Jornal da abi 402

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402 J UNHO 2014 VIDAS MAURICIO TORRES • LUIZ CLÁUDIO MARIGO • MOLLICA O acadêmico Alberto da Costa e Silva ganha o Prêmio Camões Livro reúne caricaturas de Mario Alberto sobre a Copa A história dos suplementos que revolucionaram a imprensa PÁGINA 16 PÁGINA 14 PÁGINA 18 JUSTIÇA MARCA ELEIÇÃO DA ABI 1º de agosto é a data escolhida. Sócios de todo Brasil poderão utilizar o voto eletrônico pela primeira vez na História da entidade. “Jornalista tem que ser isento. Não uso minha profissão para fazer nenhum tipo de reportagem que venha beneficiar A ou B. Eu mostro os fatos.” PÁGINA 5 ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA PÁGINA 3

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402JUNHO2014

VIDAS MAURICIO TORRES • LUIZ CLÁUDIO MARIGO • MOLLICA

O acadêmico Alberto da Costae Silva ganha o Prêmio Camões

Livro reúne caricaturas deMario Alberto sobre a Copa

A história dos suplementosque revolucionaram a imprensa

PÁGINA 16 PÁGINA 14 PÁGINA 18

JUSTIÇAMARCAELEIÇÃODA ABI

1º de agosto é a data escolhida. Sócios detodo Brasil poderão utilizar o voto eletrônico

pela primeira vez na História da entidade.

“Jornalista tem que ser isento. Não uso minhaprofissão para fazer nenhum tipo de reportagemque venha beneficiar A ou B. Eu mostro os fatos.”

PÁGINA 5

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2 JORNAL DA ABI 402 • JUNHO DE 2014

EDITORIAL

CARTÃO VERMELHO

Os inimigos do futuro, além de não aceitarema votação eletrônica, a opção 0800, e a coloca-ção de urnas em São Paulo, Belo Horizonte eBrasília, tentaram outra jogada que não deu certo.Queriam que as eleições da ABI fossem realiza-das dia 11 de julho, véspera da final da Copa doMundo. Apostaram num possível cochilo da ar-bitragem e fizeram gol contra. Ajustiça indeferiu o pedido formu-lado pelo diagramador FichelDavit Chargel por entender quenão havia motivos para anteci-par o pleito marcado pela Dire-toria da Casa para 1º de agosto.A juíza, que acompanha todos oslances dessa partida, desde o anopassado, mais uma vez não se dei-xou enganar. Ela conhece comopoucos os truques daqueles que sempre tenta-ram ganhar o jogo na base do grito.

Quais motivações podem levar alguém, emsã consciência, a marcar eleições em uma ins-tituição como a ABI para a véspera de uma finalda Copa do Mundo, quando a maioria dos jor-nalistas está envolvida na cobertura de um even-to dessa magnitude? Desinformação, sede depoder, má-fé? Não se pode esperar muito docapitão de um time que desconhece as regrasdo jogo. Não basta entrar no gramado comchuteiras. O fundamental é saber o que fazercom elas.

Não se pode acreditar na competência de umaequipe que necessita permanentemente de umaespécie de babysitter jurídica que lhe mostre, atodo momento, como deve se comportar du-rante o jogo. Chega a ser motivo de riso ver comotropeçam nas linhas do gramado sem saber oque fazer com a bola.

Não podemos permitir que as eleições geraisda ABI, talvez as mais importantes de toda asua história, sejam apequenadas como se fossemuma brincadeira esportiva. Não se pode reduzi-las a um campeonato de futebol-tó-tó. O pleitoque se avizinha não vai apenas renovar ocomando da Casa. A disputa entre as chapasVladimir Herzog e Prudente de Morais vai de-finir o futuro da instituição.A ABI sairá das urnasfortalecida e se agigantará, como no passado,

ou será novamente devolvida à lenta agonia eao estado de inanição que levará à sua derroca-da final. As novas eleições não podem, portan-to, ser tratadas como se fossem um jogo semimportância.

Na curta gestão de Tarcísio Holanda foi pos-sível arrancá-la do estado comatoso em que ago-

nizava. A Casa de Herbert Mosesrecebeu um novo hálito de vidae deixou de respirar com a ajudade aparelhos. As eleições de agos-to vão ser fundamentais para queobtenha a musculatura de quetanto necessita. A ABI precisavoltar a se relacionar com enti-dades representativas da socie-dade civil como a OAB, a CNBB,o IAB e o Clube de Engenharia,

das quais se divorciara, nos últimos anos, de-pois de memorável parceria na luta contra aviolência, o arbítrio e a opressão, durante os cha-mados anos de chumbo.

Não se admite que a Casa de Fernando Segis-mundo se acoelhe diante do novo, renegandosua própria história. A ABI não pode sobrevi-ver com uma agenda política em permanentelitígio com a realidade, indiferente à mobiliza-ção social que sacode o País desde junho de 2013.Não deve também continuar congelada, a ser-viço dos interesses de um time de várzea quesequer conhece o Estatuto e os regulamentosda Casa. A instituição criada por Gustavo deLacerda, em 1908, não pode permanecer atre-lada apenas às propostas do passado que a co-locaram, um dia, numa posição de vanguardaao pregar a ideologia da defesa do Estado deDireito e da Liberdade de Imprensa. A ABI precisase modernizar. A Casa dos Jornalistas tem quealargar seus horizontes, enfrentar novos de-safios e os avanços da tecnologia que ameaçamo futuro da profissão.

A Casa de Barbosa Lima Sobrinho e Prudentede Morais precisa também resgatar a legião deassociados que desertaram, nos últimos anos,por discordarem do autoritarismo que tantomarcou o comando da entidade desde 2004.Apenas um exemplo: em nove anos, a Direto-ria foi convocada a se manifestar apenas 14 vezes,

JESUS CHEDIAK

quando deveriam ter sido realizadas 142 reuni-ões. A centralização excessiva levaria a entida-de a mergulhar num esvaziamento que por pouconão a empurrou para um irreversível processode mumificação.

Sob a presidência de Tarcísio Holanda foi res-tabelecido o primado do colegiado. Os diretoresconversam entre si, todos os dias, e as decisõessão sempre tomadas por consenso. Com a der-rubada das cercas de arame farpado que a isolavamdo corpo social e da própria realidade, a ABI mu-dou. Mas é preciso que caminhe a passos largos,em direção ao futuro, para que possa enfrentaro mundo perverso e cruel em que vivemos.

A ABI precisa também se arejar, aproximan-do-se dos jovens que freqüentam os cursos deComunicação de todo o País. Nesse processo derenovação é fundamental a filiação de novosprofissionais. Esse é um dos obstáculos, que sópoderá ser resolvido com novas eleições. JoséPereira, o Pereirinha, Presidente da Comissão deSindicância da ABI, órgão subordinado ao Con-selho Deliberativo, e um dos líderes da ChapaPrudente de Morais, impede, desde fevereiro, aentrada de novos sócios na Casa. Não reúne aComissão nem libera os pedidos de filiação quese encontram, há vários meses, sob sua guarda.Nem mesmo um time de amadores, como osgarçons que participam das competições no-turnas no Aterro do Flamengo, cometeria tantasinfrações num único jogo.

A votação eletrônica, através do site da Casa,e a opção 0800 permitirão, pela primeira vez,que os associados de todo o País se manifestemlivremente sobre a escolha dos novos dirigen-tes da entidade. O corpo social receberá, nospróximos dias, informações detalhadas de comoparticipar desse moderno e seguro processo devotação. A ABI precisa se agigantar e se abriraos novos tempos. Não pode mais continuar areboque de outras instituições, como um va-gão sem comando.

A ABI deve voltar a ostentar o garbo dos gla-diadores romanos que se exibiam de corpo in-teiro em campo aberto. Nos dias de hoje, nãopode mais continuar espreitando o mundo pelafresta da porta, sob o risco de perder para sem-pre o bonde da História.

A ABI não podesobreviver com umaagenda política empermanente litígiocom a realidade,

indiferente àmobilização socialque sacode o País

desde junho de 2013.

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3JORNAL DA ABI 402 • JUNHO DE 2014

Nos termos do artigo 20 do Estatuto da Associação Bra-sileira de Imprensa-ABI, e por decisão do juízo da 8ª VaraCível da Comarca do Rio de Janeiro, são convocados os as-sociados quites com suas obrigações estatutárias a se reu-nirem em sua sede, na Rua Araújo Porto Alegre, 71, Cen-tro, Rio de Janeiro, no dia 31 de julho do corrente ano, às10 horas, para: 1) tomar conhecimento do Relatório daDiretoria, do Parecer do Conselho Fiscal e da decisão do Con-selho Deliberativo sobre aquele e este e para discutir e re-solver assuntos que lhe forem apresentados pela Diretoriaou por associados por intermédio da Mesa; no dia 01 deagosto do corrente ano, das 10 às 20 horas, na sede da enti-dade, à Rua Araújo Porto Alegre, 71, 9º andar, Centro, Riode Janeiro; na representação de São Paulo, à Rua Martini-

A Juíza Maria da Glória Bandeira deMelo, da 8ª Vara Cível da Comarca do Riode Janeiro, deferiu o pedido da Diretoria daABI e marcou a realização de eleições ge-rais para o dia 1º de agosto. O processo elei-toral começará no dia 31 de julho, com a ins-talação da Assembléia-Geral, e se encerra-rá, no dia seguinte, com a votação e apura-ção do escrutínio. Em seu despacho, ela au-torizou também que a Diretoria constitu-ísse a Comissão Eleitoral que vai conduziro processo de votação.

O pedido do advogado Jansen dos Santosteve como objetivo sanar a dificuldade doConselho Deliberativo em obter quórumpara se reunir e eleger sua Mesa Diretora.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSAEDITAL DE CONVOCAÇÃO

ASSEMBLÉIA-GERAL ORDINÁRIA

Rio de Janeiro, 28 de junho de 2014José Tarcísio Saboya Holanda

Presidente da ABI

JUSTIÇA MARCAELEIÇÃO DA ABI

No dia 27 de maio, o Conselho Deliberati-vo não conseguiu mais uma vez cumprir oque determina o parágrafo 2º do Artigo 30do Estatuto da ABI, que diz: “As reuniõesserão instaladas em primeira convocação,estando presentes, pelo menos metademais um dos conselheiros e, em segundaconvocação, com o mínimo de um terço dosconselheiros”. No dia 27, assinaram o livrode presença apenas 12 conselheiros, quan-do o mínimo seria de 15.

Apesar da Diretoria da ABI ter anulado,pela segunda vez, a reunião realizada em 27de maio, o conselheiro Vitor Iório apresen-tou-se, na sessão de 24 de junho, como Pre-sidente da Mesa Diretora. Abriu outra vez

a sessão sem o quórum exigido, quandoestavam presentes apenas oito conselhei-ros , o que é vedado pelo Estatuto. O livrode presença acusou ainda a assinatura deum conselheiro que se encontra suspensopor ofender o Presidente e dois diretores daABI , e que não poderia, portanto, partici-par da sessão.

Diante das sucessivas violações do Esta-tuto e do risco de que fosse perdido o pra-zo estabelecido pelo Regulamento Eleito-ral para a convocação das eleições da Casa,a Diretoria decidiu ingressar com um pedidojunto ao juízo da 8ª Vara Cível, solicitan-do a publicação do Edital de Convocação daAssembléia-Geral Ordinária.

co Prado, 26, Grupo 31, Santa Cecília; na sede da Acade-mia Mineira de Letras, em Belo Horizonte, sito à Rua daBahia, 1.466, Lourdes - Belo Horizonte, MG; e Brasília, sededa FENAJ, sito à SCLRN 704-BL F. loja 20, Brasília- DF; eVoto Eletrônico disponibilizado no site, através de umaplicativo e pelo serviço telefônico do 0800, disponibiliza-do aos associados do restante do País, para eleger: a) o Con-selho Consultivo; b) o Conselho Fiscal; c) a Diretoria; d) doisterços do Conselho Deliberativo, efetivos e suplentes. O Re-latório da Diretoria estará à disposição dos associados a par-tir de 16 de julho, na Secretaria da ABI. As chapas concorren-tes, devidamente completas, deverão estar registradas, nostermos do artigo 21 do Regulamento Eleitoral, aprovado peloConselho Deliberativo da ABI em 17 de fevereiro de 2014.

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4 JORNAL DA ABI 402 • JUNHO DE 2014

Jornal da ABI

O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, COMO ADMITE O DECRETO Nº 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.

Editores: Domingos Meirelles e Francisco Ucha

Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha

Apoio à produção editorial: André Gil, Cesar Silva,Conceição Ferreira, Paulo Chico.

Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas(Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva.

Associação Brasileira de ImprensaRua Araújo Porto Alegre, 71Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012Telefone (21) 2240-8669/2282-1292e-mail: [email protected]

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REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAISDiretor: José Eustáquio de Oliveira

Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda.Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808Osasco, SP

ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

Jornal da ABIDIRETORIA – MANDATO 2010-2013Presidente: Tarcísio HolandaDiretor Administrativo: Orpheu Santos SallesDiretor Econômico-Financeiro: Domingos MeirellesDiretor de Cultura e Lazer: Jesus ChediakDiretora de Assistência Social: Ilma Martins da SilvaDiretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn

CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lagee Teixeira Heizer.

CONSELHO FISCAL 2011-2012Adail José de Paula (in memoriam), Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, JorgeSaldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e ManoloEpelbaum.

MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012Presidente: Pery CottaPrimeiro Secretário: Sérgio CaldieriSegundo Secretário: José Pereira da Silva (Pereirinha)

Conselheiros Efetivos 2012-2015Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, FichelDavit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge MirandaJordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias HiddSobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório.

Conselheiros Efetivos 2011-2014Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, DácioMalta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo (in memoriam), MiltonCoelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, SylviaMoretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

Conselheiros Efetivos 2010-2013André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto MarquesRodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri (in memoriam), Jesus Chediak, JoséGomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, MárioAugusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.

Conselheiros Suplentes 2012-2015Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro

Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, HildebertoLopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt,Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto,Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014Alcyr Cavalcânti, Carlos Felippe Meiga Santiago (in memoriam), Edgar Catoira, FranciscoPaula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz,José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce deLeon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão (in memoriam) e Wilson S. J. Magalhães.

Conselheiros Suplentes 2010-2013Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, DanielMazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, JoséSilvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, SérgioCaldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio.

COMISSÃO DE SINDICÂNCIACarlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha),Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda.

COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃOAlberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti.

COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOSPresidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; AlcyrCavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro,Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, GilbertoMagalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy MaryCarneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva,Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri, Vitor Iório e Yacy Nunes.

COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIALIlma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do PerpétuoSocorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULOConselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George BenignoJatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra.

REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAISJosé Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),CarlaKreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José BentoTeixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz eRogério Faria Tavares.

Glosas para o Decálogo de QuirogaDecálogo do perfeito contistaDE HORÁCIO QUIROGA

FÁBIO LUCAS é escritor, crítico literário e membro da AcademiaPaulista de Letras.

Considerações do escritor Fábio Lucas sobre o “Decálogo do perfeito contista”, de Horácio Quiroga.

1. Crê num mestre – Poe,Maupassant, Kipling, Tche-khov – como na própria di-vindade.

2. Crê que sua arte é umcume inacessível. Não sonhadominá-la. Quando puderesfazê-lo, conseguirás sem quetu mesmo o saibas.

3. Resiste quanto possível àimitação, mas imita se o im-pulso for muito forte. Maisdo que qualquer coisa, o de-senvolvimento da personali-dade é uma longa paciência.

4. Nutre uma fé cega não natua capacidade para o triun-fo, mas no ardor com que odesejas. Ama tua arte comoamas tua amada, dando-lhetodo o coração.

5. Não começa a escreversem saber, desde a primei-ra palavra, aonde vais. Numconto bem-feito, as três pri-meiras linhas têm quase amesma importância das trêsúltimas.

6. Se queres expressar comexatidão esta circunstância– “Desde o rio soprava umvento frio” –, não há na lín-gua dos homens mais pala-vras do que estas para ex-pressá-la. Uma vez senhorde tuas palavras, não te pre-

1. Toda obra se forma das limalhas de outras lei-turas. Os melhores contos guardam astuciosamen-te as mesmas marcas da paternidade, quer honrosas,quer desonrosas. Admiráveis são os mestres de Ho-rácio Quiroga: Poe, Maupassant, Kipling, Tchecov.Que seria do perfeito contista brasileiro sem Macha-do de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector,Murilo Rubião e J. J. Veiga?

2. A arte do conto é produto de uma constru-ção. Paciente arquitetura de palavras e enredos.Dominar a matéria-prima será capacitar-se paraambicionar o ponto mais alto, de onde se descor-tina o sonho da perfeição. A finitude da capaci-dade humana declama na consciência dos maisousados a lição da modéstia. Os arrogantes não so-nham, pois já se julgam superiores.

3. Há modos criativos de imitar. Num deles re-pousa a reverência aos mestres. Bem conhecê-losserá o melhor meio de se livrar da servidão e da de-pendência. No outro modo insere-se o veneno dacrítica, combustível da paródia: ora se imita paradivulgar, divertir-se, ora para por a nu a fraude oua impostura. No âmbito da imitação vai-se da pa-ráfrase até à sátira. Sempre homo additus naturae.

4. O mais difícil para o escritor será admirar aprópria obra com os olhos bem acesos, iluminadosaos clarões do entendimento. A dor da criação é in-suportável, mas tão irresistível quanto as astúciasdo amor. Cair em tentação, no amor como na arte,independe do triunfo. Cego impulso.

5. Quiroga aqui é tão lúcido quanto E. A. Poe. Terum só efeito predeterminado é lição insuperável.Todas as palavras da composição devem estar sub-metidas ao mesmo objetivo. Inutilia truncat.

6. Na personalidade de cada escritor existempalavras e expressões-chaves, recorrências, har-mônicas ou não, que individualizam o estilo. É ne-

ocupa em avaliar se são con-soantes ou dissonantes.

7. Não adjetiva sem necessi-dade, pois serão inúteis asrendas coloridas que venhasa pendurar num substanti-vo débil. Se dizes o que épreciso, o substantivo, sozi-nho, terá uma cor incompa-rável. Mas é preciso achá-lo.

8. Toma teus personagenspela mão e leva-os firme-mente até o final, sem aten-tar senão para o caminho quetraçaste. Não te distrai ven-do o que eles não podem verou o que não lhes importa.Não abusa do leitor. Um con-to é uma novela depurada deexcessos. Considera isto umaverdade absoluta, ainda quenão o seja.

9. Não escreve sob o impé-rio da emoção. Deixa-a mor-rer, depois a revive. Se és ca-paz de revivê-la tal como aviveste, chegaste, na arte, àmetade do caminho.

10. Ao escrever, não pensa emteus amigos nem na impres-são que tua história causará.Conta como se teu relato nãotivesse interesse se não parao pequeno mundo de teus per-sonagens e como se tu fossesum deles, pois somente assimobtém-se a vida num conto.

cessário que o leitor reconheça nos pormenoreso arcabouço da peça inteira.

7. Da lição de Horácio Quiroga em favor das vir-tudes substantivas, e em desfavor das adjetivas, co-lhe-se a lição mais preciosa e o desafio mais temerá-rio, quanto à descoberta do substantivo: “Mas épreciso achá-lo.” Há dois movimentos na escritabem-afortunada: a procura e o achamento. O talentose junta ao esforço.

8. Conduzir o protagonista com a mão firme evontade decidida constitui tarefa do escritor deter-minado. Quiroga tem razão quando impõe: “Nãoabusa do leitor. Um conto é uma novela depurada deexcessos.” Mas falta acrescentar que há contista cujariqueza se acumula no subtexto ou nos motivos li-vres. Penso em Machado de Assis, que também ma-nifestava horror a demasias. E em Clarice Lispector,que navegava em circunstâncias aparentemente in-significantes. A linguagem é como um rastro depólvora em combustão: ilumina a busca e põe o pro-tagonista no centro.

