque eu acabo de apontar.Não é só a razão, não é sóa inteligência, não é só acultura que fazem umgrande advogado: étambém o seu tempera-mento, é também a suaconvicção de que a pro-fissão exige muito es-forço, muita coragem, emuita disposição para a

luta”, defendia Sobral.Mesmo com idade avançada, ele não

largava seu ofício. “Eu preciso trabalharporque não tenho rendas. Eu trabalho pornecessidade. É claro, é evidente que tam-bém por gosto. Eu gosto de trabalhar, euacho que o trabalho completa o homem.Nosso Senhor, quando criou o homem,mandou que ele trabalhasse. Então, euacho que o trabalho é elemento funda-mental da existência de todo e qualquerhomem. Mas, além dessa circunstância,eu trabalho porque preciso da renda doescritório, pois não tenho outra para memanter e à minha família. Eu trabalho,também, por entender que enquanto ti-ver saúde, essa saúde que Deus me deu, éminha obrigação trabalhar.”

Por fim, o questiono sobre a receita paratamanha vitalidade. “Geraldo, você per-gunte isso a Deus. Eu jamais fiz qualquercoisa para manter a vitalidade que consigoaté essa idade. Nunca fiz dieta, nunca fizregime, nunca tive preocupação em ter umhorário permanente em cada dia; a minhavida é inimiga de horários. Eu só tenho duashoras certas: é a hora de me deitar e a horade me levantar. A hora de me deitar rara-mente é antes da meia noite; e a hora de melevantar é raramente depois das seis damanhã; as únicas coisas que tenho feitocom constância. O mais não é absoluta-mente resultado de esforço ou preocupa-ção minha, é única e exclusivamente gene-rosidade e bondade de Deus. Aquilo quesou, aquilo que tenho sido, decorre únicae exclusivamente da minha fé em Deus, daminha fé em Jesus Cristo e da minha fé naIgreja como depositária das verdades eter-nas pregadas por Deus. Vou todos os sába-dos à missa e, no domingo, eu ouço natelevisão. Também meus filhos são católi-cos. Alguns, relaxados. Mas são católicos.”

O velho Sobral, comaquela dignidade

que era o seu maiorpatrimônio, nãoaceita o convite.

Fixando-me bem nosolhos, disse: “Iriam

dizer que eu defendia posse dele para serministro. Não! Não

podia aceitar.”

26 JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

DOCUMENTO HISTÓRICO

MAX NUNES E O HUMOR QUEBALANÇA, MAS NÃO CAI

Como homenagem, o Jornal da ABIresgata e publica histórica entrevista do

mestre do humor, concedida há 16 anos.

POR GONÇALO JÚNIOR

Exatos 50 anos separavam o cariocaMax Newton Figueiredo Pereira Nunes,Max Nunes, daqueles que foram sem dú-vida os doze meses mais marcantes de suavida, quando o entrevistei para o jornalGazeta Mercantil, na primeira semana demaio de 1998. Ao longo do ano de 1948,ele se casou, conseguiu o tão sonhado di-ploma de Medicina e foi, enfim, contra-tado pela primeira vez por uma emisso-ra de rádio, a Nacional (uma espécie deRede Globo radiofônica dos anos de1940 e 1950), depois de algumas experi-ências avulsas no meio.

Segundo ele, o rádio surgiu em suavida a partir da combinação de certoacaso e da necessidade de bancar os estu-dos de Medicina. Concluído o curso, ojovem médico continuou dividindo seutempo entre as duas profissões. Não de-morou para que essa aparente esquisitamistura de consultório com texto parafazer rir lhe desse duplo credenciamen-to para tratar da saúde do brasileiro, sejana emergência de um hospital, seja pormeio do riso como terapia. Max ganhouautoridade para afirmar que dar risada émesmo o melhor remédio.

Em um depoimento de 1985, ao con-frontar o rádio dos áureos tempos da Na-cional e a televisão dos anos de 1950 –quando o veículo chegou ao Brasil – como que estava sendo feito nos dois veícu-los naquele momento, Max não deixouescapar a nostalgia e disse considerar orádio daquela época muito mais criativoe inteligente. “Hoje, na televisão, o su-cesso e o fracasso não dependem mais decada um de nós. Existe todo um comple-xo industrial que castra a criatividade su-focada pelos ibopes, estatísticas, pesqui-sas de mercado. Isso faz do produtor umsimples executante de uma receita debolo”, reclamou.

E acrescentou, com seu estilo perspicaze de inteligência bem humorada. “Se o es-tilo é o homem, a televisão acabou com oestilo e está prestes a acabar com o homem.Creio no que disse o Sérgio Porto: ‘A tele-visão é uma máquina de fazer doidos’. Es-pero, se Deus quiser, livrar-me o quanto an-tes de uma provável camisa de força”. O hu-morista, dessa vez, falou sério, mas jamaisabandonou os bastidores da telinha. Pelocontrário, abandonou o rádio e mergulhoude cabeça no humor de caras e bocas.

Por outro lado, Max nunca deixou delado a carreira de cardiologista. Na déca-

da de 1960, foi um militante ativo nafundação do Instituto Brasileiro de Car-diologia, em Ipanema. Nas últimas dé-cadas, porém, a televisão passou a absor-ver a maior parte do seu tempo. Nos 22anos em que trabalhou na Globo, antesde se mudar para o SBT, criou quatro pro-gramas antológicos de humor: Faça Hu-mor, Não Faça Guerra (1970), Satiricom(1973), Planeta dos Homens (1976) e Vivao Gordo (1981).

Com excesso de modéstia e franque-za incomum, Max garantiu durante estaentrevista que todas essas atrações eram,na verdade, a “mesma coisa”, só que refor-muladas depois de algum tempo, com ainclusão de novos tipos e cenários. Nocaso dos três primeiros, ele bolou perso-nagens hilários que consagraram o talen-to do humorista Agildo Ribeiro. Mas foicom Jô Soares que formou uma dupla nãomenos eficiente e com quem mais teriase identificado. Tanto que gerou um co-mentário apimentado de Agildo, algunsanos depois: “Em parte, a inteligênciaexibida por Jô Soares se deve a ele”.

A contribuição desse cardiologista dereconhecida competência é única na his-tória do humorismo nacional. Dotado detalento natural para fazer trocadilhoscom as palavras e ver tudo de modo cari-catural, Max Nunes fez do rádio e, prin-cipalmente da televisão, uma diversãopara quem queria fugir das amarguras docotidiano. Aos 76 anos, ele optou portrocar, nos últimos dez anos, o exercíciode alimentar com graça parte de suascentenas de personagens e criar tantosoutros por um cargo um pouco mais sé-rio: escrever para o programa de entrevis-tas de seu afilhado, Jô Soares Onze e Meia,exibido pelo SBT a partir de 1988.

Em 2000, o programa seria transferidopara a Rede Globo, com o nome de Progra-ma do Jô, para onde o apresentador levoutoda a sua equipe – Max seria responsávelpelos textos de abertura até a sua morte,ao lado do fiel escudeiro Hilton Marques.O afastamento do riso pareceu pouco lheimportar. Sempre um autor por trás dascâmeras, ele se disse satisfeito com o queconstruiu em mais de meio século de rá-dio, quase 40 anos de tv e outros tantoscomo autor de revistas de teatro. Sua lu-cidez e disposição, no entanto, continu-avam as mesmas, como demonstrou nes-ta longa entrevista em sua casa, no bair-ro da Gávea, Rio de Janeiro.

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27JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

Como se deu sua formação de humoris-ta? Veio de casa, do seu pai?

Max Nunes – O meu pai era jornalista,escritor e humorista no começo do século.O nome dele era Lauro Carmeliano PereiraNunes, mas assinava com o pseudônimoGuerra de Sena. Papai foi secretário de vári-os jornais, fundou outros. Uma revista queele lançou foi O Que Há, que se escrevia O-Q-A. Ele também trabalhou na Vamos Ler;uma revista que circulava quando ele esta-va começando na profissão. Papai cuidava deuma seção chamada Gazeta de Cartas, naqual recebia poesias dos leitores e dos cola-boradores da revista. Mas ele trabalhou amaior parte de sua vida mesmo em jornal.Passou pelo Diário de Notícias e Gazeta deNotícias.

Seu pai participou diretamente da guerrados jornais que marcou a Revolução de1930, quando algumas publicações fo-ram invadidas e destruídas por seremsimpatizantes do governo deposto?

Max Nunes – Sim, a Redação de O Jornal,onde papai trabalhava, foi empastelada naRevolução de 1930. Ele não era político, nãose metia nesses assuntos, mas fazia parteda seção artística do jornal. Quando estou-rou a Revolução, ele saiu arrastado da Reda-ção com uma arma apontada na cabeça porum sujeito que não parava de gritar, acusan-do-o de estar escrevendo contra os tenentes.Foi aquela confusão quando os revoltososamarraram os cavalos no obelisco... Feliz-mente, ele escapou sem ferimentos desseepisódio.

O fato de seu pai ser jornalista aproxi-mou o senhor do interesse pela imprensa?

Max Nunes – Nossa casa, naquela época,vivia cheia de escritores, de colegas jornalis-tas de papai, que trabalhavam em diversaspublicações. Então, sempre o via com BastosTigre, Camilo Cordeiro e os grandes caricatu-ristas da época, como J. Carlos e outros. En-fim, cresci nesse meio e isso deve, de algumaforma, ter me influenciado.

Seu pai tinha formação acadêmica?Max Nunes – Não, não tinha nada. Era

apenas jornalista auto-didata. Como nãohavia escolas de jornalismo naquela época,geralmente o sujeito passava antes pelocurso de Direito. Mas papai nunca foi ad-vogado. Ele era um sujeito tão inteligenteque, mesmo sabendo pouco inglês, traba-lhava na Companhia de Eletricidade Light(acabou diretor da Revista da Light), ia paraas reuniões da empresa e conseguia enten-der tudo o que os oradores falavam. Éramosdois filhos, eu e Lauro, que foi durante muitotempo engenheiro da Panair, trabalhavacomo instrutor de vôo. Ele me disse certavez: “Avião não cai, derrubam”. Por issonunca tive medo de avião.

Seu pai também desenvolveu algumasatividades no meio artístico?

Max Nunes – Sim, foi empresário de mui-tas companhias de óperas e operetas. Foi elequem lançou a cantora Marília Batista, quese consagraria como uma das intérpretespreferidas de Noel Rosa. Papai também orga-nizava festivais de música da Light. Eu mes-mo fui acompanhado, certa vez, por NoelRosa numa dessas competições.

Como foi mesmo essa história?Max Nunes – Nasci em Vila Isabel e mo-

rava numa casa praticamente vizinha à deNoel. Quer dizer, eu sabia que era vizinho dele,mas ele não fazia a menor idéia de que eu eravizinho dele, claro. Noel conhecia meu pai,mas não chegou a freqüentar nossa casa.Quem aparecia lá de cantores eram SílvioCaldas e outros. Naquela época, eu até can-tava bem, viu? Recebi o apelido de “gargan-tinha de veludo”, num programa infantil daPRC-8, Rádio Guanabara. Pois, num dessesconcursos da Light, Noel me acompanhouno violão. Cantei: “Vai pra casa depressa /vai prevenir teu senhor...”

De quem se recorda desse período comocantor mirim que se tornou famoso?

Max Nunes – Bom, derrotei na finalíssi-ma de uma competição, que não me recor-do qual, o futuro tenor Paulo Fortes. Na ado-lescência, cheguei a fazer parte do conjuntoBando Tropical, com Hélio (violão), Miltinho(pandeiro) e Nanai (percussão). Decidi inter-romper a carreira quando o grupo começoua exigir viagens para outros estados, o queme obrigaria a faltar às aulas da faculdade.

Nesse ambiente cultural que seu pai lheapresentou, certamente tinha muitocontato com os livros?

Max Nunes – Sem dúvida. Papai gostavamuito de literatura e também acabei pegan-do o gosto. Eu lia de tudo. Desde (a revistainfantil) Tico-Tico a hábitos esquisitos, comogostar muito de decorar os verbos no parti-cípio, de fazer paródias. Apesar de tudo, dainfluência de papai, sempre quis ser médico.

O que seu pai apoiava: a Medicina ou acarreira artística? Ele queria que o senhorseguisse a profissão dele, jornalista?

Max Nunes – Não, ele não falava nadasobre isso. Eu cantava porque precisava de di-nheiro para estudar. Papai não tinha dinhei-ro. Tanto que nasci no dia 17 abril de 1922, massó fui registrado no dia 17 de setembro domesmo ano, porque papai não podia pagaruma multa por causa de um problema qual-quer – creio que ele estava viajando – e não meregistrou logo. Para não pagar a multa, colo-cou a data do meu aniversário em 17 de se-tembro. Aquele foi um ano bom, porque ti-vemos a Semana de Arte Moderna.

Como se deu sua aproximação com omundo artístico? Tudo aconteceu somen-te por causa do fato de seu pai convivercom artistas?

