Hering Coelho_música indígena nas terras baixas

download Hering Coelho_música indígena nas terras baixas

of 13

Transcript of Hering Coelho_música indígena nas terras baixas

  • 7/29/2019 Hering Coelho_msica indgena nas terras baixas

    1/13

    MANA 13(1): 237-249, 2007

    ARTIGO BIBLIOGRFICO

    A NOVA EDIO DE WHY SUY SING, DE ANTHONY SEEGER,E ALGUNS ESTUDOS RECENTES SOBRE MSICA

    INDGENA NAS TERRAS BAIXAS DA AMRICA DO SUL*

    Lus Fernando Hering Coelho

    A nova edio de Why Suya sing a musical anthropology of an amazonianpeople (Seeger 2004)1 firma a atualidade do texto e sua importncia paraa etnologia indgena das terras baixas da Amrica do Sul (TBAS).2 Ela

    marcada pela incluso de uma nota final (:141-151) com reflexes a partirde novas idas a campo e uma breve bibliografia atualizada. As gravaesde udio, originalmente apresentadas em fita cassete, foram substitudas

    por um CD. Ao longo do livro, o leitor remetido s faixas gravadas, o quetorna a leitura mais interessante e produtiva, permitindo uma aproximao

    auditiva do mundo musical suy. O que se faz aqui oferecer uma leiturado texto, ainda no traduzido para o portugus, com uma breve nota sobretrabalhos recentes nesta rea temtica.

    Os Suy so um grupo de fala g habitante da regio norte do Par-

    que Indgena do Xingu, no estado de Mato Grosso. Na poca da pesqui-sa em foco (1972), sua populao somava 120 pessoas, em uma nicaaldeia s margens do rio Sui-missu. Vivendo nessa rea desde o sc.

    XIX, mantm-se relativamente parte da regio do alto Xingu, situadaao sul. Considerados inicialmente como marginais genericamentedenominados tapuia, os selvagens do serto, de costumes e prticas

    ditos pouco refinados se comparados aos Tupi os povos G comearam

    a ter a sua organizao sociocultural melhor compreendida a partir depesquisas, como as de Nimuendaju, entre os Apinaj, Xerente e Timbira.

    A problemtica g, grosso modo caracterizada por um dualismo estru-tural que permeia o pensamento e as prticas sociolgicas, entra deci-sivamente na agenda antropolgica, com um forte impacto sobre temas

    como a teoria da descendncia, com trabalhos como o de Lvi-Strauss(1996) e aqueles relacionados ao Harvard Central Brazil Research Pro-

    ject, realizado na dcada de 60 em um convnio entre a Universidade de

    Harvard e o Museu Nacional (RJ).3

  • 7/29/2019 Hering Coelho_msica indgena nas terras baixas

    2/13

    ARTIGO BIBLIOGRFICO238

    No horizonte da etnologia g, os trabalhos de Aytai (1985) e Graham(1995) focalizam entre os Xavante especialmente o mbito da artisticidade

    notadamente a musicalidade evidenciando ali a centralidade cosmolgicado mundo sonoro. Graham argumenta, por exemplo, que o mundo auraldetermina o palco de uma metafsica relacionada aos sonhos, relativamente

    pouco considerada em diversos estudos, em vista da nfase nos aspectos so-ciolgicos mais visveis. Entre os estudos sobre os povos G meridionais os Kaingang e os Xokleng, habitantes da regio Sul do Brasil, inicialmenteexcludos do Harvard Central Brazil Research Project, dada a suposta disrup-

    o de sua cultura em face da situao de intenso contato com a sociedadenacional esto os de Urban (1978), Coelho dos Santos (1987, 1997),Loch (2004). Mencione-se, finalmente, o registro audiofotogrfico feito por

    Tommasino e Rezende (2000) do ritual dokikikoi entre os Kaingang da reaindgena Xapec (SC).

    No Prefcio de seu livro (:xiii-xvii), Seeger lana a concepo de an-tropologia musical, propondo encarar, mais do que em uma antropologia da

    msica, a atividade musical como um elemento fundamental do processo deconstruo do mundo social e conceitual, e no como um mero epifenmeno

    ou reflexo deste, de modo que Mais do que estudar a msica na cultura(como proposto por Alan Merriam 1960), uma antropologia musical estuda

    a vida social como uma performance (:xiii).A mencionada postura de Merriam ficou clebre sobretudo a partir deseu The anthropology of music (Merriam 1964), em uma abordagem em que atentativa de compreender a msicana cultura acaba aprisionando a primeira

    como um setor ou uma parte da segunda, impedindo a apreenso do sentido

    no prprio cdigo musical e reduzindo a significao ao contexto, em umesvaziamento semntico do nvel expressivo. Tal postura indica, tambm,

    uma naturalizao da separao acadmica dos estudos da msica e da so-ciedade (ou cultura) em departamentos diferentes. importante notar queo prprio Merriam, em uma formulao tardia que no pde desenvolver,

    aponta uma sada para o impasse ao sugerir a idia de msica como cultura

    (Merriam 1977). Alm de Seeger, vrios outros autores tm feito crticas emrelao dualidade entre forma e contedo presente na teoria de Merriam.4

