HMB_2004_apostila15

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Apostila do curso História da Música Brasileira Instituto de Artes da UNESP 15 O DISCO E A MÚSICA POPULAR NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX Paulo Castagna 1. Os “chorões” Nas últimas décadas do séc. XIX, quando estavam em voga as danças de salão, executadas por pequenos conjuntos instrumentais ou pelo piano em salões de dança da elite brasileira, surgiam nas grandes cidades, mas principalmente no Rio de Janeiro, conjuntos instrumentais semi-profissionais que atuavam no mercado periférico, em salões, em clubes carnavalescos e em serenatas de rua. A maior parte desses músicos eram negros e mulatos. Não eram vadios ou, como foi comum nas décadas de 20 e 30, “malandros”. Todos tinham empregos de baixo salário, geralmente como funcionários públicos, militares ou policiais, alguns atuando também como músicos em bandas. Esses grupos tocavam o mesmo tipo de música que circulava na elite - polcas, mazurcas, valsas, tangos, quadrilhas, etc., mas sem o caráter “chique” exigido nos salões refinados. Havia, entre eles, indistintamente, os que tocavam por partitura ou de ouvido, mas destacaram-se mais aqueles que conheciam a escrita musical e eram capazes de produzir arranjos. Seu instrumental era normalmente os instrumentos de madeira (flauta, clarineta, clarone), de metal (bombardino, oficleide, trombone), de cordas (violão, cavaquinho, bandolim) e de percussão (pandeiro, reco-reco). Note-se a herança das bandas nesses grupos, já que os instrumentos utilizados eram essencialmente aqueles que podiam ser tocados em pé, sendo incomuns o violoncelo, e o piano, além dos violinos, reservados à música culta. Até hoje não foi esclarecida a origem do termo “choro”, mas entre as principais hipóteses estão a derivação do nome da expressão “tocar chorado” (tocar improvisando) e de “chorar” como sinônimo de pedir, esmolar de casa em casa. Abastecendo a periferia do mercado de consumo, em “espetáculos de variedades”, nos teatros da periferia, em serenatas e festas pagas, em cinemas e bailes de classe média. Até fins da década de 1910 os chorões eram vistos com extremo preconceito, sendo largamente aceitos somente na década de 20, mas já se transformando em “orquestras típicas”, “conjuntos regionais”, conjuntos de carnaval, orquestras de cassinos, de casas “bem freqüentadas” e de gravadoras. O primeiro livro escrito sobre o fenômeno foi O choro (1934), de Alexandre Gonçalves Pinto, que incluiu dezenas de biografias de chorões que atuaram desde o final do séc. XIX. O aspecto mais interessante dos chorões está na inovação musical nas primeiras décadas do séc. XX, no âmbito popular. Tocando todos os gêneros de dança em voga, especialmente o maxixe, contribuíram, pelo caráter improvisado de suas execuções, para o surgimento de uma nova maneira de se tocar: o choro. Não se tratava propriamente de uma forma musical, mas de uma maneira de execução de polcas, maxixes, tangos e até valsas, baseada nos conjuntos de sopros e violões e na constante improvisação, fenômeno básico do choro que chegou aos nossos dias. Um traço rítmico específico dos chorões, utilizado na maioria das formas binárias (quase todas, à exceção de valsas e mazurcas) era a sincopação do acompanhamento, surgida nos tangos de

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  • Apostila do cursoHistria da Msica BrasileiraInstituto de Artes da UNESP 15O DISCO E A MSICA POPULAR NA PRIMEIRA METADE DO SCULO XX

    Paulo Castagna

    1. Os chores

    Nas ltimas dcadas do sc. XIX, quando estavam em voga as danas de salo,executadas por pequenos conjuntos instrumentais ou pelo piano em sales de dana daelite brasileira, surgiam nas grandes cidades, mas principalmente no Rio de Janeiro,conjuntos instrumentais semi-profissionais que atuavam no mercado perifrico, emsales, em clubes carnavalescos e em serenatas de rua.