9. Diz Quiroga, acertadamente: “não escrevesob o império da emoção”. Quantas obras se per-deram quando concebidas sob o calor dos acon-tecimentos. A emoção da escrita é construída,recolhida na tranqüilidade, como queria o poeta.A da vida cotidiana é produto da vida não literá-ria, fruto da vivência humana. A revivência escri-ta está em Quiroga, não é o caminho todo: é me-tade do caminho. A outra metade poderá ser arte,se não passar de jornalismo, reportagem, crônica.

10. A décima lição de Quiroga induz o culto doreal da escrita. Repugna a ele a escrita do real. Quandoo contista se associa ao mundo de sua criação, ado-ta a visão de uma de suas criaturas. Convive com elas.Respira o ar que oxigena a atmosfera artística.

LITERATURA

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5JORNAL DA ABI 402 • JUNHO DE 2014

Jornal da ABI – Gostaria de começar bempelo comecinho, aproveitando que, co-incidentemente, hoje, 30 de abril, é jus-tamente a véspera de seu aniversáriode 70 anos. Onde você nasceu e comofoi sua infância?

Francisco José – Eu nasci na região ruralda cidade do Crato, no Ceará. Meu pai eraum tipo desses coronéis do sertão, umapessoa muito respeitada na região. Ele eraviúvo, mais ou menos com a idade que euestou hoje, quando conheceu minha mãe,que tinha 22 anos. Minha mãe foi o ter-ceiro casamento dele, que já tinha filhopra tudo quanto era lado. Ele conheceu mi-nha mãe, disse “vou conquistá-la” e con-quistou. Ele era impressionante, muitoadmirado, andava em cavalos bonitos, afazenda dele era bonita. Ele se casou e eunasci. Fui o mais novo filho dele e o maisvelho da minha mãe. Minha mãe morreudizendo que ele era a grande paixão davida dela.

Jornal da ABI – Então, você é conter-râneo do cineasta Hermano Penna.

Francisco José – Não só sou conterrâ-neo, como sou também primo legítimodele. Mas nós só nos vimos mesmo na in-fância, onde vivíamos praticamente namesma casa. Depois ele foi para um ladoe eu fui para outro, mas acompanhei osucesso dele, principalmente com o fil-me Sargento Getúlio.

POR CELSO SABADIN

Ele é ‘a cara da Globo’ no Nordeste. Não só a cara como a voze o sotaque. Apaixonado por futebol, mergulho, pesca subma-rina e temas ambientais, Francisco José recebeu a reportagemdo Jornal da ABI em seu apartamento em Boa Viagem, Recife.

Detendo a invejável marca de ter comandado, até agora, nadamenos que 89 programas Globo Repórter, Chico José, como todoso chamam, já perdeu a conta do número de países onde já reali-zou reportagens. Desafiou os coronéis do poder, denunciou po-derosos, driblou a ditadura, e convenceu a Globo a adotar sota-ques regionais no Jornal Nacional. Nada mal para quem começoua carreira com uma divertida e desastrosa narração futebolística.

“A IMPRENSABRASILEIRA ÉA MAIS LIVREDO PLANETA”

Jornal da ABI – No total são quantosirmãos?

Francisco José – No total eu não sei [ri-sos], juro que não sei. Até ano passado fiqueisabendo que tinha irmão que eu não conhe-cia. Sei da parte da minha mãe, porque elaficou viúva e se casou com um comercian-te da capital. Foi quando eu vim ao Recife.Ele também era viúvo, tinha oito filhos, co-migo nove, e teve mais cinco com ela. Narealidade, somos catorze pelo lado da mi-nha mãe. Pelo lado do meu pai eu não sei di-reito, mas do intervalo do segundo para oterceiro casamento sei que ainda restamdois irmãos, o Vicente e o Francisco.

Jornal da ABI – O nome dos seus pais?Francisco José – O nome do meu pai é

o mesmo que o meu, Francisco José de Bri-to, bem conhecido como Coronel Chicode Brito.

Jornal da ABI – Era latifundiário?Francisco José – [pensa um pouco] Lati-

fundiário exatamente, não. Digamos queera um fazendeiro bem sucedido. Mas asterras dele não eram grandes, não. Na re-alidade, era um engenho de cana-de-açú-car, com plantio de cana e pequi.

Jornal da ABI – Você morava na zonarural ou na cidade?

Francisco José – Morei na zona rural atéos sete anos de idade, cresci na fazenda.

DEPOIMENTOFOTOS: ACERVO PESSOAL

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6 JORNAL DA ABI 402 • JUNHO DE 2014

Com dois anos já me botavam em cimade cavalo, tinha uma sela pequena, e o ca-valo me levava de um lado para outro. Comcinco anos já andava em burro bravo, queme derrubava na bagaceira do engenho.Eu levantava e me colocavam para o bur-ro derrubar de novo. Minha vida foi ma-ravilhosa no período da infância.

Jornal da ABI – Aí você foi pra cidadeestudar?

Francisco José – É. Fui pra cidade estudar,era pertinho, seis quilômetros só. Uma lé-gua, como se diz.

Jornal da ABI – Como vocêcurtia sua infância?

Francisco José – Minha infân-cia e adolescência eram andarcom os funcionários da fazen-da, pegar cana, correr a cavalo, fa-zer pega de boi, e ir buscar o gadopara colocá-lo no curral à noite.Eu fazia muito isso, e adoravafazer essas coisas.

Jornal da ABI – O que você queria serquando crescesse?

Francisco José – Eu não tinha idéia doque eu ia ser. Eu queria estudar. Eu tinhauma irmã do segundo casamento do meupai, Juraci, que era professora, e ela me in-centivava muito a estudar. Quando meupai morreu, eu tinha oito anos de idade, efui interno num seminário de Crato, o me-lhor da região, onde fiquei durante doisanos, até eu vir pra cá, em Recife.

Jornal da ABI – O que te faz vir para oRecife?

Francisco José – O fato de minha mãe terse casado com um comerciante daqui, oAlfredo de Albuquerque Fernandes. Che-guei aqui, me uni aos oito filhos de Alfre-do, e fomos criados todos juntos, comouma grande família. Nós nos considera-mos irmãos de fato e de direito, e eu con-sidero meu padrasto como um segundopai pra mim.

Jornal da ABI – E como foi sua ado-lescência?

Francisco José – Bom, eu cheguei em Re-cife antes de completar onze anos. Até os18 ou 20 anos eu estudava e ajudava naempresa do meu padrasto, que tinha umaindústria de molduras. Eu dava quase queum expediente lá, sem a obrigação de fi-car o tempo todo, porque a prioridadeeram os estudos. Ele mesmo consideravaisso, tinha uma visão muito boa disso. Ojornalismo propriamente dito surgiu aos20 anos de idade, quando na escola eu ga-nhei um concurso de literatura escreven-do sobre Abraham Lincoln. Não tinha in-ternet na época, era difícil pesquisar, eufui pra biblioteca, pesquisei muito e ga-nhei o concurso. Quando eu fui recebero prêmio no auditório do Colégio Ame-ricano Batista, o professor disse que eu ti-nha muito jeito para escrever, e que eupodia me tornar jornalista. Me deu um es-talo: será que eu posso ser jornalista? Eumesmo não acreditava.

Jornal da ABI – E como finalmente vocêse tornou jornalista?

Francisco José – Minha entrada na im-prensa foi por acaso. Na época, não haviacurso superior de Jornalismo, e eu sem-pre fui fanático por futebol. Hoje, menos.Hoje gosto de ver espetáculo, gosto de vero Barcelona, gosto de ver bom futebol.Mas na época não, era torcedor do Náu-tico, como sou até hoje, ainda que menosfanático. Mas o fato é que, naquela épo-ca, Recife tinha o Jornal do Commercio e oDiário da Noite, um vespertino quase quetotalmente dedicado ao esporte. E eu per-

cebi que o Diário trazia muitos erros nasestatísticas do campeonato pernambuca-no de futebol. Quando eu peguei umaedição com 32 erros, alguns deles absur-dos, arranquei uma folha do caderno docolégio e escrevi uma carta ao jornal cri-ticando que eles estavam enganando osleitores, que eles não atualizavam as esta-tísticas do campeonato, que estava erra-do o número de gols, que o artilheiro nãoera aquele, e que até o número de pontosnão estava correto. Enfim, reclamei quea gente comprava o jornal para ser enga-nado. O editor-chefe, Aramis Trindade,tio do ator pernambucano de mesmonome, fazia um comentário esportivo narádio do grupo do Jornal do Commercio, queera um sucesso, todo mundo ouvia (na-quela época não tinha televisão). E no fi-nal de um destes comentários, certa vezele disse: “Eu quero convidar o leitor doDiário da Noite que corrigiu a estatísticado campeonato para vir à Redação dojornal”. Meus amigos de colégio, que sa-biam que eu tinha feito isso, me avisaramque estavam me chamando, mas eu nãoqueria ir. “Vou nada, eu esculhambei como jornal, vou nada”, eu dizia. Dois dias de-pois o Aramis me chamou de novo, e aí eufui. Ele me disse: “Você quer ficar fazen-do a estatística do campeonato?”, e eu per-guntei quanto eu iria ganhar. Como jáestava quase no fim do campeonato, e eledisse “este ano eu não tenho dinheiro prate pagar, mas a partir do próximo campe-onato eu vou arranjar uma graninha pravocê. Não é muita coisa, mas é uma aju-da; vou dar o transporte para você vir todaquarta-feira à noite e todo domingo ànoite para atualizar a estatística”.

Eu aceitei. Até que dois, três meses de-pois, faltou o repórter que cobria o Náu-tico, que era o meu time. Parece que elesofreu um acidente e ia ficar um mês fora.Aramis olhou pra mim e disse: “Quer irpra Caruaru fazer o jogo com o Central?Você anota todos os dados, o fotógrafo vaicom você no carro do jornal, leva um gra-vador, entrevista os jogadores no vesti-

ário... sabe entrevistar?”. Respondi “sei”e fui pra lá. O jogo foi à noite, depois fui di-reto para a Redação fazer a matéria. Pegueia máquina de escrever, escrevia, escrevia,lia, jogava no lixo, escrevia, lia e jogava nolixo... Foi assim até às cinco horas da manhã.E eu tinha chegado no jornal antes da umada manhã. Saí às cinco, deixei o texto do-bradinho lá, e quando acordei, peguei ojornal: o texto que eu tinha feito estava lá.No dia seguinte, quando voltei ao jornal,porque agora eu também cobria os treinosdo Náutico enquanto o repórter não vol-tava, o Aramis perguntou: “Quem fez o

texto do jogo?”. Respondi que fuieu e ele me falou: “Ficou melhorque o do repórter que fazia an-tes”. E eu consegui o trabalho.Começaram, então, a sair as ma-térias, que não eram assinadas.Seis meses depois, o Aramis re-solveu deixar o jornal, ficar só como comentário no rádio e assumira banca de advocacia dele. E meindicou para ser editor-chefe. Foi

assim que tudo começou.

Jornal da ABI – Pelo visto seu talentopara escrever é nato. A que você atri-bui esta habilidade? Você lia muito?

Francisco José – Eu lia muito a colunado Armando Nogueira no Jornal do Bra-sil. Eu ia para a banca de jornais só paracomprar os jornais e acompanhar mais oesporte. Eu lia demais.

Jornal da ABI – Então, sua paixão pelaescrita não veio da literatura, mas dojornalismo?

Francisco José – Sim, do jornalismo mes-mo, do texto jornalístico. Eu aprendiacomo os jornalistas escreviam.

Jornal da ABI – E você entra no jorna-lismo pela porta do esporte.

Francisco José – Exatamente. Naquelamesma ocasião houve um concurso praver quem ia fazer a cobertura da Copa doMundo, e eu ganhei.

Jornal da ABI – Estamos falando dequal Copa?

Francisco José – A de 1966, na Inglater-ra. Tinha pouquíssimo tempo de jornale lá fui eu para a Copa do Mundo. Em 1970,no México, eu também fui, mas já peloJornal do Commercio. Foi nessa ida para aCopa do México que eu acabei chamandoa atenção do Armando Nogueira e da equi-pe da Globo, pois eles perceberam queonde eles estavam, eu estava também. Eutrabalhava muito, fui realmente para mededicar, para fazer uma boa cobertura. Euera o único enviado da empresa Jornal doCommercio, que era grande, tinha rádio, jor-nal e televisão. Assim, quando a Globo co-meçou a fazer o Globo Esporte também aquino Recife, o Armando Nogueira mandoume contratar, porque ele tinha visto meutrabalho no México. Foi aí que a Globome chamou.

Jornal da ABI – Então, a partir de 1966,sua trajetória foi Crato, Recife e Lon-

dres, tudo muito rapidamente. Quaiseram as condições técnicas que um re-pórter tinha, em 1966, para fazer umacobertura para um jornal diário deLondres para Recife?

Francisco José – Nenhuma!

Jornal da ABI – Mandava as matériasvia pombo correio? [risos]

Francisco José – Era pombo correio, por-que eu não era nem credenciado. Quandoo jornal me mandou para Londres, em1966, nem dava mais tempo para fazer cre-denciamento, mas eu fui assim mesmo. Em1970 eu já fui credenciado, já podia usaro centro de imprensa, usava os telexes delá para passar as reportagens.

Jornal da ABI – Se você não estava cre-denciado, como tinha acesso às infor-mações e enviava as reportagens?

Francisco José – Eu ia ao estádio, via a mo-vimentação, via tudo o que eu conseguis-se ver, escrevia, entregava o texto para umcorrespondente do jornal que ia até umaárea que eu não tinha acesso, e ele man-dava tudo aquilo.

Jornal da ABI – Como foi cobrir a Copade 1970 pelo Jornal do Commercio?

Francisco José – Eu fui para o México doismeses antes, acompanhando a seleção.Onde ela ia, eu ia junto. Mas foi uma di-ficuldade enorme, porque naquela épocao jornal estava praticamente falido. Eu fuicom um orçamento limitadíssimo, quemal dava para comer. Era um dinheirinhocontado, o salário bem pequeno também,mas era uma realização profissional enor-me. Quando eu voltei, o jornal nem pa-gava mais em dinheiro, mas somente emvale. E eu, recém-casado, minha filha maisvelha, Mariane, com apenas três meses deidade, pensei:

“Como vou sustentar minha mulhere minha filha recebendo em vale? Eu vouter de procurar um emprego, vou sair dojornalismo”. Me aconselharam a procu-rar uma agência de publicidade que sechamava Abaeté, e que mais tarde se tor-nou a Ampla, atualmente a maior agên-cia daqui. Na época, a Abaeté também jáera a maior da região. Falaram para euprocurar o senhor Queiroz, porque o re-dator de lá estava saindo e poderia ter umavaga para mim. Fui lá, bati na porta doQueiroz, Severino Cavalcante Queiroz,falecido em 2012, e disse: “Vim pedir umaoportunidade para trabalhar aqui; estáaqui o meu currículo”. E ele me disse: “Eulhe conheço, leio sua coluna todo dia, maspublicidade não é jornalismo, não. Vocêse submete a ficar três meses em experi-ência?”. Eu, claro, aceitei e ele me deu unsbons clientes para atender e para eu cri-ar os anúncios deles. Em menos de ummês ele pediu minha carteira profissionale me contratou. Fiquei na Abaeté trêsanos. O principal cliente da agência era oSistema Financeiro Banorte, numa épo-ca em que aqui não tinha Bradesco, nãotinha Itaú, não tinha nada, só o Banorte.Eram mais de 100 agências no Brasil, omaior banco da região, uma potência! E

“Quando eu peguei uma ediçãocom 32 erros, alguns deles

absurdos, arranquei uma folha docaderno do colégio e escrevi umacarta ao jornal criticando que elesestavam enganando os leitores.”

DEPOIMENTO FRANCISCO JOSÉ

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como eu me destaquei muito atendendoo banco, eles acabaram me contratandocomo gerente de marketing. Passei de agên-cia a cliente.

Jornal da ABI – Você não era apenas oredator da agência?

Francisco José – Eu era redator, mas fa-zia o atendimento, participava das reu-niões, voltava para a agência e participa-va da criação do anúncio da maneiracomo eu tinha visto, que o cliente tinhapedido, criando e colocando dentro dasnormas de publicidade. Eu aprendi mui-to com o Queiroz, foi um grande profes-sor para mim. Meus primeiros grandesprofessores foram, primeiro, o Aramis,depois o Queiroz, e mais tarde o Ronil-do Maia Leite [jornalista e publicitário per-nambucano, nascido em 1930 e falecido em2009], que foi extraordinário comigo,sempre me ensinou muito. Minha facul-dade foram estes três professores. De-pois, na Globo meus mestres foram Ar-mando Nogueira e Alice-Maria. Enfim,fui gerente de marketing do Banorte pordois anos e meio, fiz curso de especiali-zação em Marketing na Fundação Getú-lio Vargas-FGV, fui aos Estados Unidos,aprendi muito.

Jornal da ABI – Quando veioo convite da Globo?

Francisco José – Foi no finalde 1975. A Globo me convidoupara comandar o segmento doprograma Globo Esporte no Nor-deste, a partir de janeiro de 1976.Perguntei quanto seria meu sa-lário e era a metade do que eu ga-nhava como gerente de marke-ting do Banorte. Eu disse “masisso é a metade do que eu ganho”,e ouvi “mas é isso que a gentepode te pagar”. E ficou por issomesmo. Decidi voltar para o jor-nalismo, mesmo perdendo di-nheiro. Na época eu ganhavaacho que onze mil cruzeiros, efui ganhar quatro e oitocentos,mas ali estava a minha vontadede voltar a ser jornalista e aomesmo tempo um desafio paraentrar na televisão. A Globo erauma coisa nova, e aqui em Per-nambuco é Globo mesmo, nãoé afiliada, isso foi um incenti-vo grande, mas a minha entrada na emis-sora foi a coisa mais desastrosa que vocêpossa imaginar. No dia que fui a Olinda,onde estou até hoje na sede operacionalda Globo de Jornalismo e Engenharia, per-guntei que dia eu iria começar a trabalhare me disseram: “Hoje. Você vai narrar umjogo, Santa Cruz e São Paulo, às onze horasda noite”. E falei “Hoje? Mas este jogo éno Morumbi, lá em São Paulo”, e eles medisseram que eu ia fazer “off tube”. “Maso que é off tube?”, perguntei, e eles me dis-seram: “você vai ficar numa cabine, equando acender uma luz você vai come-çar a falar”. Argumentei dizendo que eunão era narrador, nunca narrei um jogode futebol, nem em rádio, nunca traba-

mentarista, não tinha repórter, não tinhanada. Era eu sozinho para segurar o jogointeiro. Fiquei naquela cabine olhando aluz apagada uns dez minutos. Quandoacendeu a luzinha escrito “No Ar”, fixeios olhos no monitor, falei “boa noite”, esaí narrando o jogo, sem nunca ter feitonada parecido na vida. Eu tinha na cabe-ça as coisas que eu ouvia do Luciano doValle e de outros narradores da época,como “bola com fulano, toca pra direita,lança na esquerda”, essas coisas, mas es-tava bem lento e bem tímido, achandotudo aquilo um absurdo, achando que eunão sabia fazer nada daquilo. Igual aocara que não sabe cantar e se mete a can-tar. Só sei que dali a pouco teve um chu-

te na trave. O São Paulo pressionando otempo todo, e chutaram uma bola na tra-ve. Gritei que a bola foi na trave, mas ime-diatamente me veio um medo: e se fossegol? Eu não sei gritar gol! Bom, acabou oprimeiro tempo, chamei os comerciais,veio o segundo tempo, acabou o jogo, deigraças a Deus que tinha terminado zero azero, já que eu não saberia como gritar gol.Eu suava! Daí um rapaz chamado Jobsonabriu a porta da cabine e disse: “Vem agorapara o estúdio para chamar os gols”. Quegols? Foi zero a zero! Mas era para cha-mar o gol do Maracanã (o Fluminense ga-nhou com gol de Rivelino), o gol do Beira Rio,os gols do Mineirão, os outros gols darodada. Pela primeira vez eu entrava numestúdio da Globo. As luzes fortíssimas, oar-condicionado desligado porque davainterferência, aqueles panelões de luzem cima, que eram bem diferentes e bemmais quentes que as luzes de hoje. Fiqueiali suando, suando, com calor, com medo,suando e tremendo. O mesmo Jobson vol-ta e diz: “Passa pó na cara dele, que estábrilhando muito”. E eu falei “na minhacara não vai botar pó, não!”. Imagina só,botar pó na cara do sujeito que veio lá dosertão! Tentei resistir e ele me disse: “dei-xe de besteira rapaz, todo mundo fazisso; Cid Moreira, Sérgio Chapelin, todomundo passa pó”. O Jobson foi numagaveta, pegou o estojo de pó da apresen-tadora do jornal, e veio ele mesmo passaraquilo na minha cara, que me deu mais ummotivo para ficar inibido diante daque-la câmera. Eu nunca tinha ficado diante

lhei em rádio, nunca trabalhei na televi-são, nada. “Você aprende. Você foi esco-lhido pelo Armando Nogueira, e não temoutro, já está tudo certo”, me disse o Wil-son Emanuel, um carioca Diretor de Ope-rações. Pois bem, lá pelas dez e meia danoite, eu ouvi no corredor: “Onde é queestá o cara que vai narrar o jogo?”. Res-ponderam: “Tá lá na sala de Wilson”. Melevaram para a tal cabine do “off tube” eme disseram para chamar os comerciaisquando terminasse o primeiro tempo.“Como é que se chama um comercial?”,eu perguntei, e a resposta foi: “Você dizque volta logo depois do intervalo co-mercial”. Era assim. Me deram um papelcom as escalações dos times, não tinha co-

Pelo Globo Repórter, Francisco José já viajouaos lugares mais belos e exóticos e tambémaos mais inóspitos do planeta; desde a Índia(acima, com a equipe do programa) até aCordilheira dos Andes (ao lado).