    Vale notar, de passagem, a importncia de se manter um controle crticoda crtica ao dilema merriamniano, qual seja: a superao da reduo dosentido ao contexto no deve levar a uma queda na direo do extremo

    oposto, tambm ilusrio, de seu aprisionamento no som da msica comoalgo que, fetichizado, poderia manter seu sentido para alm da rede socialde sua produo e consumo. Para uma anlise mais detida da questo, ver

    Menezes Bastos (1995).

  • 7/29/2019 Hering Coelho_msica indgena nas terras baixas

    3/13

    239A NOVA EDIO DE WHYSUY SING, DE ANTHONY SEEGER

    No primeiro captulo(:1-24), Seeger apresenta em narrativa a um tempodensa e bela a etnografia de uma cerimnia de iniciao, a cerimnia do

    rato, cujo mote a transferncia de nome de um homem adulto para um jovem,de maneira a introduzi-lo no crculo social daquele. A uma noite de aberturaseguem-se um perodo intermedirio de aprendizado e preparao e uma

    apoteose final, com o fechamento do perodo ritual e a efetivao da iniciao.Dentro deste perodo podem ser inseridas cerimnias menores, relativamenteatomizadas.5 Seeger caracteriza a vida social suy como se operasse em umaespcie de corrente alternada, estando ora no modo ritual, ora no no-ritual.

    No modo ritual, intensificam-se as relaes sociais na esfera pblica, o consumocomunitrio de alimento, a realizao cotidiana de performances e um climageral de euforia e excitamento, muito relacionados ao comer e ao cantar em

    grupo. No modo no-ritual, os grupos domsticos voltam-se mais para si mes-mos.6 Ainda neste captulo, o autor faz algumas reflexes sobre o antroplogono campo, notando que a observao e as demandas so um caminho de duas

    mos entre pesquisadores e pesquisados. A produo de um disco de m-sica suy (Seeger & Comunidade Suy 1982)7 foi, neste caso, um dos resultadosprticos da interao entre os Suy e os seus brancos.

    Os gneros de arte vocal, discutidos no segundo captulo (:25-51),so divididos em quatro tipos: kaprni (fala), sarn (instruo), ngre

    (cano) e sangre (invocao).

    8

    A categoria sarn inclui instruesdadas a crianas por seus pais, relatos de expedies de caa e recitativospblicos, alm de narrativas mticas. Mostrando como, neste gnero, o(a)narrador(a) serve-se de recursos tonais, timbrsticos, fonticos e rtmicos

    para dar sentido a seu enunciado, Seeger afirma que A separao tradicio-nal entre fonologia e semntica no pode ser mantida num caso como este.Os sons da performance carregavam sentido em si mesmos (:31).9 A catego-

    ria sangre remete-se a invocaes executadas, geralmente em tom de vozmuito baixa, com fins prticos, como aplicaes medicinais. A categoria

    kaprni cobre diversos modos de fala, com diferentes graus de formalidade,

    desde os executados cotidianamente por qualquer pessoa at as falas restritas

    a homens adultos executadas na praa central.Ngre

    refere-se s canes,divididas em akia (cantos gritados) engre (cantos em unssono). As akia

    so cantadas individualmente, s vezes por vrias pessoas ao mesmo tempo,em um registro agudo. Cada cantor de akia tem a pretenso de ser identifi-cado em meio s vrias vozes simultneas. Os cantos em unssono (ngere)

    so executados coletivamente em um registro baixo, sem que os cantoresbusquem destacar a prpria voz. As canes so identificadas por seus con-tedos textuais (letras), que via de regra se referem a algum animal e a

    seu comportamento, sendo que na ao ritual as identidades do cantor e do

  • 7/29/2019 Hering Coelho_msica indgena nas terras baixas

    4/13

    ARTIGO BIBLIOGRFICO240

    animal so combinadas. A comparao detalhada das formas de arte vocala partir de parmetros, como a relativa fixidez dos textos ou a alterao da

    fala por elementos estilsticos e meldicos, conduz o autor a uma crtica separao a priori entre fala e msica.

