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ITAÚ CULTURAL O que se crê se cria dez 2008 | itaucultural.org.br 17

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ITAÚ CULTURAL

O que se crê se cria

dez 2008 | itaucultural.org.br17

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sumário

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ITAÚ CULTURAL

Andar com féNo divino ou no mundano, o importante é acreditar

Cidade: vontade e impotência Crer para viver – há solução para os grandes centros urbanos?

Numa tarde quenteFotorreportagem e crônica abordam a religiosidade no Brasil

O cético e a ciberliberdadeEm entrevista, Silvio Meira, apesar do ceticismo, fala de sua crença na comunicação

A solidariedade acima do dogmaO padre que mudou o hábito de uma igreja, na Espanha

A dor que deveras senteQuando a falta de esperança se torna muito mais que um sinal de descrença

Do inferno ao céuNo limbo do futebol brasileiro, o Santa Cruz ainda demonstra forças para se reerguer

Afinados como as cordas da rabecaUma família que crê na cultura popular

Continuum on-lineConteúdos exclusivos da revista na internet

Área livreCordel de Jorge Filó anuncia um esperançoso novo ano

A corda que sustenta o equilibrista

“Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira, mas já tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum.“ O trecho extraído do livro Mundo da Lua, publicado por Monteiro Lobato em �9��, fala das realizações humanas e da força que está por trás delas. Tudo o que existe é fruto do pensamento de alguém que, no mínimo, acreditou no que estava arquitetando. A crença, portanto, é inerente ao ato de viver, mesmo para aqueles que se dizem céticos. E não se trata apenas de seguir religiões, seitas ou filosofias. Acreditar em algo faz mover positivamente as pessoas, que sem essa dose a mais de estímulo teriam um caminho mais árduo para seguir em frente.

A Continuum Itaú Cultural escolheu abordar o tema crença– que se metaforiza na assinatura de capa O que se crê se cria – em dezembro, mês em que tradicionalmente todos se voltam

para um balanço pessoal e renovam as esperanças em um novo período, que traga de volta o alento desgastado pela jornada que chega ao fim. A convergência entre crença, religião e ciência abre a revista, em reportagem que evoca os conhecimentos populares de frases deliciosamente sábias como “Não existe pecado ao sul do Equador” ou “O inferno está cheio de boas intenções”. Na Entrevista, o engenheiro de software Silvio Meira, declaradamente cético, não deixa de

depositar esperanças na interatividade (com consciência) proporcionada pelo acesso a uma

internet cada vez mais democrática e colaborativa.

Imagens de demonstrações coletivas de fé compõem fotorreportagem assinada por Beto Figueiroa, Christian Cravo, José Bassit e José Frota. Crônica que aborda a fé em santos

populares, aqueles não eleitos pela igreja, mas eternizados no imaginário de quem crê, passeia entre as imagens sugerindo novos contextos para tema tão farto. O crédito

nas cidades como modelo civilizatório também se renova, apesar dos males urbanos crônicos. É o que afirma artigo assinado por Guilherme Wisnik,

que roga por uma urbe mais justa socialmente. E, para fechar a edição, a Área livre traz a crença no novo ano expressa em

cordel, de autoria do poeta Jorge Filó.

17 dez �008

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Tiragem 10 mil – distribuição gratuita Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected] Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Aline Feitosa, Beto Figueiroa, Carlos Costa, Christian Cravo, Cia de Foto, Eduardo Queiroga, Fabiano Silva, Fernando Vilela, Geyson Magno, Guilherme Wisnik, Jorge Filó, José Bassit, José Frota, Luana Fischer, Mariana Sgarioni, Micheliny Verunschk, Ricardo Toscani, Samarone Lima, Sergio Crusco On-line Fernanda Castello Branco, Índigo, Karla Dunder Agradecimentos Camila Lisboa, Leda Beck, Patrícia Cornills, Rodrigo Bueno

capa O preparo de vestes usadas nas brincadeiras de maracatu | imagem: Aline Feitosa

ISSN �98�-8084 Matrícula 55.08� (dezembro de �007)

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A imagem da página �9 está sob licença do Creative Commons Attribution �.5

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Andar com féO ser humano que crê em alguma coisa é mais feliz: pode ser em Deus, em um duende, em um ideal ou até nele mesmo. O que importa é acreditar

Por Mariana Sgarioni

Maio de �990. Daniella era uma criança de saúde frágil. Aos 4 anos de idade, chegou ao hospital entre a vida e a morte. Internada em coma, o diagnóstico foi, no mínimo, desanimador: insuficiência hepática grave, insuficiência renal aguda, intoxicação e broncopneumonia, além de uma parada cardiorrespiratória e outras complicações sérias. Segundo os médicos, só restava rezar pela menina – e foi o que os familiares fizeram. Pediram fervorosamente a intervenção de Frei Galvão por meio de suas “pílulas milagrosas” – pedacinhos de papel com uma oração em latim que devem ser ingeridos ao longo de uma novena. Menos de um mês depois, Daniella saía do hospital totalmente curada e sem nenhuma seqüela. Ninguém conseguiu explicar o que aconteceu. Para as irmãs do Mosteiro da Luz, em São Paulo, que acompanharam o caso de perto, trata-se de um evidente milagre de cura.

Como o caso de Daniella, há outros milhares espalhados pelo planeta. E a verdade de fato ninguém sabe, nem mesmo os médicos. Só se sabe uma coisa: trata-se de gente que tem fé, muita fé. Gente que crê em algo: pode ser em Deus, Frei Galvão ou em comprimidos de papel. Falando assim parece fácil, mas a crença não é algo que nasce dentro de todo mundo e permanece lá intacta. Ela se constrói – e se destrói – ao longo da vida. Tanto é que muita gente muda de religião, torna-se atéia ou passa a acreditar em qualquer outra coisa que não necessariamente esteja ligada a uma religiosidade específica, como extraterrestres, duendes, bruxas, cristais.

Por que acreditamos?

Há milênios, a humanidade encontra alento na crença de que cada um de nós faz parte de uma ordem maior. É como se esse “chip” já viesse embutido em nosso DNA. Há, inclusive, explicações da biologia para isso. “A predisposição humana para a religião é uma conseqüência normal da evolução genética do cérebro. A ânsia por acreditar em alguma existência transcendental, na imortalidade, faz muito mais sucesso do que a ciência”, afirma o biólogo americano Edward O. Wilson, da Universidade de Harvard. “E esse é um dilema humano: evoluímos geneticamente para aceitar uma verdade e descobrimos outra”, completa ele.

reportagem

.4A crença de que manga com leite faz mal (foto inspirada no Pequeno Dicionário Ilustrado de Expressões Idiomáticas, de Everton Ballardin e Marcelo Zocchio) | imagem: Cia de Foto

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A crença de que Deus está nos observando, nas palavras do psicólogo Michael McCullough, da Universidade de Miami, é algo “equivalen-te em grande escala ao pensamento ‘se eu não conseguir pagar o aluguel, meu pai vai ajudar’ ”. Ou seja, é um conforto, uma garan-tia de que, no final, as injustiças serão corrigi-das e nossos esforços reconhecidos. Trata-se de uma espécie de significado para a nossa vida, e quem consegue encontrar esse signi-ficado, normalmente em alguma religiosida-de, costuma ser mais feliz. “A fé nos conecta com outras pessoas, dá sentido e propósito à nossa existência, ajuda também na auto-aceitação e sustenta a esperança de que, no final, tudo ficará bem”, diz o relatório de um estudo sobre o assunto do Centro Nacional de Pesquisas de Opinião dos Estados Unidos.

de Deus como um gigante barbudo de pele branca, sentado no céu, é ridícula. Mas, se com esse conceito você se referir a um conjunto de leis físicas que rege o Universo, então claramente existe um Deus. Só que é emocionalmente frustrante: afinal, não faz muito sentido rezar para a lei da gravida-de!”, disse o famoso astrônomo americano Carl Sagan. Ou seja: até ele tem o seu Deus próprio, às avessas, o que derruba aquela eterna – e ultrapassada – polêmica entre fé e ciência. “As pessoas se sentem ameaçadas pela ciência, achando que ela vai ‘matar’ os deuses. É essa distorção que os cientistas devem combater, e não a fé. A ciência não quer roubar Deus de ninguém”, diz o físico Marcelo Gleiser.

A ciência e a tecnologia podem não querer roubar o Deus dos outros, mas elas acarre-tam, inevitavelmente, uma quebra do en-canto. O que antes permanecia um mistério passa a ter sempre uma explicação palpável – todo mundo sabe que as causas de uma descarga elétrica não são orquestradas pelo Deus do Trovão, por exemplo. O avanço da modernização capitalista provocou um re-traimento de todo e qualquer tipo de fé. É o que o sociólogo alemão Max Weber já anun-ciava no século XIX: a ciência sendo porta-dora do chamado “desencantamento do mundo”. É como se, ao descobrir a verdade dos fatos, a vida ficasse um tanto sem graça. E assim aumentasse a solidão – sem o am-paro e o cuidado de uma entidade superior que até então existia, o ser humano passa a se sentir solto e frágil. “O destino da nossa época, com sua racionalização, intelectua-lização e, sobretudo, desencantamento do mundo, consiste justamente em que os va-lores últimos e mais sublimes desaparece-ram da vida pública e imergiram ou no rei-

no tras-mundano da vida mística, ou na fraternidade das relações imediatas dos indiví-duos entre si”, escreveu Weber, em seu livro A Ciência como Vocação (Guanaba-ra, �98�).

Sem dúvida, a vida frenética nos leva a pensar que não há nada para acreditar. Mas há quem chegue exatamente à conclusão contrária: num momento de profunda de-sesperança é que se volta a crer. Até como um mecanismo de sobrevivência. O padre Júlio Lancellotti, que há muitos anos tra-balha com menores de rua de São Paulo, certa vez contou uma história que aconte-ceu durante uma rebelião na antiga Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, atualmente Fundação Casa). “Os meninos haviam sido mandados para um presídio. Em meio ao desespero, eles me pediram para fazer uma oração. Um deles, o Cícero, negou-se a rezar. Perguntei por quê. ‘Odeio Deus’, respondeu o menino. ‘Minha vida sempre foi muito infeliz, uma desgraça. Não tenho motivos para gostar dele’. Fiz então outra pergunta: ‘Cícero, você me odeia?’. Na hora, ele respondeu que não, que gostava de mim. E quem gosta de alguém não odeia Deus”, disse Lancellotti. “A gente encontra Deus nas relações, nos bons sentimentos. Ele está aqui e agora. Não espere que ele es-teja num lugar inatingível. Esse negócio de eu com Deus, Deus comigo, lá no céu, não existe. Não se trata de um pacote que você compra e ele está incluído.” O pacote do Deus de hoje, segundo ensina o padre, está bem próximo do que diz Sagan: está dentro de cada um de nós, dos sentimentos que nutrimos com o mundo e, principalmente, com os outros.