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de uma câmera na vida. Perguntei “quan-do é que eu sei que é pra falar?”. Me res-ponderam: “quando acender a luz aquiem cima é que está no ar, e cala a boca quefalta menos de um minuto pra você en-trar”. E eu entrei. Chamava o gol do Mi-neirão e entrava o do Beira Rio, eu chama-va o do Beira Rio, entrava o do Maraca-nã, e eu ia tentando consertar tudo. Quan-do terminou até me esqueci de lavar orosto e tirar o pó, e fui embora para casa,com pó e tudo. No dia seguinte, voltei lápara agradecer e me demitir, para dizerque aquilo não era minha praia, que eunão sabia fazer e não ia mais fazer aqui-lo. Foi quando o Wilson Emanuel me dis-se: “Quem sabe se você vai dar certo natelevisão sou eu, quem entende sou eu.Você não entende nada, vai ficando aíque todo mundo começa assim”. Era as-sim naquela época. Hoje, não. Hoje todomundo faz piloto, se prepara, tem cursode Jornalismo, tem cadeira de Televisãopara aprender, ensaios, tem tudo. Mas,naquela época, foi assim, a seco. Eu fuificando e estou tentando aprender atéhoje. Acho que cada reportagem é umnovo aprendizado.

Jornal da ABI – Como foi sua transi-ção do esporte para outras áreas dareportagem?

Francisco José – Na Globo eu participeidas Copas de 1978, 1982, 1986 e 1994,mais as Olimpíadas de Seul e Los Ange-les. Depois eu saí do esporte e fui para areportagem, mesmo porque aqui em Per-nambuco eu já fazia reportagens geraisdesde 1976, logo no meu primeiro ano deemissora, pois a Globo precisava de um re-pórter de vídeo para cobrir a região Nor-deste. Comecei a entrar no Jornal Nacio-nal quando só oito repórteres eram auto-rizados a entrar, mesmo porque eles pre-cisavam cobrir uma seca terrível que hou-ve por aqui naquela época, uma das pioresde todos os tempos. Se hoje vocêvê matérias sobre a seca matan-do animais, imagine naquela épo-ca! Ela matava pessoas. A genteacompanhava as viúvas da seca, osanjinhos da seca, crianças que nas-ciam desnutridas e morriam antesdos 30 dias de vida, sem nome, semidentidade, sem nada. Elas eramenterradas no quintal da zona ru-ral, abriam uma cova rasa, coloca-vam umas flores, e perguntavamse a criança tinha nome. Se não ti-vesse, era um “anjinho”, um ter-mo que usam até hoje para crian-ça que morre.

Jornal da ABI – Como que neste mes-mo ano de 1976 você sai de um fiascoesportivo daquele tamanho para já en-trar no Jornal Nacional?

Francisco José – Durante quase dez anoseu fui o único repórter de vídeo da TV Glo-bo no Nordeste. Depois é que começarama surgir outros repórteres, mas no JornalNacional só eu entrava. Fazia todas as pau-tas, e às vezes eu saía pelo sertão parafazer quatro, cinco matérias de uma vez.

E eu mesmo me pautava. Agora mesmoestou voltando das Bahamas com quatrovts para o Fantástico. Pauta minha, tudoexecutado por mim.

Jornal da ABI – E você, que entrou nojornalismo motivado por sua paixãopelo esporte, acabou se apaixonandopelos mais diversos temas?

Francisco José – Foi. Tinha um crime naParaíba, eu corria para lá. Aconteceu umacatástrofe no Rio Grande do Norte, um

açude estourou, inundou uma cidade intei-ra, imediatamente eu ia para lá. Tudo o queacontecia no Nordeste, eu era o correspon-dente, corria para fazer a reportagem.

Jornal da ABI – Tudo com aquelas câme-ras U-Matic enormes daquela época?

Francisco José – Não, foi até antes da U-Matic. Eu ainda peguei a época da Auri-com, pesadíssima, que tinha de ser usadacom uma espécie de cangalha, que era um

suporte que o cinegrafista praticamentevestia para conectar o cabo que ligava acâmera ao vt. Era uma espécie de bisavóda steadycam [risos].

Jornal da ABI – Quais foram suas prin-cipais coberturas no Nordeste daque-la época?

Franscisco José – Deste período eu co-bri secas, crimes, denunciei falcatruas depolíticos, cobri o chamado “Escândalo daMandioca”, que deu na morte de um Pro-

curador da República, assassina-do por um major da polícia, que es-tava envolvido. Cobri muitos ca-sos de problemas dos chamados“Sindicatos da Morte”, no interi-or do sertão. O sertão não tinha lei,tinha tiroteio de quarenta minu-tos em Serra Talhada, terra de Lam-pião. Eles chegavam com várioscarros, invadiam a cadeia e leva-vam quem eles queriam. Era umaterra sem lei.

Jornal da ABI – Você deve tersofrido muita pressão.

Francisco José – Sofria muitapressão, mas ao mesmo tempo as

pessoas tinham respeito por mim, pelomeu jeito de ser, de encarar, de ir e fazer,e não ficar me escondendo. Eu cobri o casode Exu, onde houve uma guerra entre fa-mílias que acabou culminando com a mor-te de mais de 50 pessoas das duas famíli-as que brigavam entre si. E eu ia sempreaté lá cobrir. Tinha um aviãozinho peque-no que terminou caindo e o piloto mor-reu, e eu descia num campo de futebolporque não tinha pista de pouso. Chega-

va lá para fazer as matérias e as pessoasficavam com raiva de mim, dizendo “vocêsó vem aqui quando morre gente da mi-nha família”. E eu falava: “não, venhoquando morre da outra família também”.Pelo fato de eu botar a cara e falar a mes-ma linguagem deles, eu não consideravaas ameaças, e agindo assim até hoje con-sigo enfrentar situações difíceis com amaior naturalidade.

Jornal da ABI – Você não tinha medodos poderosos, de ser ameaçado demorte?

Francisco José – Não, não chegaram ame ameaçar de morte, mas mostrar re-vólver e parar o carro, mandar embora,tudo isso aconteceu muitas vezes. Maseu não acreditava que eles iam atirar. Éigual ao mergulho, que é um esporte queeu gosto muito: quando dou de cara comum tubarão-tigre de quatro metros, elevem pra cima de mim, eu vou com a câ-mera em cima dele. Ele volta, eu dou coma câmera nele. Não vou embora, não.Enfrentar os coronéis do sertão, já queeu sou filho de um, era a mesma coisa queenfrentar o tubarão-tigre. Minha armaera a câmera.

Jornal da ABI – E as condições para tra-balhar naquela época?

Francisco José – A Globo sempre medeu boas condições. Eu tinha um carropara as viagens, que era o que eu precisa-va. Não digo que ficava em bons hotéisporque o Nordeste naquela época nãotinha grandes hotéis, como tem hoje.Mas tinha as condições necessárias parao que eu precisava.

“A gente acompanhava as viúvasda seca, os anjinhos da seca,

crianças que nasciam desnutridase morriam antes dos 30 dias de

vida, sem nome, sem identidade,sem nada. Elas eram enterradasno quintal da zona rural, abriamuma cova rasa, colocavam umas

flores, e perguntavam se acriança tinha nome.”

DEPOIMENTO FRANCISCO JOSÉ

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Jornal da ABI – Como era a relação daGlobo Recife com a matriz?

Francisco José – A relação sempre foinormal. Nós somos como um escritórioda Globo, porque aqui é Globo. Então,tudo era e é mais fácil. Lá do interior, euia para um telefone público ou um pos-to telefônico, ligava para o editor e di-zia: “olha, eu tenho isso, isso, isso, estoumandando pelo ônibus, vão editar emRecife”. E na época ainda era filme, pe-lícula, tinha de mandar revelar. A gen-te modificou muita coisa no Nordeste.Por exemplo, quando eu comecei a cobriro Carnaval de Olinda, há 38 anos, era acoisa mais linda do mundo! Os clubes saí-am um dia de Pitombeira, outro dia doElefante, outro dia de outro lugar, e as-sim por diante. Cada dia era o dia de umclube desfilar, e no último dia saíam to-dos, com as ruas decoradas pelo própriopovo, fantasias maravilhosas, hinos, rit-mos, e só o povo da cidade. Tudo isso foiaumentando. Cada vez que o Jornal Na-cional dava três, quatro minutos por diapara uma matéria do Carnaval de Per-nambuco, no ano seguinte dobrava o nú-mero de pessoas. Até que um dia que euestava descendo a ladeira na frente de umbloco, e um morador me parou e falou:“Chico, tu não está percebendo que estásacabando com o Carnaval de Olinda,não? Olha a multidão que vem aí e nãodeixa o povo desfilar, os músicos nãopodem tocar de tanta gente ao redor, todomundo urinando na rua, não tem estru-tura pra isso, cada vez que você mostra natelevisão, aumenta o número de pessoas.Vai mostrar o Carnaval em outro lugar”.E ele tinha razão. Fiquei dez anos sem ira Olinda e fui mostrar Recife, onde nãotinha ninguém no bairro antigo. E emtodo lugar que a televisão mostrava, mu-dava tudo. A televisão mudou Olinda,mudou Recife, como nós mudamos tam-bém várias outras regiões. Por exemplo,Bonito, em Mato Grosso do Sul, a primei-ra vez que eu fui lá, em 1992, gravar oGlobo Repórter, tinha um único hotel, o Bo-nanza, nenhuma rua calçada e nenhumaoperadora de turismo. Dois anos depois,em 1994, eu voltei para gravar o segun-do Globo Repórter e todas as ruas estavamcalçadas, havia 16 hotéis, e estavam cons-truindo um de cinco estrelas. As áreas quenós mostramos foram compradas porempresários de turismo, e os que tinhamfazenda de gado deixaram o gado para se-gundo plano para se dedicar ao turismo,que passou a ser mais rentável. Um turis-mo perfeitamente ecológico, onde os lu-gares só podem ser visitados com guias.Eles organizaram tudo de uma maneiraque tornou a região uma das maiores atra-

ções turísticas do Brasil. E era totalmen-te desconhecida.

Jornal da ABI – Essa responsabilida-de não te assusta?

Francisco José – Não, porque eu façotudo com muita consciência. Me preo-cupa o fato de o Carnaval ter sido tão bo-nito e depois ter virado a multidão que éhoje, mas ainda é bonito, porque você vêdez, doze, quinze maracatus passandopelo meio daquela multidão com aqueletoque marcante e tudo. Aquilo é Carna-val tradição de Pernambuco, aquilo é oque queremos mostrar. Mas, ao mesmotempo, quando passa o maracatu, as ruasficam fechadas, mudou o aspecto.

Jornal da ABI – A gente está falandode anos 1970, pressões da censura,você conseguia fazer matérias politi-camente fortes, denúncias políticas?

Francisco José – Sim, principal-mente as matérias sobre a seca. Agente não podia usar palavrascomo “fome”, que a censura nãopermitia, mas eu mostrava, emimagens, que as pessoas estavamcom fome. Não podia falar “fome”,mas eu mostrava a realidade. Mos-trava uma mulher esperando umbebê e o médico já dizendo que elanão tem condições de manter o filho,porque ela está completamente desnu-trida. Voltava lá dez dias depois e mos-trava já a cova do anjinho.

Jornal da ABI – As matérias sobre oCarnaval mudavam o Carnaval. E asmatérias sobre a fome tinham algumpoder de mudar esta situação?

Francisco José – Tinham, sim. Inclusi-ve por decisão de Roberto Marinho foicriada a campanha ‘Nordeste, o Brasil embusca de soluções’. E qual foi a solução?A Globo contratou os principais profes-sores das universidades da Bahia, de Per-nambuco, do Rio Grande do Norte, doCeará, reuniu todos, tirou o diretor do

Globo Repórter da época e o colocou paradirigir estas pessoas. Eles ficaram seismeses no sertão procurando soluções, queforam apresentadas num relatório divul-gado pela Globo num programa especialque fizemos ao vivo, o Hermano Hen-ning e eu. As soluções eram: abrir poços,fazer barragens quando tivesse chuvas,os rios serem barrados, e isso é o que estáaliviando a situação até hoje. É isto queconsegue abastecer as cidades, a maneiracomo cultivar, irrigar e aproveitar a águados açudes, as cacimbas, e várias outras,tudo isso foram sugestões apresentadasneste programa.

Jornal da ABI – Isso deve te dar umorgulho absurdo, né?

Francisco José – Dá, claro, e para toda aequipe, porque eu sou apenas uma gotad’água numa estrutura que trabalha coma responsabilidade.

Jornal da ABI – Naquela época em quese falava muito sobre integração nacio-nal, uma das bandeiras da ditadura,como era visto pela Globo o seu sota-que nordestino, que é bem marcado?

Francisco José – No início houve umacerta resistência, porque eu falo até hojedo jeito nordestino. Me mandaram aoRio para eu ter aulas com a Glorinha Beut-tenmüller, uma sumidade em fonoaudi-ologia, e ela mandava eu falar “Ôlinda”,com o “ô” fechado. E eu falava “Ólinda”,com o “ó” aberto. Quanto mais ela meensinava a falar “Ôlinda”, mais eu fala-va “Ólinda”. Até que um dia ela chegoupara o Armando Nogueira e para a Alice-Maria e disse: “olha, ele nunca vai mudar

porque ele não quer mudar”. E não que-ria mesmo. Como se faz um Jornal ditoNacional com todo mundo falando comsotaque carioca ou paulista? O Arman-do me deu razão e liberou os sotaques re-gionais na Globo.

Jornal da ABI – Como o Globo Repór-ter acontece em sua carreira?

Francisco José – Foi quando o RobertoFeith, que era diretor do escritório de Lon-dres da Globo, voltou ao Brasil para cui-dar da editora dele e dirigir o Globo Repór-ter. E ele veio numa condição: “Eu voupara o Globo Repórter se eu tiver repórter”,porque o Globo Repórter até hoje não temrepórter. Só teve na época da Central deNotícias. Ele, então, escolheu oito repór-teres do Jornal Nacional, que continuari-am a fazer o JN, mas teriam o Globo Re-pórter como prioridade. Eu fui um deles,e a minha primeira matéria foi procuraros caçadores de jacaré que faziam contra-bando de pele no Pantanal.

Jornal da ABI – Quem pautava?Francisco José – O Bob Feith, em reuniões

onde todo mundo dava sugestões. Primei-ro fiz esta pauta dos contrabandistas dejacaré, e depois uma sobre o misticismo emBrasília, Tia Neiva, o Vale do Amanhecer,as formas piramidais das construções deBrasília, tudo aquilo. Em maio do ano pas-sado [2013] completei meu octogésimonono Globo Repórter, e com o tema que eu su-geri: o sertão do São Francisco.

Jornal da ABI – Qual é sua posiçãosobre a opinião do Rio São Francis-co?

Francisco José – Olha, se fosse uma coi-sa séria, se não houvesse corrupção e trou-xessem água do Tocantins, seria a salvaçãodo Nordeste. Mas, da maneira como estãofazendo, eles vão criar um problema sériopara o rio. E a corrupção é tão grande quequanto mais eles demoram a fazer, mais

oneram a obra, e a gente não vê o re-sultado ainda.

Jornal da ABI – Dos seus 89 pro-gramas Globo Repórter, é possí-vel escolher alguns que mais temarcaram?

Francisco José – Ah, claro, eu achoque sempre os últimos. Por exem-plo, tem um que me marcou muito

no ano passado que foi o programa sobreos índios Enauenê-naue. Nunca havia en-trado uma câmera de televisão abertanaquela aldeia. A produtora Maria Luizatem muita ligação com os índios e com aFunai, mesmo porque ela é meio índia.Foi ela quem conseguiu que nós entrás-semos lá com o compromisso de denun-ciar as hidroelétricas e as barragens queestavam sendo construídas acima dosrios dessas aldeias e que iriam prejudicartotalmente a pesca. E eles dependem dospeixes, porque não comem carne verme-lha. Eles passam sete meses por ano fa-zendo rituais para o espírito do mal nãopersegui-los. Esta reportagem foi finalis-ta do prêmio Emmy, em outubro.

“Enfrentar os coronéisdo sertão era a mesmacoisa que enfrentar otubarão-tigre. Minhaarma era a câmera.”

“A gente não podia usarpalavras como ‘fome’, que a

censura não permitia, mas eumostrava, em imagens, que aspessoas estavam com fome.”

Francisco José com a mulher, a jornalista Beatriz Castro, na Redação da Rede Globo Nordeste.

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Jornal da ABI – Foi nesta reportagemque você chegou a intervir em fun-ção de uma indiazinha que poderiamorrer?

Francisco José – Foi. Quem te falou?

Jornal da ABI – Fiz minha lição de casa[risos].