    A maior parte desses msicos eram negros e mulatos. No eram vadios ou, comofoi comum nas dcadas de 20 e 30, malandros. Todos tinham empregos de baixosalrio, geralmente como funcionrios pblicos, militares ou policiais, alguns atuandotambm como msicos em bandas.

    Esses grupos tocavam o mesmo tipo de msica que circulava na elite - polcas,mazurcas, valsas, tangos, quadrilhas, etc., mas sem o carter chique exigido nossales refinados. Havia, entre eles, indistintamente, os que tocavam por partitura ou deouvido, mas destacaram-se mais aqueles que conheciam a escrita musical e eramcapazes de produzir arranjos. Seu instrumental era normalmente os instrumentos demadeira (flauta, clarineta, clarone), de metal (bombardino, oficleide, trombone), decordas (violo, cavaquinho, bandolim) e de percusso (pandeiro, reco-reco). Note-se aherana das bandas nesses grupos, j que os instrumentos utilizados eramessencialmente aqueles que podiam ser tocados em p, sendo incomuns o violoncelo, eo piano, alm dos violinos, reservados msica culta.

    At hoje no foi esclarecida a origem do termo choro, mas entre as principaishipteses esto a derivao do nome da expresso tocar chorado (tocar improvisando)e de chorar como sinnimo de pedir, esmolar de casa em casa. Abastecendo aperiferia do mercado de consumo, em espetculos de variedades, nos teatros daperiferia, em serenatas e festas pagas, em cinemas e bailes de classe mdia. At fins dadcada de 1910 os chores eram vistos com extremo preconceito, sendo largamenteaceitos somente na dcada de 20, mas j se transformando em orquestras tpicas,conjuntos regionais, conjuntos de carnaval, orquestras de cassinos, de casas bemfreqentadas e de gravadoras. O primeiro livro escrito sobre o fenmeno foi O choro(1934), de Alexandre Gonalves Pinto, que incluiu dezenas de biografias de chores queatuaram desde o final do sc. XIX.

    O aspecto mais interessante dos chores est na inovao musical nas primeirasdcadas do sc. XX, no mbito popular. Tocando todos os gneros de dana em voga,especialmente o maxixe, contriburam, pelo carter improvisado de suas execues,para o surgimento de uma nova maneira de se tocar: o choro. No se tratavapropriamente de uma forma musical, mas de uma maneira de execuo de polcas,maxixes, tangos e at valsas, baseada nos conjuntos de sopros e violes e na constanteimprovisao, fenmeno bsico do choro que chegou aos nossos dias. Um trao rtmicoespecfico dos chores, utilizado na maioria das formas binrias (quase todas, exceode valsas e mazurcas) era a sincopao do acompanhamento, surgida nos tangos de

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    Ernesto Nazar e popularizada entre os chores. Embora se tenha consagrado o chorocomo uma composio binria sincopada, resultado da fuso da polca, do tango e domaxixe, a pluralidade de formas, at a dcada de 20 era bem maior que o tipo decomposio que predominou no repertrio das orquestras regionais, posteriormenteconjuntos regionais de choro que at hoje existem nos bairros tradicionais de vriascidades brasileiras.

    Um dos ltimos grupos remanescentes dos chores foi Os Oito Batutas, dirigidopor Pixinguinha, que comeam a tocar nos sagues de cinemas em 1918. Eram todosnegros. O sucesso internacional que alcanaram a partir de 1922 foi um indcio datransformao desses grupos que, como tais, deixaram de existir, substitudos pelasorquestras tpicas ou orquestras regionais. Tais grupos, alm de formas brasileiras,passaram a cultivar tambm formas norte-americanas que comeavam a ser exportadosem massa: o principal foi o fox-trot, mas tambm foram comuns o one-step, o two-step ea valsa-boston. A maneira de execuo dos jazz-bands no somente criou do gnero emtodo o Brasil, como influenciou o repertrio e as tcnicas das orquestras tpicas dasdcadas de 30 e 40.

    A partir dos ltimas anos da dcada de 10 os ltimos chores e as primeirasorquestras regionais comearam a tocar sambas, gnero que conviveu com o choro athoje. Os choros e os sambas difundiram-se amplamente no disco e no rdio, a partir de1922, iniciando uma evoluo prpria, repleta de transformaes e inovaes.