Max Nunes – A relação de papai com opessoal do teatro, da imprensa e do rádiofacilitou de certa maneira as coisas. Mas elenunca falou que eu deveria ser artista ou queseguisse outra profissão qualquer. Apenastocava um pouco de violão e decidi arriscar.A coisa ficou mais séria quando, na época doginásio, fui colega de Mauro Muniz, que hojeé o maior cardiologista do Rio de Janeiro. Poisbem, a mãe dele, que assinava Maria Célia,escrevia para Barbosa Júnior, que tinha umprograma na Rádio Nacional à noite. Comovivia muito na casa do Mauro, ela pareceuter se espantado com meu jeito brincalhãoe sarcástico de tirar sarro de tudo e, ao saberdas minhas dificuldades financeiras, propôsque a substituísse: “Ô Max, você leva jeitopara essas coisas de rádio. Faz o seguinte,

você fica secretariando Barbosa Júnior nomeu lugar, porque você precisa de um dinhei-ro. Faz isso por mim porque estou queren-do deixar esse trabalho. Por enquanto, vocêfica trabalhando comigo. Quando acharrealmente que você já pode me substituir,paro de escrever”. E foi assim que comecei.

O que fazia inicialmente para MariaCélia?Max Nunes – Eu me tornei literalmente umassistente de Barbosa Júnior, que tambémtrabalhava na Rádio Guanabara. Estavasempre atrás dele, fazendo pequenos traba-lhos de texto. Aí, passei a escrever algunsesquetes para o programa dele, Barbosadas,apresentado à noite na Nacional. Fazia ain-da paródias, pequenas canções, interpreta-va provérbios.

Com o tempo, o senhor foi assumindooutras funções no programa?

Max Nunes – Tornei-me meio que um es-tepe para ele. Minhas funções passaram a sertambém redigir comerciais e escrever pecinhas.Fiz isso até entrar para o curso complementar,quando aconteceu um fato engraçado. Meupai chegou para mim e disse: “Olha, Max,tenho um amigo, Frederico Schmidt, que époeta e se dá com muita gente. Vai lá, fala comele, vê se consegue uma matrícula para vocêno (colégio) Dom Pedro II, parece que ele éparente de alguém importante lá”. E fui pro-curá-lo na Rua da Quitanda. Schmidt era umsujeito enorme, dava uns três Jô Soares. Eu dissede quem era filho e o que queria, e ele respon-deu: “Pois não, pois não, vou lhe dar um car-tão para que o senhor procure o colégio emmeu nome”. Quando ele me deu o papel e olhei,não tinha nada escrito, só um rabisco. Fiqueiassim, olhando, e ele disse: “Você está estra-nhando, né? É o seguinte, se for sentar paraescrever: peço, por favor, para ajudar meuamigo, filho de um amigo meu, a pessoa docolégio não vai te atender”. Porque essas pes-soas influentes têm esses truques, né?

O rabisco funcionava como uma senha,não era?

Max Nunes – Sim, exato. E ele disse: “Vocêdá esse cartão para ele assim mesmo em bran-co”. Aí fui lá, no Flamengo, disse que estava aliem nome do senhor Frederico Schmidt. Ofuncionário respondeu: “Ah, pois não, o quevocê quer e tal. Volte amanhã, às 9 horas, noPedro II”. Pronto, aí fiz meu curso comple-mentar. Nem sei se havia curso preparató-rio para entrar no colégio. Se havia, eu nãoteria mesmo dinheiro para pagar, não é?

Na sua época tinha vestibular?Max Nunes – Tinha, tinha. Não era esse

vestibular maluco que tem agora, claro. Haviaum vestibular em que o candidato fazia pro-va oral, escrita. Lembro-me que fiquei dois anosem casa trancado, de pijama, sem ir a lugarnenhum, só estudando para o vestibular.

O senhor foi aprovado em que ano?Max Nunes – Passei em 1942, mais ou menos

na época em que acabaria contratado paratrabalhar no rádio.

Quando o senhor começou a colaborarcom Barbosa Júnior?

Max Nunes – Por volta de 1940, 1941. Es-tava ficando maior de idade. Continuei tra-

balhando com Barbosa Júnior até que um diaAry Barroso e Chacrinha ouviram algumascoisas que eu tinha feito, gostaram e me apre-sentaram ao diretor da Rádio Tupi, GilbertoMartins, o mesmo que seria responsável pelaintrodução das radionovelas na Nacional.Martins, então, pediu alguns textos meus paraler. Ele era um sujeito tão inteligente que leuaquilo tudo que eu havia feito e não achou amenor graça. Disse apenas: “Seu Max, o se-nhor deixa seu nome, endereço e telefone que,se precisar, ligo para o senhor”. Aí disse: “SeuGilberto, é o seguinte, não tenho nenhum idealde rádio, estou querendo apenas ganhar umdinheiro para estudar”. Ele respondeu: “Ah,não faz mal, deixe seus dados, deixe aí...”. Mas,15 dias depois, ele mandou alguém telefonarpara que fosse lá e assinou comigo meu pri-meiro contrato como profissional de rádio.Isso ocorreu por volta de 1942.

E a música? Nesse momento, o senhornão quis seguir adiante a carreira como‘gargantinha de veludo’?

Max Nunes – Não. Logo depois de ter fei-to o vestibular para entrar na faculdade, nãopodia mais continuar cantando, porque asviagens atrapalhariam meus estudos Quan-do o nosso conjunto fechou um contrato como Cassino da Pampulha, em Belo Horizonte,até que íamos bem, mas era difícil conciliaressa atividade com o curso de Medicina.

O senhor já fazia composições, marchi-nhas de Carnaval?

Max Nunes – Fazia, mas deixava na ga-veta. Não participava de concursos de mar-chinhas, nada disso. Sempre fui um compo-sitor eventual, nunca me dediquei a compormúsicas regularmente.

E a inclinação para o humor, já existia nes-sa época?

Max Nunes – Ah, meu gosto pelo humorveio do papai. Como já disse, além de jornalis-ta, ele era humorista e já havia escrito dois livrosde humor, que nunca foram reeditados. Eu jáacumulava alguma noção de como escreverpecinhas do gênero porque havia colaboradocom textos em jornais de colégio – fazia sone-tos para professores, gozando deles. Enfim,essas coisas de brincadeiras de escola.

Apesar do trabalho no rádio, a Medicinasempre foi uma prioridade profissional?

Max Nunes – Sempre. Gostava muito debiologia e desde pequeno queria ser médico.Sabe por quê? Quando papai me pergunta-va por que queria ser médico, respondia paraele: “Tenho vocação para ser pobre, então, vouser médico”. Tenho quatro filhos: Maria Cris-tina e Bia Nunes, que são atrizes; Maurício,que era diretor do Domingão do Faustão e ago-ra está trabalhando com Gugu (Liberato), noSBT; e Sílvia, que está em piores condições quetodos porque é médica (risos).

Quanto tempo o senhor ficou escrevendotextos para a Tupi?

Max Nunes – Quando comecei na Tupi,havia um programa chamado Rádio Sequên-cia G3 e, por acaso, estourei nele um quadro,que era A Queixa do Dia, apresentado diari-amente ao meio-dia. Fez muito sucesso.Naquele tempo, a grande estrela da locuçãode rádio era Aloísio Silva Araújo, com o pro-grama Cadeira de Barbeiro, e trabalhava com

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ele quando fiz um programa noturno, aossábados, chamado Ninguém Rasga, que eraum jornal de humor. Tinha esse nome por-que, como era um jornal falado pelo rádio,ninguém poderia rasgá-lo. Ainda na Tupi, fizoutros programas, como Audições Rataplane O Jornal, entre alguns menos votados, oumelhor, menos ouvidos. Com esses peque-nos sucessos, Victor Costa me chamou paratrabalhar na Rádio Nacional.

Voltando um pouco, como funcionava seuprimeiro êxito no rádio, A Queixa do Dia?

Max Nunes – Era um quadro com menosde dez minutos e se parecia com um tribu-nal de justiça, bem engraçado, onde se dis-cutiam pequenos casos. Havia todos os ele-mentos de um tribunal, o advogado de de-fesa, o promotor, o juiz, que era o doutorMendonça, as testemunhas, o júri... O dou-tor Mendonça foi meu primeiro tipo desucesso, interpretado por Abel Pêra.

A programação de humor no rádio nessaépoca, anos 1940, já era significativa?

Max Nunes – Não, estava começando.Havia o Haroldo Barbosa, que fazia algumascoisas nesse gênero, mas não tínhamosmuitos programas com quadros de humor.Tanto que, quando lançamos Balança MasNão Cai, em 1950, tratava-se do primeiroprograma de humor do rádio brasileiro comquadros em determinado local, isto é, tudose passava dentro de um edifício.

Os seus primeiros programas de humortinham personagens fixos, como o ra-diojornal de humor Ninguém Rasga?

Max Nunes – A Queixa do Dia tinha. De-pois, para o programa do Manoel Barcelos,fiz o Palácio dos Veraneadores, uma assembléialegislativa municipal que funcionava comouma sátira aos vereadores que não gosta-vam de aparecer muito nas sessões legisla-tivas. Nessa época, fazia também um qua-dro chamado O Amigo da Onça, baseado nopersonagem homônimo de Péricles, umapágina de humor que era publicada semanal-mente na revista O Cruzeiro.

O êxito de seus quadros teve impacto aponto de atrair a atenção de outros pro-dutores para seu trabalho?

Max Nunes – Olha, teve. Eram quadrosque não derrotavam as novelas da RádioNacional, que eram apresentadas naquelehorário, mas tanto tiveram repercussão queVictor Costa resolveu me chamar para tra-balhar na Nacional. Entrei para a Nacionalquando já havia me formado em Medicina.Isso aconteceu em 1948, no mesmo ano emque me casei (com a artista plástica NinaRosa). Lá, fiz Rádio Show, Show é 8 ou 80,Quando o Mundo Gira, Rua 42, Cine Metro eMeio e Doutor Infezulino. Fiz dois anos deprogramas diversos até que, no final de 1950,lancei Balança Mas Não Cai.

Este programa, aliás, mudaria os rumosdo humor no rádio e influenciaria bas-tante a tv nas décadas seguintes. Comoele surgiu?

Max Nunes – Sobre a história do progra-ma, aconteceu um fato engraçado. Era umaépoca ainda praticamente do pós-guerra ehavia muita dificuldade de se conseguir casaou apartamento para morar no Rio de Janei-

ro. As famílias se reuniam e alugavam umúnico apartamento para morarem todas nomesmo lugar. Então, os prédios estavam tãoapinhados de gente que dizíamos: “Temtantas pessoas que o prédio chega até abalançar”. Daí nasceu Balança Mas Não Cai.

Quer dizer, a idéia de ambientar umprograma num único prédio surgiu doproblema do déficit habitacional no Rio?

Max Nunes – Sim, aí fui elaborando ostipos. Até aconteceu outro episódio tambémcurioso. Quando levamos o programa paraFloriano Faissal, que era o diretor, ele tinhaescalado os personagens da seguinte forma:o Primo Pobre seria interpretado por PauloGracindo, e o Primo Rico, por Brandão Filho.Então, tá. Só que eu disse para o Faissal queachava engraçada a escalação dele, porqueGracindo tinha cara de rico, mas ia fazer opapel de pobre, e o Brandão, que tinha carade pobre, faria o papel de rico. Como já es-tava tudo acertado previamente, convenciBrandão e Gracindo a mudarem de lado. Elogo no primeiro programa foi um sucessodanado. Tínhamos também o Peladinho,torcedor do Flamengo, que sempre diziaaquele bordão “Mengo, você é o maior”, e erainterpretado pelo Germano.

É verdade que o programa ficou na ga-veta por um tempo?

Max Nunes – É verdade. Criei o programa,fiquei elaborando os quadros durante mui-to tempo, mas não tinha data exata paralançá-lo e nem sabia sequer se ajudaria aemissora. Até que encontrei no corredor Vic-tor Costa, diretor da rádio, e ele me disse:“Max, estou com um problema aí porqueLauro Borges e Castro Barbosa — que fazi-am o programa de maior sucesso da emis-sora, o PRK-30 — não estão querendo reno-var o contrato. Já estamos há quase um mêssem eles no ar e acho que eles querem ir paraa Tupi. Você tem algum programa para co-locar no ar?” Respondi: “Olha, tenho um pro-grama aí, sim, que se chama Balança MasNão Cai e, se o senhor quiser, levo para mos-trá-lo”. Ele respondeu: “Não, não precisa le-var para eu ver, não. Faz o seguinte, fala parao Floriano Faissal que você falou comigo e lan-ça o programa na sexta-feira, às 9 horas”.

Nessa época, vocês satirizavam figuraspúblicas?

Max Nunes – Havia ainda muita censu-ra dentro da Rádio Nacional, que era do go-verno e, por isso, tínhamos de maneirar umpouco. Mas fazíamos, sim. Éramos obriga-dos a mandar o texto para o DIP, que volta-va censurado. Por causa disso, não satirizá-vamos exatamente uma personalidade pú-blica, mas falávamos da falta d’água, trans-porte, esses problemas relacionados à admi-nistração pública. A censura vinha e aperta-va, mas não era algo tão violento como foina fase dos generais, de 1964 para cá, quan-do a censura se tornou terrível.

Quais tipos foram lançados na fase ini-cial do Balança Mas não Cai?