Francisco José – Essa história da india-zinha foi muito marcante. Quando eucheguei na aldeia, Maria Luiza já estavalá há dois dias. A aldeia fica a dez horasdo município de Juína, que fica a trêshoras, de aviãozinho pequeno, de Cuia-bá. Chegando lá, Maria Luíza me disse:“Chico, nós não vamos poder fazer nadanestes próximos dias, porque a filha docacique, uma menina de 14 anos, sofreuuma pancada muito forte na cabeça. Caiuuma árvore, o galho maior caiu na cabe-ça, e ela está em coma. Eles não estão fa-zendo nada, pararam os rituais, e estãofazendo só a pajelança”. Foi aí que eu per-cebi que este poderia ser exatamente oinício da matéria. A aldeia era formadapor 16 malocas grandes, compridas, comoito metros de largura por seis de alturae 70 de comprimento. Tudo de palha, tudoda forma mais rústica que você possaimaginar. Pelo lado de fora da maloca,você ouvia aquele canto, eles cantandoe a fumaça saindo de lá, as pessoas en-trando com peixes, fardos imensos demandioca. O nosso intérprete era filhodo cacique, um dos poucos na aldeia quefalavam português. Ele me contou quenaquele momento cinco pajés estavamtentando evitar com que um espírito, quedois anos antes havia se incorporado numaserpente e matou o cacique, se incorpo-rasse novamente para matar a menina. Nacabeça deles era assim. Eu falei: “liga acâmera”, e comecei a matéria. “Vocêsestão ouvindo esse canto de lamento, issoé uma pajelança, cinco pajés estão emtorno de uma menina de 14 anos que so-freu uma pancada na cabeça, ela está emcoma, e eles estão tentando salvar a me-nina com esse canto, com as orações, coma fumaça”, e por aí vai. Entrevisto na ma-téria o enfermeiro da Funai, que veio dacidade para levar a menina, mas nãopoderia levá-la se os índios não autorizas-sem. Digo, então, para o nosso intérpre-te, o filho do cacique: “peça ao seu paipara me autorizar a entrar com a câme-ra na maloca e nós asseguramos a vocêque nós não vamos filmar a menina.Quero só mostrar porque estas pessoasestão entrando”. Eu vejo ali mulheres ehomens completamente nus batendo empilões, botando peixes grandes para assar,panelas grandes fazendo mingau... Eramas oferendas para o Iacariti, o espírito domal. Entro na matéria explicando tudoisso. Neste Globo Repórter eu fiz 32 passa-gens [momento em que o repórter aparece nareportagem, conduzindo a linha da matéria],o programa foi quase todo de improviso.

Numa das idas e vindas do cacique, elevem para a câmera e desabafa. As lágrimassaem dos olhos dele, ele falando para acâmera, falando para mim, e eu sem enten-der nada. Recorro ao filho dele, que me

explica: “Ele está dizendo que é o culpa-do do Iacariti ter dominado a filha dele,porque ele deu pouco peixe para o Iaca-riti durante o ano, e que o peixe está de-saparecendo, mas que ele vai pescar, e elepromete que vai procurar mais comida parao Iacariti”. Foi uma coisa muito forte.Sempre com a ajuda do filho-intérprete,digo ao cacique que a filha dele vai mor-rer se ele não deixar o funcionário daFunai levá-la ao hospital, que nada dissoserá resolvido com pajelança. Os pajés eos caciques concordam. Eu mando pre-parar a câmera e a gente grava tudo. Elescarregam a menina com um pau e umarede de tira de árvore, correm quase umquilômetro até o rio onde está o barco daFunai. A mãe da menina pula completa-mente nua dentro do barco. O meninopequeno, irmão, pula também, vem o pajénu que pula também, e o barco desapare-ce. Aí mostro ao cinegrafista o barco indoembora e a população toda na beira do

rio, o cacique chorando, jogando água norosto. E eu falei: “mostra o drama do paida criança, que isso vai ser importante.”Mostramos o drama daquele pai de ver afilha ir embora sem esperança de que elavolte, saindo dos rituais dele para tentaruma solução com a medicina, e nós nosrecolhemos. Já era tarde.

Ao amanhecer, às cinco horas, chega ofilho do cacique na nossa barraca dizen-do, aborrecido, que o cacique queria fa-lar comigo, porque a menina não estavasendo atendida na cidade. Eles ficaramsabendo, pelo rádio da Funai, que a me-nina não estava conseguindo ser atendi-da no hospital. O cacique estava bravo,com umas trinta pessoas ao redor dele,todos me olhando de cara feia, porque navisão deles eu passei a ser o filho da putaque convenceu a garota a ir para cidade,e agora ela estava lá, sem atendimento.Peguei o rádio e liguei para a Funai deJuína, pedindo para transferir a ligação

para um celular em São Paulo. Falei, en-tão, com o produtor do Globo Repórter emSão Paulo, o Rafael, e pedi para ele desco-brir para mim o telefone ou do governa-dor do Mato Grosso, ou do Secretário deSaúde. Ficamos todos esperando, tudoem silêncio, não se falava nada. Quinzeminutos depois, ligamos de novo, e oRafael me disse que tinha falado com oSecretário e que ele iria mandar buscar amenina. Eu disse que não, que eu queriafalar com ele. Consegui: “Secretário, comoo senhor vai mandar buscar a menina?São 800 quilômetros de estrada ruim,vai ser um dia para chegar e outro paravoltar, a menina vai morrer. Tem que man-dar um avião, com neurologista, até Juína,apanhar a menina e levá-la já tratando,avisando que foi uma pancada na cabe-ça”. E ele me respondeu: “como é que osenhor quer que num domingo, a estahora, eu consiga um avião para buscar estamenina?”. E eu lhe respondi: “quem é o

“Eu lhe respondi: ‘O senhor tem queresolver, nós estamos gravando o Globo

Repórter aqui, eu tenho o início da matéria,que é o drama da menina, o drama da

aldeia, o drama da família, mostrando elasaindo daqui num barco da Funai, para

ser atendida no seu hospital, e o final dareportagem pode se apresentar de duasformas, o senhor escolhe: um, a meninafoi salva, o senhor mandou buscar e amenina foi atendida no hospital; e o

outro é que a menina morreu porque éíndia e não foi atendida’. Ele diz: ‘vou

mandar buscar agora mesmo’”.

Francisco José com os índios Enauenê-naue depois da reportagempela qual foi finalista do Prêmio Emmy, em outubro de 2013.

DEPOIMENTO FRANCISCO JOSÉ

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Secretário de Saúde deste estado? O se-nhor ou sou eu? O senhor tem que resol-ver, nós estamos gravando o Globo Repór-ter aqui, eu tenho o início da matéria, queé o drama da menina, o drama da aldeia,o drama da família, mostrando ela sain-do daqui num barco da Funai, para seratendida no seu hospital, e o final da re-portagem pode se apresentar de duas for-mas, o senhor escolhe: um, a menina foisalva, o senhor mandou buscar e a meni-na foi atendida no hospital; e o outro éque a menina morreu porque é índia e nãofoi atendida”. Ele diz: “vou mandar bus-car agora mesmo”. E mandou. O final damatéria foi a gente tomando banho no rio,a aldeia toda, eu e os meninos, fiquei ami-go deles todos, são exímios mergulhadores,eu também mergulho, filmava eles embaixod’água, e eu me tornei quase que amigo des-tes índios. Eles confiaram em mim, e depoisquando a Funai levou o monitor para lá,eles viram a reportagem, toda hora eles que-rem que a gente volte lá para fazer mais.

Jornal da ABI – Qual é sensação desalvar uma vida?

Francisco José – Não, eu não consideroque eu salvei a vida dela, eu simplesmenteexigi que a Secretaria de Saúde fizesse aparte dela, e isso não é salvar a vida. Elesnão estavam cumprindo com a obrigaçãoe eu usei, provavelmente, a condição dejornalista para pedir uma decisão.

Jornal da ABI – Você chegou a traba-lhar com Eduardo Coutinho, no Glo-bo Repórter?

Francisco José – Cheguei a trabalharcom Eduardo Coutinho na época em queele fazia Globo Repórter e nós estivemosna fronteira do Brasil com a Colômbia,fazendo uma matéria sobre os índios.Isso faz muito tempo, ainda na época dofilme em película.

Jornal da ABI – Você nunca pensou emfazer cinema?

Francisco José – Não, sempre achei quecinema era demais para mim. Eu achoque jornalismo, reportagem, qualquerpessoa pode fazer. Cinema tem que ter odom, tem que ter uma experiência mui-to grande, tem que ter nascido para fa-zer aquilo. E eu não conseguiria.

Jornal da ABI – Como você está ven-do o jornalismo atual?

Francisco José – Olha, eu estou vendoo jornalismo avançando cada vez mais,

sendo levado, inclusive, pelo avan-ço da tecnologia, pelo desafio dainternet, e fazendo o seu papel. Euconsidero a imprensa brasileira amais livre do planeta, porque houveo período da censura e hoje nós mes-mos é que temos que nos policiar paranão ultrapassar a fronteira do quenão se deve fazer.

Jornal da ABI – Provavelmentevocê tem acompanhado uma mo-vimentação nas redes sociaisquestionando muito a isenção dojornalismo de hoje, acusando agrande imprensa de fazer umpapel forte de oposição ao governo.Como você vê essas críticas?

Francisco José – Eu tenho acompanha-do, sim. Primeiro, sempre evitei qualquerenvolvimento político. Acho que o jor-nalista tem que ser isento. Eu dirigi todosos debates políticos da Rede Globo Nor-deste, e ninguém tem nada o que dizer demim, porque eu não tomo partido polí-tico, eu não uso minha profissão e nemminha condição de jornalista para fazerdenúncia, e nenhum tipo de reportagemque venha beneficiar A ou B. Eu mostroos fatos, e diante disso nunca me preocu-pei se alguém vai dizer que você estásendo parcial. Entro em qualquer lugar,os políticos me respeitam, todos me res-peitam porque sempre agi com muita se-riedade. Até no setor de futebol, que émuito delicado.

Jornal da ABI – Você está atuando,provavelmente, no estado brasileirode maior força e identidade culturais,de fortíssima religiosidade, manifes-tações culturais e tudo o mais. Comoisso mexe no seu dia a dia de jorna-lista? Como trabalha para levar estacultura pernambucana para o restodo Brasil?

Francisco José – Olha, durante 20 anoscobri a romaria do Padre Cícero, todos osanos, com matérias diárias nos telejor-nais da Globo, mostrando a religiosida-de. Por mais de 30 anos, eu acompanho aNiède Guidon, no sertão do Piauí, com otrabalho que ela tem feito, de dedicaçãode uma vida inteira para criar ali o maiorparque arqueológico das Américas. Eudescobri áreas pouco conhecidas, comoFernando de Noronha, onde eu fiz mais de200 reportagens. E hoje a ilha até perdeuo encanto. Eu acompanhei todo o Nordes-te, e contribuí com reportagens para que

criassem o Parque Nacional de Lençóis Ma-ranhenses, o Parque Nacional do Catimbau,acompanhei desde o início com Fernan-do César Mesquita a criação do ParqueEstadual Marinho de Fernando de Noro-nha, fui muitas vezes a Abrolhos paramostrar a migração das baleias. Eu tenhoconvicção de que tudo que está ligado aofolclore, esporte, cultura, natureza doNordeste eu acompanhei de perto.

Jornal da ABI – E fora do Brasil? Vocêjá contou quantos países visitou ounão dá para fazer esta conta?

Francisco José – Não, não dá para fazerporque eu já fui a todos os continentes,conheço todos os países da América Cen-tral, do continente americano, Oceania,já mergulhei nos sete mares fazendo re-portagens, e fui aos dois extremos do pla-neta: norte e sul.

Jornal da ABI – Cobriu guerras?Francisco José – Sim, a das Malvinas.

Jornal da ABI – Das reportagens in-ternacionais, quais mais te marcaram?

Francisco José – Talvez as Copas e Olim-píadas. É muito bom fazer Copa do Mun-do e Olimpíadas. Quem tem 20 anos deidade não lembra que eu cobri Copa doMundo.

Jornal da ABI – Não te interessa cobrirmais?

Francisco José – Não, não, mesmo por-que a Globo formou uma equipe extraor-dinária de esportes para cobrir Copa doMundo. A equipe de esportes da Globo éimbatível. São garotos supertalentososque se destacam demais. Eu seria até in-justo se eu citasse algum porque são tantosque se destacam... Como eu entrei já paraesta área de meio ambiente, de Globo

Repórter, eu tenho um programaaqui no Nordeste com a minhamulher Beatriz Castro, que se cha-ma Nordeste Viver e Preservar. Tem 22minutos de duração e é só sobre anatureza nordestina.

Jornal da ABI – Você tem uma pre-ocupação ecológica muito forte,muito antes disso ser moda.

Francisco José – É verdade. Eusempre tive. E lamento viver numPaís que não tem nenhuma respon-sabilidade ambiental, ou seja, nãotem políticas ambientais. Criam umparque nacional, como é o nosso

aqui, o Catimbau, que só tem o nome, as-sinatura em papel. Nunca fizeram um pla-no. As pessoas que viviam lá continuamvivendo, caçando, queimando, plantan-do... Então, isso não é um parque nacio-nal. Qual é a responsabilidade? Criar umparque só pelo nome?

Jornal da ABI – Já que você começousua carreira no jornalismo esportivo,vai ter Copa [risos]?

Francisco José – Claro que vai ter Copa[risos]. O protesto é importante, mas vaiter Copa. Houve erros em relação à Copado Mundo, construção de estádios carís-simos, com o estádio de Brasília, porexemplo, custando R$ 1 bilhão, o que érealmente uma extrapolação. Daí a acre-ditar que o maior evento esportivo do pla-neta deixe de ser realizado no País... Issonão vai acontecer. Pode protestar, que éuma coisa muito válida, mas impedir queaconteça, não.

Jornal da ABI – Foi uma decisão acer-tada do Brasil ter se candidatado e terfeito a Copa neste momento?

Francisco José – Candidatar-se e fazera Copa é um direito que todos os paísestêm. O que o País não tem direito é gastaro que está gastando com a Copa, quandoexistem outras prioridades. Acho que nãoera o momento de o Brasil ter ido buscaruma Copa.

Jornal da ABI – E agora que já gastou?Francisco José – Agora que já gastou é

apurar, procurar ver o que foi desviado,denunciar, punir e participar da Copa.

Jornal da ABI – E torcer?Francisco José – E torcer. Eu já tomei

uma decisão na Copa: comprei uma tele-visão de 75 polegadas [risos].

“Eu não tomo partido político,eu não uso minha profissão e

nem minha condição dejornalista para fazer denúncia,e nenhum tipo de reportagemque venha beneficiar A ou B.Eu mostro os fatos, e diante

disso nunca me preocupei sealguém vai dizer que você

está sendo parcial.”

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Copa do Mundo é tempo de não desgru-dar os olhos da tv, acompanhar por meiodas lentes de dezenas de câmeras cada lan-ce em campo, enxergar em detalhes o mo-vimento dos jogadores. Por certo, sim.Contudo, para quem éapaixonado por futebol,este 2014 reserva outraatração imperdível: ima-gens estáticas, impressasem páginas. No jargão jor-nalístico, a realização dosjogos no Brasil serviu de‘gancho’ para um lança-mento especial. Na verda-de, uma jogada de craque.Chega às livrarias o livro 15Anos de Seleção, que reúneem suas páginas 200 char-ges e caricaturas de Mario Alberto, publi-cadas no jornal Lance!. Um rico acervo deum dos mais atuantes cartunistas brasilei-ros. Com seus traços, Mario ‘cobriu’ ascopas de 1998, 2002, 2006 e 2010, além detorneios como a Copa das Confederações,

a disputa do ouro olímpico no futebol, aCopa América e as Eliminatórias.

“O livro apresenta uma seleção dasmelhores charges e caricaturas relaciona-das à Seleção brasileira que publiquei noLance! desde 1998. As quatro Copas doMundo, disputadas no período, e a Copa

das Confederações de 2013são o foco principal, masincluí alguns trabalhos re-alizados entre as Copaspara amarrar melhor a his-tória desses 15 anos de co-bertura humorística da Se-leção brasileira. Para daruma esquentada no mate-rial, fiz especialmentepara o livro um inédito‘pôster-caricatura’ do timecampeão da Copa dasConfederações no ano

passado que, felizmente, chegou até essaCopa ainda sendo considerado a Seleçãobrasileira titular”, contou o artista, ementrevista ao Jornal da ABI.

A proposta de lançar um livro sobreSeleção brasileira pela Lance! Publicaçõespartiu do editor-chefe do Lance!, LuizFernando Gomes. “Naturalmente, eu to-pei na hora, principalmente porque, nonosso País, ainda são raras as oportunida-des de produzir um livro de charges e ca-ricaturas. Nos últimos tempos, temos pre-senciado por aqui um aumento do núme-ro de publicações voltadas para o desenhode humor mas acredito que, mesmo assim,ainda estamos aquém da quantidade equalidade de tudo o que já foi e continuasendo produzido pelos cartunistas brasi-leiros. Temos uma tradição secular nessaárea e os nossos artistas estão entre osmelhores do mundo. Por isso, creio queainda há muito a ser registrado da nossahistória no humor gráfico e eu me sentimuito honrado e feliz por ver tomar a for-ma de um livro essa parte tão importan-te da minha produção como cartunista ecaricaturista”, resume Mario Alberto.

A obra já teve lançamento oficial noRio de Janeiro e em São Paulo, e retrata emsuas 112 páginas os momentos clássicosda Seleção, como o drama do corte de Ro-mário em 1998, a épica volta por cima deRonaldo em 2002, a ranhetice de Dungaem 2010, a volta do futebol Canarinho ao

topo do mundo na Copa das Confedera-ções em 2013. Mas, para um cartunista,qual seria o principal desafio nos dias dehoje? Até que ponto a patrulha de alasconservadoras e a defesa do ‘politicamen-te correto’, que tanto marcam os nossosdias, atrapalham ou intimidam o trabalhodesses artistas?

Fugindo do lugar-comum“O principal desafio, pelo menos para

mim, é fugir do lugar-comum, da piadafácil. Como muita coisa já foi feita no hu-mor gráfico, é difícil conseguir ser real-mente original enfrentando a pauleirado trabalho diário. Uma saída para issoé estar antenado a tudo o que acontecena atualidade, sempre buscando novasreferências, ou seja, encontrando novosmotivos para fazer piada. A onda politi-camente correta é um desses novos ele-

Em campo,os traços deum craque

PAULO CHICO

Em ritmo de Copa do Mundo, livro reúne os mais significativosdesenhos de Mario Alberto, publicados no jornal Lance!

mentos, uma característica dos nossostempos. E quem trabalha com humor temque saber lidar e nunca se intimidar comisso. Limites e censura sempre existirame sempre existirão sob as mais variadasformas. Quem se sente cerceado pelachatice alheia tem que procurar outracoisa pra fazer, que não seja humor. Ohumor se equilibra o tempo inteiro emcima da fronteira entre a graça e o maugosto. Cabe ao humorista forçar esses li-mites, quebrar essas barreiras. Costumodizer que, sim, o humor tem limite, masa única pessoa que pode determiná-lo é opróprio humorista. Acredito até que jus-tamente a forma como cada um lida comisso é um dos fatores mais determinantesdo estilo pessoal.”

O cartunista fala ainda do perfil queimprime a seu trabalho. “Falando de for-ma bem básica, no Brasil temos duas

ILUSTRAÇÃO

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grandes vertentes de estilo no desenho dehumor. Uma, mais linear e baseada na ele-gância do traço que tem representantescomo J. Carlos, Nássara, Lan e Loredano,entre outros tantos. Outra, mais voltadapara um acabamento mais próximo do re-alismo, e nem por isso menos caricata, quecomeçou lá no Angelo Agostini e chegouaté os dias de hoje no traço dos irmãos Ca-ruso, do Ique, do Aroeira... Eu me encai-xo mais nesse segundo time. Meu traba-lho tem um apelo acadêmico muito mar-cante, sem deixar de lado as influênciasque trago dos quadrinhos, dos desenhosanimados e da ilustração. Comecei no

desenho de humor fazendo meus tra-balhos com aquarela líquida sobrepapel. Era assim até alguns anosatrás, quando comecei a trabalharcom pintura digital. O aspecto prá-tico acabou falando mais alto. Apossibilidade de trabalhar commais rapidez os cenários e peque-

nos detalhes, coisas que eu, obsessi-vamente, aprecio muito, me levou a

substituir a técnica tradicional pela di-gital. Há três anos, aproximadamente,todos os meus trabalhos são elaboradoscom lápis e papel de verdade, no mundoreal. Uma vez definida toda a composi-ção da charge, eu digitalizo o esboço epinto no computador.”