    3. O samba

    O termo samba provavelmente derivou-se da palavra angolana semba, quesignifica umbigada, trao coreogrfico presente no batuque e no lundu de negros emulatos brasileiros, desde fins do sc. XVIII. Surgido na periferia carioca, maisespecificamente nos morros e favelas, o samba foi dana exclusiva de classes baixas,entre de negros e mulatos, como manifestao radicalmente oposta cultura da elitelocal. semelhana do choro, o samba primitivo no foi um gnero totalmentedefinido, abrigando inmeras manifestaes de origem africana mescladas acontribuies portuguesas. O surgimento do samba um processo que remonta ao finaldo perodo colonial e que iniciou ampla difuso somente a partir das concentraespopulacionais da periferia carioca no final do II Imprio. Ainda em 1819, JohannEmmanuel Pohl assistiu aos batuques de negros em Minas Gerais e Gois, deixando-nosuma descrio que apoia a suposio de uma evoluo dos batuques para o samba:1

    Todos se pem em crculo. Um homem salta para a frente e dana vontade em volta do crculo, at que segura uma mulher pela cintura, bateos joelhos violentamente contra os dela e volta ao crculo. Ento a mulherfica no crculo, dana em volta e com o mesmo movimento escolhe umhomem, que depois solta. tudo se faz ao som de uma viola e osespectadores bateram as palmas, de acordo com o compasso, repetindoum estribilho, como, por exemplo: Areia do mar! Os brasileiros gostamtanto dessa dana, que so capazes de continu-la durante toda a noite,embora com isso tanto se excitem e se fatiguem, que muitas vezes caiamexaustos e tenham de ficar doentes no dia seguinte. Desde os primeirostempos, os missionrios combateram violentamente essa dana, por serindecente. Nisso se distinguiram sobretudo os capuchinhos, de propaganda

    1 CASCUDO, Lus da Cmara. Dicionrio do folclore brasileiro. 6, Belo Horizonte, Itatiaia; So Paulo,Editora da Universidade de So Paulo, 1988. p.690 (Coleo reconquista do Brasil, 2 srie, v. 151)

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    fide, de Roma. No conseguiram, porm, aboli-la, por ser, como jdissemos, apaixonadamente apreciada por todos os habitantes.

    Sambas primitivos ainda existem em muitas regies brasileiras. Nesses sambasera comum a alternncia de um verso ou estrofe cantada (muitas vezes de improviso)por um solista, seguida por um refro coral (dos demais participantes), estrutura deorigem africana. Havia, entretanto, os sambas-corridos, sem refro. A umbigada e adisputa entre os participantes, pelo melhor improviso do verso e melhor evoluo nadana, ainda comum no batuque remanescente no interior de So Paulo devem ter sidoos principais elementos do samba primitivo, baseado no acompanhamento deinstrumentos de percusso ou simplesmente com palmas ou batuques em objetos, comocaixas e aparelhos de cozinha (da a expresso cozinha para a seo de percusso dosgrupos populares). A origem africana desse tipo de manifestao pode ser comprovadapelas observaes feitas em Luanda por Alfredo de sarmento, includas no livro Ossertes dfrica (1880):2

    Em Loanda e em vrios outros presdios e distritos, o batuque difere [...]consiste tambm o batuque num crculo formado pelos danadores, indopara o meio um preto ou uma preta que, depois de executar vrios passos,vai dar uma umbigada (a que chamam semba) na pessoa que escolhe entreas da roda, a qual vai para o meio do crculo substitu-lo