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Para o pai da psicanálise, Sigmund Freud, a fé especificamente ligada a dogmas religiosos é uma das maneiras que a humanidade en-controu de instituir a repressão sem a qual a vida social seria impossível. Era preciso algo que proibisse matar e roubar, por exemplo. A religião acabaria por atenuar o desampa-ro humano, dotando o mundo, a história e a vida de sentido.

O poder da crença pode ir além do conforto espiritual, ajudando a curar doenças e au-mentando a longevidade. Uma das razões para tanto passa longe do sobrenatural: a fé traz a reboque uma rotina mais regrada e vínculos mais sólidos com a família e a co-munidade. Quem professa uma crença rara-mente faz bobagens como se embebedar e sair dirigindo a �60 quilômetros por hora. “Ter uma fé ativa é tão fortemente associa-do à longevidade quanto ao hábito de não fumar”, afirma David Myers, professor de psi-cologia da Faculdade Hope, em Michigan, Estados Unidos.

Em que acreditamos?

As crenças, contudo, não estão obrigatoria-mente ligadas a grupos religiosos. A religião não é a única forma de explorar a fé, muito menos de dar significado à vida. Quem não se identifica com nenhum deles, por exem-plo, costuma procurar outras crenças. E crer em algo não significa necessariamente ser em Deus. Um ateu convicto pode ter fé em seu próprio papel na história da humanida-de, na justiça social, no desenvolvimento sustentável do planeta, na democracia. Ele pode acreditar no poder da física quântica ou até mesmo nas chamadas “verdades uni-versais”, que se sabe lá de onde vieram, tais como “Beber � litros de água por dia”, “Não existe pecado ao sul do Equador”, “O inferno está cheio de boas intenções”. E por aí vai. A verdade é que acreditar faz bem. “A idéia

Há quem acredite que passar por baixo de escada dá azar... | imagem: Cia de Foto

... e outros que acreditam em duendes | imagem: Cia de Foto

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Cidade: vontade e impotênciaViver em grandes centros exige dose reforçada de crença

Por Guilherme Wisnik

Lá se vão 5 mil anos desde que a cidade surgiu, como fenômeno histórico, na Mesopotâmia. Mas o que diferenciava essas primeiras cidades das chamadas aldeias, permitindo que arqueólogos e historiadores falassem em uma “revolução urbana”? Situadas nos vales férteis de rios grandes e caudalosos (Tigre, Eufrates, Nilo, Indo), e não mais em protegidas colinas, as primeiras cidades foram empreendimentos da vontade humana, dominando a natureza de modo arriscado. Vastas obras de drenagem, canalização e contenção permitiram que se extraíssem excedentes antes impensáveis na produção agrícola, estimulando o comércio entre povos, a maior complexidade das relações sociais e a monumentalidade arquitetônica – em uma palavra: a cultura. A cidade é, nesse sentido, a maior materialização da nossa “vontade de potência”.

No livro que escreveu sobre o século XX (Era dos Extremos: O Breve Século XX, Cia. das Letras, �995), o historiador Eric Hobsbawm diz que o evento mais importante do século foi sua avassaladora urbanização. O que permitiu que, após 5 mil anos de história, a população humana se tornasse predominantemente urbana, e não mais rural, constituindo uma rede interligada de cidades, a que se chamou de “aldeia global”. Por outro lado, essa conquista histórica não é tão heróica quanto pode parecer, haja vista o caos viário das maiores aglomerações urbanas do mundo, o contínuo decréscimo e abandono dos seus espaços públicos, a escalada da violência e o aumento ingente da pobreza. A sensação generalizada que se tem, a esse respeito, é que o modelo urbano faliu, tal é a perplexidade que sentimos diante de cidades como Lagos (Nigéria), Lima (Peru), Mumbai (Índia), Kinshasa (Congo), Cidade do México ou São Paulo, entre muitas outras.

O mais importante livro lançado sobre o assunto se chama Planeta Favela (Boitempo, �007), escrito pelo urbanista norte-americano Mike Davis. Partindo de dados fornecidos pelas últimas conferências das Nações Unidas, o autor traça um panorama aterrador a respeito da realidade urbana atual, dominada cada vez mais pela proliferação das favelas e do trabalho informal. É que o imenso crescimento urbano ocorrido no Terceiro Mundo desde o final dos anos �970 – durante o chamado “capitalismo tardio” –, impulsionado pelos ajustes estruturais impostos pelo Fundo Monetário Internacional a essas regiões, não acompanhou qualquer desenvolvimento econômico. Ao contrário, deu-se num contexto de desindustrialização e sucateamento da infra-estrutura produtiva anterior, e, portanto, de falta de emprego e crise na oferta de moradias. Nas palavras de Mike Davis, as favelas são, portanto, a “lata de lixo da história”, o depósito de um excedente de humanidade que não encontra qualquer possibilidade de redenção neste mundo, apegando-se a promessas de salvação vindas do além. Daí que o cristianismo pentecostal e o islamismo fundamentalista cresçam tanto no solo de cidades inteiramente favelizadas.

artigo

Inconseqüente prepotência

Por outro lado, hoje estamos já muito dis-tantes do sentimento antiurbano que pre-dominava nos anos �970. Pode-se dizer que naquela década atingimos o auge da des-crença no modelo urbano, buscando alter-nativas tanto fora do mundo (intergalácticas, ou mesmo dentro de um “submarino ama-relo”) quanto em seu interior mais recôndito, seja em comunidades semi-rurais, seja em tecnológicos trailers para famílias nômades. É quando se desenvolvem os modelos de cidade-jardim nos subúrbios dos grandes centros – que em São Paulo correspondem a condomínios como Alphaville ou Granja Viana –, como alternativa mais humana à massificação da vida metropolitana. Seu efeito, no entanto, é catastrófico, levando ao enorme espraiamento urbano em direção a esses núcleos afastados, suburbanizando vastas áreas das cidades (Los Angeles, nesse caso, é o grande exemplo).

Parece, portanto, que, se a cidade nasceu originalmente como a encarnação da nos-

sa “vontade de potência”, ela se transfor-mou, com o tempo, no retrato acabado

da nossa impotência, graças a uma desmedida e inconseqüente pre-

potência. Haverá solução?

Hoje, fala-se muito em arquitetura sustentá-vel, em “edifícios verdes” que reutilizam água, desenvolvem sistemas de ventilação natural e usam placas para transformar luz solar em energia. Apesar de fundamentais, essas práti-cas muitas vezes acabam servindo como áli-bi de salvo-conduto a empresas que dizem resolver o problema ecológico na escala que lhes compete – os seus próprios edifícios – e se eximem de discutir o que realmente importa: a cidade. Isto é, a especulação imo-biliária, a poluição dos rios, o espraiamen-to que consome o solo e o predomínio do transporte individual motorizado, que quei-ma combustível fóssil não-renovável, polui o ar e esquenta o planeta. A discussão sobre a cidade exige um acordo coletivo durável, que supere a prática individualista do “faça-você-mesmo”. Pede, portanto, uma boa dose de crença. Não em um além salvífico, mas na própria qualidade gregária do homem, que deve carregar consigo, como bagagem ge-nética, um senso de autopreservação.

Guilherme Wisnik é arquiteto e mestre em história social pela Universidade de São Pau-lo. Autor de Lucio Costa (Cosac Naify, �00�).

As cidades: a materialização da “vontade de potência” do homem | ilustração: Fabiano Silva

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fotorreportagem e crônica

Numa tarde quenteA crença religiosa é fonte que nunca seca nos desvãos do país

Texto Micheliny VerunschkImagens Beto Figueiroa, Christian Cravo, José Bassit e José Frota

Numa tarde quente de �998, dois amigos chegaram à minha casa com um convite inusitado. Dali a algumas horas pegariam um caminhão pau-de-arara, desses em que se colocam fileiras de tábuas dispostas como assento e uma lona cobrindo a carroceria, e iriam para Juazeiro do Norte, terra do Padre Cícero, o maior representante da devoção popular do Brasil. Queriam saber se eu gostaria de ir com eles. Na verdade, insistiam para que eu fosse. Não, eu não fui. Não colocaria minha vida em risco num transporte tão precário, cercada de romeiros cantando suas ladainhas por cerca de �65 quilômetros. Desejei-lhes boa viagem, invejando a grande aventura que os dois rapazes iriam empreender.

Fotos da série Irredentos, que retrata a fé no interior do Brasil | imagens: Christian Cravo

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Dias depois eles voltaram, rosto avermelhado do sol, uma história de vida para contar. Um deles me disse: “Você só conhece uma pessoa depois de viajar com ela”. E me falou sobre os milhares de pessoas em torno da estátua do padre, as crianças vestidas de anjo, as mulheres e os homens de túnica azul que profetizavam o fim dos tempos. Contou também do encontro que teve com um velho no santo sepulcro e sobre o que ele falou: “Abaixo de Nosso Senhor Jesus Cristo, só meu padim padre Cícero Romão Batista”. Disse ainda do grande milagre que para uns, seguramente, é a hóstia transformada em sangue na boca da beata Maria Araújo, mas que para ele, meu amigo, é a própria cidade de Juazeiro do Norte, tão próspera e vibrante em suas cores, mais do que qualquer cidade do interior nordestino que ele já tivesse visto.

Continuei a invejar a coragem dos dois, a coragem ou talvez a fé que eu não tivera. A lamentar a oportunidade perdida. Ao andar pelos bairros mais pobres de minha cidade, a curiosidade sempre puxava meu olhar para aquelas paredes repletas de santos em gravuras coloridas, às vezes emolduradas, às vezes coladas num papelão com um barbante ou fita tomando o lugar do gancho de sustentação. Não era raro que, quanto mais pobre a habitação, mais vistosa e colorida a parede da sala de visitas. Voyeur da devoção dos outros, eu me perguntava que fé seria essa que arrastava multidões para o túmulo de um padre banido da Igreja ou, simplesmente, fazia alguém dedicar parte da vida, ou de seu dia, a pregar imagens de santos nas paredes de uma casa (ou de uma vida?) em ruínas. Nunca entendi bem os mistérios da fé, embora eles sempre me tenham fascinado, voyeur da devoção dos outros que sou, torno a repetir.