    O terceiro captulo (:52-64) trata das origens das canes, sendo as suas

    principais fontes os tempos mticos, os chamados homens sem esprito10

    e os estrangeiros. Os homens sem esprito so pessoas que ao terem seuesprito alguma vez desligado do corpo por uma doena causada por fei-tiaria, por exemplo adquirem um estado de liminaridade medida que

    a volta do esprito impedida, tornando-se introdutoras de novas canes,cuja fonte seu contato com outros mundos, como as aldeias dos animais.O domnio do estrangeiro, como o homem branco, tambm fonte de novos

    cantos, conhecimento, poder e perigo. Ainda neste captulo, Seeger lana-se auma interessante viagem comparativa que inclui os Kaluli da Nova Guin, osSuy, os gregos antigos e a sociedade urbana norte-americana contempornea.

    Consciente dos riscos de tal empreendimento, o autor o faz de modo a buscara compreenso dos casos particulares atravs do exame dos contrastes.

    No captulo 4 (:65-87), examinado o lugar da msica na organizao

    do espao fsico e social da aldeia, como na distino entre a praa centrale a sua periferia ou na marcao dos perodos do ano. As relaes sociais

    tambm so assinaladas musicalmente, delimitando, por exemplo, faixasetrias, gneros sexuais (as mulheres podem cantar em momentos muitoespecficos), indivduos (as akia so possudas individualmente) e grupos(osngere so de propriedade de grupos determinados). Tambm na consti-

    tuio dos domnios moral e cognitivo a musicalidade entra como elementoimportante. A posse de conhecimento est relacionada audio e marcadano corpo pelos discos de madeira nos lbulos das orelhas, da mesma forma

    que o disco labial determina a estreita relao entre a oratria e a chefia.Ainda neste captulo, o autor detm-se na questo de conceitualizao eoperacionalizao da noo de performance, que ele aproxima do universo

    do comportamento real, daparole e da ao em contraste com o comporta-

    mento ideal, alangue

    e a cultura (como norma).O captulo 5 (:88-103), escrito em colaborao com Marina Roseman,

    dedica-se anlise de uma cano que apresenta o mistrio de ter as suasrelaes meldicas mantidas, mas o seu centro tonal elevando-se a cada seodurante a performance.11 Na busca pela soluo do mistrio, Seeger explora

    a esttica musical suy e reflete a respeito de questes importantes, como ouso de categorias micas e/ou ticas na anlise, o papel da transcriomusical, a necessidade de flexibilidade metodolgica e multiplicao dos n-

    gulos de observao para a compreenso do fenmeno musical, a dificuldade

  • 7/29/2019 Hering Coelho_msica indgena nas terras baixas

    5/13

    241A NOVA EDIO DE WHYSUY SING, DE ANTHONY SEEGER

    de se trabalharem questes dificilmente formulveis na terminologia nativa,enfatizando que a transcrio musical cuidadosa pode revelar aspectos da

    performance que as categorias nativas no iluminam (:102).No captulo 6 (:104-127), retomada a descrio etnogrfica que abre

    o livro, focalizando agora os momentos finais do ritual. A ltima noite

    marcada pela transformao dos homens em ratos o animal mitolgicoque ensina os homens a utilizarem o milho como alimento. Com a chegadada manh, os homens so re-humanizados por suas irms, reintroduzin-do-se a ordem e afastando-se o perigo de uma transformao definitiva.

    A transformao definitiva de crianas em garotos nomeados segue junto coma transformao transitria de homens em homens-rato e novamente em ho-mens. A introduo de novas pessoas no mundo social exige uma atualizao

    do momento mtico de constituio da prpria socialidade, atualizao estaque marca o carter do social como em constante criao, uma sociedade queno dada, mas deve permanentemente transformar-se em si mesma.