    O samba iniciava a invaso da cidade j nos ltimos anos do sc. XIX, mas somente com a gravao de Pelo telefone, em 1917, que se poderia traar a sua histriaque, entretanto, at o final da dcada de 20 ainda no foi suficientemente pesquisada, jque os autores procuram enfocar o samba a partir da dcada de 30. Pelas informaesora disponveis, o principal fenmeno que o corre com o samba nas dcadas de 10 e 20,em decorrncia de sua urbanizao semelhante ao que ocorreu com o maxixe. Semperder o carter de dana cantada, o samba urbano foi perdendo o carter de dana deroda improvisado e se transformando em dana de pares nos sales ou dana de blocosnos bailes de carnaval. Alm disso, seu canto foi sendo conformado aos padresverificados nas danas de salo ou de chores, que exigia maior variedade harmnica emeldica e utilizao de um instrumental cada vez mais rico, como o das orquestrastpicas da dcada de 20. Por isso o protesto de Caninha e Visconde de Bicoba nosamba carnavalesco Esta nega qu me d (1921), no qual cantavam: samba de morro /no samba / batucada / [...] / c na cidade / a histria diferente / s tira samba /malandro que tem patente.

    Outro fator observado na transformao do samba de morro para o sambaurbano foi o enriquecimento formal, aproximando-o das danas de salo da Bellepoque. Se, originalmente, o samba fora baseado em versos improvisados alternadospor um refro coral, o samba urbano exigia, alm de uma harmonia e um instrumentalmais ricos, tambm uma introduo e uma segunda ou at uma terceira parte, comoocorria nos tangos, valsas e polcas. Noel Rosa, no samba Quem d mais?, gravado em1932, testemunha essa diferena:

    Quem d mais?Por um samba feito nas regras da arteSem introduo e sem segunda parteS tem estribilho, nasceu no Salgueiro

    2 CASCUDO, Lus da Cmara. Dicionrio do folclore brasileiro. op. cit., p.689.

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    e exprime dois teros do Rio de Janeiro.

    Passada a primeira fase de urbanizao, aproximadamente de 1917-1930, osamba urbano entra em um novo processo evolutivo, no qual prevalecia a viso bemhumorada do quotidiano da classe mdia, a exaltao nacionalista e uma criatividadeno mais ligada s classes baixas, com os refinamentos poticos e meldicos quemarcaram as composies de Noel Rosa e Ary Barroso.

    Com a urbanizao, samba derivou-se em manifestaes mltiplas a partir dadcada de 20, como o samba-de-breque (do ingls break, em virtude da parada paraimproviso realizada pelo cantor); o samba-cano, mais lento que o samba danado ecom maior enfoque na melodia; o samba carnavalesco, mais simples, com letra ingnuae despretensiosa, por ser destinado ocasio; o samba-choro, executado sob oimproviso dos grupos regionais, o samba-enredo, destinado aos desfiles de escolas desamba, a partir de 1930, com texto alusivo ao tema do desfile; o samba-exaltao,destinado ao louvou de algum ou de alguma instituio, geralmente a ptria; o sambade gafieira, modalidade instrumental executada por orquestras ou grupos de sales dedana; o samba de partido alto, modalidade que guarda elementos originais do samba,composto e executado por conhecedores do gnero, tpico do incio do sc. XX, masressurgido a partir dos anos 40, como samba de tendncias pouco comerciais; samba dequadra ou samba de terreiro, destinado a escolas de samba, mas fora do perodocarnavalesco; sambalada, que incorporava a maneira lenta e romntica das baladasnorte-americanas da dcada de 50; sambalano (ou samba de balano) modalidade maisrefinada, surgido em conjuntos de boates cariocas e paulistas, caracterizado pelodeslocamento do acento rtmico, reconhecido como um dos precursores da bossa-nova;sambolero, samba abolerado dos anos 50 e outros.

    4. Marchas carnavalescas

    Derivadas das marchas militares, a marcha ou marchinha carnavalesca, nomeque indicava o carter ingnuo e alegre das composies, surgiu com abre alas, deChiquinha Gonzaga (1899). Penetraram as orquestras tpicas da dcada de 20 etiveram seu andamento acelerado por influncia das jazz-bands norte-americanas.Derivadas das marchinhas carnavalescas, surgiram as marchas-rancho, em fins dadcada de 10, peas eram executadas nas orquestras de ranchos carnavalescos. Asmarchas-rancho eram mais lentas e valorizavam mais o aspecto meldico, com textosmais buclicos e, s vezes, mais sentimentais. A partir de 1927 comearam a sercompostas marchas j denominadas marchas-rancho.