Fiéis no Santuário de Nossa Senhora Aparecida, em São Paulo | imagens: José Bassit

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Sábia simplicidade

Anos depois daquela tarde, numa véspera de Dia de Finados, fui escalada para fazer uma reportagem num dos grandes cemitérios da cidade, conhecido por abrigar o túmulo de um desses jovens santos não-canônicos. O tema da reportagem não era esse, mas, sim, os preparativos para a festa, as providências que estavam sendo tomadas pela administração, as condições gerais do espaço. Nada muito interessante, informação de hoje para embrulhar o peixe de amanhã. Mas não resisti ao apelo lúdico de um túmulo cor-de-rosa, cercado por uma grade branca que o fazia parecer um berço. Três bonecas, algumas chupetas, pequenas casas de madeira, caixas de balas, envelopes enfeitados, tudo depositado naquela espécie de altar. As mais belas oferendas que eu já vira em toda a minha vida.

Poderia ser o túmulo da Menina sem Nome, do Recife. Ou da menina Lourdinha, da cidade de Bocaina, em São Paulo. Ou de Antoninho da Rocha Marmo, na capital paulista. Ou de Nina Arueira, de Campos de Goytacazes, no Rio de Janeiro. Não importa o lugar. Não importa a identidade do santo. Ou sua filiação. Importa mesmo é que aquelas delicadas e efêmeras provas de fé foram suficientemente eloqüentes, suficientemente poderosas. E também revolucionárias para meu olhar curioso e – por que não? – incrédulo. Elas eram, ou são (porque se renovam a cada dia, seja ele dia santo ou não) a prova de que a fé não se amarra a qualquer lei, seja das igrejas e das religiões, seja da lógica ou do bom senso. É um fenômeno natural, quase uma combustão espontânea, por assim dizer. Ninguém sabe quando surge, suas motivações, seus objetivos gerais. Sabe-se que existe e pronto. Tanto faz se seu objeto é uma jovem assassinada pelo noivo ciumento nos confins do Brasil ou o Rei Lagarto, Jim Morrison, enterrado em Père Lachaise, em Paris.

Série Morro de Fé mostra romaria ao Morro da Conceição, no Recife | imagens: Beto Figueiroa

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O povo em sua sábia simplicidade ensina que a fé é uma graça perene e que o Sagrado, sim, o Sagrado, está em tudo o que nos rodeia. Nas multidões que vão a Aparecida, no “pixote de Além Tejo” que teve a visão restituída e do qual fala Bruno Tolentino em seu impressionante poema Ao Divino Assassino, nas muitas, inúmeras, incontáveis mãos que se sustentam no Círio de Nazaré. O povo, essa entidade quase mística da qual falamos como se não fôssemos parte dele, conhece os caminhos mais curtos para o coração do Divino, mantém relações de intimidade com Deus, seus santos e anjos de todos os credos, de todas as raças.

Voltando ao episódio do cemitério, antes que eu me afastasse do túmulo, uma senhora apareceu. Cumprimentou-me em silêncio reverente. Deve ter imaginado que eu estava rezando. A cabeça totalmente branca, um xale preto sobre os ombros, um pacotinho nas mãos envolto em papel de embrulho, amarrado com fita vermelha. Ajoelhou-se. Eu fiz um sinal da cruz atrapalhado e fui embora pensando na matéria por escrever, na redação e seus ruídos cotidianos e na fé simbolizada naquele embrulho misterioso.

Hoje, outros anos passados, o que deveria ser um dia muito quente de verão amanheceu nublado. Mas isso não altera o brinquedo de vai-e-vem das pessoas, todas apressadas e ignorando a crônica que eu tenho por escrever. Então foi aí que lembrei da fé que eu não tive um dia e daquela que ganhei, anos depois. Logo, parafraseando Rubem Braga, voltarei “à minha paz, e ao meu uísque”. Mas a fé, essa fonte que nunca seca, essa fé que remove montanhas nas procissões e peregrinações, que assombrosamente se encontra na pílula de papel de Frei Galvão e nas ondas floridas de Iemanjá, essa fé de algum modo está comigo. E isso é tudo.

Micheliny Verunschk, escritora, mantém o blog Ovelha Pop [www.ovelhapop.blogspot.com].

Esta fotorreportagem continua na edição on-line da revista, com imagens de outros fotógrafos.

Romeiros em Juazeiro do Norte, Ceará | imagens: José Frota

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O cético e a ciberliberdade

Por Marco Aurélio Fiochi e Mariana Lacerda

Paraibano de Taperoá, Silvio Meira seria engenheiro eletrônico se não tivesse se deparado, ainda estudante, com um computador. Era 1973 e ele tinha 18 anos quando viu, no fato de poder programar uma máquina, a possibilidade de criar ferramentas que facilitassem o cotidiano das pessoas, proporcionando mais qualidade de vida a todos. Um dos responsáveis por fazer do Recife, cidade que escolheu para viver, importante pólo nacional de conhecimento em tecnologia da informação é professor de engenharia de software na Universidade Federal de Pernambuco e autor de duas centenas de textos sobre tecnologia e seu impacto na sociedade, que o tornaram referência no assunto. Nesta entrevista, Meira define-se como cético, embora creia que mais valem os caminhos e os processos trilhados do que, necessariamente, os resultados alcançados. “Acredito na capacidade dos seres humanos de, em conjunto, mudarem seus destinos inarredáveis. Não concebo que alguém esteja fadado a alguma coisa, mesmo que sejam suas crenças.”

entrevista

Quais são suas crenças? Em que acredi-tou que se tornou realidade?

Sou ateu absolutamente convicto, um cético praticante que sempre duvida das coisas. A maior parte dos projetos em que estive envolvido resultou de um caminho que segui. Os caminhos são parcialmente definidos pelo que se vai fazer, mas tam-bém influenciados pelo contexto ao re-dor. O ponto de chegada não é, necessa-riamente, o lugar em que se acreditou no princípio. O mais importante é aproveitar caminhos e gerar resultados.

Você não crê em um objetivo formatado, mas, sim, na construção de um caminho, um processo?

Trabalho e vivo dentro de um processo que poderia ser chamado de emergência. Não acredito em destino, não sou do tipo que planeja que daqui a três anos terá de-terminado cargo ou realizará tal projeto. Acredito muito mais em processos, cami-nhos, estágios do que em destinos e pon-tos de chegada.

O engenheiro de software Silvio Meira é um dos responsáveis por tornar Recife um pólo da tecnologia da informação | imagem: Cia de Foto

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A discussão sobre o conceito de emergên-cia considera que a combinação de regras simples faz surgir situações complexas...

Em parte é isso. Mas pode-se ter sua própria emergência. Não é necessário que haja fato-res externos. De repente, ao fazer algo, é pos-sível descobrir que se está construindo um caminho para chegar a algum fim. A noção de emergência, do ponto de vista moder-no, do planejamento das empresas, leva em conta o mercado, a competição. A pessoa tenta definir os caminhos que vai seguir con-templando a dinâmica das interações. À me-dida que se entende o comportamento dos agentes ao redor, criam-se para si mesmo e para seus pares processos de inovação que levam a um futuro, um lugar, um conjunto de expectativas, interpretações, posições.

Você acredita em algo utópico?

Acredito na capacidade dos seres humanos de, em conjunto, mudarem seus destinos inarredáveis. Não concebo que alguém esteja fadado a alguma coisa, mesmo que sejam suas crenças. Nunca tive planos para fazer o que consegui fazer e participar das coisas de que participei. Muitas delas che-garam e eu as aceitei devido à minha crença na necessidade dos seres humanos de es-tarem abertos às opiniões dos outros e às oportunidades que aparecem. Talvez a coi-sa que eu mais tenha feito seja olhar para a idéia do outro e pensar que ela é muito melhor do que a minha. Então, desejo co-laborar para a feitura daquela idéia. Nunca carreguei qualquer idéia na mão em que saísse dizendo por aí que acredito naquilo e que aquilo vai acontecer de qualquer jeito.

Nesse sentido de escutar o outro, o que estamos ganhando com o fato de, cada vez mais, vivermos em rede, numa so-ciedade da informação? O que perde e o que ganha quem está na rede?

Se olharmos para a história, veremos que sempre se viveu em redes. Os seres huma-

nos são gregários por natureza. O que aconteceu é que a pessoa deixou de

viver em seu grupo geografica-mente conexo, que foi

estendido por um mecanismo de dessincronização de sua capa-cidade de comunicação. Se pen-sarmos antropologicamente, os gru-pos humanos só podiam se comunicar com eles próprios. Como não tinham o domínio da escrita, que é a codificação da informação que permite que ela seja deixa-da para trás ou levada para a frente, para o futuro e para outras geografias, ficavam pa-rados, fechados entre eles. O que vem acon-tecendo na história da humanidade é que, à medida que começamos a codificar o que pensamos, a criar a capacidade de transferir isso no espaço e no tempo, ampliamos as redes. Um grupo passou a ser composto de muitos autores, vários dos quais não são hu-manos. Isso é parte de um processo iniciado há milhares de anos. O Orkut não aconteceu do zero, mas, sim, como conseqüência des-se processo. Carrego um twitter [servidor que possibilita o envio de textos via SMS, e-mail e outras formas] em meu celular, que me permite saber, por exemplo, o que meus alu-nos estão pesquisando. Posso interagir com eles de qualquer lugar onde esteja. Quando fazemos isso, eliminamos a noção de espaço e de tempo. No passado, eu só podia me reunir com meus alunos na universidade em que en-sino. A rede virtual ampliou as oportunidades de contato em uma escala nunca vivenciada na história da humanidade. Ela redesenhou o processo de formação de comunidades. As pessoas que não participam dessa construção coletiva, que inclui caminhos e crenças, estão ficando para trás.

Você acredita, contudo, que quem está na rede pode estar perdendo algo?