Max Nunes – Havia um sujeito que eradono de uma motocicleta que para pegartinha de dizer o nome de uma cidade ame-ricana. “Massachusetts, Massachusetts”,mas não pegava. A figura era interpretadapelo comediante Apolo Correia, que passava

para o ouvinte algo entre xingamento e sen-tido de motor se afogando — “Maas... saaa...chus... setts! setts! sets!” Havia muitasoutras atrações que bolávamos, sempre comum textozinho de passagem de um quadropara outro, como se fosse uma vinheta: “E noapartamento tal, o casal tal...”

Nesse momento, o senhor criava sozi-nho os quadros?

Max Nunes – Comecei sozinho, mas teveuma época em que fiquei doente e entrou oMário Brasile, depois Paulo Gracindo tam-bém começou a fazer os textos. Fiquei maisou menos um ano sozinho. Mas sempregostei de trabalhar com outras pessoas,sabe? Vamos conversando, batendo papo, eas idéias vão aparecendo, a gente discute.Além do Balança, havia a dupla Lauro Bor-ges e Castro Barbosa, a mesma que fazia oPRK-30 e cuja saída nos permitiu lançar oBalança. Com esse pessoal, o humor radio-fônico começava a ganhar espaço. Destaca-ram-se nesse começo ainda Silvino Neto,Haroldo Barbosa, J. Rui e Afonso Brandão.Esse tipo de humorismo prosseguiria na tvcom Hilton Marques, José Mauro, ChicoAnysio, Mário Meira Guimarães, AgildoRibeiro, Ronald Golias e Jô Soares.

O senhor se recorda da primeira vez emque estava na rua e alguém repetiu umbordão de um personagem do BalançaMas Não Cai?

Max Nunes – Não me lembro com preci-são, mas acontecia muitas vezes. Era desco-nhecido fisicamente, mas aí começaram apublicar retratos meus em jornais, e as pes-soas começaram a me identificar.

Qual foi o seu primeiro bordão a seradotado pelo público?

Max Nunes – Acho que foi mesmo comBalança Mas Não Cai, e o bordão era do Fla-mengo, dito pelo Peladinho. Era um torcedorfanático que sempre repetia: “Mengo, tu éso maior”. Esse realmente não só foi um dosprimeiros a pegar como ficou na boca dopovo para sempre. Até hoje tem torcedorrubro-negro repetindo isso. Olha, não pos-so afirmar com precisão, mas creio que essequadro, esse personagem, foi responsável pelasimplificação do nome do Flamengo paraMengo. Chegaram a afirmar isso, que o Pe-ladinho tinha sido o primeiro a chamar oFlamengo dessa forma, mas não sabia que

estava fazendo isso de modo pioneiro. Por-tanto, para mim, Mengo foi a partir doBalança Mas Não Cai.

Quando, finalmente, começou a fazermarchinhas de Carnaval?

Max Nunes – Nessa época em que o pro-grama estava começando, ainda não com-punha marchas carnavalescas. Meu ingressono mundo da música como compositoraconteceu em decorrência do sucesso doBalança na Rádio Nacional. Por isso, ao lon-go de muito tempo, escrevi 36 peças parateatro de revista e, por necessidade, fazia ascomposições. Música de sucesso mesmo quefiz foi Bandeira Branca, em parceria comLaércio Alves, lançada em 1970, e talvez oúltimo grande sucesso popular de Carnaval,porque depois vieram só enredos de escola desamba, né? Outro sucesso nosso, de 1959,foi Peço a Palavra, em parceria com Jota Maia,satirizando o jeito falastrão do DeputadoFederal baiano Aliomar Baleeiro. Ganhamosaté um concurso de marchinhas com essacomposição. Tem uma que fiz com Harol-do Barbosa, mas que não traz meu nome por-que eu era de uma organização, e ele, deoutra. Eu era da União Brasileira de Compo-sitores (UBC), e ele, da Sociedade Brasileirade Autores. Na época não podíamos assinarparcerias porque essas entidades recolhiamos direitos separadamente. Hoje, felizmen-te, já pode. Mas nunca fui exatamente umautor de música, um compositor que traba-lha com regularidade.

Ao mesmo tempo que emplacava essesêxitos no rádio, continuava a exercer aprofissão de médico?

Max Nunes – Sim. Após concluir a Facul-dade de Medicina, trabalhei durante doisanos no Hospital do Câncer. Depois fiqueidurante 20 anos prestando serviços ao Esta-do. Nesse período, fundamos o InstitutoBrasileiro de Cardiologia, em Ipanema, ondetrabalhei durante trinta e tantos anos e sólarguei há uns dez anos porque vim para SãoPaulo fazer o programa do Jô Soares.

Como o senhor conciliava consultóriocom tantos programas de rádio e teatro,além da música?

Max Nunes – Praticamente não dormia.Levava papel e lápis para os plantões e ficavaescrevendo para o rádio nos breves momen-tos de folga. Ficava ligado naquilo tudo, ti-nha de escrever, ensaiar, uma loucura.

Balança Mas Não Cai ficou no ar durantequanto tempo?

Max Nunes – Saí da Nacional dois anosdepois do lançamento do Balança, e a emis-sora deu continuidade ao programa. Nostempos da Nacional, além de exercer a Me-dicina, eu fazia seis ou sete programas,eram programas demais. Faziam sucesso,a rádio me pagava em dia, mas estava di-fícil suportar aquela rotina. Aí, um dia mechamaram e conversamos num bar: “ÔMax, é o seguinte: nós queríamos que vocêvoltasse para a Tupi. O que você imaginaque poderíamos fazer para convencê-lo amudar de casa?”. Respondi: “Olha, faço seteprogramas na Nacional e gostaria de fazerapenas um programa”. Eles: “Nós queremosvocê para fazer um só programa”. Disse issoachando que eles desistiriam de mim, por-

“Quando estava na Globoe queria que passasse

determinado trecho, e o censorestava lá, de prontidão, nóscombinávamos: ‘Quando ocensor estiver lendo esse

trecho, você entra e arma umabriga daquelas violentas

comigo’. Então, no momentocombinado, o pau quebrava, eo censor entrava para apartar.Aí, não raro, passava aquilo

que a gente queria.”

DOCUMENTO HISTÓRICO MAX NUNES E O HUMOR QUE BALANÇA, MAS NÃO CAI

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que queria mesmo era continuar na Medi-cina, entende?

Mas eles insistiram?Max Nunes – Não desistiram e insistiram

na mesma hora. Aí, perguntaram: “Parafazer um programa na Tupi, quanto é quegostaria de ganhar?”. Pensei comigo: “Voupedir logo um absurdo que é para eles desis-tirem desse negócio”. E pedi um absurdo, tipo50 mil cruzeiros na época. E eles: “Fechado!”.Sem alternativa, limitei-me a dizer que es-tava bem, que iria conversar com Victor Cos-ta sobre a proposta deles. Quando disse isso,eles ficaram com receio de a Nacional fazeruma contraproposta e acrescentaram: “Estábem, você vai falar com o Costa, mas antesnós vamos ali num escritório bater umacarta-compromisso, não é contrato. Se vocêconseguir se livrar da Nacional, você assinacom a gente”. Ainda tentei um último argu-mento: “Mas acontece que, se sair da Naci-onal, terei de pagar uma multa de 100 milcruzeiros”. E eles remendaram: “Nós paga-mos”. E pensei: “É, não tem jeito”.

Como Victor Costa reagiu à sua saída?Max Nunes – Ele era meu amigo. Antes

de conversar com ele, falei com Eurico Silvae Paulo Gracindo, e eles me disseram: “Max,não há jeito de você não aceitar isso. Nóssentimos muito, mas vá em frente, vá falarcom Victor”. Sabe o que ele disse para mim:“Você está proibido de passar pela porta daRádio Nacional”. Mas depois voltou a sermeu amigo. Quando foi para a Rádio Clu-be, ele até me chamou para ir trabalhar lá.

Ainda na Nacional, tinha uma equipe paraajudá-lo a escrever os programas?

Max Nunes – Não, tinha o Gracindo, queescreveu quando fiquei doente. Quando vol-tei, ele continuou me ajudando.

Na Tupi, o senhor teve alguma criaçãode impacto na audiência como aconteceucom Balança Mas Não Cai, da Nacional?

Max Nunes – Curioso foi que, quandoestava indo para a Tupi, a televisão estavaengatinhando no Rio. Na rádio fiz Uma Pulgana Camisola, meu primeiro programa naemissora e que acaba de virar até livro, lan-çado pela Companhia das Letras. O progra-ma deu mais que certo e fez muito sucesso.Tinha uns tipos que ficaram bastante conhe-cidos, como Seu Viúvo e Dona Viúva. Cria-mos uma dupla de personagens – que, anosdepois, levei para a Globo – interpretada pelaNádia Maria, que era Ofélia, e Fernandinho,com aquele refrão que ainda hoje é conheci-do de todos: “Cala a boca, Ofélia” (o mesmoquadro voltou a ser apresentado a partir de1999, no programa Zorra Total, da Rede Glo-bo). No final de cada quadro, ela sempre di-zia para o marido: “Você sabe que eu só abroa boca quando tenho certeza”. Algo pareci-do agora está sendo aproveitado pelo Sai deBaixo, da Globo, quando o personagem deMiguel Falabella diz: “Cala a boca, Magda!”.Tivemos um quadro que também agradoumuito, Boate do Ali Babá e os Quarenta Gar-çons, que logo ganharia uma versão para a tv.Foi nessa boate que apareceu o famoso de-putado Baiano, mais uma sátira minha aojeito falastrão do deputado Aliomar Baleei-ro. Ainda na Tupi, no rádio e na televisão, fizMarmelândia, o País das Maravilhas.

Era exatamente aí que queria chegar, nasua entrada para a televisão. Foi umaconsequência natural, como aconteciacom os quadros da Rádio Tupi, que cos-tumavam ser aproveitados na tv?

Max Nunes – Olha, sim. O primeiro pro-grama que fiz na Tupi foi o Folie Brandão,com Brandão Filho. Depois de lá fui para aExcelsior.

A ida para a televisão, antes de qualquercoisa, acrescentou-lhe mais uma profis-são e mais trabalho, além do que o se-nhor fazia no rádio, na música, no tea-tro e na Medicina?

Max Nunes – Sem dúvida. Fui para a Ex-celsior em 1962, onde fiquei dois anos, até aRevolução de 1964, que realmente viria aacabar com a emissora. Lá, fazíamos pro-gramas de humor, ajudávamos nos showsde auditório.

Na Excelsior, o senhor criou um progra-ma que faria história no humor televi-sivo, que era A Grande Família, certo?

Max Nunes – Fizemos também A Gran-de Revista, um programa no formato de tea-tro de revista adaptado para a televisão.Nessa época ainda era tudo ao vivo, o video-teipe não havia chegado ao Brasil. Na Excel-sior, criamos A Grande Família, reforçando aaudiência da prestigiada emissora.

Nesse momento, o senhor ainda cola-borava com o rádio?

Max Nunes – Não, deixei o rádio ainda nadécada de 1950. Fui para a Rádio Tupi como objetivo de fazer programa de rádio, masfui sendo levado cada vez mais para a tele-visão, onde acabei me fixando em definitivo.

Com o golpe militar de 1964, o senhorsofreu alguma pressão dos militaresnaquele processo de expurgo dos comu-nistas e supostos opositores do regime?

Max Nunes – Não, não tinha nenhumpassado revolucionário. (risos)

Havia sempre em sua carreira, até en-tão, a preocupação no sentido de fazerhumor político, de satirizar as mazelassociais e o governo em seu programas?

Max Nunes – Sempre houve, semprehouve. Acredito que se poderia acompanhara história do Brasil nas décadas que se segui-ram a 1950 pelos meus programas, apesarde ter um histórico de muita perturbação porparte da censura contra meus textos. Até osanos 1980, quando já tínhamos alguma li-berdade para falar mais abertamente, a cen-sura não largou do meu pé. No tempo darádio e depois da TV Tupi, a censura era forte.Éramos forçados a brigar com os censores doDIP. Implicavam com tudo, política, sexo.Nada passava sem identificarem algumproblema, alguma ameaça ao sistema. Nostempos da revolução que se seguiu a 1964,porém, foi muito pior, porque aí não tinhajeito de conseguir convencer os censores aliberarem nossos programas impunemente.Até frase do Hino Nacional eles censuravam.

Na ditadura, a censura aos programasde humor para tv era sempre prévia,ainda no texto?

Max Nunes – Os textos voltavam com umcarimbo de proibido. Havia casos curiososcomo o de uma censora que chegou para mimcerta vez e disse: “Olha Max, até deixariapassar, mas se fizer isso vão me transferir parao Amazonas”. Era terrível, a pressão vinha detodos os lados. Mas nós inventávamos recur-sos interessantes para tentar driblar os cen-sores. Quando estava na Globo e queria quepassasse determinado trecho, e o censor estavalá, de prontidão, nós combinávamos assim:“Olha, quando o censor estiver lendo esse tre-cho, você entra e arma uma briga daquelasviolentas comigo”. Então, no momento com-binado, o pau quebrava, e o censor entrava paraapartar: “Espere aí, calma, não vamos brigarpor bobagem”. Aí, não raro, passava aquilo quea gente queria, porque desviava a atenção docensor quando ele ia ler o trecho que acháva-mos difícil de ser aprovado. (risos)

A censura era violenta também contrasuas revistas de teatro?