    5. O disco

    O norte-americano Thomas dison desenvolveu o fongrafo na dcada de 1870para ser usado exclusivamente como gravador da voz, para uso em escritrios. Oaparelho foi exibido, pela primeira vez, com enorme espanto, na Academia de Cinciasde Paris em 1878, onde os apresentadores chegaram a ser acusados de ventriloquismo.O Brasil manifestou rpido interesse pelo invento e, j em 1879, o fongrafo eraconhecido em Porto Alegre.

    dison no gostava de msica e detestava o fato de seu invento vir a ser usadopara o entretenimento, mas a histria fez com que o fongrafo rapidamentedescobrisse na msica sua principal utilizao. Em 1888 Charles Summer Tainter,mecnico de Edison criou os cilindros ocos de papelo cobertos por cera, surgindo,

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    assim, o grafofone, que permitia a rpida gravao e reproduo da voz falada oucantada. O grafofone chegou a ser usado pela famlia imperial, para gravao da voz ede solfejos em 1889, poucas semanas antes do golpe republicano que encerrariadefinitivamente a monarquia no Brasil

    O pioneiro dos aparelhos de reproduo sonora, no Brasil, foi o aventureiroalemo Fred Figner (seu nome original era Friedrich Figner), que chegado a Belm doPar em 1891 para comercializar fongrafos e cilindros com msica gravada,transferido para o Rio de Janeiro no ano seguinte, comeou a vender cilindros comgravaes de modinhas cantadas ao violo por Bahiano e pelo Cadete (ou KDT).3

    Fred Figner, em 1897, comeou a pagar Antnio da Costa Moreira (KDT) eManuel Pedro dos Santos (Bahiano) para gravarem modinhas e lundus acompanhadasao violo, para vend-los como curiosidades. Em 1902 Fred Figner comeou a gravarnos discos criados pelo alemo mile Berliner, conhecidos ento como chapas, quepossuam de um ou dois lados, que rapidamente atingiram grande vendagem.

    Os aparelhos utilizados para a reproduo sonora eram os gramofones, munidosde uma tuba para a amplificao sonora, j que somente a vibrao mecnica da agulhaproduzia o som ouvido. A gravao para esses aparelhos, at 1927, , portanto,conhecida como gravao mecnica. O processo de gravao no permitia os altosvolumes sonoros, que danificavam a matriz de cera, sendo necessrios os movimentosde aproximao e afastamento do aparelho quando se emitiam sons fracos ou fortes.Certos instrumentos, como os violinos, no produziam boa sonoridade e a msicaorquestral tinha de ser totalmente transcrita para conjuntos baseados em instrumentos desopro, como flautas e clarinetas. Esse fenmeno valorizou a utilizao de sopros,violes e cavaquinhos nos conjuntos musicais populares, o que explica a pequenautilizao das cordas tradicionais (violino, viola, violoncelo) nos conjuntos dessa poca.

    Foi somente em 1927, com o advento da gravao eltrica, que o disco teve suaprimeira grande transformao, somente superada pelo advento do 33 rotaes em 1964.As gravaes e os aparelhos eltricos, intensamente explorados pela empresa VictorTalking machine, dos EUA, difundia um novo aparelho de reproduo sonora quepouco a pouco substituiu os gramofones: as eletrolas, popularizadas com o nome devictorolas ou vitrolas (de Victor). As inovaes, na rea de gravaes sonoras, surgiram,a partir dessa poca, com uma rapidez vertiginosa, devido ao imenso mercado queconquistavam. O advento do disco causou um enorme impacto na msica ao vivo e, apartir da dcada de 20, seriam poucos os grupos que sobreviveriam sem vender suamsica em forma de produto embalado. O capitalismo havia chegado definitivamente aomundo musical. Em 1934 outra inveno revolucionria, desenvolvida pela Basf alem:a fita magntica.