Absolutamente nada. Viajo muito e “carrego” minhas duas filhas em meu telefone celular e em meu computador. Minha mulher está comigo no Google Talk e no Skipe. Deixo recado para meu filho no Orkut. Não tenho uma visão dramática da tecnologia. Existem pessoas surpresas com o avanço tecnológi-co. São do tipo de gente que também foi surpreendida, em outros tempos, pela cria-ção da alavanca, da roda, pelo domínio do fogo e pela máquina a vapor. Sempre existi-ram pessoas que olharam para a tecnologia

c o m o se o mundo esti-

vesse acabando. Mas o ser humano é instintivamente tecno-

lógico. As ferramentas são parte do processo de intermediação entre o ser

vivo e o ambiente ao redor. Não conse-guimos apreender o ambiente em sua amplitude sem o auxílio delas. As primeiras experiências com máquinas fotográficas foram tratadas quase da perspectiva do exorcismo. Mas, hoje, a fotografia está ab-solutamente absorvida pela humanidade, a ponto de ser inconcebível um telefone celular sem câmera. Conheço várias pesso-as que por muito tempo disseram “o celu-lar vai destruir minha vida, porque vão me achar sempre onde eu estiver”. É muita pe-tulância de alguém não querer usar celular por achar que terá uma qualidade de vida pior, já que ligarão para ele. É ter um grau de auto-suficiência enorme. Eu olho para outro formato. No Brasil, há �48 milhões de celulares funcionando. Isso significa que estamos usufruindo uma qualidade de vida muito melhor do que a que se tinha em qualquer época de nossa história.

Mas temos muito mais informação para processar...

Minha tese é que isso vai aumentar ainda mais. Quando for possível a todos agregar aos aparelhos a rede social e o e-mail, estaremos muito melhor do que estamos hoje. Teremos ainda mais informação para processar? Sim! Então se apoderem dos instrumentos que permitem que elas sejam filtradas. Agre-guem, referenciem, salvem as ferramentas de busca, caso queiram se tornar profissio-nais competentes e que entendam o mundo informacional conectado em rede que está ao redor. No futuro próximo, será inconcebí-vel não saber manipular um aparelho celular, uma máquina fotográfica, o MySpace, o Goo-gle, o IM [recurso de comunicação executável por programas de mensagens instantâneas], e assim por diante. Porque essas ferramentas vão fazer parte da humanidade.

O que dizer da manutenção das tradi-ções locais considerando que mundo é uma “aldeia global”?

A expressão artística e cultural local que quiser sobreviver terá de se projetar global-mente. A cultura local que não se refletir no espelho da internet, para afirmar que é rele-vante globalmente, desaparecerá. Porque se os mais jovens – que são espelhados nessa máquina de produção de significados que é a internet – não virem nela o passado e o futuro de qualquer manifestação de cultura vão achá-la irrelevante. Participei intensa-mente de um processo interessante na ca-pital pernambucana. O grupo Balé Popular do Recife [criado como parte do Movimen-to Armorial para resgate das danças e dos ritmos regionais] se deu conta de que para existir seria necessário projetar a cultura do estado no mundo. Esse grupo participou do processo de construção da noção local de que o maracatu é algo que faz sentido. Pos-teriormente, Chico Science percebeu que podia usar o maracatu como base para seus trabalhos musicais. Resultado: nunca se to-cou tanto maracatu como hoje. As pessoas que passaram a apreciar esse ritmo não têm necessariamente ligação com terreiros de candomblé, mas se interessaram porque fizeram um passeio pelo passado dessa ma-nifestação cultural guiadas pela linguagem contemporânea de Chico Science. Para ser sustentável localmente tem-se de ser per-ceptível globalmente.

Você acredita que obras de arte e livros se tornarão cada vez mais imateriais?

Cinco dos dez livros mais vendidos no Ja-pão em �007 foram feitos para celulares. O problema não é ser imaterial ou não; a ques-tão é como a arte irá usar as mídias ao seu dispor. Por que no passado tão pouca gente lia e escrevia? Porque a infra-estrutura para isso era cara demais. Os tabletes de barro na Mesopotâmia [suporte onde povos an-tigos escreviam] eram difíceis de ser trans-portados. Quando passamos a contar com o papel e as prensas automáticas, vimos uma explosão na literatura. Atualmente, posso pegar um PDF de �00 páginas, uma tese de alguém que está na Filadélfia, por

exemplo, e folheá-la na internet. Posso fazer uma leitura rápida desse mate-

rial e concluir que seu conteú-do não me interessa.

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Isso a custo zero. No passado, eu tinha de mandar buscar aquele trabalho, que levaria meses para chegar, e então teria, depois de dispender muito esforço, tempo e dinheiro, a mesma conclusão: ele não tem nenhum valor para mim. Ou seja, quando se muda o suporte, é possível fazer coisas que tenham dinâmica e flexibilidade maiores a um custo muito menor.

Você acredita que seja possível criar ci-dades digitais no Brasil?

As cidades digitais serão uma realidade em todos os lugares do mundo. No Brasil, é uma questão de tempo. Todos precisam estar conectados à rede com no mínimo �0 MB [megabytes] de capacidade por segun-do, em casa. Com menos do que isso, esta-remos usando a internet como um cidadão de segunda classe. Pouquíssimos brasileiros estão conectados a �0 MB por segundo. Essa história de que somos os grandes usu-ários da rede, com mais de �7 horas per ca-pita por mês, deve-se ao fato de que a per-formance de nossa internet é ruim. Seria o equivalente a dizer que os paulistanos gos-tam muito de andar de automóvel porque a média de horas que ficam no trânsito é de

cinco por dia. Se o trânsito da cidade fos-se bom, duvido que existisse uma pes-

soa com vocação para passar esse tempo todo em um carro.

O software livre pode ajudar a democra-tizar o acesso à informação?

Acho que o embate entre software aberto e fechado foi vencido por um negócio cha-mado non-software. Quando se usa o Gmail, por exemplo, pouco importa sua natureza, uma vez que é um serviço. Recentemente, a Microsoft anunciou que vai oferecer o Office também dessa forma. Não interessa o que ele será. A discussão é relevante do ponto de vista da educação, pois o programa aberto é um excelente meio para ensinar esse tipo de aplicativo. O assunto perde cada vez mais relevância porque o software foi para a rede, está sendo provido a partir dela como servi-ço e plataforma.

Como você vê o fato de as pessoas par-ticiparem da construção de um softwa-re, uma vez que ele tem uma plataforma aberta?

Uma coisa é passar o sentimento da poesia. Outra é poder observar a poesia escrita. Daí se pode pensar: eu não gosto dessa frase, vou trocá-la. Para trocá-la, o autor tem de ter licenciado o material para eu mexer nele, senão ela é uma obra artística intocável. O mesmo ocorre com um programa de com-putador. Se posso ver e mexer, isso é um ar-tefato nobre de conhecimento. Agora, mes-mo com a possibilidade de ver e mexer, não

significa que se deva fazer isso. A poesia, por exemplo, poderá perder seu sentido. Não é todo mundo que deve e pode, e pior, que sabe fazê-la. Existe uma ilusão de que com o software livre o mundo melhorará, mas ele pode fazer o mundo piorar também. Se não tivermos autonomia intelectual e compe-tência para mexer com eles, é melhor não fazê-lo. Porque se perdermos essa compe-tência, seja porque nos desinteressamos seja porque outros que trabalhavam com ela desistiram, então o que fica é um grande problema para quem der prosseguimento a isso. Não se trata de um libelo contra o software livre. Por exemplo, se alguém qui-ser fazer modificações em seu próprio carro é bom saber que elas terão de ser arcadas por quem fez e não mais pela fábrica, que em tese tem a competência de mexer no automóvel. Isso vale para avião, eletrodo-méstico e para software também. Este é um artefato tecnológico complexo que tem de ser tratado como tal. Contudo, é um supe-rambiente de aprendizado.

Em que momento você passou a se inte-ressar por tecnologia da informação?

Em �97�, quando entrei no ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica]. Lá, havia um computador IBM em que era possível fazer programação com cartões perfurados. Ou seja, era uma máquina em que se podia mudar a função desde que houvesse um propósito. Achei aquilo fantástico, e foi um momento de redefinição da minha vida.

Porque eu ia ser engenheiro eletrônico, mas na hora em que entendi a função daquele negócio não tive a menor dúvida de que iria passar o resto da vida envolvido com computadores. Uma das razões pelas quais continuo até hoje fazendo programação é porque não me sinto trabalhando. Como trabalho fazendo software, isso para mim sempre se pareceu com algo que atende a determinado conjunto estético e a regras executáveis por máquinas que não pensam, mas que têm sua serventia na construção de mundos virtuais. Quando se informatiza uma empresa, na verdade se está virtualizan-do aquele local em software e fazendo que seu mundo real passe a existir num sistema. Existem sistemas que dão conta do mundo real, fazem contabilidade, cuidam da folha de ponto, por exemplo. Mas o processo de construir mundos virtuais, entender para que e como eles servem, como podem in-fluir na vida e na performance das pessoas e das instituições para mim sempre foi o maior barato, e mudou minha vida na hora em que percebi o que era possível fazer com uma ferramenta como o computador.

Em quais projetos você está envolvido no momento e no que acredita para o futuro?

Se tenho projetos, eles incluem ter menos crenças, ouvir mais as pessoas, dar menos minha opinião e ter mais tempo para cola-borar com as idéias dos outros.

Meira: “Existe uma ilusão de que com o software livre o mundo melhorará” | imagem: Cia de Foto

“Se tenho projetos, eles incluem ter menos crenças”, diz Meira | imagem: Cia de Foto

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A solidariedade acima do dogmaO padre que modernizou a liturgia em uma igreja espanhola ameaçada de ser fechada pelo Vaticano

perfil

Após a missa, costumeiramente, comem e bebem juntos. É quando aumenta a audi-ência. Reúnem-se mulheres do Coletivo de Mães contra as Drogas; alunos e professores da Escola sobre Marginalização; participan-tes da organização não-governamental Tra-peiros de Emaús; advogados que prestam assessoria jurídica gratuita aos necessitados que chegam ao local; e interessados no tra-balho assistencial da Cañada Real Galiana – uma das maiores concentrações de favelas da Europa. Outros, ainda, são atraídos pelas notícias, interessados em contribuir, ou ape-nas em busca da refeição.