Max Nunes – Pois é, eram implacáveis comtudo que pudesse ser atentatório à moral.Antes da estréia de cada peça, éramos obri-gados a fazer uma apresentação do espetá-culo para as pessoas da censura, que ficavamlá sentadas com a função arbitrária de cor-tar o que achavam que o público não deve-ria ver. Até teve uma cena engraçadíssima,com Agildo Ribeiro, numa dessas apresenta-ções para a censura. O diálogo surrealista acon-teceu entre ele e a censora. Ela dizia: “Essepalavrão não pode”. Ele argumentava: “Então,troco esse palavrão, mas a senhora deixa esseaqui passar, está bem?”. Eles negociavam e saíaum acordo engraçadíssimo, apesar de trágico,por se tratar da censura.

Em algum momento, a repressão rela-cionou seu nome com a subversão, umavez que seus programas não poupavamo governo até onde era permitido?

Max Nunes – Não, não. No tempo do PrimoPobre e Primo Rico, no começo dos anos 1950,Osvaldo Aranha, então Ministro de Vargas,chegou a fazer uma declaração na imprensaque aquele quadro era a maior infiltração co-munista no Brasil. Perguntei: “Mas como?”.O primo pobre nem trabalha, pois assimpoderiam dizer que a gente estava colocandoele contra o patrão. Enfim, aconteciam coi-sas assim, mas nunca chegaram a me incluirem lista de subversivos. Claro que sofremosum pouco naquela época.

Que outro caso de censura o senhor selembra que o incomodou bastante?

Max Nunes – Um exemplo mais recente,nos anos 1980, aconteceu com o CapitãoGay, interpretado por Jô Soares (programaViva o Gordo). Foi uma luta colocá-lo no ar.Em Brasília, havia um capitão, gay de ver-dade, que não ligou, mas a turma que esta-va com ele queria tirar o quadro do ar porqueele pretendia se candidatar a Governador doDistrito Federal e temia que fizessem referên-cia à sexualidade dele durante a campanha– “Hii, olha lá o Capitão Gay”. (risos)

A questão sexual nos seus quadros nãoera tão presente no humor radiofônicoe televisivo quanto a gente vê hoje. Tinhaa ver com a censura?

Max Nunes – Não. Combato muito essetipo de programa com nível para baixo. Nãogosto muito. Hoje, o palavrão substituiu ainteligência. Por que se diz um palavrão etodo mundo ri? Não sei e não consigo enten-der. Se tivesse graça, vá lá. Não que sejapuritano, mas defendo a graça feita cominteligência e bom humor.

Na sua convivência forçada com a cen-sura, além do governo, certamente osseus quadros incomodavam outros seg-mentos, que se sentiam ofendidos, não?

Max Nunes – Claro, claro. Tem até umahistória engraçada que me recordo agora. Nocomeço da década de 1950, estávamos todosreunidos num estúdio da Tupi quando, derepente, entrou um sujeito, na hora da gra-vação, e me disse: “Seu Max, sou funcioná-rio da Petrobras e vim aqui para dizer-lhe queo senhor, no seu programa, tem feito algu-mas críticas à nossa empresa que são injus-tas. Gostaríamos que o senhor encontrasse

ADIR MERA/AGÊNCIA O GLOBO

Max Nunes, em 1979, também teve que driblar os censores quando era redator na Rede Globo.

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outra maneira de criticar a Petrobras. Aliás,já estava para vir falar com o senhor há al-gum tempo e não conseguia encontrá-lo”.Aí, respondi: “Bom, meu rapaz, trabalhonuma emissora de rádio que todo mundosabe onde fica e se o senhor, que é da Petro-bras, não consegue me achar, agora fiqueipreocupado com outra coisa: como é que suaempresa vai encontrar petróleo no fundo domar se um funcionário não consegue descobrirum radialista?” (risos). O rapaz ficou muitosem graça e foi embora.

Os governantes também buscavam for-mas mais amistosas de conquistar suasimpatia?

Max Nunes – Tenho aí guardados convi-tes que me foram feitos pelo Presidente Fi-gueiredo, chamando-me para ir a Brasíliaconversar com ele. Não fui, claro. Mas fiqueiimaginando: se fosse um empresário queprecisasse conversar com o Presidente, teriade esperar uma eternidade e talvez nem con-seguisse agendar uma audiência com ele.Então, como eu era da televisão, ele me cha-mava para uma aproximação, um almoço.Chico (Anysio) acabou indo, e daí nasceuaquela personagem dele, a velhinha Salomé,que conversava com o Presidente pelo tele-fone à noite.

O convite só ocorreu no Governo Figuei-redo?

Max Nunes – Sim, foi quando nossos qua-dros começaram a ser liberados pela censura.Lembro-me de que a primeira piada liberadapara um de nossos programas, e que já esta-va dando pinta de que teríamos uma abertu-ra política, era assim: um garçom chegavacom várias garrafas de uísque e perguntavapara o cliente: “O senhor prefere um ‘presi-dente’ ou um ‘passaporte’ (marcas de uísquefamosas na época)?” (risos). Isso aconteceuquando fazíamos O Planeta dos Homens.

Quando o senhor se transferiu para a RedeGlobo?

Max Nunes – Na segunda metade dosanos 1960. Na Globo, a primeira coisa quefiz com o Jô foi Faça Humor, Não Faça Guer-ra. Depois vieram Satiricom, O Planeta dosHomens e Viva o Gordo.

Vamos por partes. Faça Humor, Não FaçaGuerra era um programa que não sofriainfluência direta do rádio?

Max Nunes – Sim, nada tinha a ver como rádio. Somente o Balança Mas Não Cai,lançado originalmente na Rádio Nacional,acabou aproveitado na televisão. Fizemosuma primeira versão que durou quatro anos,na Globo, entre 1968 e 1971 – depois, foi revi-talizado entre 1982 e 1983. Nessa fase, chega-mos a ter mais de sessenta comediantes quese apresentavam ao vivo num palco do estú-dio que a Globo tinha no Jardim Botânico. Nosanos 1970, quando a Globo não quis dar con-tinuidade ao programa, o Balança foi trans-ferido para a Tupi, onde ficou no ar por todaa década. Todos os quadros do original do rá-dio foram formatados para a televisão.

É verdade que o senhor tentou conven-cer Walter Clark a não lançar a versãopara tv do Balança Mas Não Cai?

Max Nunes – Walter Clark insistiu mui-to para que colocasse Balança no ar, naque-

le momento em que a Globo estava come-çando. Mas eu não queria. Dizia para ele:“Aquele programa está enterrado, já faz tantotempo”. E ele repetia: “Não, vamos fazer denovo, vai dar certo”. A volta da turma doedifício mais pirado do Rio fez tanto sucessoque virou programa de guerrilha pela audiên-cia: se a Tupi tinha um programa em tal ho-rário que estava batendo a Globo, esta deslo-cava o Balança para concorrer com o tal, exa-tamente como faz o SBT hoje contra a Glo-bo. Um dia, o Jota Silvestre chegou para mime disse: “Vou desistir de fazer programas paraa Tupi porque tem uns programas aí que der-rubam a gente do horário, não levam meuprograma a sério”. É mais ou menos comofaz o Ratinho agora, que chega e derruba osoutros programas. O rato está terrível.

O que o senhor pensa desse rato?Max Nunes – Sobre o rato é o seguinte:

tem muito programa de baixaria, mas esserato que está aí é inteligente, não é bobo,não. Ele é mais vivo que muitos. É um tipode Chacrinha, mas esse rato que está aí nãoé trouxa, não.

Como assim?Max Nunes – Acho que ele é um bom

comunicador, é sagaz e creio que vai durar porum bom tempo. Claro que o programa deleé um horror, mas como bom comunicador,daqui a pouco ele vai começar a se ajeitar.

Voltando ao Faça Humor, Não Faça Guer-ra, o título certamente tem a ver com oclima político da época?

Max Nunes – Sim, havia um slogan sobrea mobilização pacifista nos Estados Unidoscontra a Guerra do Vietnã, que dizia: “Façaamor, não faça guerra”. Foi importante e tevemuita repercussão, principalmente para JôSoares, que marcou sua estréia na Globo. Ele

fez muito sucesso com a Norminha, que erauma cantora. Ele deu um show.

Sua parceria com Jô Soares já dura maisde três décadas. Como se conheceram?

Max Nunes – Eu já conhecia Jô de nome,no começo dos anos 1960. Ele namorava aTerezinha Austregésilo, que, por acaso, era aestrela de uma peça minha chamada DeCabral a JK. E Jô, num belo dia, apareceu naminha casa acompanhando ela. Ele entroujá reclamando da invasão dos Estados Uni-dos por um abacaxi enorme e garantindo queestavam atirando suco de abacaxi para todolado. Então, logo que o vi já imaginei: essecamarada é bom, não tem jeito, vai dar cer-to na televisão.

Essa brincadeira do abacaxi tinha a vercom sua peça que estava em cartaz?

Max Nunes – Não, não tinha a ver não.Era uma performance dele, que queria serdivertido e entrou brincando. E assim nosconhecemos. Acabei me tornando padrinhodos dois casamentos dele.

Quando surgiu a primeira oportunida-de de vocês trabalharem juntos?

Max Nunes – Como disse lá atrás, eu ti-nha um programa na Tupi que se chamavaBoate de Ali Babá e os 40 Garçons. Então, es-crevi um quadrinho para ele. Era algo bembobo, apesar de ele dizer sempre que fui euquem o levou para a televisão no Rio. Quenada, era uma bobagem de quadro. Depoisfui para a Globo e lá ele me apareceu, numbelo dia, montado numa moto e voltamosa trabalhar juntos. Começamos com FaçaHumor, Não Faça Guerra, depois Satiricom, OPlaneta dos Homens...

Com Jô Soares, o senhor deu início a umasérie de personagens criados para se en-

caixar no tipo humorístico dele. O senhortem idéia de quantos tipos criou para Jô?

Max Nunes – Em números exatos não sei,mas foram vários. Não fui somente eu quemcriou personagens para Jô. Criei alguns, opróprio Jô criou outros e Hilton Marques, quetrabalhava com a gente, criou tantos outros.Lembro-me de que o primeiro tipo que boleipara ele, já no Planeta dos Homens, foi aque-le quadro do “macaco está certo”. Ah, antesteve também a Norminha. Eram tantos ti-pos criados por nós três que não me lembroquem imaginou qual. Na verdade, todos es-ses programas eram basicamente os mesmos,só mudávamos os nomes e alguns tipos. Aí,criávamos alguns novos todos os anos paradar mais fôlego. Dessas experiências nasce-ram Querias, Zé da Galera...

Zé da Galera marcou época porque co-mentava os jogos do Brasil durante aCopa do Mundo apenas algumas horasdepois do final de cada partida. Era umhumor curioso, instantâneo, não?

Max Nunes – Com Jô, investimos na crô-nica humorística na tv, como Zé da Galera,que aconselhava o treinador da seleção bra-sileira de futebol a voltar para casa, a fim deevitar vexame em outras plagas. Ele era umtorcedor de botequim. Dizia isso depois deuma série de críticas bem fundamentadassobre o desempenho da equipe. Deu tão certoque chegávamos a gravar o quadro numpequeno intervalo de horas entre o fim dapartida e a exibição do programa. Dessemodo, era possível ver Zé da Galera comen-tando o jogo que ocorrera no mesmo dia.Fizemos assim nas Copas de 1982 e 1986,quando o torcedor vibrou e chorou com adesclassificação do Brasil.

O que Satiricom trazia de diferente emrelação a seu antecessor?

Max Nunes – Praticamente nada. Sómudávamos os tipos. Fazíamos apenasalgumas reformulações para dar fôlego aohorário. Ficaram apenas os nomes dos maisevidentes, mais marcantes ao público, comoo Capitão Gay ou “Não me comprometa”.

O último desses programas de humor,Viva o Gordo, trazia como diferencialo fato de centralizar apenas na figura deJô Soares?

Max Nunes – Sim. Todos os outros eramcom Agildo Ribeiro, que saiu da Globo.

Como é o seu processo de criação dehumor?

Max Nunes – Creio que é preciso ter umcerto dom para a coisa, não é? Nessas tare-fas de criação de texto, tudo surge pensan-do, pensando. Não tem esse negócio de queacontece assim: ah, vi um tipo na rua quemerece virar um personagem de humor. Podeaté acontecer assim, mas é raro. Por exem-plo, o Reizinho surgiu de uma história queli num jornal, de que um membro da Acade-mia Brasileira de Letras tomou um táxi, e omotorista, ao vê-lo com aquela roupa galan-te, aquele fardão pomposo, perguntou-lhe:“O senhor é de alguma escola de samba?”.E o imortal respondeu secamente: “Não!”.Aí, o sujeito perguntou se ele era fulano detal. Veio o mesmo não. Por fim, o curiosoperdeu a paciência e perguntou: “Sois rei?”.Aí, ao saber da história, peguei o bordão e

ADIR MERA/AGÊNCIA O GLOBO

Paulo Gracindo e Brandão Filho interpretaram uma dupla impagável no quadro Primo Pobre ePrimo Rico, que marcou época no rádio e na tv durante décadas no programa Balança Mas Não Cai.

DOCUMENTO HISTÓRICO MAX NUNES E O HUMOR QUE BALANÇA, MAS NÃO CAI

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comecei a pensar num tipo que acabaria noReizinho, que sempre repetia esse bordão:“Sois rei?”.