    Durante a dcada de 20 o disco propagou os mais variados gneros de dana e decano, no Brasil, tanto nacionais como importados. Entre os principais esto: valsavienense, a valsa romena, a valsa-serenata, a ranchera, as toadas nordestinas e ascanes regionais, o tango argentino e o tango brasileiro, o tanguinho, a valsa Boston,a marcha, a marcha carnavalesca e a marcha-rancho, o one-step, o two-step, ocharleston, o fox-trot, o samba, o samba carnavalesco, a polca, o maxixe, o coco, ofado-maxixe, o cateret, o rag-time e a rumba.

    3 TINHORO, Jos Ramos. Msica popular - do gramofone ao rdio e tv. So Paulo: Editora tica,1981. 215 p. (Ensaios, v.69)

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    5. Msicos populares de destaque no perodo

    Catulo da Paixo Cearense (So Lus, 1866 - Rio de Janeiro, 1946). Vivendo,desde os 10 anos de idade, no serto do Cear, foi com a famlia para o Rio de Janeiroem 1880, onde seu pai se estabeleceu como relojoeiro. Conheceu, em repblicas deestudantes, msicos que compunham modinhas e danas de salo e os primeiroschores, como Viriato, Anacleto de Medeiros, Cadete e outros, aprendendo violo,instrumento que executou a vida toda, mas tocando tambm a flauta. No final da dcadade 1880, com a morte do pai, trabalhou como contnuo e estivador no Cais do Porto,porm conseguiu se matricular no colgio Teles de Menezes, onde estudou portugus,gramtica e francs, interessando-se pela traduo de poesia francesa.

    Catulo fundou um Colgio no bairro da Piedade, onde lecionava lnguas.Comeou a organizar, para o livreiro Pedro da Silva Quaresma, um repertrio de letrasde modinhas, lundus e canonetas, que foram impressas em forma de cordel e emcoletneas, com os nomes de O cantor fluminense, O cancioneiro popular e asseguintes, que possuam poesias suas: O cantor fluminense, Lira dos sales, Novoscantares, Lira brasileira, Canes da madrugada, Trovas e canes, Choros ao violo.Com suas poesias, cantava modinhas que aprendia de ouvido, sempre acompanhando-seao violo. Comps muito pouco, pois recolhia melodias j existentes, apenas compondoa letra e executando-as em festas, chegando a ser aceito pela elite carioca na dcada de30. Catulo contribuiu para a aceitao do violo nos crculos da elite, j que o mesmohavia sido banido dos meios chiques desde fins do II Imprio.

    Baiano (Manuel Pedro dos Santos). Nasceu em Santo Amaro da Purificao(BA) em 1887 e integrou, com cadete, Nozinho, Mrio Pinheiro e Eduardo das neves oprimeiro grupo profissional de cantores da Casa dison. Em 1902 Baiano j haviagravado 73 msicas para Fred Figner, proprietrio da Casa dison do Rio de Janeiro.Participou de gravaes histricas, como Caboca di Caxang (Catulo da PaixoCearense) Pelo telefone (1917), de Donga e Mauro de Almeida Era pago por msicagravada e ganhava muito pouco. Morreu pobre e esquecido.

    Pixinguinha (Alfredo da Rocha Viana, Rio de Janeiro, 1898-1973). Seuprimeiro apelido foi pizindim (menino bom, em um dialeto africano) e depoisbexiguinha, devido a uma varola que contraiu na infncia. Da mistura desses doisapelidos resultou o Pexinguinha ou Pixinguinha, como foi conhecido at o final da vida.Seu pai, Alfredo da Rocha Viana era funcionrio dos correios e tambm flautista,reunindo amigos para tocar em casa. Com o irmo Henrique aprendeu cavaquinho e jacompanhava o pai na msica de festas aos 10 anos. Entre 1910-11 iniciou-se na flautacom o pai e aprendeu msica com csar Borges Leito, bombardinista e colega derepartio de seu pai. Nesses anos gravou seus primeiros discos para a Casa Faulhaber,como integrante do conjunto Pessoal do Bloco. Suas peas eram classificadas comotangos, maxixes, polcas e lundus, embora seu estilo j se enquadrasse no gnero choro.Estudou no Liceu Santa Teresa e depois no Colgio do Mosteiro de So Bento. Apsganhar do pai uma flauta importada da Europa, passou a tocar em 1911 no grupo decarnaval do rancho Filhas da Jardineira, organizado por Irineu de Almeida, tocandotambm em festas de seu bairro (Catumbi) e compondo Lata de leite, seu primeirochoro.