    No captulo final (:128-140), so retomados alguns pontos centrais daargumentao, com o resumo de implicaes gerais do trabalho. Voltando pergunta Por que os Suy cantam?, o autor afirma que cantar era uma manei-

    ra essencial de articular as experincias de suas vidas com o processo de suasociedade (:128). A noo dekn (euforia) surge como elemento central em

    uma sociedade que, como os demais grupos G, no faz uso de alucingenosou bebidas alcolicas nos ritos. Assim, o canto e a dana cumprem tambm umpapel fisiolgico na prpria constituio dos estados psquicos, atualizando a ex-perincia dos eventos mticos. Neste captulo, o autor faz tambm consideraes

    sobre o contexto sociopoltico, focalizando especialmente o contato intertnico,a respeito do qual retoma a observao de que os Suy se aproximam de outrassociedades com a mesma atitude que os guia em outros domnios cosmolgicos

    tradicionais, buscando a incorporao de canes e poderes.Esta edio completada por uma nota final (:141-151), na qual o

    autor justifica a publicao praticamente inalterada do livro a partir de ob-

    servaes recentes que ratificam a utilidade de sua etnografia no contexto

    atual. Contudo, afirma que, se escrito hoje, o livro seria outro, devido aosdesenvolvimentos do campo nos ltimos anos. De fato, nas duas dcadas

    anteriores, o estudo de sistemas musicais indgenas nas TBAS ganhouimportantes trabalhos, entre os quais esto, em ordem cronolgica, os deMenezes Bastos (1989), Hill (1993), Olsen (1996), Beaudet (1997), Werlang

    (2001), Montardo (2002), Piedade (2004), Mello (2005)12. Seeger (:141)chama a ateno especialmente para a produo brasileira mais recente e sobre ela que dou a seguir breve notcia, apenas apontando os temas de

    algumas teses de doutorado ainda inditas.13

  • 7/29/2019 Hering Coelho_msica indgena nas terras baixas

    6/13

    ARTIGO BIBLIOGRFICO242

    O trabalho de Menezes Bastos (1989) uma etnografia densa do ritualdo yawari entre os ndios Kamayur (Tupi) do alto Xingu. Em continuao ao

    estudo do metassistema de cobertura verbal do sistema musical kamayur,publicado inicialmente em 1978 (Menezes Bastos 1999), o que se faz ali, nomodo de umapartitura crtico-interpretativa, um profundo estudo do uni-

    verso kamayur em seus aspectos sociolgico, cosmolgico, afetivo, poltico,cognitivo, atravs do plano musical. Entre as contribuies do trabalho, comamplas implicaes tericas e etnogrficas, destaca-se o desenvolvimento denoes como a de estrutura seqencial para dar conta dos modos da ordena-

    o musical do rito, bem como as idias sobre a complementaridade entre ossistemas tonal e motvico no fundamento da semanticidade musical.Montardo (2002) estuda a msica e o xamanismo entre os Guarani

    (Tupi), concentrando-se na etnografia de um subgrupo Kaiov de MatoGrosso do Sul. A autora conjuga o estudo da histria de vida de uma xam,a etnografia de ritos, a anlise musical e iconogrfica, alm da organologia,

    para mostrar que, alm da manuteno da prpria ordem universal, a msi-ca est ali associada comunicao com os deuses e os ancestrais mticos,sendo que o cantar constri um caminho que liga os mundos humano e

    sobre-humano, permitindo um deslocamento dos corpos num caminhoascendente (Montardo 2002:262).

    No rito guarani jeroky so aperfeioados os corpos e os espritosdos participantes em funo de ideais, como os de beleza, leveza e alegria.O tema do imperativo de um afastamento da tristeza remete a autora a umhorizonte comparativo dos sentidos afetivos da msica, e ela coteja a tem-

    tica guarani da busca de alegria quela da perda e do abandono entre osKaluli da Nova Guin (Feld 1990) e a esttica da saudade entre os Temiar daMalsia (Roseman 1991). As transcries e as anlises musicais, associadas

    s exegeses nativas, permitem a delimitao de dois gneros musicais, umrelacionado prece, com carter de invocao, e outro luta, com carterde superao de obstculos, sendo ambos marcados por um forte carter

    dialgico. A importante relao entre msica e espacialidade evidenciada

    pela materializao do caminho que percorrido durante o rito na prpriaestrutura sonora, atravs das variaes dos centros tonais das canes.

    A autora compara esta elevao dos corpos conectada ao movimentodos centros tonais correlao que Hill (1993) estabelece entre a organiza-o dos sons musicais e os movimentos concebidos/vividos espacialmente

    entre os Wakuenai, remetendo-se ainda s reflexes de Seeger (op.cit.) so-bre o efeito fisiolgico que o cantar e o danar por vrias horas teria sobreos corpos dos participantes, marcando a experincia ritual. Neste sentido,

    colabora para o argumento de que as estruturas musicais no apenas ex-

  • 7/29/2019 Hering Coelho_msica indgena nas terras baixas

    7/13

    243A NOVA EDIO DE WHYSUY SING, DE ANTHONY SEEGER

    pressam experincias psicofisiolgicas mas tambm, em alguma medida,as originam. Finalmente, uma das contribuies centrais desta etnografia,

    fruto da comparao dos universos guarani e kamayur, a constatao deque o termoe, comumente traduzido como palavra-alma na etnologiaguarani, extrapola em seu sentido o horizonte do discurso verbal, referindo-

    se tambm ao da musicalidade.Piedade (2004) realiza uma etnografia entre os Wauja (Arawak) do alto