Baeza lembra que a resistência do clero à igreja durou oito meses, em que o arcebis-po não respondia aos pedidos de entrevista dos padres nem dava declarações sobre o assunto. Nesse período, a igreja criou um site [www.sancarlosborromeo.org], reuniu assinaturas contra a sanção e celebrou mis-sas para centenas de pessoas que, espon-taneamente, procuravam-na. Receberam o apoio de católicos de diversas partes do país, de vizinhos do bairro e de pessoas ilustres, como atores, políticos e o teólogo catarinense Leonardo Boff, símbolo interna-cional da Teologia da Libertação, que visitou a San Carlos Borromeo em junho de �007.

O desfecho

No dia do padroeiro da igreja, 4 de novem-bro de �007, o arcebispo finalmente cha-mou os padres para jantar. “Ele nos comuni-cou que decidira que a paróquia passaria a ser um centro pastoral, o que significa que nossa área de atuação deixaria de estar res-trita aos limites geográficos do bairro. Pediu que cuidássemos mais da liturgia. Apenas isso”, narra Baeza.

Depois do encontro, seguiram a determi-nação de mudar o nome de paróquia para centro social. A liturgia, no entanto, não foi alterada, e tiveram, até janeiro de �008, a casa cheia. “Cresceram muito a demanda e a ajuda. As pessoas pensaram que tínhamos varinhas mágicas”, comenta.

Passado um ano do episódio, Baeza observa que o trabalho continua e que as celebra-ções voltaram à freqüência normal, de 60 a 70 pessoas. O trabalho social se solidificou, os apoios foram mantidos em sua maioria, e os canais abertos ainda são usados.

O padre ressalta o diálogo com a mídia, que passou a ser ferramenta para expor os dra-mas sociais que permeiam o dia-a-dia dos sacerdotes e da comunidade. São casos de truculência policial, injustiças contra minorias, violência do-méstica, irregularidades.

“Mas dirá alguém: Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me a tua fé sem as tuas obras, e eu te

mostrarei a minha fé pelas minhas obras.”Tiago �.�8

Por Carlos Costa, de Madri

Olhos vivos, fala segura, barba há semanas sem aparo, roupas simples; esperando a hora de seguir as atividades diárias na periferia de sua Madri natal, o padre Javier Baeza, 4� anos, responde à indagação: o que é fé?

“Fé é não ter medo. Quando sentir a vertigem do medo, não se deixar paralisar. Seguir.” Respira fundo e completa o pensamento, parafraseando o apóstolo Tiago: “Mais importante que a fé são os resultados da fé”.

Baeza é o mais novo dos três clérigos que comandam o Centro Pastoral San Carlos Borromeo, na localidade de Entrevías, bairro de Vallecas, na capital espanhola. Com os colegas Enrique de Castro, 65 anos, e Pepe Días, 6�, fez a fé católica voltar a aparecer no noticiário do país e deu fôlego novo à secular religião, modernizando a liturgia das celebrações e realizando íntegro trabalho social junto de grupos marginalizados.

Com ecos da Teologia da Libertação e constantes associações aos movimentos de esquerda – o que rendeu ao templo o codinome de Igreja Vermelha –, seu trabalho é alvo de críticas de religiosos tradicionais. Todavia segue sem se deixar paralisar.

A gênese da crise

Em abril de �007, o cardeal-arcebispo de Madri, Antonio María Rouco Varela, determinou que a Igreja de San Carlos Borromeo encerrasse as atividades litúrgicas – missas e celebrações – e passasse a ser um centro social subordinado à confederação das entidades de ações de caridade da Igreja Católica na Espanha, a Cáritas. A justificativa era que a liturgia e a catequese da paróquia pecavam contra o modelo clássico e que o templo havia sido profanado por festas pagãs.

Na igreja, que existe há �0 anos, os sacerdotes não usavam (nem usam) batina. No lugar de hóstias, a eucaristia era (e ainda é) celebrada com o que ofertam os fiéis – pães caseiros, bolos, doces. Mais: fuma-se no templo e as músicas cantadas nas celebrações são populares, de Mercedes Sosa a Ricky Martin. Não há altar, nem santos piedosos mirando os fiéis, e o sermão é uma conversa, em que o padre conclama os presentes, muitas vezes pelo nome e sentados ao seu lado, a dar opinião, contar histórias. Gente comum, suas falas simples.

Uma eucaristia diferente: em vez de hóstias, bolos e pães caseiros | imagem: Luana Fischer

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A vertigem e a ação

Em março de �008, o Centro Pastoral de San Carlos Borromeo voltou a ser notícia ao au-xiliar 60 bolivianos despejados em uma das invasões à Cañada Real Galiana. Eram famí-lias de imigrantes ilegais expulsas de uma das áreas mais miseráveis de uma Espanha que não consta em guias turísticos.

A Cañada, próxima a Vallecas, é uma área pú-blica de ocupação ilegal desde a década de �960. Hoje, oculta em meio a montes, lixões e auto-estradas e ignorada pelo poder públi-co, é habitada por, estima-se, 40 mil pessoas e local de intenso tráfico de drogas.

Os bolivianos não tinham para onde ir e fo-ram morar no templo do centro pastoral.

“Estávamos em obra. Nessa hora, senti a vertigem, o medo. Não sabia o que

poderia acontecer”, conta o padre, e lembra-se de um sermão

passado, em

que comentou sobre o medo. Durante essa pregação, os fiéis contavam suas experiên-cias, e Baeza ouvia, esperando apenas a hora de mostrar que eles mesmos tinham a res-posta para seus problemas.

Medo se combate com ação. E ele agiu, bus-cou conhecer os bolivianos. Com os mem-bros da comunidade, conversou, refletiu, encontrou caminhos para integrá-los em abrigos oficiais. Resolveram a questão en-frentando o medo, e depois de cinco meses estavam todos alojados em locais dignos e tocando a vida.

Os clérigos, em suas residências, também têm a porta aberta, comenta Baeza. Moran-do em casas separadas, eles abrigam pessoas em situação similar à dos bolivianos. “Não há número certo nem faixa etária. São ex-presi-diários, imigrantes, pessoas com problemas em geral”, resume.

Questionado sobre as regras da moradia, diz seguir o mesmo modelo daquele no qual foi criado, em que era o irmão mais velho e único homem entre os cinco filhos de um comerciante e uma dona de casa, espanhóis e católicos. “Íamos à missa aos domingos, menos na primavera, quando meu pai pre-feria passear no campo”, recorda.

Os hóspedes, diz Baeza, são na maior parte de origem marroquina – nacionalidade líder na imigração ilegal na Espanha. Dessa forma, a cultura e a religião muçulmana foram en-trando na pauta do centro pastoral.

Crenças agregadas

No templo, os padres celebram festas como o Ramadã. Nas atividades da igreja, organi-zaram um curso sobre islamismo e cristianis-mo, ministrado pelo teólogo espanhol Juan José Tamayo, vinculado, como Boff, à Teolo-gia da Libertação.

O sacer-dote afirma que essa corrente ideológica não é a única referência para a igreja de Entrevías. Ele conhece bem o trabalho de Boff e cita outros ícones do movimen-to no Brasil, como Frei Betto, dom Hélder Câmara e dom Pedro Casaldáliga, espanhol há 40 anos morando no Brasil. “Há também outras teologias que nos inspiram, como a da África, que, como tudo o que ocorre na-quele continente, é quase ignorada.”

Para �009 e o futuro, Baeza vaticina: ”Va-mos seguir com o trabalho, ter uma igre-ja, conforme minha avó dizia, como Deus manda”. E esse Deus, define, “não é um Deus todo-poderoso, mas, sim, um Deus carinhoso. Não o Senhor que vem para julgar. Mas o Deus que vem para alentar”. E assim a Igreja Vermelha de San Carlos Borromeo espalha sua fé aos marginaliza-dos do Velho Mundo.

O padre Javier Baeza: em vez do tradicional sermão, uma conversa informal | imagem: Luana Fischer

A fachada do Centro Pastoral San Carlos Borromeo, em Madri | imagem: Luana Fischer

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O que em outros tempos se acreditava ser melancolia hoje é entendido como algo mais grave | imagem: Cia de Foto

A dor que deveras senteQuando a falta de esperança não é apenas fruto de melancolia

Por Sergio Crusco

“Olhei aquela pintura e me senti tão triste”, diz, aos prantos, a personagem sem nome interpretada por Mia Farrow no filme A Outra (Woody Allen, �988), surpreendida por outra personagem, Marion (Gena Rowlands), numa loja de arte em Nova York. Elas observam uma reprodução da tela Hope I, de Gustav Klimt. “Oh, mas esta é uma obra tão otimista. Já vi seu original. Na verdade, seu título é Hope [Esperança]. De todas as pinturas que Klimt fez durante este período, esta é a mais positiva”, intervém Marion.

A pintura que provoca o diálogo mostra uma moça luminosa, nua e grávida, cercada por seres obscuros e fantasmagóricos ao fundo, que sugerem a morte. O que para Marion, racional e equilibrada, parece ser uma visão de esperança, de renascimento, para a interlocutora desconhecida evoca perigo e desespero. Esta, como a figura representada por Klimt, espera um bebê, porém parece ter abandonado muitas de suas crenças na vida. Tem pensamentos suicidas recorrentes e freqüenta sessões de psicanálise em um consultório bem ao lado do apartamento que Marion, professora de filosofia e escritora, aluga como posto de trabalho. Uma falha no sistema de ventilação do edifício permite que Marion escute as conversas entre o terapeuta e aquela mulher em constante aflição.

reportagemChoro involuntário

“Um dos sintomas mais evidentes da depres-são, para mim, era o choro à toa, involuntário, sem nenhum motivo aparente”, diz Márcia*, publicitária. “Sem ter nenhum pensamento triste, sem estar enfrentando qualquer pro-blema realmente sério, me vinham lágrimas, aos montes. Elas não escolhiam hora ou lu-gar – eu podia estar em casa preparando o almoço, fazendo um passeio ou na fila do banco. O medo de ter outra crise, o medo de que as pessoas me vissem tendo uma crise daquelas, gerou um círculo vicioso: passei a ter pânico de ir à rua ou mesmo de receber amigos em casa. O pânico trazia mais triste-za, mais choro, mais desânimo, como uma bola de neve que se agigantava e me levava junto. Percebi, então, que não haveria saída caso eu não procurasse ajuda médica.”