    No carnaval de 1912 atuava como diretor de harmonia do rancho Paladinosjaponeses. Nessa poca recebeu ateno de seu irmo China (Otvio Viana), violonistaprofissional em sales de dana da Lapa, que o introduziu na vida profissional.

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    Comeou a trabalhar na choperia La Concha, no grupo do pianista Pdua Machado,atuando posteriormente em vrios grupos na Lapa, at integrar a orquestra do cine-Teatro Rio Branco, onde eram exibidos filmes, revistas e operetas, estreando na peaChegou o Neves, em 1913. Pixinguinha, com 15 anos, destacava-se pelos improvisos efloreios flauta, que entusiasmavam a platia.

    A partir de 1914 sua carreira tomou forte impulso, quando integrou o Grupo deCaxang, organizado por Joo Pernambuco, especializado em msicas de origemnordestina que desfilava em carnavais. Em 1915 tocava tambm na sala de projees doCinema Palais e, em 1919, apresenta, com o Grupo de Caxang (que j inclua o China)o samba J digo, em resposta ao provocativo samba Quem so eles?, de Donga (1918).A epidemia de Gripe Espanhola de 1918 causou uma queda de pblico nos cinemas eIsaac Frankel, gerente do Palais, convidou Pixinguinha a organizar um conjunto para asala de espera, a fim de aumentar a freqncia no cinema. Pixinguinha organizou, ento,a partir de msicos do Grupo de Caxang, Os Oito Batutas, o conjunto de maior sucessode sua carreira e o primeiro grupo de msica popular ou de chores a fazer sucesso ea gravar no exterior. O grupo inclua voz, flauta, violes, piano, cavaquinho, pandeiro,bandola e reco-reco.

    Os Oito Batutas estrearam em abril de 1919, classificado como orquestratpica e rapidamente passaram a se exibir em festas chiques da elite carioca. Em1920 exibiram-se para os reis da Blgica e, em 1921, empregaram-se no cabar Assrio,no subsolo do Teatro Municipal, onde acompanhavam o danarino Duque e suacompanheira Gaby. foi por influncia de Duque que o milionrio Arnaldo Guinlefinanciou a viagem dos Oito Batutas a Paris em 1922, onde apresentaram-se durante seismeses no Dancing Shhrazade. Retornaram para o assrio, mas logo depois partirampara Buenos Aires, onde gravaram para a Victor argentina.

    As viagens internacionais fizeram Pixinguinha e Os Oito Batutas interessarem-sepor novos instrumentos (saxofone, clarineta e pistom) e por novas formas de dana,sobretudo o fox-trot, que o grupo passou a executar de acordo com as tcnicasobservadas nos jazz-band. Em 1926, j executando esporadicamente o saxofone, casou-se com a atriz Albertina da Rocha, da Companhia Negra de Revista, com quemexcursionou para o Prata. Em 1927 retornou Argentina com os Os Oito Batutas emnova formao, que refletia a assimilao da msica popular norte-americana: pistom,bateria, saxofone, banjo, piano e trombone.