Como surgiu o quadro Primo Rico ePrimo Pobre do Balança Mas Não Cai?

Max Nunes – De uma conversa com (Pau-lo) Gracindo. Um dia, ele me falou que ti-nha um primo rico, mas que era muito so-vina e, toda vez que ele ia pedir alguma coisaa esse primo, ele vinha com uma históriamuito triste.

No seu processo de criação, quando o se-nhor pensa num tipo, imagina semprealgo que terá identificação pelo público?Qual é o truque para fazer um persona-gem pegar?

Max Nunes – Olha, nunca podemos sa-ber quando o sucesso vai acontecer. Se al-guém pudesse saber o que vai se tornar su-cesso, essa pessoa estaria rica. Vou contaruma história que me foi passada pelo Almi-rante (Henrique Foreis Domingues, apresenta-dor e produtor de rádio), que dizia respeito àsua decisão de deixar de gravar marchas deCarnaval. Ele disse que tinha combinado degravar, pela primeira vez, uma música deCarnaval com uma orquestra, composta porLamartine Babo. Era o “Hino do CarnavalBrasileiro” (“salve a morena...”). Então, mar-caram o dia da gravação com um grupo enor-me de músicos, e estava todo mundo anima-do, preparando-se para começar a gravar,quando entrou a dupla Jararaca e Ratinhodizendo que haviam combinado uma grava-ção coincidentemente para o mesmo horá-rio. A música se chamaria “Mamãe Eu Que-ro”. Aí, o pessoal da gravadora chegou paraeles e disse: “Olha, vocês no desculpem, mashouve uma confusão de horário e imaginemque estamos gravando agora a maior mar-cha da história do Carnaval brasileiro, é umacoisa linda, vamos marcar a sessão de vocêspara outro dia”. Almirante, que estava ali nocanto, chegou e disse: “Não, não, espere aí,para que eles não tenham de voltar depois,a gente dá um jeito de gravar hoje mesmo”.Pois bem, ensaiaram, mas Almirante disseque estava muito curta a música, teria de darpelo menos dois minutos e inventou umafrase: “Ô meu filho, o que você quer? Euquero mamar”. Então, par-tiram para a gravação. Elestocaram a introdução, o so-lista desafinou, mas nãoquiseram parar porque ti-nham pressa. Toca, toca, al-guém ordenou. E gravaram.Conclusão: “Mamãe EuQuero” foi parar nos Esta-do Unidos como um gran-de sucesso.

E hoje pouca gente sabeo que é o “Hino do Car-naval Brasileiro”, que, apesar do nomepretensioso, não funcionou junto aogosto do público. Correto?

Max Nunes – Pois é, correto. Nesse mes-mo Carnaval aconteceu algo parecido tam-bém com Castro Barbosa, que queria gravaruma música que ele achava que estourariano Carnaval, mas só deu “Mamãe Eu Que-ro”. Então, essa história mostra o quanto osucesso é imprevisível. Certa vez, um empre-sário montou um espetáculo no João Cae-

tano com todos os coros que havia no Rio deJaneiro. Juntou todo mundo e fez uma revis-ta, e não dava nada de público, ninguémaparecia para ver. Só rendia algo no sábadoe no domingo, mesmo assim com muita di-ficuldade. Então, alguém chegou e disse:“Pega aí alguns esquetes e vamos mudar onome do espetáculo para Vai Quebrar”. Poisnão virou um sucesso de público? É assim,às vezes um detalhe, um nome, um bordãoque faz a coisa pegar.

O senhor saberia explicar por que seustipos alcançam tanta longevidade e aspessoas ficam repetindo seus bordõespor décadas, como aquele “tem pai queé cego”?

Max Nunes – Quando a gente cria, emalguns casos, desconfia que vai fazer suces-so. Balança Mas Não Cai, por exemplo, eu des-confiava que faria sucesso. Mas havia ou-tros que lançávamos e simplesmente nãofuncionavam. Fiz um programa na Globochamado Uau!, que não pegou. Tinha dire-ção de Augusto César Vannucci. Esse pro-grama eu desconfiava que realmente não pe-garia. Na televisão podemos perceber os fi-ascos muito no caso das novelas.

A Praça É Nossa, apresentada aos sába-dos pelo SBT, tem algum tipo criado pelosenhor?

Max Nunes – Não, nunca escrevi para APraça É Nossa.

Mas o programa chegou a ressuscitaralgum quadro seu?

Max Nunes – Tem um quadro do telefo-ne, que o sujeito chega e diz “Alô, Bicudo”,sempre ao lado de um valentão que está bri-gando com a namorada. O sujeito, muitoinoportunamente, fica falando ao telefonecomo se estivesse fazendo comentários so-bre a vida desse casal e isso sempre geravaconfusão. Eu fazia um tipo assim na May-rink Veiga.

Como o senhor vê hoje grandes humo-ristas, como Agildo Ribeiro, afastadosda televisão? (Quando essa entrevista foirealizada ainda não havia o programa Zor-ra Total, da Rede Globo, que marcou a volta

de Agildo à emissora)Max Nunes – As emisso-

ras estão boicotando os pro-gramas humorísticos, nãotenho dúvida disso. Esse gê-nero de atração ainda é vi-ável, dependendo do tipo deprograma que se faz. Cas-seta & Planeta, por exem-plo, tem mostrado isso.Não assisto porque passana terça-feira, quando es-tou em São Paulo gravan-do o Programa do Jô. Portan-

to, não sei como eles estão indo. Os rapazesdo Casseta são muito simpáticos. Lembro-me que eles foram lá no Jô e me parecerammuito simpáticos. O Bussunda chegou paramim e disse: “Ô Max, você está prejudicandoa gente lá na Globo”. E eu: “Como assim?”.Ele respondeu: “É que a gente chega lá pararenovar contrato e eles perguntam quantonós queremos ganhar e quando dizemos, elesrespondem: ‘Ah, isso nem o Max Nunesganhava!’” (risos). Com certeza, eles ganha-

vam pouco lá. Tenho visto por aí gente fa-lando bem deles.

Voltando ao boicote das emissoras aohumor, por que os humorísticos perde-ram tanto espaço?

Max Nunes – Não sei bem como funcio-na isso na cabeça de quem pensa a progra-mação. Creio que a emissora escolhe umadireção a seguir e vai por ali. Talvez esses pro-gramas não sejam muito baratos. Os humo-rísticos como fazíamos na Globo não eramnada baratos, com grande elenco, vários ce-nários, guarda-roupa.

O humor poderia seruma alternativa à discu-tida queda na qualidadeda programação?

Max Nunes – Exata-mente. E lhe digo mais: abaixaria que está aí aindavai piorar muito, porque asclasses D e E assistem muito a esses progra-mas, e os anunciantes vão optar por essaprogramação. Nenhuma fábrica de pianovai ficar anunciando em Ratinho, não é?

O senhor tem idéia do que poderia serfeito para melhorar os programas?

Max Nunes – Isso tem a ver com o graude educação do povo. Mas devem existirprogramas alternativos que tentem melho-rar um pouco o que estão fazendo aí. Ago-ra, não entendo por que um sujeito passa umaou duas vezes de canal e vai ficando, vendoaquilo. Um dá um bofetão em outro, a mu-lher grita com o vizinho ou com o ex-mari-do e depois acaba tudo em pancadaria. Creioque isso acabe resistindo por pouco tempo,porque vira repetição. Mas, por enquanto,deve ficar como está. Nesse aspecto, acho orádio muito mais criativo, muito marcan-te. Tínhamos outros tipos de programa, comoutro nível, para todas as classes sociais. Atelevisão, não. Parece sorvete ou futebol: oué de chocolate ou é de creme.

Depois de cinco décadas fazendo rir,como o senhor definiria seu tipo dehumor?

Max Nunes – Não tem muita discussãosobre isso, não. Esse negócio de dizerem poraí que fazem humor moderno é bem rela-tivo. O que adianta modernizar os progra-mas se o público não ri, não acha graça?Muitas vezes se faz um tipo de humor quenão é engraçado.

O senhor sempre trabalhou com temasespecíficos, já satirizou heróis, brincoucom a vaidade feminina. Essas são assuas marcas?

Max Nunes – Sim, precisamos imaginaralgumas coisas para desenvolver e trabalharem cima, certo? Sobre o que vou escrever?Sobre a mulher? Sobre o casamento? É pre-ciso imaginar. Por falar nisso, casamento éa história daquele sujeito que quer tomarum copo de leite e toma uma vaca. (risos)

O senhor já foi acusado alguma vez deser preconceituoso por causa dos tiposque criou?

Max Nunes – Não, nunca. Já disseram quefazíamos quadros meio machistas. Sempretive uma série de cuidados e predicados para

não ofender as diferenças físicas e sexuais daspessoas.

O que mais o irrita, Max?Max Nunes – Poucas coisas me irritam, e

uma delas é a burrice. No dia em que inven-tarem uma vacina contra a burrice...

E o que é uma pessoa burra?Max Nunes – Você tem como bom exem-

plo o nosso Presidente da República, que é umsujeito culto, mas é burro. Você não acha?Cada vez que ele abre a boca ninguém agüen-

ta as bobagens que saemdali. E o pior é que ele vai serreeleito mesmo nas eleiçõesdeste ano (1998).

Politicamente, o senhortem simpatia por algumpartido?

Max Nunes – Não, nãoacredito em partidos. Nes-

se sentido, já tive ou vi experiências terrí-veis. O sujeito pode ter um partido interes-sante, como o PT (Partido dos Trabalhado-res), mas acaba desacreditado porque as pes-soas que fazem parte dele ficam o tempotodo brigando. Nessa área política, tenhoa impressão de que no Brasil ainda não nas-ceu um estadista.

Nunca tivemos um? Fala-se que Getú-lio Vargas teria sido o único estadistabrasileiro...

Max Nunes – O Getúlio é o seguinte: tenhosobre ele várias experiências para contar. Aprimeira delas foi a Revolução de 1930,quando meu pai sofreu e quase foi mortoquando empastelaram o jornal onde ele tra-balhava. Acho que, no caso dele, pode-seseparar o bom e o mau Getúlio. Foi um di-tador que fez uma série de coisas positivase negativas. Quando ele voltou nos braçosdo povo, em 1950, fiz a seguinte reflexão: nãovou votar nele porque não dá, mas por den-tro vou até torcer porque já está velho e estávoltando pelo voto do povo. E pode fazer umbom governo e se reabilitar. Enfim, ele tinhamais ou menos uma cara de estadista.

Mudando radicalmente de assunto, emrelação à vaidade, como o senhor enca-ra o fato de seus personagens seremmais conhecidos que o criador?

Max Nunes – Encaro isso tranquilamen-te, sem grilos. Agora, por causa do progra-ma do Jô, como tenho aparecido de vez emquando, sou até mais conhecido. Anteon-tem, estava na rua e chegou uma senhoraperto de mim e disse: “Ah, eu o conheço, osenhor faz o Programa do Jô, como é o seunome?”. Eu disse: “Max”. E ela: “Ah, voudeclamar para o senhor um poema que fizpara a minha netinha, no seu ouvido”. Isso,no meio da rua. Então, evito muito apare-cer para não ter de passar por uma dessas.Com o negócio de lançar esses livros, andeidando umas entrevistas e aparecendo umpouco também. Meu negócio mesmo é tra-balhar atrás das câmeras. Interessa que sejaconhecido pela direção que faço na televisão.Mesmo entre os que escrevem, sou maisconhecido, né? Digo isso sem nenhumavaidade, entende? O Brasil está cheio degênios incompreendidos e, definitivamente,não estou entre eles.

“Esse negócio dedizerem por aí que

fazem humormoderno é bemrelativo. O que

adianta modernizaros programas se

o público não ri?”

“O Brasil estácheio de gênios

incompreendidos e,definitivamente, não

estou entre eles.”

32 JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

VIDAS

Talvez o nome Max Nunes, falecidoaos 92 anos, no último dia 11 de junho, nãoseja rapidamente reconhecido pelo gran-de público. Mas os nomes dos personagensque ele criou e desenvolveu provocam sor-risos imediatos com apenas uma brevemenção. Capitão Gay, Carlos Su-ely, Primo Pobre e Primo Rico,Reizinho, Gandola e vários outrossão tipos inesquecíveis indelevel-mente marcados no imagináriode milhões de brasileiros.

Carioca de Vila Isabel, MaxNewton Figueiredo Pereira Nu-nes nasceu em 17 de abril de1922. Costumava dizer, entre or-gulhoso e fanfarrão, que muitascoisas importantes aconteceramno Brasil naquele ano: “O cente-nário da Independência, a Sema-na de Arte Moderna, o episódiodos 18 do forte, a criação do Par-tido Comunista... e eu”.

O humor veio do berço. Seupai, Lauro Nunes, era jornalista,humorista, e escrevia esquetespara a Rádio Mayrink Veiga sob opseudônimo Terra de Sena. Des-de criança, Max acostumou a tersua casa freqüentada por artistase intelectuais. E como se tudo issonão bastasse, tomou gosto pelamúsica e pelo canto através delongas caminhadas pelo bairro,que fazia com um vizinho muitoespecial: Noel Rosa.