O que em outros tempos foi chamado de ataque de melancolia – ou mero fricote de mocinhas que não tinham mais o que fazer – hoje é entendido pela medicina como uma doença física, biológica, que se mistura com o estado social e relacional da pessoa e chega a causar danos sérios (culminando até no atentado à própria vida). Há fatores genéticos que podem predispor alguém a desenvolver um quadro de depressão, em-bora seus marcadores biológicos (como se diz no jargão médico) ainda não estejam to-dos detectados.

“A depressão é uma doença multifatorial”, explica o psicólogo clínico Ricardo Asensio Rodriguez, do Hospital das Clínicas de São Paulo e membro do Ambulatório de Buli-mia e Transtornos Alimentares da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “Mesmo sem o favorecimento genético, há possibilidade de desenvolvê-la. Está rela-cionada à forma como a pessoa enfrenta os eventos ‘estressogênicos’, à maneira como interpretamos e nos relacionamos com os acontecimentos do dia-a-dia. O depressivo tende a ‘catastrofizar’ esses eventos, a não encará-los de maneira funcional, prática.”

Óleo sobre tela Hope I (�90�), de Gustav Klimt | imagem: Creative Commons

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Luto, insatisfação profissional, perdas finan-ceiras, problemas nos relacionamentos amo-rosos, estresse acumulado – dependendo do abalo e da sensação de desamparo cau-sados por esses fatores, o funcionamento do cérebro pode ser afetado. Os neurotransmis-sores (serotonina, noradrenalina, dopamina e outros), responsáveis pela sensação de bem-estar e pela boa saúde mental, deixam de cumprir suas funções cotidianas. Daí o colapso. Com ele, a descrença.

Prejuízos funcionais

“Quem nunca teve depressão de verdade não consegue entender o que é enfrentar uma crise dessas. É normal acharem que é drama, exagero. Tive de me afastar do tra-balho por três meses, durante uma crise pesada, e a volta não foi menos traumática. Olhavam-me como a louca, a desequilibra-da, a frágil, a que dependia de remédios pe-sados”, conta Fátima*, jornalista. “Não resisti à pressão – estava ainda, de fato, muito fra-gilizada – e talvez superestimasse os cochi-chos e os olhares dos colegas. O resultado é que tive de me afastar de novo daquele ambiente, do qual acabei me desligando definitivamente. Procurei novo tratamento, este mais eficaz, e graças a ele pude voltar ao mercado de trabalho e ao convívio tran-qüilo com família e amigos.”

Durante suas crises mais agudas, depois de uma separação amorosa inesperada, Fá-tima perdeu a confiança em si mesma, em sua inteligência, em seus atrativos, em sua capacidade de resolver proble-mas e questões cotidianas elementares. Também foram juntos a libido, o apetite e o sono. É um quadro típico (embora te-nha uma larga gama de variações de caso a caso), segundo os especialistas, que re-comendam tratamento à base de medica-mentos antidepressivos e psicoterapia.

Não há medidas exatas para quantificar a depressão. Ela será diagnosticada, principal-mente, pela falta de estímulo que o paciente possa apresentar. Um convite para um cru-zeiro no Mar Adriático, por exemplo, talvez não anime quem esteja passando por uma crise aguda – muito menos a sugestão de um picolé no parque. Vão no mesmo ba-laio de gatos as crenças de que se pode ser feliz, produtivo, de que é possível ganhar e dar afeto, ser aceito. “É o que chamamos de prejuízo funcional, quando a doença afeta o trabalho, a família, os relacionamentos”, diz a psiquiatra Natália Cruz Rufino, da Universida-de Federal de São Paulo. “Em casos graves, a medicação é necessária. Mas só medicar não adianta. É preciso que o paciente identifique as questões que o deprimem – e a terapia é muito útil nesse sentido.”

Felicidade em pílulas

Ao passo que a ciência avança no tratamen-to e na cura de males desesperadores como a depressão, cria-se popularmente a idéia de que a felicidade pode ser comprada em drágeas na esquina mais próxima – erro cor-roborado por profissionais que receitam an-tidepressivos ante qualquer manifestação de angústia do paciente. “É comum confun-dir tristeza com depressão. Estar triste não significa ser infeliz ou estar doente. Uma tristeza é superada. A depressão, ao contrá-rio, paralisa, incapacita”, diz a psicóloga clíni-ca e psicodramista Miriam Barros de Lima.

“Até atingir o auge da depressão, quando eu já não tinha mais ânimo para sair da cama, ainda imaginava que poderia resolver tudo de maneira racional, analisando sozinha meus problemas. Mas a depressão faz com que os problemas mais banais se transformem em tragédias. Sentia-me uma profissional péssi-ma, uma mãe idiota, uma mulher sem atrativo nenhum”, diz a publicitária Márcia, que seguiu a recomendação dos médicos e tratou-se com antidepressivos, psicoterapia e terapias auxiliares como acupuntura e massagens relaxantes. “A dose de remédios foi diminuí-da aos poucos pelo meu psiquiatra e tive de enfrentar meus medos, minhas idiossincra-sias, minhas manias, meus erros – e com isso também valorizar o que tenho e o que posso oferecer de bom. Tive de olhar a mim mesma de modo mais objetivo, não da maneira exa-geradamente negativa com que me via.”

O uso indiscriminado de medicamentos anti-depressivos, no entanto, alertam os profissio-nais, pode levar a um amortecimento de nos-sa capacidade de discernir sobre nós mesmos, à sensação de que a vida é sempre bela e de que tudo está sob controle (além de causar efeitos colaterais que podem prejudicar o fun-cionamento de outros órgãos do corpo). “Há uma banalização da depressão e de seu tra-tamento”, acredita a psiquiatra Natália Rufino. “As pílulas funcionam em casos específicos

de transtornos do funcionamento do cé-rebro – e devem ser usadas apenas para

esse fim, com controle. De outro modo, elas podem aliená-lo

de sua própria vida.”

O fim da história

No caso contado por Woody Allen em A Ou-tra, com base na observação da tela de Gus-tav Klimt, é clara a diferença entre os olhares – um positivo, outro depressivo – sobre a imagem. Marion conseguia ver felicidade na pintura. Sua interlocutora via ali desesperan-ça, apesar de o título da obra sugerir exata-mente o contrário. O confronto entre os dois personagens, porém, leva a mulher grávida a perceber quanto Marion, aos 50 anos, estava amortecida – alienada de si – no mundo que considerava ideal, de mestra respeitada e mulher bem-sucedida. Esse encontro e uma série de acontecimentos fazem com que a professora de filosofia reveja seu cotidiano, seu casamento, sua péssima relação com o irmão e o trauma sublimado, com racionali-dade, de um aborto feito na juventude.

No dia seguinte, a mulher grávida diz ao terapeuta (e Marion ouve a conversa pelo indiscreto vão): “Hoje conheci uma mulher que tem fingido por vários anos que tudo está bem. Mas ela tem medo dos sentimen-tos que teria pelo bebê que abortou. Isso me faz pensar em como as emoções sempre me envergonham. Fugi dos homens pois os te-mia, já que a intensidade de sua paixão me assustava. Mas não é possível guardar sen-timentos tão profundos para sempre. Não quero descobrir, ao chegar à idade dela, que minha vida foi vazia”.

Marion nunca mais vê a moça (que aban-dona a terapia e sabe-se lá para onde vai com suas lágrimas ou crenças renovadas) e toma atitudes transformadoras. Separa-se do marido que a trai, restabelece laços familiares desfeitos e descobre, em si, a mu-lher por quem um homem que ela rejeita-ra no passado foi apaixonado – e que ela sempre teve medo de ser. “Pela primeira vez na vida”, diz a personagem ao final do filme, “sinto-me em paz”.

* Os nomes foram trocados, para garantir a privacidade das entrevistadas.

A tristeza muitas vezes é confundida com a depressão | imagem: Cia de Foto

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Do inferno ao céuA vigília dos torcedores do Santa Cruz para que o time, hoje na quarta divisão, volte aos clássicos de domingo

Por Samarone Lima

As décadas de �970 e �980 não saem da memória da torcida do Santa Cruz, time nascido no meio do povo do Recife, num distante �9�4. O Mais Querido, como passou a ser conhecido, ou o Time das Multidões, por sua vocação para ser clube de massas, ganhou também a alcunha de Terror do Nordeste. Não tinha para ninguém. Por onde passava, a exemplo de seu símbolo, a cobra coral, inspirava temor nos adversários.

Naqueles anos, vestiram a camisa tricolor (preta, branca e vermelha), com suas listras verticais, craques como Nunes, Ramon, Givanildo, Fumanchu. Mais recentemente, o clube projetou nacionalmente o zagueiro Ricardo Rocha, tetracampeão do mundo, e o meio-campista Rivaldo, que levantou o penta. O Estádio do Arruda, ou Colosso, a casa do time, abriga 70 mil pessoas e é o sexto maior estádio particular do país, tendo abrigado jogos da seleção brasileira.

No currículo do time estão vários episódios de sucesso e outros tantos de fracasso. Em �976, por exemplo, uma derrota no final do jogo para o Cruzeiro o impediu de ir à final do Campeonato Brasileiro. Em �005, o Santinha, como é chamado por sua torcida, ganhou o Campeonato Pernambucano e subiu para a série A do Campeonato Brasileiro. Foi ao céu. Difícil acreditar que o mesmo clube, nos últimos três anos, embicou numa vertiginosa queda rumo ao subsolo do futebol nacional, em que as canelas e a bola sofrem maus-tratos a cada jogo. Hoje, a situação é bem diferente e o clube depende da Confederação Brasileira de Futebol para saber se conseguirá disputar a série D, se ela for criada. O inferno chegou rápido demais.

Nem o mais pessimista dos torcedores conseguiria imaginar o desastre que estava a caminho. O festival de rebaixamentos começou em �006. Com uma campanha sofrível, o time caiu para a série B. Em �007, outro vexame: a série C, com seus campos esburacados, viagens de ônibus e raríssimas aparições na mídia. Faltava ainda o fundo do poço. Ele veio em �008, quando o clube não conseguiu a classificação para o segundo turno do Campeonato Pernambucano. Pela primeira vez, desde que foi fundado, o Santa Cruz não disputou um clássico sequer contra os tradicionais rivais, Sport e Náutico.