Salão de HumorMario Alberto formou-se em Design

Gráfico em 1994, e logo começou a traba-lhar com ilustração editorial. Nunca ha-via feito uma charge ou caricatura até a

formatura quando, convencido porum amigo de faculdade, resol-

veu participar do Salão Cari-oca de Humor, promovidopela Casa de Cultura Laura Al-vim. “Acabei ganhando men-

ção honrosa com uma chargee, a partir daí, comecei a vercom carinho a possibilidade de

trabalhar com desenho dehumor. Publiquei algunscartuns e caricaturas nas

revistas de palavrascruzadas da Co-quetel, participei

de mais alguns sa-lões de humor, até que, em

1997, fui contratado para participar daequipe de formação do diário esportivoLance! Minha estréia como chargista pro-fissional foi no Lance!, por isso, posso di-zer que sou ‘cria da casa’. Já são 17 anospublicando, convivendo e aprendendocom as especificidades da charge esporti-va em relação à charge política. Afinal, nacharge esportiva, entra em campo um fa-tor determinante que é a paixão que aspessoas nutrem pelos seus times. Claroque isso também existe na política, um éde esquerda, o outro de direita. Mas, nofutebol, o termo paixão ganha proporçõesabsurdas. Eu procuro estar atento a isso egosto de ter um cuidado, um carinho até,na hora de meter a mão nessa cumbuca.Só que, por outro lado, eu não posso dei-xar de meter o dedo nas feridas. Caso con-trário, não tem graça nenhuma.”

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“Africanólogo é o que me tornei. Mevejo mais como poeta.”

A frase, dita logo de cara, surpreendequando o entrevistado é Alberto da Costae Silva, 83 anos. Não que a produçãopoética desse diplomata de carreira, en-saísta, memorialista e membro da Acade-mia Brasileira de Letras seja irrelevante– ele ganhou inclusive um Prêmio Jabu-ti pelo livro Ao Lado de Vera, de 1997. Masfoi como historiador do ContinenteNegro que sua produção literária se tor-nou mais conhecida. A ponto de ter sidoescolhido, no final de maio, como vence-dor do Prêmio Camões, o mais importantepara autores em Língua Portuguesa, con-cedido anualmente pelos governos doBrasil e de Portugal.

“A obra dele, sobretudo como africanó-logo, é uma coisa meio rara na bibliogra-fia brasileira”, afirma o poeta AffonsoRomano de Sant’Anna, Presidente dojúri que elegeu Costa e Silva. “Ele repre-senta a ponte necessária entre três con-tinentes: América, Europa e África”, ex-plica, citando os cinco livros de ensaiosque consagraram a obra do embaixador:

A Enxada e a Lança: A África Antes dos Por-tugueses; As Relações entre o Brasil e a Áfri-ca Negra; A Manilha e o Libambo: A Áfricae a Escravidão; Um Rio Chamado Atlântico;e Francisco Félix de Souza, Mercador deEscravos. Não por acaso, a sugestão donome de Alberto da Costa e Silva para oprêmio partiu, segundo Affonso Roma-no, de dois escritores africanos integran-tes do júri: o moçambicano Mia Couto,ganhador no ano passado, e o angolanoJosé Eduardo Agualusa. “Houve acolhidageral”, diz o poeta.

O interesse de Alberto da Costa e Sil-va pela África nasceu quando ele tinha 16anos, ao ler o clássico Casa-Grande e Sen-zala, de Gilberto Freyre. “Fiquei deslum-brado não só com o livro, mas com o fatode que ele abria uma perspectiva que euainda não conhecera: a de que o escravonegro foi também colonizador do Brasil,um elemento importantíssimo na forma-ção do País. Até então, o negro era vistocomo um problema. Mas Gilberto Freyredizia que o negro somos todos nós, que to-dos participam desse universo mestiçoque é o Brasil”, afirma o historiador.

Costa e Silva conta que, até essa leitura,pouco conhecia sobre a África. “Só sabia

que os escravos tinham vindo de lá e quea descoberta do caminho marítimo paraas Índias foi feita contornando o conti-nente africano”. Orientado pelo profes-sor Herbert Parentes Fortes, o então es-tudante passou a ler auto-res brasileiros como NinaRodrigues, Manuel Quiri-no e Artur Ramos, quetambém abordavam o uni-verso do negro. “Mas elestratam o negro como se eletivesse nascido nos naviosnegreiros, como se não ti-vesse cultura, história emétodos de produção pró-prios. Aí comecei a ler tudoque me caía nas mãos sobrea África, o que não era mui-to. Nos sebos da rua São José, no centrodo Rio, encontrei livros de viajantes por-tugueses do século 19”, narra ele.

Quando entrou para o Itamaraty, em1957, o jovem Alberto teve a sorte de logoser escalado para a Divisão Econômicapara a Europa e a África, o que lhe permi-tiu conciliar a carreira diplomática comseu profundo interesse pelos temas afri-canos. “Comecei a acompanhar o quevinha das embaixadas sobre o processo dedescolonização e os países emergentes daÁfrica. Também achei na biblioteca doItamaraty livros de quase todos os viajan-tes que foram ao continente desde o sé-culo 15. Em 1960, fui para Lisboa, então

Historiador do Continente Negro, o embaixador eacadêmico Alberto da Costa e Silva ganha o Prêmio

Camões e exalta a diversidade cultural africana.

POR MÁRIO MOREIRA

um centro colonial importante, e lá co-nheci muitos outros livros, não só deportugueses, mas também de ingleses efranceses. Essa ida coincidiu com a desco-berta da história africana, estimulada

pela descolonização e pelointeresse que começou ahaver pela África.”

Em 1º de outubro daque-le ano, Alberto da Costa eSilva acompanhou o em-baixador Negrão de Limana cerimônia de indepen-dência da Nigéria, ex-colô-nia britânica. “Foi um des-lumbramento a nossa esta-dia em Lagos, quando des-cobrimos o que GilbertoFreyre e Pierre Verger des-

cobriram muito antes: o Brazilian Quar-ter, cheio de gente com sobrenome Cos-ta, Rodrigues ou Medeiros. Isso abriumeus horizontes para a importância dos350 anos de comércio de escravos entreo Brasil e a África e dos 400 anos de tro-cas entre os dois lados do Atlântico, poisnão eram só escravos que vinham de lá.”

Foi aí que Costa e Silva decidiu se dedi-car de maneira mais profunda ao estudo docontinente africano. “Enquanto america-nos, canadenses e europeus já estudavam aÁfrica, o Brasil não tinha um único cursouniversitário sobre a História Africana. Aspessoas me diziam ́ Você está maluco! Vaiperder tempo com África!´”, recorda ele.

PREMIAÇÃOAN

A CARO

LINA FERN

AND

ES/FOLH

APRESS

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17JORNAL DA ABI 402 • JUNHO DE 2014

O interesse do diplomata pelo conti-nente, porém, lhe rendeu bons frutos noItamaraty, que passou a enviá-lo a todasas missões de negociação em nações afri-canas. “Acabei conhecendo vários paísesda África, o que me foi muito útil, porqueeu também comprava livros produzidoslocalmente e podia confrontar as leiturascom a realidade.”

Riqueza culturalApós servir como diplomata em Lis-

boa, Caracas, Washington, Madri e Roma,Costa e Silva foi escolhido em 1979 em-baixador para a Nigéria e o Benin, cargoque ocupou até 1982. “Para mim foi óti-mo, até porque aquela região foi, depois deAngola, a que teve maior influência sobreo Brasil.”

Segundo o historiador, o que mais oatraiu nessa temporada foi “a vitalidadeda cultura africana, o fato de que eles decerta maneira estavam adotando proces-sos técnicos ocidentais sem abandono desua tradição”. Ao contrário do estereó-tipo de que africano é tudo igual, desco-briu que nada é menos verdadeiro. “A ri-queza cultural foi o que sempre me en-cheu de admiração. São muitas culturas,às vezes divergentes. Os africanos sãomuito diferentes entre si, assim como oseuropeus, tanto quanto um sueco de umsiciliano”, compara.

Para ilustrar, ele conta a maneira comodois povos africanos vizinhos tratam onascimento de gêmeos: “Entre os ibos, nosul da Nigéria, os gêmeos são abandona-dos na floresta como impuros, como umaabominação, e a mãe passa por um cerimo-nial de purificação. Já os iorubás fazemuma grande festa, dizem que a mãe é fa-vorecida pelos deuses e os gêmeos sãoconsiderados pessoas extraordinárias;quando um deles morre, o outro passa acarregar na cintura uma imagem de ma-deira que simboliza o irmão.”

Para Alberto da Costa e Silva, só de al-guns anos para cá o interesse pela Áfricatem crescido no Brasil, estimulado pelaobrigatoriedade legal, desde 2003, do en-sino da história e cultura afro-brasileirasnas escolas, o que gerou a necessidade daformação de professores com conheci-mento específico. “Mas isso é muito re-cente. Quando publiquei meu primeirolivro (A Enxada e a Lança, com cerca de900 páginas, editado em 1982), não haviano Brasil um só livro extenso, meticulo-so, sobre a história da África. Pensandobem, o mesmo ocorre sobre a história daItália ou mesmo de Portugal. É um defei-to nosso: olhar demais para o próprioumbigo. Esquecemos que o Brasil foi fei-to de fora para dentro”, critica. “Só que,em relação aos outros países, a gente es-tuda em História Geral. Espero que ago-ra aconteça o mesmo com a África, por-que muitos fatos da história universalforam gerados lá. Por exemplo, antes deos espanhóis e portugueses levarem oouro das Américas, todo o ouro da Euro-

Uma impressão imediata desimpatia me assaltou quando, há umaboa dezena de anos, encontrei, no Riode Janeiro, Alberto da Costa e Silva.Conheci-o em sua casa, com Vera, suaeterna companheira. E falamos deÁfrica, na diversidade e complexidadeque faz com que o nome “África”tenha que ser dito no plural. Falamosdessas Áfricas que ele conhecia com aintimidade que talvez poucosafricanos possam reivindicar.

Não foi apenas o saber que meimpressionou. Foi a poesia com quefalava de algo que não se descreveapenas, mas se revela nas palavras.Como se a poesia fosse o idioma certopara dizer da alma de gentes e povos.Na sabedoria de África, o poeta Costa

pa saía de regiões do Senegal, do Mali, doZimbabué”, diz o historiador.

Encanto pelas palavrasA propósito, Costa e Silva faz questão

de mencionar esses dois últimos paísescom a pronúncia original, como oxíto-nas. “A palavra Zimbabué já aparece as-sim num cronista português do século16”, conta. “O curioso é que essas pala-vras entraram nas línguas européias pormeio do português, e agora a gente pegaa pronúncia inglesa ou americana”, la-menta o autor.

Ele, aliás, não esconde o fascínio pelaspalavras de origem africana, sobretudo asoriundas dos idiomas quimbundo e quin-congo. “Gosto de fato de alguns verbosmuito usados que vêm daí: cochilar, co-chichar, zangar, fungar. São palavras quenão estavam no português de Portugal eque agora os portugueses adotam porcausa das novelas brasileiras. Caçula éoutro termo que vem do quimbundo”,exemplifica. “Isso indica a profundidadeda penetração africana na vida brasilei-ra, pois nada é mais interno que a língua.Talvez só a comida, mas nessa a influên-cia africana também é muito grande.”

Costa e Silva escreve agora seu terceiroe último volume sobre a história da África,após A Enxada e a Lança e A Manilha e oLibambo (este de 2002). Está no décimo de22 capítulos, que vão abranger os séculos18 e 19, abordando o 20 somente até1918, “quando se completa o ciclo deocupação da África pelos europeus”, aofinal da Primeira Guerra Mundial. “Noséculo 20 eu não entro, por preconceito.Relato contemporâneo não chega aindaa ser história.”

Dívida com os africanosPara Affonso Romano de Sant’Anna,

a obra de Costa e Silva é importante jus-tamente porque, a seu ver, “o Brasil sem-pre esteve de costas para a América Lati-na, Portugal e a África”. “Brasileiro sópensa em Nova York, Londres e Paris. E osafricanos têm uma simpatia pelo Brasil deque os brasileiros nem desconfiam e quetalvez nem mereçam”. Ele cita que, du-rante sua estada em Lisboa para a reunião

Costa e Silva consolidou uma sapiência africanaMIA COUTO

DEPOIMENTO A MÁRIO MOREIRA

e Silva consolidara uma sapiênciaafricana. O modo pausado, sem pressa,de falar fazia-me lembrar os velhossábios da minha terra. A sua obra dehistoriador fez a ponte entre

continentes e nações e ajudou o Brasila se reencontrar com a sua matrizafricana. Os seus livros questionarama visão falsamente próxima e tantasvezes equivocada que o Brasil tinha docontinente africano.

E logo nesse primeiro encontro, feznota dessa ausência de maniqueísmo:quando falamos da escravatura, ele meatirou a sentença: “Todos nós somosdescendentes de escravos e desenhores de escravos”. Cativo fiqueieu dessa figura frágil, mas poderosa.Mais ainda lhe fiquei devedor quandoli a sua poesia. Ali estava a raiz detudo, o chão onde vinham pousarsaberes e memórias. Por todas estasrazões, tenho um grande orgulho emter pertencido ao Júri que lhe atribuiuo Prêmio Camões, o mais altogalardão da Língua Portuguesa. Costae Silva engrandeceu o Prêmio.

do júri do Prêmio Camões, foi abordadonum restaurante por um cabo-verdianoque começou a fazer uma verdadeiradeclaração de amor ao Brasil. “E o Brasilnunca cuidou disso, oficialmente. A nãoser por Gilberto Freyre e pelo Alberto.Aqui as pessoas querem ser brancas, e nãopretas. Esse prêmio reforça muito a idéiaurgente de que estamos devendo isso há500 anos.”

Ele também não economiza elogios àprodução poética de Alberto da Costa eSilva. “É um belo poeta, pertence à cha-mada Geração de 1945 e, embora tenhaescrito poucos livros de poemas, é muitomelhor do que muitos que há por aí. Étambém filho de um simbolista impor-tante (Antônio Francisco da Costa e Silva).É bom que comece a prestar atenção noAlberto, que fica na dele, ao contrário dosprofissionais de prêmio”, alfineta.

A opinião é compartilhada por JoséEduardo Agualusa. O escritor angolanodisse ao Jornal da ABI esperar que a premi-ação sirva para tornar mais conhecida aobra de Costa e Silva, “sobretudo em Por-tugal e nos países africanos onde se fala anossa língua”. Agualusa confirma que adecisão de premiar o embaixador foi “pa-cífica” e “festejada por todos os membrosdo júri com genuíno entusiasmo”. “Alber-to da Costa e Silva tem uma obra exten-sa e variada, que vai da poesia ao ensaiohistórico, sempre com um grande rigor eum inegável valor literário. Dá-nos a vero passado de África, como historiador,com a linguagem refinada de um roman-cista”, exalta. “Pessoalmente, enquantoescritor, e um escritor africano que se vemdedicando ao romance histórico, devomuito ao Alberto.”

Costa e Silva: Esquecemos que oBrasil foi feito de fora para dentro.

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O jornal que inventoua imprensa juvenil

Suplemento criado há 80 anos por Adolfo Aizen fez dos quadrinhos um grande negócio e atraiu para osegmento magnatas da imprensa brasileira como Roberto Marinho, Assis Chateaubriand e Victor Civita.

POR GONÇALO JUNIOR

Um fato histórico importante, muitasvezes, nasce do acaso. Assim aconteceucom o Suplemento Infantil (mais tarde ga-nharia o nome de Suplemento Juvenil), ta-blóide com histórias em quadrinhos quecirculou três vezes por semana e teve1.654 números, publicados entre 1934 e1945. O jornal daria início à indústria daspublicações voltadas para o público ado-lescente que teria como seus quatro maisimportantes editores os nomes mais re-levantes do jornalismo brasileiro no sé-culo 20: Roberto Marinho, Assis Cha-teaubriand, Victor Civita e Adolfo Aizen.

O Suplemento Infantil, porém, deveriaser apenas um entre os suplementos diá-rios que Aizen teve a idéia de lançar deforma pioneira no Brasil, depois de umaviagem de cinco meses que fez aos Esta-dos Unidos, entre agosto de 1933 e janeirode 1934, quando ficou maravilhado comesse formato de encarte que ainda nãohavia sido implementado em seu País.Mas fez tanto sucesso que ganhou vidaprópria, deixando de ser um encarte dojornal A Nação.

Esse capítulo pouco conhecido da his-tória da imprensa nacional veio da curi-osidade de Aizen que, em 1933, era repór-ter de O Globo, quando viajou aos EstadosUnidos como assessor de imprensa doTouring Club. O passeio acabou e, comotinha uma irmã morando no estado deMassachussets, resolveu prolongar a es-tada. Enquanto mandava reportagenspara Marinho, descobriu os suplementosdiários temáticos, encartados gratuita-mente nos grandes jornais americanos,bancados por anunciantes. Em um dosdias da semana, circulava, por exemplo,o caderno feminino, com dicas sobre edu-cação para o lar, moda, culinária e orien-tações sobre como ser boa mãe e esposa.Havia também suplementos de contospoliciais, de esportes, infanto-juvenis etc.

Em conversas com jornaleiros ameri-canos, Aizen descobriu que aqueles en-cartes aumentaram substancialmente asvendas dos diários, uma vez que muitosleitores compravam a edição apenas paralê-los. Notou ainda que nenhum faziamais sucesso que o infanto-juvenil, quetrazia curiosidades, passatempos e mui-tas histórias em quadrinhos – chamadasde “comics” pelos americanos, por causade sua origem como historinhas de hu-mor no final do século anterior. Impres-sionou-se com aquele tipo de leitura porser uma mania nacional de crianças e

direto à Redação de O Malho para rever oscolegas. De lá, foram jantar num restau-rante onde um animado Aizen repetiusua idéia e logo percebeu que falava a umaplatéia mais interessada. Participaram daconversa o desenhista Monteiro Filho eos jornalistas Osvaldo da Silveira, Ro-berto Macedo e Luís Peixoto. Artista demúltiplos talentos – escritor, repórter, ca-ricaturista –, além de cunhado e parceiromusical de Ary Barroso, Peixoto foi o quemais se animou com o projeto. Ele suge-riu a Aizen que procurasse um amigo seu,

o capitão João AlbertoLins de Barros, o polê-mico chefe da políciade Vargas e diretor dojornal A Nação. Peixo-to trabalhara com eleum ano antes, comoauxiliar de gabinete, eacreditava que seu ex-patrão poderia ajudaro amigo a bancar os su-plementos.

Apesar de conhecera fama pouco lisonjeirado militar, Aizen deci-diu procurá-lo. Pediu aPeixoto para apresentá-los. Nessa época, o jor-nal A Nação circulavahavia pouco mais de umano. Essencialmente po-lítico, o diário era conhe-

cido como porta-voz oficial do governo edos líderes tenentistas que participaram domovimento de 1930. Tinha também a re-putação de ser mais um fruto da arbitra-riedade de Vargas para se fortalecer no po-der depois da repressão que promoveucontra os revolucionários paulistanos de1932. A Nação foi fundada em janeiro de1933, a partir da estrutura física e de equi-pamentos de O Jornal, de Assis Chateau-briand, fechado à força por João Albertono ano anterior, depois de um confron-to pessoal entre ele e o empresário e jor-nalista paraibano. O militar, para surpre-sa de Aizen, aceitou imediatamente fazeros suplementos, um para cada dia da se-mana. Autorizou o jornalista a tornar oprojeto realidade o mais rápido possível.