Com tantas influências, começou aparticipar de programas de rádio e concur-sos musicais desde muito jovem. Na RádioGuanabara, chegou a ser apelidado de “Gar-gantinha de Veludo”. Venceu um concursode canto no Theatro Municipal do Rio deJaneiro, deixando em segundo lugar nin-guém menos que Paulo Fortes, que maistarde se tornaria um dos maiores cantoreslíricos do País. Como compositor, assina,junto com Laércio Alves, a autoria da clás-sica marcha de carnaval Bandeira Branca,imortalizada na voz de Dalva de Oliveira.

Em depoimento ao projeto Globo Me-mória, Max conta: “Na época da Segun-da Guerra Mundial, eu escrevi um sone-to e fui mostrar ao meu pai. Ele pegou, leu,e me falou: tudo bem, mas olha lá fora.Tem uma fila enorme pra comprar arroze feijão, mas ninguém faz fila pra com-prar soneto, não”.

O rapaz ficou dividido, pois ao mesmotempo em que o conselho paterno lhe su-geria uma profissão mais lucrativa, Max,mal saído da adolescência, já era roteiristado programa Barbosadas, apresentado porBarbosa Jr. na Rádio Nacional, e desenvol-

via até um roteiro cinematográfico parao filme E o Mundo Se Diverte, de WatsonMacedo.

Resolveu batalhar nas duas frentes.Sem abandonar a carreira artística, en-trou na Faculdade Nacional de Medicinada antiga Universidade do Brasil, hojeUniversidade Federal do Rio de Janeiro.

Conciliava os estudos com o trabalho naRádio Tupi, onde escrevia os programas AQueixa do Dia, Ninguém Rasga, Dona Evae Seu Adão e O Amigo da Onça.

Em 1948, no mesmo ano em que se for-ma médico, é contratado para integrar aequipe do Programa Manoel Barcelos, daRádio Nacional. Sem abandonar a carrei-ra artística, especializou-se em Cardiolo-gia, e, contrariamente a inúmeros artis-tas e intelectuais que jamais chegam aexercer as profissões nas quais se gradu-aram, Max não apenas foi um destacadocardiologista durante mais de 30 anos,como chegou a dirigir a seção de Ipanemado Instituto Brasileiro de Cardiologia. Orapaz prova, na prática, que bom humorfaz bem ao coração.

Na Rádio Nacional, foi um dos princi-pais criadores do programa humorísticoBalança Mas Não Cai, que marcou a his-tória do gênero ganhando mais tarde ver-sões para o cinema, teatro de revista e atelevisão. Irradiado (como se falava naépoca) às 20h30 das sextas-feiras, BalançaMas Não Cai foi o celeiro de inesquecíveistipos cômicos que perduraram durantedécadas na cultura popular brasileira.

Além do rádio e da medicina, Max de-dicava-se também ao teatro, para o qualescreveu 36 peças, incluindo os grandessucessos Nonô Vai na Raça e Aperta o Cin-to. Em 1952, deixa a Rádio Nacional e re-torna à Tupi com status de estrela, ga-nhando mais e com um único programapara escrever: Uma Pulga na Camisola.

Com “tanto tempo” disponível, passa tam-bém a redigir colunas para os jornais Tri-buna da Imprensa (de 1954 a 1955) e Di-ário da Noite (de 1954 a 1960).

Da rádio para a tvA televisão só acontece na vida de

Max Nunes a partir de 1962, quando cria,na Excelsior, os programas My Fair Showe Times Square, ambos misturando comtalento os consagrados estilos dos musi-cais norte-americanos com o teatro de re-vista brasileiro.

Dois anos depois, em 1964, é contra-tado pela Globo como roteirista (juntocom Haroldo Barbosa), do programa RisoSinal Aberto, que permaneceu no ar até1967. Na emissora do Jardim Botânico, esempre ao lado de Haroldo Barbosa, MaxNunes escreveu Bairro Feliz (1965 e 1966)e TV0-TV1 (1966 a 1969), apresentadonas noites das quintas-feiras por PauloSilvino e Agildo Ribeiro. TV0-TV1 foi oprimeiro programa humorístico da tele-visão brasileira a parodiar outros progra-mas de tv, o que influenciou os posterio-res TV Pirata (1983) e Casseta & Planeta,Urgente! (1992).

Mas certamente um dos grandes mar-cos de sua carreira foi mesmo Balança MasNão Cai, nascido na Rádio Nacional e adap-tado para a televisão, pela primeira vez, naGlobo de 1968. Em 1972, o programa che-gou a ter uma versão produzida pela Tupi,retornando dez anos depois à sua emissorade origem. Além dos clássicos Primo Po-

bre (Brandão Filho) e Primo Rico(Paulo Gracindo), Balança MasNão Cai também forjou, atravésdo personagem Peladinho, o bor-dão “Mengo, tu é o maior!”, quefoi definitivamente incorporadopelo próprio clube.

Abrindo os anos 1970, pegan-do carona no slogan hippie “FaçaAmor, Não Faça Guerra”, a Glo-bo lança outro programa quemarcaria época: Faça Humor, NãoFaça Guerra, comandado por JôSoares e Renato Corte Real. Na re-dação, Max Nunes, Haroldo Bar-bosa e o próprio Jô, com quem ini-cia uma parceria que duraria até ofinal de sua vida. Com piadas cur-tas e cortes rápidos, Faça Humor,Não Faça Guerra marca uma evolu-ção na linguagem dos programashumorísticos da televisão brasilei-ra, até aquele momento aindamuito atrelados à linguagem ra-diofônica, de onde vários deles seoriginaram. A jovem cantora Nor-minha (interpretada por Jô Soa-res) e a dupla de malucos Lelé e DaCuca (Jô e Corte Real) foram al-

guns dos personagens marcantes do pro-grama, que foi líder de audiência das noi-tes das sextas-feiras de 1970 a 1973.

Em 1973, investindo num tipo de pro-grama humorístico de proposta um pou-co mais sofisticada, a Globo pega empres-tado o título de um filme de Fellini e lançaSatiricom, ou “A sátira do comportamen-to humano. O Homem em todas as di-mensões, e diante de todos os seus proble-mas”, como o ator Antonio Pedro anun-ciava na própria abertura do show. Umaabertura cujos créditos iniciais destaca-vam: “Um programa de Max Nunes eHaroldo Barbosa”. Satiricom permaneceuno ar até 1975. Na segunda metade dosanos 1970, Max Nunes continua inte-grando o time de redatores da Globo, querescrevendo o seriado A Grande Família,quer colaborando em especiais ou, aindaque menos intensamente, no novo O Pla-neta dos Homens, programa humorísticoque optou por uma equipe totalmente re-novada de redatores.

Sólida parceriaEm 1981, solidificando ainda mais sua

parceria e amizade com Jô Soares, Max

Max Nunes,o doutor da alegria

POR CELSO SABADIN

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33JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

O Brasil precisa explorar com urgência asua riqueza, porque a pobreza não agüentamais ser explorada.

O recibo, o reconhecimento de firmas, ofiador, o depósito e o desconto em folha sãoprovas insofismáveis de que ninguém confiana honestidade de ninguém.

Boa dona de casa é aquela que, no fim dodia, está com o corpo moído de tanto ver aempregada trabalhar.

Os líquidos e os biquínis tomam a forma docorpo que os contém.

Evolução do casamento: Mulher, me dá umbeijo. – Mulher, me dá um abraço. – Mulher,me dá uma folga.

Desfalcada a seleção da Grécia. Acertaramo calcanhar de Aquiles.

Em Brasília quem não é da panelinha é damarmita.

Padre: Meu filho, por que você não aparecena minha igreja? Bêbado: Porque lá é osenhor quem bebe.

O eleitor, obrigatoriamente, tem que serqualificado. O candidato, não.

Uma pessoa só pode ter certeza de que estárealmente milionária quando os parentescomeçam a desejar que ela morra.

Mesmo que tivesse toda a inteligência quelhes falta, algumas pessoas ainda seriamburríssimas.

Grandes tiradas de Max Nunescomer-lhe a carne, come-lhe o espírito.

Fabricam automóveis que dão mais deduzentos e depois só permitem que andema oitenta.

É através dos mais rigorosos inquéritos quese chega à conclusão de que todo mundo éhonesto.

Se as mercadorias do contrabando são maisbaratas porque estão fora da lei, logo o queencarece tudo é a lei.

Nossos filhos não são problemas. Problemasão os filhos que dizem que são nossos.

Os anatomistas dividem o corpo humano emtrês partes. Os motoristas de lotação emmuito mais.

Há uns casais que se detestam tanto quenão se separam só pra um não dar esseprazer ao outro.

Espeto é ser professor de geografia noJapão. Toda vez que acontece um terremoto,ele tem que estudar tudo de novo.

Na verdade, desde o tempo de Tiradentesque andamos com a corda no pescoço.

No Nordeste, a seca é tão braba que são asárvores que correm atrás dos cachorros.

O orçamento é um modo de a gente seaborrecer antes e depois das despesas.

Comprador: ‘Eu gostaria de ver algunscarros de segunda mão realmente bons.’Vendedor: ‘Eu também’

Freud explica pelo menos uma coisa: o númeroabsurdo de divãs que se vendem no mundo.

Inventa a bomba e depois fica arranjandoconferências para que ela não seja atirada.

Já se foi o tempo que a união fazia a força.Hoje a União cobra os impostos e quem fazforça é você.

Se antes já era difícil fazer um filme sobreanões, agora com o Cinemascope é queficou inteiramente impossível.

O casamento é o único jogo que acaba malsem que ninguém ponha a culpa no juiz.

Quem pede a palavra nem sempre adevolve em condições.

Pólvora é uma substância negra muitoempregada na demarcação de limites entreas nações.

Os homens casadoiros se dividem em trêscategorias: os polígamos, os bígamos e oschateados.

O grande erro dos que juntam dinheiro parase casar é que juntam o dinheiro e se casammesmo.

O jipe é o maior esforço feito pelo homempara chegar à mula mecanizada.

Binóculo é aquele instrumento que tem doisolhos numa ponta e a janela da vizinha naoutra.

Tempos de fartura eram os de antigamente.Até os três mosqueteiros eram quatro.

“Você foi eleito? Eu, não. Em matériade eleições, nunca mais vou me meter.

Fiz comício, pintei faixa, fui contra acorrupção. Levei sopapo, bolacha, mechamaram de ladrão. E no fim não soueleito? Essa não!

Falei em mesa redonda, quadrada,retangular. Falei em mesa de pôquer, debar, de sinuca, de bilhar. E no fim nãosou eleito? É de amargar!

Mandei fazer bandeirinha nas coresverde e amarela: ‘Vote em mim’, numacaixinha. Beijei gente na favela.Discursei, falando alto, que em mimtivessem fé, que eu vou botar asfalto noMorro do Jacaré, e a turma não me quer?

Gritei que o petróleo é nosso, pra verse agitava a massa, li trechos de RuyBarbosa, um dos orgulhos da raça, e nofim não sou eleito? Isso tem graça?

E todo mundo dizia: ‘é em ti que euvou votar, manda a cédula em teunome’. Eu mandava um pacotinho, eeles punham num cantinho, que é praanotar telefone.

Mas o pior vem depois, e não temexplicação. Na hora da votação, foi umazorra total, foi uma zorra sem fim. Foitamanha confusão, que nem eu voteiem mim”.

“Vote em mim”Um texto de Max Nunes sobre Eleições

passa a ser o principal redator do progra-ma Viva o Gordo, totalmente comandadopelo humorista. Um dos personagensmais marcantes desta fase é o Reizinho,inspirado numa história real, segundoconta Jô Soares: “Aconteceu que um aca-dêmico da Academia Brasileira de Letras,que eu não me recordo o nome, estavaatrasado para uma solenidade e tomou otáxi vestido com o fardão da Academia.O motorista do táxi estranhou aquelavestimenta toda, e teve uma hora que elenão agüentou e perguntou: ‘Sois rei?’. Emcima disso, o Reizinho foi criado, eu o fa-zia de joelhos, para ficar pequenininho.O visual foi inspirado no personagem dosquadrinhos” [The Little King, de Otto So-glow, publicado pela primeira vez em1931, e traduzido no Brasil como Reizinho].

O bordão do Reizinho era uma pergun-ta que ele fazia aos seus súditos: “Destepovo que eu amo e desta terra que eu piso,o que eu sou, o que eu sou, o que eu sou?”,ao que todos respondiam: “Sois Rei”. Agraça ficava por conta do suposto “enga-no” que Reizinho cometia sempre, um atofalho que o levava a perguntar: “Destepovo que eu piso e desta terra que eu amo...”

Abordando temas políticos com o cui-dado necessário para a época, Max Nunescria também para o programa Viva o Gor-do um personagem que na verdade não

O que leva o Brasil à falência não é o fatode muitos roubarem pouco. É o fato depoucos roubarem muito.

Personalidade é aquilo que uma pessoa temquando não está precisando do emprego.

O pára-quedas é o único meio de transporteque, quando enguiça, o sujeito chega maisrápido.

O grande mal do divórcio é que permite aohomem casar-se pela segunda vez.

Duplicata é essa coisa que sempre vence.Nunca empata.

Houve um tempo no Brasil em que ninguémtinha dinheiro. É hoje.

Situação internacional é a coisa mais bem-educada que existe. Quanto mais os povosse ofendem, mais delicada ela fica.