    Em 1928, com Donga, organizou a Orquestra Tpica Pixinguinha-Donga,conjunto para as gravaes Parlophon que acompanhavam principalmente os cantoresPatrcio Teixeira e Bencio Barbosa. Nesse ano, gravou com sua nova orquestra osamba-choro Carinhoso (instrumental), com Pixinguinha ao solo de saxofone (somenteem 1937 a pea receberia letra de Joo de Barro). Pixinguinha j era identificado comomestre do choro, mas tambm gravava muitos sambas, como o Samba de nego e Ai, euqueria, gravados por Francisco Alves em 1927. Os Oito Batutas continuavam a existir,gravando na Odeon em 1928. Quando a Victor Talking Machine of Brazil foi instalada,em 1929, Pixinguinha foi escolhido como msico e arranjador exclusivo, criando aOrquestra Victor Brasileira, que se destacava na msica de carnaval. Em 1931 fundounovo conjunto, o Grupo da Velha Guarda (referncia a msicos que outrora atuaram embandas do exrcito ou da polcia), que gravou dezenas de discos pela Victor,acompanhando os cantores de sucesso da poca, como Carmen Miranda, Mrio Reis eSlvio Caldas. No ano seguinte organizou, tambm para a Victor, a Orquestra Diabos doCu, continuao do Grupo da Velha Guarda que estreou acompanhando CarmenMiranda. Em meio a todo esse sucesso e atividade, um fato em 1933 revela como era

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    difcil a vida do msico popular na poca: Pixinguinha nomeado fiscal da limpezaurbana no Rio de Janeiro...

    Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos, Rio de Janeiro, 1889-1974). Filhode um pedreiro e bombardinista e de Tia Amlia, que cantava modinhas e promoviafestas e sees de candombl. Passou a freqentar, com a me, a casa de Tia Sadata napedra do Sal, beco da Sade, onde se reuniam os baianos que fundaram, em cerca de1893 o Rancho Dois, um dos primeiros ranchos carnavalescos do Rio. Donga aprendeu,nesse ambiente, danas populares como o jongo, o afox, a dana de velhos e outras,provenientes da macumba e candombl. Iniciou-se no cavaquinho aos 14 anos, tentandoimitar o dolo Mrio Cavaquinho, mas em 1907 aprendeu violo com QuincasLaranjeiras, j iniciando a composio de modinhas. Em 1916 freqentava as reuniesde samba na casa de Tia Ciata, onde freqentemente encontrava Pixinguinha, Sinh eoutros. Foi dessas reunies que nasceu Pelo telefone, o primeiro samba carnavalescogravado. A composio originalmente iniciava-se com Pelo telefone o chefe da polciamandou-me avisar, alterado, por determinaes da gravadora ou da prpria polcia,para Pelo telefone o chefe da folia mandou-me avisar.

    Donga integrou o Grupo de Caxang desde 1914 e, a partir de 1919, Os Oitobatutas, como violonista, viajando com o grupo para a Europa em 1922. Retornou daFrana executando violo-banjo e, em 1926 integrava o Carlito Jazz, que acompanhavaa companhia francesa Bataclan, que se exibia no Rio de Janeiro. Em 1928 retornou companhai de Pixinguinha, integrando a Orquestra Tpica Pixinguinha-Donga e, em1932, os grupos Velha Guarda e Diabos do Cu.

    Cornlio Pires e a msica caipira. Nascido em Tiet (SP) em 1884, interesou-se pelos costumes do interior do Estado desde o incio do sculo. Em 1910 encenou naUniversidade Mackenzie um velrio tpico do interior paulista, apresentando cantadorespaulistas e uma palestra sobre o fenmeno. Nesse mesmo ano, lanou seu primeiro livrode versos, Musa caipira, e, em 1912, Versos. Suas palestras, a partir de 1914, passarama ser chamadas de palestras caipiras, nas quais contava anedotas, histrias do interiore imitava a pronncia caipira. Publicava, em 1916, Quem conta um conto..., logoseguido por Quem conta um conto... e outros contos. O filme O curandeiro, de AntnioCampos (1918), foi baseado em seu conto passe os vinte.

    O surgimento do personagem Jeca Tatu, no conto Urups de Monteiro Lobato,estimulou os cantores caipiras que atuavam com Cornlio Pires ou jindependentemente, a criar apresentaes tpicas, que popularizaram-se na dcada de20. Em 1922 apresentou-se com o compositor Eduardo Souto na sede da AssociaoBrasileira de Imprensa durante as festividades do Centenrio da Independncia, ondetambm se apresentava a nova dupla caipira, dissidente dos Turunas pernambucanos(grupo fundado por Joo Pernambuco), Jararaca e Ratinho, primeira dupla caipira desucesso.