Político habilidoso, João Alberto viuna proposta uma forma de fortalecer ojornal e amenizar a imagem de panfletopartidário. A pequena equipe que produ-ziria os tablóides foi formada inicial-mente por alguns colegas de Aizen de OMalho, como Monteiro Filho, Osvaldo daSilveira, Luiz Peixoto e Roberto Macedo.Silveira era um escritor paulista que de-pois ficaria conhecido como autor do ro-mance Bartyra, escrito em português ar-caico e cuja primeira edição seria lança-da por Aizen, em 1942. Macedo era pro-fessor de História do Brasil do ColégioDom Pedro II e do Instituto de Educação.Pouco depois, juntou-se ao grupo MariaLopes Monteiro, esposa de MonteiroFilho. O espaço de tempo entre a aprova-ção de João Alberto e o início da produ-ção dos suplementos foi tão curto que, emmenos de um mês, A Nação lançaria o pri-meiro deles.

adultos. Ao mesmo tempo, todos os gran-des jornais tinham suas séries de quadri-nhos, principalmente com os heróis deaventuras, então nunca publicados noBrasil. Aizen se espantou ao ver que ascontinuações de histórias de personagenscomo Buck Rogers e Tarzan eram acompa-nhadas com ansiedade todos os dias,como se fossem os velhos folhetins deaventuras de piratas e capa e espada.

O mais curioso: esses comics exerciamfascínio sobre o público de todas as ida-des, ao contrário do que acontecia no Bra-sil, onde os raros quadrinhos de humor ouinfantis eram publicados em revistascomo O Tico-Tico e dirigidos somente àscrianças. Muitas haviam sido criadas hápouco tempo e não tinham despertado in-teresse nos editores brasileiros.

Revolução na imprensaFoi o entusiasmo por essa revolução na

imprensa que fez com que, ao embarcar devolta ao Brasil, no final de janeiro de 1934,Aizen se mostrasse decidido a dar uma gui-nada em sua vida. Levaria algumas daquelasnovidades de volta e concluiu que apenasuma pessoa no Rio de Janeiro poderia aju-dá-lo a concretizar seu projeto de lançarno País os suplementos setorizados como

encarte de jornal. Essa pessoa se chamavaRoberto Marinho. Aizen esperava con-vencer o dono de O Globo de que os cader-nos seriam um passo na evolução do jor-nalismo nacional. Se aceitasse, tornaria-se seu sócio na empreitada.

No encontro entre os dois, o jovem re-pórter lhe mostrou vários exemplares dossuplementos que trouxera, além de deze-nas de páginas e tiras de heróis de quadri-nhos que, ressaltou ele, eram uma “febre”nos Estados Unidos: “Acredite, Roberto,você não só aumentará a tiragem diária,como despertará o interesse de segmentosque não têm o hábito de ler jornal. Isso seráótimo para a ampliação do alcance e da ti-ragem”, recordou Aizen depois. “A idéia ébastante interessante, Adolfo, mas creioque seja economicamente inviável. Nãovejo como tornar isso viável”, teria respon-dido o empresário. Por mais que mostras-se empolgação, Aizen não convenceu ochefe. Falou com ênfase principalmentedo papel dos patrocinadores na empreita-da. Marinho não quis arriscar. Alegou quenão tinha como bancar o projeto e que nãoacreditava que conseguiria convenceranunciantes de bancar os cadernos.

Aizen deixou o jornal bastante abati-do. Não se deu por vencido, porém. Foi

IMPRENSA

O primeiro SuplementoInfantil, do jornal ANação, teve capa deJ.Carlos. Quando deixoude ser encartado, passoua ser chamado deSuplemento Juvenil.

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O grupo trabalhou a toque de caixa parapreparar o número de estréia de cada ta-blóide. Aizen procurou ser fiel ao forma-to dominical americano, o que não serianada fácil, uma vez que as máquinas de ANação estavam longe de possuir algumaqualidade gráfica. Os cadernos foram pla-nejados e desenhados numa pequena sala,no ritmo diário do jornal. Como estraté-gia contra a concorrência, somente doisdias antes da estréia os leitores do jornalforam informados da novidade. Na ediçãode domingo, 11 de março, a manchete daprimeira página deixou de lado a tradici-onal chamada política para anunciar: “Pro-gramação de A Nação para a próxima sema-na: um suplemento por dia”. Logo abaixo,um quadro explicou quais seriam os no-mes dos cadernos de doze páginas cada, porordem de lançamento: Humorístico, Infan-til, Policial, Feminino e Esportivo. Como o di-ário não circulava às segundas, a partir daterça, dia 13, teve início a série.

Exatamente do modo que Aizen que-ria e pedira a João Alberto, mesmo com ossuplementos, A Nação continuou a custarduzentos réis – “mais barato que um caféou uma caixa de fósforo”, como anunciouo diário. Dinheiro, para o dono do jornalnão era problema. Na quinta, dia 15, odiário organizou um almoço de confra-ternização para celebrar os lançamentos.O evento reuniu representantes das dis-tribuidoras e vendedores de jornais no sa-lão da Associação dos Auxiliares da Im-prensa. A concorrência ficou boquiabertadiante de tamanha ousadia da investidade João Alberto, a quem couberam osméritos iniciais. A repercussão entre osleitores foi a melhor possível. Jornaleirosde toda a cidade corriam ao jornal duran-te o dia para pegar mais exemplares.

Os cadernos de A Nação se tornaramacontecimento importante na história daimprensa brasileira porque introduziramo formato nos jornais. Iniciativa, aliás,nunca lembrada por pesquisadores, tal-vez por causa da curta existência do diá-rio de João Alberto, que deixaria de circu-lar dois anos depois.

Alimentar cinco edições por semanacom notícias, variedades culturais e espor-tivas se tornou uma tarefa árdua para Ai-zen. Parte da dificuldade foi resolvidacom a compra de textos e desenhos ame-ricanos, vendidos por representantes noBrasil de agências conhecidas nos EstadosUnidos como syndicates, distribuidorasde ilustrações, artigos e reportagens. Paratemperar o suplemento policial com umpouco de brasilidade, Aizen contou comcolaborações dos próprios repórteres e re-datores de A Nação. Convidou escritoresamigos seus, de pouca projeção, para par-ticipar, em especial, da produção de con-tos policiais e infantis. Quanto ao suple-mento esportivo, a própria Redação dojornal ficou encarregada de preenchê-locom noticiário do fim de semana.

Novidades em destaqueEntre os cadernos, um em especial

logo se destacou pelas novidades que tra-zia: O Suplemento Infantil. O primeironúmero chegou às bancas no começo da

tarde de quarta, 14 de março de 1934, comcapa desenhada por J. Carlos, considera-do o mais influente ilustrador gráfico daimprensa brasileira no século 20. Coube-ram a ele, ainda, as ilustrações do conto“A pedra que rolou a montanha”, de LuizMartins. O caderno incluía jogos, pala-vras cruzadas e textos didáticos sobre ahistória do Brasil. Os leitores se deparam,pela primeira vez, com os quadrinhos queeram grandes sucessos nos Estados Uni-dos naquele momento: Buck Rogers,Agente Secreto X-9, Flash Gordon (quefez sua estréia em grande estilo, a cores,em duas páginas centrais, dois mesesdepois de seu lançamento no país de ori-gem) e Jim das Selvas. Nos anos seguin-tes, Aizen traria Mandrake, Brucutu,Príncipe Valente, Tarzan, Brick Bradford,Pinduca, Rei da Polícia Montada e até his-tórias inéditas de Walt Disney, que come-çava a chamar a atenção pelo seu perfec-cionismo em cinema de animação.

Publicar esse material foi menos com-plicado do que Aizen imaginava. Ele des-cobriu que havia no Brasil um represen-tante do King Features Syndicate (KFS),Arroxelas Galvão. O distribuidor recebeucom surpresa o interesse do editor, já que,até então, só conseguira convencer o Di-ário de Notícias a comprar os quadrinhosque oferecia – desde 1930, o jornal publi-cava as tiras do marinheiro Popeye. O edi-tor encontrou no acervo de Galvão mui-tos dos heróis lançados recentemente nosEUA. Pareceu-lhe que estavam ali à sua es-pera. O distribuidor se comprometeu a for-

necê-los com exclusividade no Rio de Ja-neiro. Não apenas aquelas histórias, mastambém os futuros lançamentos do KFS.Os dois fizeram, então, um acordo infor-mal, pelo qual Aizen se comprometia apagar a quantia de 200 mil réis por página.

O Suplemento Infantil não se limitou alançar heróis americanos. Desde a estréia,reuniu como colaboradores vários dese-nhistas e escritores brasileiros. No primeironúmero, Monteiro Filho lançou a série dequadrinhos As Aventuras de Roberto Soroca-ba, com textos de sua mulher, Maria Mon-teiro, que seria publicada em episódios se-manais de uma página cada, no mesmo for-mato das aventuras seriadas americanas.A presença de gente da terra no suplemen-to não parou aí. No terceiro número, de 28de março, deu início à série Os Quatro Ases,uma novela infantil escrita a quatro mãospelo já conhecido jovem escritor baianoJorge Amado e por Matilde Garcia Rosa,com desenhos do ilustrador e cenógrafo pa-raibano Santa Rosa. Durante alguns núme-ros, os leitores se divertiram com as aven-turas do menino Tonico, do gato Pega-li-geiro, do papagaio Doutor e do galo Terrei-ro – todos eles criações da dupla.

Se as histórias em quadrinhos faziamAizen acreditar que repetiriam no Brasilo mesmo sucesso americano, para o reda-tor-chefe de A Nação, José Soares Maci-el Filho, as maiores apostas eram os suple-mentos de contos policiais e de esportes.Como estratégia, ele mandou fazer novatiragem do primeiro número do suple-mento policial e o colocou à venda du-rante uma semana em vários magazinesda cidade. Repetiu a operação por diver-sas semanas. Começava a surgir no Brasil,assim, esse gênero de aventura.

Perto do terceiro mês de vida dos su-plementos, já se notava claramente quea venda maior de A Nação acontecia naquarta-feira, quando saíam as tais “histo-rietas em quadrinhos” do Suplemento In-fantil. Nesse dia, a tiragem do jornal pas-sava dos 60 mil exemplares por edição –número que representava o triplo da ti-ragem normal do diário de João Albertoantes dos cadernos.

Assunto da garotadaNas ruas, podia-se notar um fenômeno

interessante. De repente, um sisudo jornal,quase que exclusivamente de temática po-lítica, estava sendo disputado no meio dasemana por crianças e adolescentes emtodos os pontos de venda do Rio de Janei-ro. Em pouco tempo, o jornalzinho se tor-nou assunto da garotada nas filas das ma-tinês dos cinemas, até se transformar numaleitura quase obrigatória para os meninos,principalmente. A aceitação do tablóide deAizen foi tão grande que era comum que amolecada se dirigisse ao jornaleiro todas assemanas para pedir o caderno de uma for-ma peculiar: “Por favor, moço, quero o su-plemento que está aí no jornal”.

Nem tudo, entretanto, corria como Ai-zen esperava. Sua presença como editordos suplementos não era bem vista por Ma-ciel Filho. O redator-chefe não se esforça-va para esconder sua antipatia ao projetodo colega. Se achava no começo que os su-

Página do álbum em quadrinhos A Grande Aventura, comemorativo dos dez anos do SuplementoInfantil, que conta a história do surgimento da publicação que saía encartada em A Nação.

Pernambucano de Olinda, o capitão JoãoAlberto Lins de Barros era dez anos maisvelho que Aizen. Nasceu em 16 de janeirode 1897. Filho de professor de história e dedona de casa de origem holandesa, formou-se em engenharia em Recife, mas preferiuse dedicar à carreira militar. Mudou-se parao Rio, onde cursou a Escola Militar deRealengo. Já tenente, em 1922, solidarizou-se com o levante dos colegas do Forte deCopacabana – o apoio lhe custaria cincomeses de prisão. Três anos depois,abandonou o quartel para acompanhar orevolucionário Luiz Carlos Prestes, que serebelara no Rio Grande do Sul e haviadado início à marcha de rebeldes queficaria conhecida como Coluna Prestes.

Condenado ao exílio por participar domovimento, trocou seu nome para Nelsonde Castro e foi viver no interior do Paraná.Deu a volta por cima em 1930, ao se tornarum dos líderes da revolução que derrubouo Presidente Washington Luiz e impediu aposse do eleito Júlio Prestes. Comoretribuição, o Presidente Getúlio Vargas onomeou interventor federal em São Paulo.No começo de 1932, assumiu a chefia daPolícia do Rio. Mal tomara posse, Vargas oconvocou para uma missão de emergência:voltar a São Paulo para sufocar o chamadomovimento constitucionalista, deflagradono dia 9 de julho. Missão cumprida, JoãoAlberto reassumiu a chefia de polícia, parase tornar um eficiente demolidor dosinimigos do governo – tarefa cujacontinuidade caberia ao temido FilintoMüller alguns anos depois.

Quem era João AlbertoLins de Barros

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plementos seriam um fracasso, elelogo mudou de idéia e de estratégia.Dizia para quem quisesse ouvir queos cadernos estavam comprometen-do imagem, linha editorial e as fi-nanças do jornal.

Não demorou a levar suas queixasa João Alberto: “João, um jornal nãopode ser levado a sério quando é avi-damente comprado por crianças.Tenho ouvido piadas na Câmara deque garotos retiram o Suplemento In-fantil e espalham o resto da ediçãopelas ruas da cidade”. Embora os ca-dernos tivessem aumentado a circu-lação do jornal, Maciel Filho insis-tiu que aquele tipo de “luxo” nãoconseguia se manter pela publicida-de. Tinha alguma razão quando dis-se que as empresas não estavam ha-bituadas a anunciar em tal formato.Aizen, por outro lado, previu essa re-sistência inicial por causa da novida-de dos cadernos e argumentou que,a médio prazo, conseguiria atrair pu-blicidade. Era uma questão de tempo. A sis-temática implicância do redator-chefe, po-rém, começou a preocupar o editor. Déca-das depois, Aizen contou que Maciel Filhonão passava de um “invejoso”, inconfor-mado com o sucesso de seu projeto. Só nãoimaginou que João Alberto fosse se deixarlevar tão rápido pelas intrigas.

No começo de junho, decidiu cancelartodos os cadernos, apenas quatro meses de-pois de seu lançamento. Com trânsito fá-cil no Palácio do Catete, o hábil João Alber-to não tinha problemas com dinheiro e po-deria bancar os cadernos pelo tempo queachasse necessário. Mas preferiu dar ouvi-dos à implicância de Maciel Filho. A polí-tica se tornara prioridade em sua vida. Terum jornal para esse fim era fundamental,e preferiu acatar o argumento de que seu di-ário estava “perdendo” o respeito entre osleitores adultos. Por outro lado, o militar seafeiçoou demais pelo entusiasmo de Aizen,a quem se apegou na breve convivência quetiveram. Tanto que encontrou uma saídaque se tornaria vantajosa para o criador dossuplementos: estes deixariam de sair no seujornal, mas o editor teria apoio financeiropara montar um novo diário e, assim, darcontinuidade aos mesmos.

Surge o Grande ConsórcioCombinaram que a participação fi-

nanceira de João Alberto no empreendi-mento seria a mais discreta possível. Ai-

zen recebeu com entusiasmo a proposta.Claro que gostaria de ter seu próprio ne-gócio. Por fim, decidiu que não lançariaum novo jornal. Mas ele mesmo editariaos suplementos para venda independen-te, sem a necessidade de uma publicaçãogrande e custosa para encartá-los.

Pelo plano do editor, as edições seriamoferecidas no Rio de Janeiro, São Paulo eBelo Horizonte e cidades próximas, ondea distribuição não era tão precária – e ha-via linhas de trem para garantir a circu-lação. Nos demais estados, imaginou queconseguiria repetir o sistema que conhe-cera nos Estados Unidos de vender os ca-dernos para que fossem encartados nosjornais locais. Aizen reuniu sua equipepara informá-la de que, como A Nação nãoqueria mais os cadernos, criara um planoe que estava disposto a dar sociedade paraquem quisesse participar. O editor faloucom tanta convicção que contagiou todoo grupo. Anunciou, então, que, naquelemomento, nascia o Grande Consórcio deSuplementos Nacionais.

O nome pomposo, claro, não corres-pondia exatamente à dimensão da microeditora que seria desenvolvida. A editoracomeçou a funcionar em uma pequena salano primeiro andar de um edifício da ruaTreze de Maio, centro do Rio. A partir de27 de junho de 1934, sem qualquer inter-rupção temporal, os cadernos de A Naçãocomeçaram a ser vendidos em separado por

jornaleiros circulantes e em bancasde jornais da cidade. O editor fezuma mudança importante no nomedo Suplemento Infantil, que passou a sechamar, a partir do 14º número, Su-plemento Juvenil. Especulou-se queAizen teria escolhido o novo nomepara atender a um pedido de João Al-berto e evitar que o público continu-asse a fazer ligação entre o cadernoinfantil e o seu jornal. Na verdade, aalteração buscou ampliar o alcancee atrair o público adolescente.

Além da Redação original quetrouxe de A Nação, o editor chamouo jornalista Ary Pavão para cuidar doSuplemento de Humor – que tinha emLuiz Peixoto um de seus mais impor-tantes colaboradores. O SuplementoPolicial mudou de formato e se tor-nou Suplemento Policial em Revista. Pi-oneiro no gênero, era o título quemais se aproximava em vendas do ca-derno de quadrinhos, com tiragemsemanal de aproximadamente 25

mil exemplares. Surgia, assim, a primeirarevista em formato convencional de Ai-zen – estilo magazine americano.

Tinha custo baixo porque, emboratrouxesse o melhor das publicações poli-ciais americanas, os textos eram piratea-dos – sem pagamento de direitos autorais–, com traduções muitas vezes duvidosas.Desde a estréia, Policial em Revista publi-cou também contos brasileiros de quali-dade razoável, que ficariam esquecidosnos raros exemplares que sobreviveramnas mãos de colecionadores nas décadasseguintes. Ainda em 1934, por causa daaceitação desse suplemento, Aizen lan-çou o tablóide de mistério Contos Maga-zine, que depois viraria revista.

Concorrente de pesoO plano de Aizen de vender seus su-

plementos já impressos para serem en-cartados em jornais de outras capitais deucerto por alguns meses. Até começarem oscalotes e os problemas de distribuição.Mesmo assim, tocou o negócio até o fimda década, já com um concorrente de

Adolfo Aizen teve que encarar a forte concorrência deRoberto Marinho e seu O Globo Juvenil, com personagens

de destaque como o Príncipe Valente, de Hal Foster.

O genial Alex Raymond é o desenhista de Agente Secreto X-9 e de Flash Gordon, que estreou no Brasil apenas dois meses depois de seu lançamento nos Estados Unidos.

peso na área de quadrinhos: Roberto Ma-rinho, que lançou em junho de 1937 o seuO Globo Juvenil. Em 1940, com a revistaem cores O Gury, Chateaubriand tambémentrou no negócio. A situação se tornoucrítica para o Grande Consórcio. Antes dadecisão de fechá-lo, Aizen pediu ajuda aJoão Alberto. Ele sabia que como formade centralizar os órgãos de imprensa con-fiscados ou fundados pelo Estado, o De-partamento de Imprensa e Propaganda(DIP) criou o conglomerado Empresas In-corporadas ao Patrimônio Nacional. Lou-rival Fontes, seu diretor geral, colocou nocomando um de seus homens de confian-ça, o coronel Luiz da Costa Neto, que fi-cou encarregado de gerenciar os recursose a “estatização” das empresas.