O casamento é como a pessoa que quertomar um copo de leite e compra uma vaca.

Anda tudo tão caro que, hoje, até quemdesdenha não quer mais comprar.

A prova de que o balé dá sono na platéia éque os artistas entram sempre na ponta dospés.

O caqui não passa de um tomate diabético.

É muito fácil fazer linguiça: basta tirar atripa de dentro do porco e botar o porcodentro da tripa.

O porco só é nocivo a quem, em vez de

tinha nome, mas ficou conhecido comoGandola. Tratava-se de um homem sem-pre em busca de favores especiais, que lheseram, num primeiro momento, negados.O sujeito então tirava um cartãozinho dobolso e informava, em tom ameaçador:“Você não está entendendo. Quem me

mandou aqui foi o Gandola”. E os favoreslhes eram imediatamente concedidos.Após um ano e meio de sucesso do perso-nagem, alguém “descobriu” que a palavragandola se referia a um tipo de traje mi-litar, e a censura proibiu o quadro.

Com muito sucesso, Viva o Gordo ficaem cartaz na grade da Globo até dezem-bro de 1987, quando se transfere para oSBT. Evidentemente, Max vai junto. Naemissora de Silvio Santos, a dupla faz ohumorístico Veja o Gordo e, posterior-mente, Jô Soares Onze e Meia, que reali-za o antigo sonho de Jô de comandar seupróprio programa de entrevistas. Os tex-tos de abertura que Max Nunes escreviapara o programa eram verdadeiras preci-osidades do humor, e várias das rápidasintervenções cômicas que Jô fazia du-rante as entrevistas vinham diretamen-te do ponto eletrônico colocado em seuouvido onde, do outro lado, estava Max.Ambos permanecem no SBT até 2000,quando retornam à Globo rebatizando oJô Soares Onze e Meia como Programa do Jô,que permanece no ar até hoje, embora semo mesmo brilho de antes. Profissionalmen-te ativo até o fim, Max Nunes faleceuvítima de infecção generalizada advindade uma queda onde fraturou a tíbia. Dei-xa quatro filhos: as atrizes Maria Cristinae Bia Nunes, Maurício e Sílvia.

“Deste povo que eu piso e desta terra que euamo...”: Jô Soares caracterizado como o Reizinho,

um de seus personagens de maior destaque.

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34 JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

VIDAS

Pedagogo. Poeta. Filósofo. Cronista. Es-critor. Ensaísta. Teólogo. Psicanalista. As-sim era Rubem Alves – ‘Rubem’ mesmo,e não ‘Rubens’, no plural. Apesar do nomeem singular, o mineiro nascido em 15 desetembro de 1933 em Dores da Boa Espe-rança, uma pequena cidade do sul do es-tado de Minas Gerais, era um ser múlti-plo. Por isso mesmo, único. Aos 80 anos,Alves morreu no fim da manhã do dia 19de julho, em decorrência de falência múl-tipla de órgãos, segundo o Centro Médi-co de Campinas (SP). O educador deuentrada no hospital com quadro de insu-ficiência respiratória devido a uma pneu-monia. Ele estava internado desde o dia10 do mesmo mês, na Unidade de TerapiaIntensiva (UTI).

“Meu pai era rico, quebrou, ficou po-bre. Tivemos de nos mudar. Dos tempos depobreza só tenho memórias de felicidade.Conheci o sofrimento quando melhora-mos de vida e nos mudamos para o Rio deJaneiro. Meu pai, com boas intenções, mematriculou num dos colégios mais famo-sos do Rio. Foi então que me descobri cai-pira. Meus colegas cariocas não perdoa-ram meu sotaque mineiro e me fizerammotivo de chacota. Grande solidão, semamigos. Encontrei acolhimento na reli-

gião. A religião é um bom refúgio para osmarginalizados”, contou certa vez. Tal sen-timento de estranheza levaria Rubem a es-tudar teologia no Presbiteriano do Sul, umdos mais conhecidos seminários evangé-licos da América Latina.

E isso foi fundamental para forjar operfil do homem Rubem. Autor de vastís-sima obra, com mais de 120 títulos, tor-nou-se um dos escritores mais célebres dalíngua portuguesa. Teve livros traduzidospara inglês, francês, italiano, espanhol, ale-mão e romeno. Em todas as suas formas deatuação, qualquer que seja o idioma, sen-timentos como o interesse natural pelooutro, amor e compaixão, foram marcassempre presentes. “Golpes duros na vidame fizeram descobrir a literatura e a poe-sia. Ciência dá saberes à cabeça e poderespara o corpo. Literatura e poesia dão pãopara corpo e alegria para a alma. Ciência éfogo e panela: coisas indispensáveis nacozinha. Mas poesia é o frango com qui-abo, deleite para quem gosta... Busco escre-ver simplesmente o que me dá na cabeçae no coração, embora ainda me sinta amar-rado por antigas mortalhas acadêmicas”.

Concluído o seminário, tornou-sepastor de uma comunidade presbiteria-na no interior de Minas e se casou comLídia Nopper, com quem teve três filhos– Sérgio, Marcos e Raquel. Depressa, po-

Rubem Alves, pensadorde múltiplos talentos

POR PAULO CHICO

rém, o pastor tomou consciência de quea sua ousadia evangélica o levava paraterrenos difíceis. “Eu achava que religiãonão era para garantir o céu, depois damorte, mas para tornar esse mundo me-lhor, enquanto estamos vivos. Claro queminhas idéias foram recebidas com des-confiança”. Em 1963, viaja para NovaYork para fazer uma pós-graduação. OGolpe Militar de 31 de março de 1964 o

pega de surpresa, nas vésperas de conclu-são do mestrado. Defendida a tese, quetratava da ‘interpretação teológica sobreo significado da revolução no Brasil’,retorna à paróquia de origem, em Lavras.Os próximos anos foram de tensão, devi-do ao confronto mudo com a ditaduramilitar. Acusado de ser subversivo, foi lis-tado injustamente entre pastores procu-rados pelos militares.

Como uma espécie de exílio voluntá-rio, aceitou convite para fazer doutora-do em Filosofia na Igreja PresbiterianaUnida dos Estados Unidos da América doNorte – experiência que durou até 1968.Já doutor, voltou ao Brasil para se despe-dir da Igreja Presbiteriana e experimen-tar o desemprego. Em 1969, uma Faculda-de do interior (a Faculdade de Filosofiade Rio Claro) acolhe-o. Ali permaneceuaté 1974, ano em que finalmente ingressano Instituto de Filosofia da Universida-de Estadual de Campinas (Unicamp),onde faz a maior parte da sua carreira aca-dêmica até se aposentar nos primórdiosda década de 1990. Ao longo de todo essetempo, jamais perdeu sua curiosidade.Sempre teve sede de somar e dividir co-nhecimento. Em 1984, iniciou o cursopara formação em Psicanálise. Teve suaclínica até 2004. O contato com os paci-entes incrementou seu conteúdo que,transformado em palavras, compôs mui-tas de suas crônicas sobre o cotidiano.Suas reflexões foram também publicadasem jornais, como na Folha de S.Paulo, daqual foi colunista.

Sua mensagem é direta e, por vezes, ro-mântica, explorando a essência do homeme a alma do ser. ‘Ensinar’ é descrito por Al-ves como um ato de alegria, um ofício quedeve ser exercido com paixão e arte. Écomo a vida de um palhaço que entra nopicadeiro todos os dias com a missão reno-vada de divertir. Ensinar é fazer aquele mo-mento único e especial. ‘Ridendo dicere se-verum: rindo, dizer coisas sérias’, pregava.Mostrando que esta, na verdade é a formamais eficaz e verdadeira de transmitir co-nhecimento. Agindo como um mago e nãocomo um mágico. Não como alguém queilude e sim como quem acredita e faz crer,que deve fazer acontecer.

“Na educação, a coisa mais deletéria narelação do professor com o aluno é dar aresposta. Ele tem que provocar a curiosi-dade e a pesquisa. Educar não é ensinarMatemática, Física, Química, Geografia,Português. Essas coisas podem ser apren-didas nos livros e nos computadores. Dis-pensam a presença do educador. Educar éoutra coisa. A primeira tarefa da educaçãoé ensinar a ver. Quem vê bem nunca ficaentediado com a vida. O educador apontae sorri – e contempla os olhos do discípu-lo. Quando seus olhos sorriem, ele se sen-te feliz. Estão vendo a mesma coisa.Quando digo que minha paixão é a edu-cação estou dizendo que desejo ter a ale-gria de ver os olhos dos meus discípulos,especialmente os olhos das crianças”, de-

Em 2010, alguns contos infantis clássicos deRubem Alves foram adaptados para o universo

dos personagens de Mauricio de Sousa.

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35JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

O mês de julho foi de baixas na cul-tura nacional, em especial na AcademiaBrasileira de Letras. Uma delas foi o fa-lecimento, aos 79 anos, de Ivan Junquei-ra, ex-Presidente da ABL. Ocupante dacadeira de número 37, para a qual foieleito em 2000, em substituição a JoãoCabral de Melo Neto, o acadêmico mor-reu no dia 3 de julho no Hospital Pró-Cardíaco, em Botafogo, Zona Sul doRio, onde estava internado há um mês –vítima de insuficiência respiratória. Nomesmo dia, o corpo do escritor foi vela-do no Salão dos Poetas Românticos, noPetit Trianon da ABL, até às 15h. Depois,foi sepultado no mausoléu da Academia,no Cemitério São João Batista, tambémno bairro de Botafogo.

Poeta, ensaísta, tradutor e crítico lite-rário, vencedor de importantes prêmioscomo o Jabuti de poesia por A Sagração dosOssos (editado pela Civilização Brasileira,em 1994) e O Outro Lado (Record, 2007),Junqueira completaria 80 anos em novem-bro. Para marcar a data, que coincide comseus 50 anos de carreira literária, sua edi-tora atual, a Rocco, estava planejando a pu-blicação de dois livros inéditos do autor:Reflexos do Sol Posto, coletânea de ensaios;e Essa Música, de poemas. Ambos os lan-çamentos foram confirmados ainda paraeste ano. Também em ocasião de seus 80º

Ivan Junqueira,poeta e tradutor

POR PAULO CHICO aniversário, a Editora Nova Fronteiraprogramou a edição de bolso da premia-da tradução dos poemas de T. S. Eliot, de1981, que mereceu dez edições. Outrasobras de Ivan, como Testamento de Pasár-gada (2003), antologia crítica da obra po-ética de Manuel Bandeira, estão no pre-lo para ganhar novas edições.

Nascido no Rio de Janeiro em 3 de no-vembro de 1934, Ivan Junqueira estudouMedicina e Filosofia na antiga Universi-dade do Brasil (atual UFRJ), sem concluirnenhum dos dois cursos. Em 1963, come-çou a trabalhar como jornalista na Tribunada Imprensa, tendo ainda passado pelasRedações do Correio da Manhã, Jornal doBrasil e O Globo. Como crítico literário eensaísta, colaborou em todos os grandesjornais e revistas do Rio de Janeiro, SãoPaulo e Minas Gerais, bem como em publi-cações especializadas nacionais e estran-geiras. Sua poesia foi traduzida para o es-panhol, alemão, francês, inglês, italiano,dinamarquês, russo e até para o chinês.

Foi colaborador das enciclopédias Bar-sa, Britannica e Delta Larousse, entre ou-tras, além do Dicionário Histórico-Biográ-fico Brasileiro, editado pela Fundação Ge-túlio Vargas. Na Funarte, foi editor da re-vista Piracema e chefe da Divisão de Tex-to da Coordenação de Edições, tendo seaposentado no serviço público em 1997.Na Fundação Biblioteca Nacional, foieditor-adjunto e depois editor executivo

da revista Poesia Sempre, no período de1993 a 2002. Traduziu obras literárias deautores como Jorge Luis Borges, CharlesBaudelaire e Marcel Proust, além de peçasde teatro como A Tempestade, de WilliamShakespeare, e Os Justos, de Albert Camus.

Atual Presidente da ABL, Geraldo Ho-landa Cavalcanti lamentou o falecimen-to do colega. “A morte de Ivan Junqueiraé uma grande perda para a Academia. Aca-dêmico exemplar, ele engrandeceu a Casaà qual serviu durante 14 anos com exação,competência e dedicação. Grande poeta,mestre indiscutível nas artes do ensaio crí-tico e da tradução literária, deixa um lega-do que enriquece a nossa tradição e a his-tória literária do Brasil”, resumiu, em notaoficial. O poeta Alexei Bueno, por sua vez,disse que o Brasil perdeu um de seus mai-ores autores. “Além disso, Ivan era um tra-dutor de poesia extraordinário, um críti-co de fineza rara. Eu perdi um dos meusmaiores amigos. São mais de 20 anos deamizade, é muito triste. Perdemos um ho-mem extremamente espirituoso, de humorafiadíssimo, apesar de ter fama de ser fe-chado”. A escritora Nélida Piñon tambémse manifestou. “Ivan nos deixa uma liçãode comportamento cívico. Era um homemde bem, um brasileiro íntegro que, embo-ra fosse um grande admirador da pátria,não se eximia do senso crítico em relaçãoao Brasil. Ele deixa saudade pelo intelec-tual de grande porte que foi”.