O golpe de misericórdia veio meses depois: o time foi eliminado na segunda fase da série C, um campeonato recheado de clubes sem expressão, com pouca torcida e sem tradição no futebol brasileiro. Restava à sua imensa torcida somente lembrar os bons tempos do passado, lamentar o presente e não pensar muito no futuro.

reportagem

Afundado em dívidas e em processos na Justiça, amargando a falta de renovação de dirigentes e com a torcida cabisbaixa, o San-tinha passou a viver momentos dramáticos. Até dinheiro para manter o gerador funcio-nando acabou. Como a luz estava cortada por falta de pagamento, a escuridão do clu-be deixou de ser metáfora e virou realida-de. Na sede, só tinha luz metade do dia. Os resignados funcionários trabalhavam com salários a perder de vista. Chegaram a ficar nove meses sem receber.

Estádio do Arruda, sexta-feira, 24 de ou-tubro de 2008

São quase �6 horas, e, a julgar pela realidade do clube, o menos provável era encontrar a torcida por lá, num momento em que o San-tinha não tem sequer um time formado. No entanto, �0 homens, na faixa etária dos �0 aos 85, estão nas arquibancadas. Olham para o campo que está sem gramado. Especulam sobre o futuro daquilo tudo. Aqui também a fé não costuma falhar.

Vista da arquibancada do Arruda, em Recife | imagem: Geyson Magno

Longe dos dias de glória, torcedores viram o time amargar derrotas | imagem: Geyson Magno

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Luis Alberto Nascimento, o Lulinha,

explica que todos estão ali para acompanhar as obras de reestrutura-

ção do estádio e conversar sobre o des-tino da agremiação. Ele é presidente da

Turma da Tesoura, grupo de apaixonados pelo Santa Cruz que se encontra no mesmo local, desde �96�, para falar do mesmo as-sunto: o clube. São 45 anos de paixão cega e tesoura amolada. A maior nódoa do grupo é ter apelidado Rivaldo de Cai-Cai, na época em que o jogador ainda era franzino e não agüentava muito o tranco. “É uma mancha em nossa história”, reconhece Lulinha.

Os tesourenses são abnegados torcedores que mantêm a crença em alta. Aqui, nin-guém entrega os pontos. “A gente sabe quantos caminhões de areia já entraram, quantas viagens por dia fizeram, o tempo de cada uma”, conta Lulinha, acompanhado por homens que sabem tudo sobre o clube. Para eles, há somente uma certeza inabalá-vel: o Santa Cruz vai ser campeão estadual em �009 e depois subirá a escadinha como se não tivesse adversário pelo caminho.

“Vamos ganhar a série D em �009, a série C em �0�0, a série B em �0�� e em �0�� esta-remos de volta ao nosso lugar original, que é a série A”, explica o motorista Evaldo Gomes

de Moura, o Naná. Conhecido da torcida por ser o dono da Kombi Coral, que vai lotada de amigos a cada jogo do Santa Cruz há mais de dez anos, ele tinha acabado de passar no guichê para pagar sua mensalidade de sócio. “Essa torcida não tem explicação. Na hora mais difícil, mais sofrida, é que a gente chega junto mesmo. Se eu pudesse, estava trabalhando na obra”, explica. “Eu só não vou torcer pelo Santa se estiver doente. E muito doente”, responde, pouco se importando se o clube está na série C, D ou E.

Volta por cima

Joaquim Barbosa da Silva, conhecido como Tito, é outro torcedor que está nas arquiban-cadas, discutindo o futuro do clube. Tem 8� anos, é um senhor animado, usa o boné do Santa Cruz e, como os outros, sabe tudo do time. Garçom durante �9 anos, é sócio desde �957. Nunca atrasou uma mensalidade, por mais desgosto que tivesse das sucessivas di-retorias que levaram o Santa Cruz ao fosso. As duas filhas são sócias também. Ele sofre com a situação, mas não arreda um milímetro na crença em dias melhores. “Teve uma época que botaram o apelido no Santa de ‘farrapo humano’, de tanto que a gente apanhava. Mesmo assim, nunca deixei de pagar minhas mensalidades, ver treinos e jogos”, conta.

Tito vai rigorosamente a todos os jogos, des-de a época em que o Arruda era apenas um campo sem glamour, com arquibancadas de madeira. Foi ao primeiro com �6 anos. De lá pra cá, são 67 anos de pura paixão. “Já estamos num mar de rosas. A gente estava na escuridão.”

A frase parece um delírio, mas é fruto das mudanças internas que estão acontecendo no Santa Cruz. Diante do caos administrati-vo, eleições foram realizadas em setembro passado, e o novo presidente, Fernando Be-zerra Coelho, foi aclamado. Candidato único, ele está conseguindo apaziguar os conflitos internos e atrair novos parceiros.

Em outubro, teve início a reforma estrutu-ral do estádio. Hoje, mais de cem homens trabalham na recuperação das arquibanca-das, na iluminação e na troca das cadeiras cativas. O gramado foi inteiramente arran-cado. Tudo estará pronto até �� de janeiro de �009, para o início do Campeonato Per-nambucano. Outras obras serão tocadas,

para garantir que o Arruda seja uma das sedes da Copa de �0�4. Márcio Bitten-

court, ex-treinador do Ipatinga, aca-ba de ser contratado para mon-

tar um time competitivo.

“A glória”

É final de tarde, os operários vão encerrando o expediente. Um deles, de 40 anos, despede-se dos colegas. Está de capacete e macacão. Wellingtom Alves é Santa Cruz de corpo e alma. “Sou da casa”, explica. “Mas há alguns in-trusos aqui.” Os intrusos são os torcedores dos times rivais, que também trabalham na obra.

Morador de Água Fria, bairro recifense que fica ao lado do Arruda, Alves estava desem-pregado e via seu clube afundar em dívidas e problemas administrativos, além de agüentar as gozações dos amigos. Com os novos ven-tos políticos no Santa Cruz, as obras no está-dio começaram, e ele foi chamado por uma empresa. Tinha duas opções de trabalho. Uma delas era a reforma do Arruda. É claro que es-colheu gastar seu suor no Colosso, onde cos-tumava ver o time jogar. “Estou esperançoso. Um clube desse, com esse patrimônio, essa torcida, não podia ficar ao léu.”

Casado e pai de dois filhos de �� e �9 anos, Alves não descuidou da educação básica. Os dois rapazes são corais desde o berçá-rio. “Quem não torcer pelo Santa Cruz lá em casa é deserdado”, explica. Ele não esconde a alegria por fazer parte do grupo de operá-rios que ajuda a levantar seu clube. Quando tudo estiver pronto, ele pretende retornar, dessa vez na condição de simples torcedor. “Vai ser a glória”, diz.

Conheça o blog do Santa Cruz em: www.blogdosantinha.com

A Turma da Tesoura confere as obras no estádio: crença no Santa campeão em �009 | imagem: Geyson Magno

Funcionário trabalha na obra de reestruturação do Colosso | imagem: Geyson Magno

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Afinados como as cordas da rabecaOs Salustiano dão continuidade ao legado do pai, mestre rabequeiro, e reforçam a crença na cultura popular

Por Aline Feitosa

Até os �8 anos, a vida de Manoel Salustiano era em meio ao canavial. A pesada lida no plantio de cana-de-açúcar anunciava uma realidade duradoura ao lado de outros trabalhadores rurais da Zona da Mata Norte de Pernambuco. Durante o dia, sol escaldante na cabeça. À noite, ele se recolhia ao seu quarto no engenho Cipuá, município de Aliança, e arranhava sua velha rabeca baixinho para não atrapalhar o sono de ninguém. Costumava contar que olhava para as estrelas e que elas mostravam o caminho que deveria trilhar. Seu sonho era chegar à cidade grande e, entre prédios e avenidas, mostrar que ali, de uma safra a outra da cana, havia obtido uma riqueza que o mundo ainda não conhecia. Sua pátria e seu rumo eram as brincadeiras do povo, os versos rasgados da ciranda, o ruído destoado da rabeca, as loas do maracatu, as figuras do cavalo-marinho, o universo do mamulengo. Era tudo o que tinha. Era nisso que acreditava. E foi com esse tudo que migrou por 86 quilômetros de estrada. Partiu para Olinda, cidade vizinha e irmã da capital pernambucana.

reportagem Tímido, analfabeto, foi trabalhar em casa de família,

mesmo achando que era serviço para “cachorro de quintal”. Como de

costume, à noite, pegava na velha rabeca. Certa vez, o filho do patrão, seu Alfredo Lo-

pes, passou pela frente dos aposentos de Sa-lustiano e foi correndo dizer ao pai: “Salu faz música!”. Seu Lopes tirou do baú um violino e o entregou ao rapaz. Instrumento erudito, fino demais aos olhos do matuto. Salustiano fez sua afinação e soltou uma toada de cava-lo-marinho. O patrão disse: “No próximo fim de semana, você vai tocar no casamento de um parente meu”. Foi assim, dentro de uma igreja, “sob os olhos de Deus”, de camisa, cal-ça, meia e sapatos emprestados, que Manoel Salustiano apresentou sua arte pela primeira vez ao público da capital, em �964. Estavam abertas as primeiras portas para o homem que poucos anos depois tiraria as cores e as tradições do maracatu rural do anonimato e faria da figura do caboclo de lança símbolo da rica cultura pernambucana.

Essa história, já com quase meio século, é contada em cada detalhe pelos herdeiros de Salustiano, ou Mestre Salu, como ficou conhecido o ex-cortador de cana, ex-ca-chorro de quintal, ex-vendedor de picolé e ex-motorista. Não só essa. Mas todos os importantes trechos de vida do mestre fo-

ram relatados aos filhos, em contações diá-rias, como forma de afirmar a credibilidade que depositava na força da cultura do povo. “Pai queria passar para cada um de nós que a estrada que ele percorreu não foi lisa. Tinha muitos buracos. Não foi fácil chegar à fama”, diz Maciel Salu, o quarto filho da prole que soma �5. Sim, �5! E nascidos de dez mulhe-res diferentes. “Dei azar com as esposas, mas tive muita sorte com os filhos”, debochava o mestre, falecido em �� de agosto deste ano, aos 6� anos. Ele costumava enumerar um a um, por ordem de chegada: Manoelzi-nho, Gilson, Betânia, Maciel, Eliane, Cristiano, Cleiton, Pedro, Betânia (são duas mesmo), Imaculada, Edilene, Wellington, Mariana, Si-mara e Beatriz – as últimas com 9 e 5 anos, respectivamente.