Aizen, então, levou a idéia ao amigo:e se ele pedisse a Costa Neto para comprarsua empresa? E assim aconteceu. Na ven-da do Grande Consórcio, ficou acertadoque o governo assumiria todas as dívidasda editora e ainda indenizaria seus sóci-os. Em contrapartida, Aizen transferiupara o Estado a propriedade de suas publi-cações. A Noite ainda absorveu todos osempregados do Grande Consórcio, tor-nando-os funcionários públicos. CostaNeto apenas pediu a Aizen para que con-tinuasse na direção da empresa, como co-ordenador das revistas em quadrinhos.Graças à influência política do CoronelJoão Alberto, o editor jogou, assim, umacartada decisiva para recuperar seus ne-gócios. O acordo trazia outra vantagempara ele: podia ficar com a máquina rota-tiva, uma vez que as revistas seriam roda-das na gráfica de A Noite.

Livre de todas as dívidas e encargos tra-balhistas, com uma folgada soma em di-nheiro, Aizen passaria quase três anos edi-tando as revistas em quadrinhos do Gran-de Consórcio para A Noite. Tempo suficien-te para adquirir fôlego financeiro e plane-jar a fundação de uma nova editora. Enquan-to isso, a incorporação do Grande Consór-cio de Suplementos Nacionais pelo gover-no mostrava que, antes de tudo, Aizen eraum empresário que queria salvar seu negó-cio. Mesmo que, para isso, precisasse recor-

rer a amizades influentes.Com o apoio de João Al-

berto, livrou-se de um em-preendimento deficitário e,ao mesmo tempo, capitali-zou-se para que pudesse, nofuturo, dar continuidade àsua trajetória editorial. E pre-tendia fazer isso o mais rápi-do possível. O editor aindaaproveitou a estrutura gráfi-ca e a disponibilidade de pa-pel de A Noite – racionado porcausa da guerra – para come-morar em grande estilo osdez anos de lançamento doSuplemento Juvenil em 1944.Produziu um álbum ondecontava em forma de quadri-nhos a história da fundaçãodo tablóide, que chamou de AGrande Aventura. Uma gran-de aventura editorial que es-tava apenas começando.

IMPRENSA O JORNAL QUE INVENTOU A IMPRENSA JUVENIL

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Em boa parte da sua vida, o escritor ala-goano Graciliano Ramos (1892-1953)teve de conviver diretamente com o maisfamoso fenômeno do banditismo no Bra-sil: o cangaço. Em algumas situações, es-teve frente a frente ou sob a mira de fo-ras da lei importantes. Na infância e najuventude, a ameaça constante de ataquessurpresas nas pequenas cidades onde vi-veu – como Buíque (PE) e Viçosa (AL) –fez com que a paz e a tranqüilidade fos-sem algo tão raro quanto a água, nessas re-giões de muitas secas. Graciliano não foisó um contemporâneo, mas uma testemu-nha, que podia falar com propriedadesobre o tema. E o fez no auge e mais crí-tico momento do cangaço, que acabariacom as mortes dos principais líderes domovimento, na década de 1930 e come-ço dos anos de 1940.

Em texto de 1931, publicado na revis-ta Novidade, de Maceió, ele fez observa-ções nada lisonjeiras sobre o rei do can-gaço: “Lampião nasceu há muitos anosem todos os estados do Nordeste. Nãofalo, está claro, no indivíduo Lampião,que não poderia nascer em muitos luga-res e é pouco interessante. Pela descriçãopublicada vemos perfeitamente que o sal-teador cafuzo é um herói de arribaçãobastante chinfrim. Zarolho, corcunda,chamboqueiro, dá impressão má. Refiro-me ao lampionismo, e nas linhas que seseguem é conveniente que o leitor vejaalusões a um homem só”. A postura deleem relação ao rei do cangaço era muitoclara. Depois de observar que circularaum telegrama dando conta de que Lam-pião havia se aposentado no interior deSergipe, por causa da tuberculose, ele co-mentou em texto de 27 de janeiro de1938: “Seria de fato bem triste que apunição dum indivíduo tão nocivo fosserealizada por uma doença. Ficam, pois,sem efeito, os ligeiros comentários ino-portunos e apressados, que ilustraram oconard (termo em francês que quer dizerimprensa ruim, sensacionalista)”.

Denso perfilAntológico é o curto perfil, porém

denso, que fez de Maria Bonita. O modocomo começava, implacável, apontavasua posição sobre a famosa bandoleira: “Amãe de dona Maria perdeu muito cedo omarido, pequeno proprietário sertanejo,e esforçou-se desesperadamente para cul-tivar a fazenda, impedir que os vizinhoslhe abrissem as cercas e matassem animaisna roça. Defendeu-se como pode, conser-

A entrevista saiu sem assinatura e trazmarcas que a associam ao autor de VidasSecas, colaborador do periódico, no qualpela primeira vez abandonou pseudôni-mos. Segundo a revista, a conversa comLampião detalhava “como o célebre can-gaceiro, o herói legendário do sertão nor-destino, encara certas coisas brasileiras:os direitos de propriedade, o progresso, ajustiça, a família, o sertão, os coronéis, ocangaceirismo e a sua própria vida”. O re-dator da revista, no entanto, deixa clarona abertura que é tudo invencionice: “Naimpossibilidade de obtermos um encon-tro com o notável salteador, recorremosa um truque: um dos nossos redatores, an-tigo sócio de centros esotéricos, deitou-se, acendeu um cigarro, fechou os olhos e

LIVROS

vou-se viúva e cabeluda, musculo-sa, quase transformada em homem,deu uma rija educação masculinaà filha única”. Sobre Corisco, bra-ço direito de Lampião, que sobre-viveu mais alguns anos depois damorte do chefe, comentou: “Coris-co, figura secundária, não criou re-putação – e finou-se quase inédito.Foi um pequeno monstro. Contu-do, se as circunstâncias o ajudas-sem, ele seria hoje uma criaturanormal e necessária. Branco e lou-ro, com pai remediado e avô rico,senhor de vários engenhos, deviaacabar, naturalmente, jogando ga-mão numa pequena cidade do Nor-deste, à porta da farmácia, chatea-do por filhos brancos e louros”.

Ao longo de dez anos, entre1931 e 1941, Graciliano Ramos es-creveu uma série de 15 textos so-bre o tema, agora reunidos pela primeiravez, no livro Cangaços, com 224 páginas,que sai pela Editora Record. A edição foiorganizada por Ieda Lebensztayn e Thi-ago Mio Salla, dois especialistas em suaobra. Além daqueles restabelecidos coma Redação original do autor, são pela pri-meira vez publicados em livro dois iné-ditos: uma entrevista ficcional com Lam-pião, escrita para o semanário Novidade,e a crônica Dois Irmãos, em que, a partirde comentários sobre um romance deJosé Lins do Rego, ele compara os arqué-tipos de Esau e Jacó às alternativas dopovo diante da arbitrariedade do poder:revoltar-se ou resignar-se. O volume trazos dois capítulos do romance Vidas Secasque falam especificamente do cangaço.

Graciliano contra o cangaçoLivro reúne textos publicados na imprensa alagoana e carioca em que o autor de Vidas Secas faz uma série

de considerações sobre o banditismo no Nordeste, que ajudam a compreender o fenômeno Lampião.

POR GONÇALO JÚNIOR

conseguiu, por via telepática, aseguinte entrevista.”

Caráter falaciosoIeda Lebensztayn explicou

que, por aproximação estilística,atribuiu a entrevista imagináriaa Graciliano. Durante sete anos,ela pesquisou para sua tese dedoutorado na Usp a história daNovidade, que teve apenas 24 nú-meros e circulou de 11 de abril a26 de setembro de 1931. A pro-fessora lembra que outros escri-tores de talento colaboravam emsuas páginas, feitas nos fundos deuma livraria de Maceió. Fizeramisso antes de se mudarem para oRio de Janeiro. Dentre eles, esta-vam o poeta Jorge Lima, o roman-cista José Lins do Rego, o diciona-rista Aurélio Buarque de Holan-

da e o antropólogo Manuel Diegues Jr.Mas, a verve do texto, a referência irôni-ca ao esoterismo, a zombaria do bachare-lismo e, aponta Lebensztayn, “a agudez emrelação à miséria absoluta e ao caráter fa-lacioso da palavra escrita; a preceptiva po-ética de que é preciso conhecer o sertãopara se falar dele — tudo isso é inequivo-camente de Graciliano”.

No artigo Cabeças, que saiu no Diáriode Notícias, do Rio de Janeiro, em 2 de ou-tubro de 1938, Graciliano mostrou seuhumor cáustico em um comentário sobreo hábito de se decapitar cangaceiros pe-las volantes: “Por outro lado, existem pes-soas demasiado sensíveis que estremecemvendo a fotografia de cabeças fora doscorpos. Essas pessoas necessitam uma ex-

Hebel Quintella, ValdemarCavalcanti, Graciliano Ramos,Aloísio Branco, Rachel deQueiroz e José Auto, emMaceió, 1934. Abaixo,desenho de Santa Rosa para“Mudança”, publicado emO Jornal em dezembro de 1937.

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Com 43 anos completados no últimomês de fevereiro, Mauricio Torres esta-va no auge da carreira. Depois de ser oprincipal narrador da Rede Record de Te-levisão nas Olimpíadas de 2012 e se des-tacar na cobertura dos Jogos Olímpicosde Inverno na Rússia, em 2013, o jorna-lista se preparava agora para brilhar na-quilo que é o sonho de todo repórter es-portivo brasileiro: cobrir uma Copa doMundo de Futebol em seu próprio país.

Não foi possível. No dia 1º de maio,durante um vôo do Rio de Janeiro a SãoPaulo, onde faria gravações para o progra-ma Esporte Fantástico, Mauricio sentiu-se mal. Foi internado no hospital Sírio Li-banês, na capital paulista, com suspeitade infarto. Não era. Foi constatada numprimeiro momento uma arritmia cardí-aca, que depois descobriu-se ser prove-niente de uma bactéria. O quadro seagravou para infecção generalizada e ojornalista não resistiu, vindo a falecerno sábado, 31 de maio. Mesmo após ummês de internação, a notícia consternoutanto aos fãs como aos colegas.

MAURICIO TORRESUm craque a menos

na cobertura da CopaApós a perda de Luciano do Valle, jornalismo esportivo brasileiro

lamenta a morte precoce de Mauricio Torres, aos 43 anos

plicação. Cortar cabeças nem sempre éuma barbaridade. Cortá-las no interiorda África, e sem discurso, é barbaridade,naturalmente; mas na Europa, a macha-do e com discurso, não é barbaridade. Odiscurso nos aproxima da Alemanha. Cla-ro que ainda precisamos andar um pou-co para chegar lá, mas vamos progredin-do, não somos bárbaros, graças a Deus.”

Graciliano trata do assunto de modoconflituoso, com a experiência de quemvivenciou o cangaço em todas as suas fa-cetas. Daí ser contundente com os bando-leiros. O livro mostra sua visão indigna-da, entendida como mais humanista doque comunista, ante os desman-dos e as desigualdades de um qua-dro social corrupto e cruel. A tena-cidade do sertanejo em sua resis-tência à opressão aparece repeti-das vezes na frase “apanhar do go-verno não é desfeita”, que se apli-caria ao próprio autor, que sofreuna carne a injustiça de ser preso etorturado a partir de março de1936 quando, aos 43 anos, foi en-carcerado durante dez meses pelapolícia política de Getúlio Vargas.

Os organizadores da antologiaacreditam que, desse modo, lança-se uma nova luz sobre a obra ines-gotável de Graciliano Ramos, aoexpor uma das raízes do sentimen-to ético que perpassa toda a suaobra, como diz a apresentação. As-sim, mostram como, na reflexão doautor sobre a sociedade brasileira,foi fundamental testemunhar ocangaço, entendido como uma re-ação brutal de uma população opri-mida pela violência dos políticos podero-sos, centrada na figura onipresente e oni-potente dos coronéis. Ele explica o canga-ço a partir de uma experiência pessoal.

Segundo o escritor, “o que transfor-mou Lampião em besta-fera foi a neces-sidade de viver e sobreviver. Enquantopossuía um bocado de farinha e rapadu-ra, trabalhou. Mas quando viu o alastra-do e em redor dos bebedouros secos ogado mastigando ossos, quando já nãohavia no mato raiz de imbu ou caroço demucunã, pôs o chapéu de couro, o patuácom orações da cabra preta, tomou orifle e ganhou a capoeira. Lá está comobicho do mato montado”. Para os orga-nizadores, havia “dois cangaços”, o dopassado, de caráter social, e o do presen-te, de Graciliano, de motivação econô-mica. Tudo alinhado às datas de algunsdos principais líderes do movimento,como Jesuíno Brilhante (1855-1879),Antônio Silvino (1875-1944), VirgulinoFerreira da Silva, o Lampião (1898-1938),e Cristino Gomes da Silva Cleto, o Coris-co (1907-1940). Destes, apenas Silvinonão foi assassinado. Cumpriu pena de1914 até 1937. Graciliano o visitou nacadeia e fez seu perfil para O Jornal, doRio, em 1938: “Na caatinga imensa, per-seguido, queimado pela seca, Silvino teve

Graciliano Ramos em 1934.

sempre os modos de um grande senhor,muitas vezes mostrou-se generoso e ca-prichou em aparecer como uma espéciede cavaleiro andante, protetor dos po-bres e das moças desencaminhadas”.

Cangaços traz um caderno de fotosreveladoras do sentido de contextuali-zar os textos do autor. Em uma delas, ocomentário que Graciliano fez no ro-mance Angústia: “Pensei em Cirilo deEngrácia, visto dias antes em fotografia— um cangaceiro morto, amarrado auma árvore. Parecia vivo e era medonho.O que tinha de morto eram os pés, sus-pensos, com os dedos quase tocando o

chão”. Mas o auge da barbárie é quandosão exibidas as doze cabeças cortadas deLampião, Maria Bonita e o resto do ban-do. As cenas grotescas de 1938 são lem-bradas por Ricardo Ramos, filho deGraciliano, em uma das epígrafes dolivro: “Eu ouvia, fascinado. Passara a me-ninice acalentado pelas estripulias doscangaceiros, da polícia volante, duas pes-tes que nos assolavam. E contei de umanoite, após a ceia, em que atraído pelosfoguetes saí à calçada e vi os caminhões,as cabeças cortadas espetadas em esta-cas, de Lampião, Maria Bonita e maisoutros, os soldados empunhando archo-tes, gritando, vitoriosos, um cortejo ma-cabro pelas ruas de Maceió. Sonhos as-sombrados, semanas de pesadelo”.

Em janeiro de 1938, Graciliano Ra-mos escreveu, em crônica reproduzidaem Cangaços, que “a polícia do Nordes-te continuará a perseguir o bandido, pro-vavelmente o agarrará de surpresa e mos-trará nos jornais a cabeça dele separadado corpo”. Seis meses depois, “pegaram”Lampião. Ele, a mulher, Maria Bonita, eoutros nove cangaceiros do bando forammortos e degolados. As 11 cabeças foramexpostas na escadaria da prefeitura de Pi-ranhas, em Alagoas. Graciliano nunca en-tenderia tanta bestialidade.

VIDAS

POR CELSO SABADIN Carioca, Mauricio Thomé Torresimaginava que seguiria sua carreira jor-nalística nas áreas de Política ou Econo-mia. Não era particularmente um gran-de especialista em esportes. Porém, aoser contratado pelo Sistema Globo deRádio, descobriu que não apenas pos-suía uma veia esportiva, como tinhagrande facilidade para a narração. As-sim, com pouco mais de 20 anos, jánarrava jogos para os Canais Globosat.Seu talento, sua facilidade ao lidar comtemas esportivos e sua simplicidadelogo foram notados pela Rede Globo deTelevisão, que o contratou em 1996.Desenvolveu um estilo sóbrio, que aomesmo tempo conseguia transmitir aemoção dos jogos, sem a necessidadede recorrer a muitos bordões. O sorri-so largo e sincero era uma de suasmarcas registradas.

Na Globo, além de várias transmis-sões esportivas, apresentava também obloco de esportes do Bom Dia Brasil, oEspaço Aberto Esporte da Globo News echegou também a comandar algunsprogramas Globo Esporte, em caso de au-sência de seus titulares.

Mauricio Torres na Redação do programa Globo Esporte, no Jardim Botânico, em maiode 2003, ao lado dos apresentadores Léo Batista, Mylena Ciribelli e Glenda Kozlowski.

CARLOS IVAN/AGÊNCIA O GLOBO

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“Quando ele passou a dividircomigo a apresentação do EsporteFantástico, tudo ficou muito maislegal. Ele era muito divertido,engraçado, tudo era motivo parafazer brincadeira e rir. Passamosdois anos apresentando juntos e aamizade aumentou muito. Euesperava chegar a quinta-feirapara pode almoçar com oMauricio. A gente trocavaconfidências, ele me davaconselhos. Usava a experiênciadele para tentar nos ajudar. Estavasempre preocupado de a genteficar bem. O Mauricio era umapaixonado por esporte. Eusempre o admirei comoprofissional e, quando eu comeceia trabalhar com ele, percebi queele era muito mais do que aquiloque eu imaginava. Passei aadmirar ainda mais o Mauriciocomo profissional”.CLÁUDIA REIS

“Pessoa gentil e agradável. Ótimoprofissional. Mais um dos bonsnos deixa”.BRUNO LAURENCE

“Ele foi sempre um profissionalmuito correto e completo.Honesto, em todos os lugaresonde trabalhou. Seja na RádioGlobo, na Rede Globo e agora naRede Record. É um cara quesempre fez bem à profissão, eleera um agregador. É uma pena eleir antes da hora. Porque quando apessoa já está mais velha, a gentefica triste, mas a gente entendeque a pessoa cumpriu tudo o quetinha que cumprir. Agora, 43 anosé um absurdo. Isso não está certo.Não está certo a Julinha enterraro pai. Quando eu vim para o Rioele foi meu primeiro amigo. Eleme levou para procurarapartamento. Saíamos juntosdemais, era uma companhia legale agradável. O Mauricio era umcara muito generoso. Muito

correto. O mundo do jornalismoperde uma pessoa que tratava atodos de maneira justa e correta. Éuma lacuna”.LUIZ ROBERTO

“Desde que ele saiu da Globo, nósperdemos um pouco o contato.Mas todas as vezes que nosvíamos era uma festa muitogrande, muita alegria, umsentimento muito verdadeiro.O Brasil perde um excelentenarrador, um grande profissional,com uma voz maravilhosa.Eu tive a responsabilidade desubstituir o bom humor e avoz gostosa do Mauricio naapresentação do esporte no BomDia Brasil. Ele tinha sempre umaconversa agradável, um bate-papolegal. Vai fazer muita falta”.TADEU SCHMIDT

“Um cara bacana e umprofissional talentoso, moderno edinâmico”.ROBERTO CABRINI

“Não dá para mensurar o tamanhoda perda. O Mauricio só levavacoisa boa, sempre tinha umapalavra boa, de força, de amizade.Nós cobrimos juntos Guadalajara,Londres e várias outrastransmissões ao vivo na Record.Ele era um parceiro incrível. E oque eram aquelas narrações dele?!Impressionantes! Eram deliciosasde acompanhar. Ele levava a gentejunto para a quadra, para apiscina, para o campo. Era demais.O mais importante agora é agente dar apoio à família, à filhalinda que ele tinha”.CELSO ZUCATELLI

“Mauricio Torres, dono de umadas vozes marcantes do esporte,além de ser humilde e educado.Um craque a menos na Copa.Triste”.BRITTO JR.

“Não dá para mensuraro tamanho da perda”

Pela emissora do Jardim Botânico,atuou na cobertura de importanteseventos esportivos, como as Copas doMundo de 1998 (na França) e 2002 (Co-réia do Sul e Japão). Esteve nas Olimpí-adas de 1996 (Atlanta), 2000 (Sidney) e2004 (Atenas). Coberturas de Jogos Pan-Americanos foram duas: em 1999(Winnipeg, no Canadá) e 2003 (SantoDomingo, República Dominicana) e2007 (Rio de Janeiro), além de narrar asdecisões da Liga Mundial de Vôlei de2001 e 2003.