A morte foi lamentada por ArnaldoNiskier. “Na biografia de Ivan consta, comdestaque, o período em que foi um dedica-do e competente Presidente da ABL. Nosanos de 2004 e 2005 revelou-se como ad-ministrador, a ele se devendo uma ativa-ção inusitada das conferências, além deuma alentada programação de novos li-vros, dando vida intensa às nossas diver-sas coleções. Lembrou, na época, o estilode fazer dos seus tempos de Biblioteca Na-cional, quando editou a insuperável revistaPoesia Sempre. Era uma referência comopublicação de um apurado gosto literário,além da excelência do seu aspecto gráfico.Ivan Junqueira será sempre lembrado pelasua figura profundamente humana, mastambém pelos livros que deixou e os pró-ximos que se encontram nas gráficas”.

O acadêmico completa: “Ivan fará mui-ta falta à ABL. Não só pela qualidade da suaprodução literária, mas também pela pre-ciosa característica da Casa de Machado deAssis, que é a do convívio pleno. Ele era deuma impressionante assiduidade, até mes-mo nos momentos em que não queria serender à precariedade da sua saúde. Quan-do perguntei à sua esposa, depois de 29anos de companhia, qual a impressão maisforte que Ivan lhe deixara, a sua respostaemocionada foi pronta, testemunhadapelo Presidente Geraldo Holanda Caval-canti: ‘Foi a paixão pelos amigos. Ele nãotinha meias amizades’, disse ela”, pontua.Junqueira deixa viúva a jornalista e escri-tora Cecília Costa Junqueira, com quemteve o filho Otávio. Ele também deixa osquatro filhos do primeiro casamento: Su-zana, Rafael, Raquel e Eduardo. E uma pro-fícua obra que, como destacado por Niski-er, “jamais será esquecida”.

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Lfendia ele. Para este último público, emespecial, Rubem dedicou diversos livrosinfantis, como A Pipa e a Flor e A Voltado Pássaro Encantado.

Outros de seus títulos, estes para opúblico adulto, são Da Esperança (Teo-logia da Esperança Humana), Protestan-tismo e Repressão, Por uma Educação Ro-mântica e Variações Sobre a Vida e a Mor-te. Sobre esta última, chegou a dizer, ementrevista recente: “Eu não tenhomedo de morrer... Só tenho pena. A vidaé tão boa...”. Como escritor, foi premi-ado em 2009 com o Jabuti na categoriaContos e Crônicas, assim como rece-beu a Menção Honrosa e Excelênciaem publicação de religião Transparen-cies of Eternity, em 2012. Em 2013,recebeu o prêmio PNBE – O Educadorque queremos, pelo conjunto da obra.Em Campinas/SP, cidade onde moravahá décadas, mantinha o instituto queleva seu nome. Além de conservar oacervo do escritor, o Instituto RubemAlves tem como missão desenvolverprogramas de apoio e assistência aoseducadores; atividades de interaçãocom programas governamentais; cur-sos e oficinas de cultura e literatura, eproduzir materiais de apoio didático.

Espécie de fundador da escola quepropunha uma reflexão social sobre ateologia, influenciou várias gerações depensadores. “Conheci Rubem Alvesquando ainda atuava como teólogo.Não que tivesse deixado a teologia. Masele ampliou seus saberes e sua reflexãosobre o curso da vida e do mundo. Fa-tores que o tornaram mais que um teó-logo. Transformou-se em mestre compontos de vista originais sobre os maisdiversos assuntos. Ele sabia falar poe-ticamente do prosaico e prosaicamentedo poético. No seu mais profundo, Ru-bem era um poeta. Poeta peregrinopelos vários percursos da vida. E ser po-eta é ser elevado à altura do Divino. Poissó Deus e os poetas criam de verdade.Rubem era um poeta criador de senti-dos, de imagens e de metáforas que tor-nam significativa nossa passagem poreste mundo. Seus textos comunicamuma aura benfazeja”, disse o amigo e es-critor Leonardo Boff, outro expoenteda Teologia da Libertação.

O corpo do escritor foi velado na Câ-mara de Vereadores de Campinas, nanoite do dia 19 e manhã de 20 de julho.Rubem teve atendido seu pedido deque, depois de cremado, suas cinzasfossem jogadas embaixo de um ipêamarelo. No lugar de discursos ou rezas,no velório foram lidos textos de seuspoetas preferidos, como Cecília Meire-lles e Fernando Pessoa. A cremaçãoocorreu no Crematório Primavera, emGuarulhos, em cerimônia reservadaapenas a familiares, além de amigos.Estes últimos, por certo, representam,aos milhares, aquilo que Rubem maissoube cultivar em oito décadas de vida.

36 JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

O Sindicato dos Jornalistas Profissionaisdo Município do Rio de Janeiro-SJPMRJ di-vulgou, em 14 de julho, um balanço com onúmero de jornalistas e comunicadores agre-didos na cidade desde maio de 2013. O rela-tório foi atualizado após o incidente ocor-rido um dia antes da final realizada no Ma-racanã, em que pelo menos 15 profissionaissofreram violências enquanto cobriam pro-testos contra a Copa, realizados na Praça Sa-ens Peña, na Tijuca, Zona Norte do Rio. Deacordo com o documento, as forças de se-gurança pública são responsáveis por 68%dos casos registrados.

Dos 105 casos registrados pelo Sindica-to, 29% foram praticados por manifestan-tes e 3% ocorreram por outros, como segu-ranças e acusados de corrupção em repor-tagens. “Sabemos que os números podemser ainda maiores, dada a escassez de regis-tros formais de agressões contra profissio-nais de imprensa e comunicadores”, disseo SJPMRJ por meio de nota. Segundo a As-sociação Brasileira de Jornalismo Investi-gativo-Abraji, entre a Abertura e o Encer-ramento do Mundial, nos dias 12 de junhoe 13 de julho, foram contabilizados 38 casosem todo o País de prisões, agressões e deten-ções envolvendo 36 profissionais da comu-nicação durante a cobertura de manifesta-ções. O protesto de domingo no Rio deJaneiro teria concentrado o maior núme-ro de ocorrências.

Imagens do protestoUm vídeo de dois minutos publicado no

YouTube pelo jornal A Nova Democracia re-vela o momento em que o cinegrafista JasonO’Hara cai no chão enquanto um grupo depoliciais passa por perto. Um dos PMs vemandando e chuta o rosto e o equipamento doprofissional, que fica sem entender a atitu-de. Pelo menos cinco militares acompanha-ram a ação do agressor e continuaram andan-do. O filme tem um corte, mostra alguém

LIBERDADE DE IMPRENSA

Durante a Copa, faltas gravescontra a liberdade de informação

sendo socorrido e, depois, um homem, iden-tificado como Jay, dizendo que teve sua câ-mera GoPro roubada pelas autoridades. “Fuiroubado por policiais. Eles estão aqui para meproteger, mas me roubaram”, disse.

Já o repórter fotográfico do Portal Ter-ra, Mauro Pimentel, conseguiu registrarquando PMs lançaram golpes com cassete-te. Ele foi atingido por três policiais no rostoe na perna. “Eles gritaram: ‘Para trás, paratrás’, começaram a bater e jogaram o sprayde pimenta. Só que eu estava de máscara econtinuei fotografando. Foi quando umPM me deu um chute na perna esquerda.Outro policial me segurou e me empurroupara trás. Só vi o cassetete no meu rosto. Ofiltro quebrou e a máscara trincou, massegurou bem a pancada. Se estivesse semaquela máscara fechada e o capacete esta-ria, no mínimo, com o nariz quebrado”.

Pimentel informou que estava identifi-cado como imprensa, usando capacete comadesivo do Portal Terra e crachá. “Não tinhacomo fazer confusão”, garantiu. O Sindica-to dos Jornalistas Profissionais do Municí-pio do Rio de Janeiro condenou as agressõese afirmou que “o Estado brasileiro e o governo

estadual do Rio de Janeiro ignoraram direi-tos individuais e coletivos de brasileiros e vi-sitantes, assim como cassaram a liberdade deexpressão e a de imprensa”. “Tais práticas deEstado caracterizam grave ofensa à catego-ria e prejudicam a sociedade como um todo.Sem o respeito ao direito à informação, nãohá garantia de liberdade ou de democracia”,explicou a entidade em texto.

A Polícia Militar do Estado determinoua prisão administrativa de quatro policiaissuspeitos de agressão e roubo durante os pro-testos no Rio de Janeiro contra a Copa doMundo, ocorridos em 13 de julho. Pelo me-nos 15 profissionais de imprensa foram ata-cados por PMs na região da praça SaensPeña. Os acusados são soldados e ficarão pre-sos no Batalhão de Policiamento de Gran-des Eventos, por ordem do comandante daunidade. Um soldado é suspeito de agrediro cinegrafista canadense Jason O’Hara. Ou-tro é suspeito de ter roubado uma câmera dojornalista canadense. Um terceiro soldadoé suspeito de agredir o repórter fotográficodo Portal Terra, Mauro Pimentel. As fotos dojornalista mostram o momento em que osuspeito o agrediu com um cassetete.

A ABI classificou comoinaceitável as violações contra aordem democrática que ocorreramna esteira da Mundial da Fifa. Nodia 12 de julho, 28 pessoas, entrejornalistas, radialistas emidialivristas, foram detidas pelaPolícia Civil do Rio de Janeiro,durante a operação “Firewall 2”, porsua participação em movimentossociais e, supostamente, por‘formação de quadrilha’. No diaseguinte, durante a partida finalda Copa, a Polícia Militar do Rioreprimiu violentamente umamanifestação e agrediuprofissionais de comunicação quecobriam o episódio.

A ABI coloca os advogados daentidade à disposição da radialistaJoseane Freitas que se encontradetida no Complexo Penitenciáriode Gericinó, em Bangu, como serepresentasse ameaça à sociedade.A Associação, que teve atuaçãodestacada contra a ditaduramilitar nos anos 1964-1985, exigeo respeito aos direitos democráticosconstitucionais, que incluem alivre manifestação, e exige aimediata apuração dosresponsáveis pelas agressões aosprofissionais de comunicação.

Tarcísio Holanda, Presidente daentidade, criticou a atitude dasautoridades: “Não é possível que oGoverno do Estado do Rio e aPresidência da República nãotomem providência algumacontra os atos autoritários earbitrários. O aparato policial vemtradicionalmente investindocontra jornalistas, que estão alipara fazer seu trabalho. Isso éinaceitável”, afirmou o jornalista.Holanda acredita que tais atos sãouma ameaça à democracia. “Sem aliberdade de expressão e livreopinião, a ordem democrática estáameaçada”, defende. “Essas prisõessão arbitrárias e nos remetem aopior período dos Anos deChumbo. A polícia prende ajornalista, mas, em certomomento, deixa escapar o AlCapone que comandava oesquema de ingressos da Copa”,completou Domingos Meirelles,Diretor da ABI.

No dia 15 de julho, o Sindicatodos Jornalistas Profissionais doMunicípio do Rio de Janeiroconseguiu uma liminar em habeascorpus em favor da radialistaJoseane Freitas, da Empresa Brasilde Comunicação (EBC).

ABI critica violaçãode direitos

durante a Copa

A Ong Repórteres Sem Fronteira-RSFdivulgou um comunicado no dia 18 de ju-lho, em que contabiliza 38 jornalistas bra-sileiros e estrangeiros atacados por poli-ciais e manifestantes durante a Copa doMundo, entre 12 de junho e 13 de julhode 2014. A organização realiza uma cam-panha em defesa da liberdade de imprensano Brasil. Em nota intitulada “Jornalistassão os grandes perdedores da Copa doMundo”, a RSF afirma que o dia mais vi-olento do Mundial foi o da final, entreAlemanha e Argentina, no Rio de Janei-ro (RJ). Segundo a Ong, foram registra-

Para ONG internacional, jornalistassão os grandes derrotados

POR IGOR WALTZ dos 15 ataques a jornalistas cobrindo pro-testos e confrontos com a polícia na ca-pital fluminense.

A RSF cita o fotógrafo canadense Ja-son O’Hara e a repórter da Reuters, AnaCarolina Fernandes, além de Felipe Peça-nha e Karinny de Magalhães, do MidiaNinja, entre as vítimas da violência. “Ape-sar das promessas do governo, os jornalis-tas não podem sempre contar com a pro-teção que eles deveriam receber do Esta-do”, declarou Camille Soulier, chefe dadivisão das Américas da Ong. “Solicitamosàs autoridades que os atos de violênciacontra jornalistas por parte de membrosda polícia militar não permaneçam im-

punes”, disse Camille Soulier. “Apesar daspromessas do governo, os jornalistas nemsempre podem contar com o Estado paraa criação de um mecanismo de proteçãoem nível nacional.”

No final de julho, Christophe Deloire,secretário-geral da RSF, se encontrou comassessores da Presidência da República, emBrasília (DF). Os membros do governo dis-seram que as forças policiais são treinadaspara lidar com manifestações pacíficas,mas que não têm controle direto sobre apolícia militar de cada estado. Foi dito ain-da que uma entidade pública será criadapara monitorar casos de violência contrajornalistas.

Fotógrafo é agredido pela Polícia Militar em manifestação na Praça Saens Peña, no Rio de Janeiro.

FERNAN

DO

FRAZÃO/AG

ÊNC

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