Brincadeiras levadas a sério

Dos �5, �� filhos foram criados ao lado do pai. Não por obrigação, mas porque Salustia-no queria a união da família. Também acredi-tava que tinha algo que as mães das crianças não tinham: cultura. Esses foram princípios para conseguir erguer um alicerce seguro na construção de seu reinado. Um reinado com rei e rainha de maracatu, lanceiros, corte e música de rabeca. Isso era o que desejava: ver a cultura do povo, feita em terras cana-vieiras, brotar e se sustentar no asfalto.

Maciel Salu, um dos �5 filhos de Mestre Salu | imagem: Aline Feitosa Rabecas fabricadas pelos Salustiano | imagem: Aline Feitosa

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Hoje, todos têm suas casas no sítio de mais de � hectares comprado pelo pai. São de-mocraticamente vizinhos. O imenso ter-reno repleto de mangueiras e bananeiras fica na Cidade Tabajara, periferia de Olin-da. Lá, eles administram a Casa da Rabeca do Brasil, espaço para shows com salão cheio todos os fins de semana. É também na Tabajara que está localizado o espaço Ilumiara Zumbi, onde em �989 Mestre Salu iniciou os já tradicionais encontros de maracatus de baque solto – sempre nas segundas-feiras de Carnaval – e de cava-los-marinhos, todo dia �5 de dezembro. Se depender dos filhos e dos netos, as brin-cadeiras mantidas pela tradição oral estão garantidas por mais algumas décadas.

Na garupa, o menino Maciel

Maciel foi o primeiro dos filhos de Salustiano que viu a mãe abandonar o lar. Assim, não tinha outro jeito que não fosse montar na garupa do pai e acompanhá-lo para todo canto. Talvez, pelo trajeto de vida, seja o her-deiro com a maior proximidade do mestre, aos olhos de fora. Do lado de dentro, junto dos irmãos, comporta-se e se sente como qualquer um dos �5. Não é melhor por ser reconhecido como rabequeiro, ter fama e um dinheiro extra para reformar seu Corcel �974, apelidado de Trovão Azul.

Por isso que, na edu-cação de “seus meninos”, fazia

o tipo “linha dura”. Brincadeiras de pião, pipa, cabra-cega e bola de gude

eram terminantemente proibidas no clã Salustiano. “Papai queria que a gente visse

diversão em bordar gola de caboclo, em fa-zer fantasia de cavalo-marinho. Serviço não faltava e ele não admitia que os filhos per-dessem tempo na rua. O dia tinha que ser inteirinho dedicado à cultura. Nossa diversão era ao lado dele, no banco do cavalo-mari-nho, na brincadeira de maracatu”, lembra Imaculada, a Moca (“porque papai não sabia falar meu nome. Só me chamava de Imocu-lada”, conta ela, aos risos). “Hoje vemos que, apesar de ter sido muito rígido, ele estava certo, porque estamos aqui juntos, irmãos de verdade. Com os filhos de Salu unidos, o mestre não morre. Somos a continuidade do que ele plantou e os netos dele também es-tão aprendendo a lição.”

O cotidiano de Moca é bordar as roupas dos folgazões (como se nomeia o povo brincante da cultura popular) ao lado das irmãs Betânia e Mariana. Fazem a atividade porque gostam. Nas festas, dançam cavalo-marinho e mara-catu. Como os demais filhos de Mestre Salu, têm uma profissão, “porque na família Salus-tiano ninguém fica sem trabalhar”. Betânia é

cabeleireira e Moca agente de saúde. Mariana ainda estuda, o que o pai só teve oportunida-de de fazer depois dos �0 anos, “para saber ler placas e não se perder”. Tinha o hábito de de-clarar em entrevistas que as letras lhe deram liberdade, inclusive para pegar um ônibus sem precisar perguntar o destino a ninguém. Para ele, apenas três anos na escola bastaram para incorporar o conhecimento da leitura e da es-crita à sabedoria do viver.

Perceber os filhos alfabetizados era uma das diferenças de gerações de que Mestre Salu se orgulhava, sem tirar os olhos do futuro. Antes de falecer, deixou uma missão a eles, que re-passem aos �� netos seus ensinamentos. Ga-rantem os filhos que estão todos inseridos na cultura e dela só saem depois de terminada a vida. Manoelzinho, por exemplo, o primogêni-to, faz questão de levar as filhas às reuniões da Associação de Maracatus de Baque Solto, fun-dada por seu pai em �989 e hoje presidida por ele. Pedro Salustiano é o cabeça na administra-ção dos negócios da família, mas não deixa de lado seus ensaios como bailarino junto ao gru-po Grial, com aprendizado enraizado nos “ter-reiros das brincadeiras”. Cristiano e Wellington (o Dinda) acompanham os afazeres da família: ajudam na confecção de rabecas, desenhadas por Cleiton, ornamentam chapéus de caboclos de lança e também são muito bons de ritmo e de passos quando o assunto é festa.

Maciel segue os pas-sos de Mestre Salu, e por ele esbanja admiração. “Era um ho-mem corajoso, inteligente e, acima de tudo, generoso”, aponta as quali-dades do pai, que centralizava a missão de auxiliar parentes e amigos, mantendo todos à sua volta, dando-lhes pedaços de terra para construir casas em seu sítio, re-forçando o mérito agregador da comuni-dade Salustiano.

Mesmo com “vida feita” na cidade grande, viajante assíduo para o exterior, quatro dis-cos gravados, títulos conquistados e convi-dado a ocupar cargos públicos em gestões estaduais, Mestre Salu nunca deixou o inte-rior e suas raízes. A estrada para os municí-pios de Aliança, Nazaré da Mata e Condado era caminho permanente, onde visitava os amigos e os levava à capital para mostrar sua arte. Certamente, um embaixador da Zona da Mata, inteligente o suficiente para intermediar mundos diferentes e capaz de projetar a gente da região canavieira e sua arte mundo afora.

Manoelzinho Salu, o primogênito, que costuma levar as filhas às reuniões da Associação de Maracatus de Baque Solto | imagem: Aline Feitosa Terreiro da Casa da Rabeca | imagem: Aline Feitosa

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Astrologia, numerologia, tarô, búzios... Quem acredita nessas coisas? Muita gente. Em reportagem, profissionais que vivem de desvendar o passado, o presente e o futuro contam suas histórias e explicam suas crenças. Para o tarólogo Sérgio Padovan, também conhecido como Arhan, as pessoas buscam a divinação em uma tentativa de controlar tudo ao seu redor: “Por medo ou insegurança, o ser humano tem necessidade de saber o que acontecerá”.

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Na arquitetura e nos vitrais das igrejas, nas imagens de santos, no artesanato. Quando a arte e a religião se fundem, produtos de grande apelo popular surgem. É o caso da música gospel, que tem sua raiz na música cristã negra dos Estados Unidos e, no Brasil, identifica os trabalhos fonográficos evangélicos. Leia o perfil de Ana Beatriz de Oliveira, de �8 anos, que canta desde os 9 e lançou o primeiro CD em �008: “A minha crença é algo que me fortalece. Sem ela eu ficaria sem base para nada. Acho que todos nós devemos acreditar em algo”, afirma.

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A escritora Índigo, autora de livros como Perdendo Perninhas (Hedra, �006) e A Maldição da Moleira (Girafinha, �007) e vencedora do I Prêmio Literatura para Todos, do Ministério da Educação, escreve um conto inédito para a Continuum sobre o tema do mês: a crença.

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E não perca, na Rádio Itaú Cultural, três programas que guardam uma relação especial com o tema desta edição. A cada semana, às segundas-feiras, uma seleção de músicas mostra a crença em determinados valores próprios dos movimentos musicais tropicália, mangue beat e jovem guarda.

Retrato da imigrante espanhola Marina Meseguer, há três me

www.itaucultural.org.br/continuum

No site da Continuum, você encontra matérias exclusivas, fotos, vídeos e dicas de links sobre o assunto tratado em cada edição. Os leitores também podem participar, escrevendo textos (artigos, contos, poemas, crônicas etc.), por meio do canal Leitor-Autor. Assim, a discussão iniciada na revista impressa continua na rede. Participe!

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O filme da sua vida

Na edição passada, O cotidiano quadro a quadro, o público foi convidado, na ação História de Cinema, a enviar relatos escritos de acontecimentos reais. Na segunda etapa do concurso, o melhor texto será a base para a produção de vídeos realizados pelos leitores. O autor da história escolhida ganhará o livro Ensaios e Reflexões* – que reúne textos sobre a utilização da linguagem cinematográfica em obras de artes visuais − e os catálogos da mostra de cinema O Visível e o Invisível e da exposição Cinema Sim, em cartaz no Itaú Cultural até �� de dezembro.

O prazo para o envio dos relatos foi prorrogado: você tem até �4 de dezembro para nos contar um episódio da sua vida que pode render um filme e concorrer aos prêmios. Envie seu texto para [email protected].

Confira o regulamento completo em www.itaucultural.org.br/continuum.

* Erramos: O título do livro com ensaios sobre cinema e artes visuais é Ensaios e Reflexões, e não Ainda Cinema, como foi divulgado na edição anterior.

ON-LINE

As cartas do tarô: quem acredita? | imagem: Cia de Foto

Cena de cinema: a vida que inspira a ficção | imagem: João Pinheiro

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Dezembro e janeiro

Por Jorge Filó

Se dois mil e oito foiDaqueles de amargarDois mil e nove abençoePra nossa vida adoçar.

De trinta e um de dezembroA primeiro de janeiroDe quase nada me lembroMas gravei o ano inteiro.

Um brinquedo, se é criançaRoupas, se é adolescenteAdulto, ganha esperançaO nosso melhor presente.

Quando um ano terminaUm outro ano começaHaja planos pra meninaPro menino haja promessa.

A gente de tudo fazPra todo ano acertarMas se tudo deu pra trásA gente segue a tentar.

Esse ano que passouFoi de crise e eleiçãoAinda bem, terminouMelhores anos virão.

Se nesse ano eu erreiNo que vem vou acertarNesse eu juro que tenteiFazer tudo sem errar.

Se esse ano eu não sorriSe não dei muitas risadasAno que vem, prometiVou viver às gargalhadas.

Jorge Filó é autor do romance-cordel A Igreja do Diabo ou a Contradição Humana (Coqueiro, �004).Ilustração: Fernando Vilela

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