Em 2005, dentro da estratégia da Re-cord de tentar a liderança da audiênciamimetizando o estilo e o visual daemissora líder, Mauricio é contratadopela Rede de Edir Macedo. E para ser oseu principal locutor esportivo. Em2012, Mauricio se une a Mylena Ciribe-lli e Cláudia Reis para a formação do triode apresentadores de um novo progra-

ma, Esporte Fantástico. Na Record con-tinua sua trajetória de narrar e cobrir osprincipais eventos esportivos, como oGrand Slam de Judô 2009, os JogosOlímpicos de Inverno de Vancouver(Canadá, 2010), e os Jogos Pan-Ameri-canos de Guadalajara (México, 2011).

No ano seguinte, Mauricio chega aotopo da carreira, assumindo o posto deprincipal narrador das Olimpíadas deLondres, evento que a Record transmi-tiu com exclusividade, sem a sombra daGlobo. Seu último trabalho de peso,antes da internação, foi a cobertura dosJogos de Inverno de Sochi, Rússia, ain-da este ano. Por determinação da Con-federação Brasileira de Futebol-CBF, to-dos os jogos do Campeonato Brasileiroque foram realizados na rodada poste-rior ao dia de sua morte prestaram umminuto de silêncio em homenagem àmemória do jornalista.

FÁBIO GUINALZ/FOTOARENA/FOLHAPRESS

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VIDAS

Quando aquele senhor de 63 anos co-meçou a passar mal dentro do ônibusGrajaú-Cosme Velho, no Rio de Janeiro,no último dia 2 junho, os passageiros queo socorreram jamais poderiam supor quese tratava de um dos maiores fotógrafosdo Brasil e do mundo. Pioneiro na foto-grafia brasileira de temas sobre a nature-za, ambientalista apaixonado e ativo mi-litante ecológico, Luiz Cláudio Marigomorreu em pleno Instituto Nacional deCardiologia, no bairro de Laranjeiras, vi-timado por duas das principais causasmortis do Brasil: o enfarto e o descaso. Emgreve, os médicos do Instituto recusaramatendimento a Marigo, e agora o hospitalestá sendo acusado de negligência e omis-são de socorro.

A sensibilidade que Luiz Cláudio Ma-rigo desenvolveu pelos temas ligados ànatureza não aconteceu à toa. Além deter nascido no Rio de Janeiro dos român-ticos anos 1950, Marigo foi criado entreo mar e a Floresta Atlântica, e desde pe-queno explorava as trilhas das encostasdos morros próximos à sua casa. Quandonão estava abrindo picadas no mato, es-tava nas areias brancas de Copacabana.Suas primeiras fotos foram “batidas”(como se falava na época) com uma câma-ra totalmente manual emprestada pelopai. Não foram, porém, imagens da natu-reza, mas sim cenas urbanas e de pessoaspassando pelas ruas, já que Marigo, nes-tas primeiras incursões pelo mundo dacaixa escura, resolveu homenagear, aindaque de maneira meio inconsciente, o

grande fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson, cujo trabalho admirava.

Mas como o mercado para fotógrafos noBrasil ainda era incipiente naquele mo-mento, Marigo tentou buscar uma profis-são “de verdade”. Cursou Economia e depoisFilosofia. Em vão. O cheiro dos líquidosquímicos reveladores e fixadores (“digital”,naquela época, era apenas o adjetivo relati-vo a dedos) foram mais sedutores, e o rapazpassou a se dedicar inteiramente à fotogra-fia. Queria fotografar a natureza, chegou afazer experimentos com cenas de campose florestas, mas a necessidade de remune-ração (sempre ela) o arrastava para trabalhosmenos criativos e mais comerciais, como fo-tógrafo de produtos para publicidade.

Tudo começou a mudar em 1975, quan-do foi contratado pela Editora José Olym-pio para fotografar o Pantanal Matogros-sense. “Lá, então, a realidade se revelou aosmeus olhos! Sobrevoando as planíciesinundadas e observando tuiuiús, cabeças-secas, garças, cervos e capivaras fugindo àaproximação do avião, percebi que preci-sava continuar trabalhando assim peloresto da vida”, chegou a afirmar o fotógra-fo. Pouco tempo depois, no início dos anos1980, Marigo conhece o biólogo José Már-cio Ayres, estudioso de primatas amazôni-cos, que lhe proporciona uma visita de es-tudos ao lago Mamirauá, no Amazonas,onde fotografa o raro macaco uacari-bran-co. Mais que belos e importantes registrosfotográficos, a parceria entre Marigo e Ayresrende uma amizade para toda a vida, alémda criação, decretada em 1990, da ReservaMamirauá de proteção ambiental, propos-ta ao Governo Federal pelos dois amigos.

No mesmo ano, Marigo organiza umaexpedição com uma equipe de ornitólo-gos para localizar, no Nordeste brasilei-ro, uma ave quase extinta: a cyanopsittaspixii, popularmente conhecida comoararinha azul. Apenas um único exem-plar foi localizado. E devidamente foto-grafado, claro. Marigo tinha consciênciada importância deste seu trabalho que ex-trapolava os limites da própria fotografia.“O Brasil abriga quase a terça parte de todasas florestas tropicais remanescentes naTerra. Estes fatos, de tão grande importân-cia, são pouco compreendidos por muitosórgãos do Governo e ainda menos pela po-pulação brasileira. Por isso, acho que a fun-ção social do meu trabalho é chamar a aten-

O retrato de um País

POR CELSO SABADIN

ção da opinião pública para a nossa tre-menda riqueza de formas de vida, com todaa sua beleza, produzindo um conhecimen-to mais amplo e profundo de nossos ecos-sistemas, plantas e animais”, afirmou.

Suas fotos estão espalhadas pelo mun-do, estampadas em publicações como Foto(Suécia), Grands Reportages, Okapi e Ter-re Sauvage (França), Periplo (Espanha),Hörzu e Das Tier (Alemanha), BBC Wildlife(Inglaterra), International Wildlife, RangerRick, Wildlife Conservation, Natural History(EUA), Viva! (Polônia), Bonniers Special-magasiner (Dinamarca), Spick (Suíça),Sinra (Japão) e Birds International (Austrá-lia), além da mundialmente aclamadaNational Geographic Magazine. Mas, cer-

Luiz Cláudio MarigoLuiz Cláudio MarigoPioneiro no registro de imagens sobre natureza, militante ecológico,

fotógrafo morre sem atendimento na porta de um hospital no Rio de Janeiro.

CEC

ÍLIA MARIG

O

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tamente, a grande maio-ria dos brasileiros conheceseu trabalho, mesmo semsaber, através das ines-quecíveis figurinhas queacompanhavam as emba-lagens do Chocolate Sur-presa, da Nestlé. De 1983a 1998, toda uma geraçãode crianças e, por quenão, de adultos também, se acostumou acolecionar os “cromos” (como se dizia naépoca), divididos em variados temas, amaioria referente a assuntos da natureza,devidamente fotografados por Marigo.Eram inusitadas coleções de figurinhas,posto que para adquirir o álbum era ne-cessário enviar uma carta à Nestlé comum determinado número de embalagensvazias. Tratava-se de cartões impressosem papel de ótima qualidade, onde noverso da fotografia constava uma fichatécnica com detalhes do animal fotogra-fado, como o nome científico, família,habitat, hábitos alimentares, reproduçãoe demais particularidades.

Nos álbuns “Amazônia”, “Campos eCerrados”, “Os Sertões e Litoral” e “IlhasOceânicas”, não apenas as fotografiaseram de autoria de Marigo, como tambémos textos dos cartões. Seus escritos tam-bém eram publicados na revista Fotogra-fe Melhor. Sérgio Branco, Diretor de Reda-ção da publicação, afirmou que Marigoera “dono de um texto poético e, ao mes-mo tempo, informativo. Era muito cuida-doso. Enviava duas ou três fotos para cada

situação que comentava em seus artigose todas devidamente legendadas. Era umapessoa alegre, gentil e sempre disposta aajudar qualquer leitor que o procurasse”.

No site de Marigo ainda é possível lerdeclarações suas que, agora, soam comouma espécie de testamento. “Eu amo a na-

tureza e ganho a vida trabalhando na na-tureza, da mesma maneira que o homemprimitivo fazia no passado e, por isso, mesinto profundamente comprometido comsua conservação. Acredito que a qualida-de e a beleza das fotografias são essenciaispara atrair o olhar das pessoas e conquis-

tar seus corações, aumentando assim onúmero daqueles que defendem a nature-za. Espero que o meu trabalho transmitaa mesma alegria e emoção que sinto nosambientes selvagens e que as minhas foto-grafias não se transformem apenas emmais um documento do passado”.

A NATUREZA DE MARIGO: tamanduá-bandeiracarrega seu filhote. Acima, um uacari-brancona Reserva de Desenvolvimento SustentávelMamirauá, no Amazonas; girafas na ReservaHluhluwe-Imfolozi, África do Sul. Abaixo,uma onça-pintada ataca um jacaré-de-papo-amarelo no Pantanal; lobo-guará noParque Nacional da Serra da Canastra, noCerrado de Minas Gerais. Na página aolado, uma bióloga com hipopótamo, naÁfrica do Sul, e tucanos-toco no Pantanal.

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VIDAS

Morrer durante uma festa talvez sejaalgo coerente com a vida de quem fez aspessoas rirem muito do mundo, da vida, dasadversidades, dos abusos e das arbitrarieda-des. Foi o que aconteceu com o multitalen-toso arquiteto, urbanista, ilustrador e car-tunista Orlando Mollica, na noite de 31 demaio. A três meses de completar 70 anos deidade, ele estava entre familiares e amigos,divertia-se quando passou mal e foi levadopara o Hospital Municipal Miguel Couto,onde já chegou sem vida. “Vai-se um amigosem igual, de qualidades raras, uma amiza-de em que dois temperamentos difíceis serespeitavam e admiravam, relevando as pe-culiaridades de sua personalidade, toman-do as atitudes mais irracionais e irascíveiscomo a mais autêntica expressão da since-ridade”, disse o artista Bob N ao jornalistaGilberto de Abreu, do blog Supergiba. “Meuquerido mestre e amigo, com quem tantoaprendi em aulas e conversas, e com quemtanto compartilhei sobre arte, a nossa cida-de, a vida. Minha gratidão a esse cara é in-comensurável”, acrescentou.

Mollica, como assinava seus cartuns,teve vida intensa na grande imprensa bra-sileira. Foi colaborador constante de tí-tulos importantes como O Pasquim, Opi-nião, O Globo, Jornal do Brasil, Jornal doCommercio, Ele Ela e Playboy, entre outros.Nesses veículos, desempenhou importan-te papel com seu humor direto, cortante,porém reflexivo, em especial durante operíodo da redemocratização do País, en-tre 1973 e 1987. Era ainda um consagra-do capista e ilustrador de livros para edi-toras como Jorge Zahar, José Olympio,FTD e outras. Seus desenhos conquista-

ram prêmios como Ilustrador do Ano doClube de Criação de São Paulo, em 1989,e Prêmio da Fundação Nacional do Livro“Melhor Ilustração Infantil”, 1989, sópara citar dois exemplos. Depois de con-cluir mestrado e doutorado em Comuni-cação na Eco-UFRJ, Mollica atuou comoprofessor adjunto da faculdade Santa Úr-sula, de 1975 a 2000.

Por anos, ensinou desenho e pinturada Escola de Artes visuais do Parque Lage,com o curso “Desenho Contemporâneo:produção de sentido e narratividade”. Seulivro mais recente foi Arte, Artistas e Artei-ros, publicado em 2011 pela Editora GatoSabido. Ao mesmo tempo, seus trabalhoscomo artista plástico respeitado foramexpostos em galerias importantes de vá-rias partes do mundo, inclusive em Pe-quim, na China, onde, em 1995, partici-pou de uma mostra coletiva de autoresbrasileiros. Uma das últimas exposições deMollica foi Rio Lado B – Anotações Impreci-sas, com pinturas que tentavam recriar oambiente da Zona Norte do Rio a partir

de suas lembranças. A mostra teve amplarepercussão na imprensa. Em seu blog, elese referiu às telas dessa exposição comouma crônica paisagística da Zona Nortecarioca, e ressaltou: “A contemplação des-sas paisagens, ora em questão, é opostaàquela que se produz na indústria do es-petáculo midiático, por meio de um vo-yeurismo fugaz, histérico, marcado co-mumente pela banalização da violência,exposta diariamente ao cidadão comum,que sentado confortavelmente em suasala de jantar, a tudo assiste no noticiáriode tv, impassível e impotente”.

Nesse trabalho, prosseguiu Mollica, o‘telespectador ’ é representado pela suaprópria ausência, nas cadeiras e mesasvazias, pintadas à margem das cenas. Eleexplica que “de um lado ou de outro datela, esses prosaicos arranjos de mobiliá-

rios típicos dos interiores das casas abur-guesadas simbolizam a indiferença e aimpotência apática do cidadão comum.”

Artista plástico e arquitetoOrlando de Magalhães Mollica nasceu

em 5 de agosto de 1944, no Rio de Janei-ro. “Eu sou tamoio, sou natural daqui, des-cendente de ancestrais do Rio de Janei-ro”, definiu-se, certa vez. Descrevia-senos últimos anos como artista plástico earquiteto – formou-se pela Faculdade Na-cional de Arquitetura da Universidade doBrasil, atual UFRJ, em 1969. Entre seuscursos complementares, estudou ilustra-ção na School of Visual Arts, em NovaYork, e fez Paisagismo no Instituto dosArquitetos do Brasil, sob a orientação doprofessor Fernando Chacel, e de Introdu-ção à Economia Política na ABI, coorde-

Múltiplos talentos,num traço singular

Arquiteto, urbanista, ilustrador e cartunista, ele trabalhouem O Globo, O Pasquim, Playboy, Jornal do Brasil

e outras publicações ao longo de três décadas.

POR GONÇALO JÚNIOR

Mollica

O NOVO HUMOR DO PASQUIM

NOVE CONTOS DE MARQUES REBELO

Mollica, em seu estúdio, finaliza a tela Porto das Mil Maravilhas,que fez parte da exposição Rio Lado B – Anotações Imprecisas.

LAURA MARQUES/AGÊNCIA O GLOBO

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nado por Paul Singer. Também estudouSemiologia com ninguém menos queUmberto Eco. Como profissional de Ar-quitetura e Urbanismo, foi projetista doescritório de Arquitetura Bernardo Fi-gueiredo, além de autor e executor do pro-jeto dos carros alegóricos da Escola deSamba Estação Primeira de Mangueira“Pioneiros da Aviação”. Fez ainda pesqui-sa do levantamento da identidade Cultu-ral do Bairro de Vila Isabel para o proje-to “Perfil Cultural da Cidade do Rio de Ja-neiro”, junto à Fundação Rio. Em 1982,tornou-se o responsável pelo Projeto deUrbanização do Complexo do Morro doAlemão e Jacarezinho.

Na publicidade, Mollica entrou para ahistória ao se tornar, em 1979, o autor docartaz pela Anistia Nacional, que percor-reu o mundo. Ficou mais conhecido, po-rém, pela importante passagem pela im-prensa a partir de 1972, quando estreouno caderno infantil do Jornal do Brasilcomo autor e responsável pela seção Di-acor. Enquanto isso, adentrava no mun-do dos livros como co-autor do layout earte final da capa e contra-capa do livro O Golpe ContraHoward Hughes, de StephenFay. Criou também uma sé-rie de histórias em quadri-nhos no Caderno B, do Jornaldo Brasil. Fez o mesmo na re-vista alternativa Esperançano Porvir. Até ser contratadocomo chargista diário peloJornal do Commercio (Rio deJaneiro). Tornou-se tambémcolaborador de O Pasquim eOpinião, ícones do jornalis-mo de resistência contra aditadura. Em 1974, criouuma página de humor em su-plemento da secular RevistaVozes, publicada pela edito-ra católica de Petrópolis. Noano seguinte, virou chargista

diário da Última Hora, enquanto era con-vidado pelo colega Fortuna para colabo-rar com a revista de quadrinhos nacionaisO Bicho, da Editora Codecri, a mesma quepublicava O Pasquim.

A paixão pelas histórias em quadri-nhos fez com que ele, nas horas vagas doscartuns e da arquitetura, adaptasse paraos quadrinhos os romances Helena, deJosé de Alencar, e A Moreninha, de Joa-quim Manoel de Macedo, pela EditoraEtecetera. Seu nome, então, ultrapassouas fronteiras brasileiras depois do convitepara participar da seleta Enciclopédia La-tino-Americana de Humor. Antes de virarilustrador exclusivo de O Globo, a partir

de 1976, colaborou durante algum tem-po na revista masculina Ele Ela, da BlochEditores. Em 1978, seus cartuns foram in-cluídos no livro O Novo Humor do Pasquim.A despedida do humor se deu nos anos de1999 e 2000, quando colaborou com a re-vista Bundas, criada por Ziraldo. Um anoantes, participou do júri do Salão Cario-ca de Humor de 1998, na Casa de Cultu-ra Laura Alvim. Se não bastasse tudo isso,teve duas passagens pelo cinema. Primei-ro, em 1977, quando se tornou responsá-vel pelos figurinos, cenografia e apresen-tação do filme Cordão de Ouro, do diretorAntonio Carlos Fontoura. Em 2005, cui-dou da produção e direção do curta metra-

gem Eu, Rio.Há dois anos, Mollica

havia transferido seu ateliêdo Jardim Botânico para oRio Comprido, bairro ondenasceu e cresceu. Uma mos-tra de seu trabalho celebrouseu retorno à região e a inau-guração do novo espaço detrabalho. Considerado umdos arquitetos mais irreve-rentes, somava à sua rica per-sonalidade as facetas de jor-nalista, chargista e pintor.Com seu olhar atento e pro-vocativo, estimulava a inte-ligência e a sensibilidade emrelação à paisagem que noscerca. Sem trocadilhos, vi-veu e traçou o mundo comseu talento singular.

ENCICLOPÉDIA LATINO-AMERICANA DE HUMOR

“Orlando furioso,Orlando encantador,

Orlando racional,a explicar”

"Mollica... Cartunista. Artista plástico,músico, batuqueiro e professor. Ator deum mau humor muito bem humorado.Autor autoral. Doce e gentil, embora ácidoe irascível... Crítico, mas sabia o que fazer.E fazia. Fazia pracarái. Arquiteto de muitoengenho, e de muita arte... Pintava o sete.E bordava, e dava mil pontos sem nó...Italiano, mediterrâneo, etrusco? Sanguequente, cabeça fria... Às vezesexatamente o contrário! Orlando furioso,Orlando encantador, Orlando racional, aexplicar, Orlando emocionante... Vousentir uma falta de ti, cara!".AROEIRA, CARTUNISTA E MÚSICO

"A vida, às vezes, nos reserva boassurpresas. Enquanto dava os meusprimeiros passos como desenhista, tive oprivilégio de ter como professor o Mollica,o ilustrador e cartunista que eu conheciados jornais. Pessoa intensa, divisor deáguas na minha vida profissional, quegenerosamente me apresentou aodesenho de humor".ROSE ARAUJO, CARTUNISTA

"Conheci o Mollica, inicialmente atravésde sua arte no jornal O Pasquim, depoispessoalmente no próprio jornal quandoestivemos juntos algumas vezes e outrastantas no Parque Lage, enquanto eu faziaalgum curso naquela instituição. Sempreo encontrava rodeado de alunos e agiacomo um professor muito preocupadocom questões de conhecimento,importância do ensinar e fazer viver arte".ZÉ ANDRADE, CERAMISTA

ANTOLOGIA BRASILEIRA DE HUMOR

ANTOLOGIA BRASILEIRA DE HUMOR

A Ronda na Favela, d’apres Dall'ara: Tela que fez parte da exposição Rio Lado B – Anotações Imprecisas.

O NOVO HUMOR DO PASQUIM

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