    Xingu, com foco especial no ritual das flautaskawok relacionadas ao cha-mado complexo das flautas sagradas abordando questes de cosmologia,

    xamanismo, relaes de gnero e poltica. Ao estudar os espritos apapaatai intimamente ligados, na cosmologia nativa, com a msica, o xamanismo,a causao e a cura das doenas o autor lana mo da noo de extensoexistencial como forma de superar o dualismo natural/sobrenatural. Este con-ceito permite-lhe compreender a produo de imagens dos apapaatai no comosua mera representao, mas como a sua extenso, estando a causa presente

    na ao. Para a anlise musical, o autor utiliza-se de transcries extensas queevidenciam desde o incio o seu carter congenitamente analtico. A partir detais transcries, estuda a potica envolvida nessa msica instrumental, evi-

    denciando diversos princpios de construo que atuam em nvel de motivose frases musicais. Estas operaes, bastante elaboradas, so entendidas como

    expresses, realizadas no jogo motvico, de umpensamento musical sobre a re-petio, a variao e a diferena, construtor das formas nativas da temporalidadee da espacialidade. No deslindamento do modo de operao deste pensamento,dialogando com idias desenvolvidas por Menezes Bastos (1989, 1999), o autor

    examina a natureza semntica da msica, de carter fundamentalmente inter-semitico, que cruza e integra diferentes domnios de sentido.

    Mello (2005)14 realiza entre os mesmos Wauja uma etnografia do ritual

    de yamurikuma, a outra face feminina do mundo das flautas ka-wok, mostrando o papel fundamental dos sentimentos de cime e invejana socialidade Wauja (Mello 2005:4). Para tanto, a autora dedica especial

    ateno tanto etnografia do rito quanto ao estudo dos mitos (aunaki).

    O trabalho organizado em torno de trs afirmaes dos Wauja: no sepode desejar aquilo que no se pode ter , o cime, devidamente controla-

    do, bom para a sociedade e a msica do ritual deyamurikuma, cantadapor mulheres, msica dekawok (Mello 2005:8). O alto grau de comple-xidade, elaborao esttica e exigncia tcnica dos msicos, revelado por

    Piedade (2004) para a msica dekawok, demonstrado por Mello para osrepertrios femininos.

    Uma vez evidenciada a importncia do uki (cime) no universo nativo,

    suas implicaes estticas, ticas e sociolgicas so exploradas. Este sen-

  • 7/29/2019 Hering Coelho_msica indgena nas terras baixas

    8/13

    ARTIGO BIBLIOGRFICO244

    timento permeia a vida alde e espraia-se na forma de uma etiqueta querege as relaes intertribais em conexo com a cosmologia xinguana, esta-belecendo uma diplomacia que regula os impasses criados pela necessria

    articulao de diferenas. A msica entra a como um elemento fundamentalque, ao trabalhar com propores, repeties e variaes, instaura o con-flito ao mesmo tempo em que o mantm sob controle. (Mello 2005:282).

    A autora tambm traz baila algumas discusses sobre as teorias de gne-ro, colocando-se em uma postura que evita a dualidade entre dominaoou complementaridade, criticando a idia da dominao masculina pura

    e simples enquanto evita cair no extremo oposto, o da concepo de umacomplementaridade perfeita regulando as relaes entre os gneros. Nestehorizonte, o uki aparece to potencialmente perigoso quanto necessrio,

    espcie de vlvula principal de toda a socialidade, na medida em quefocaliza o fluxo do controle do desejo (Mello 2005:293).

    Depois deste breve sobrevo, que apenas indicou alguns elementos de

    trabalhos para cuja importncia Seeger chama a ateno ao considerar osdesenvolvimentos recentes na rea, voltemos a Why Suya sing, ao seu final,no qual o autor descreve novas viagens aldeia, entre 1993 e 2003, inicial-

    mente a pedido dos prprios ndios para conversar a respeito de problemas,como a queda da qualidade da gua dos rios e questes de delimitao de

    terras. Relata as mudanas verificadas na aldeia, como a chegada de umaescola e de uma farmcia; a aprendizagem do portugus; as mudanas naalimentao em vista da introduo de alimentos industrializados; o gostopela msica sertaneja, que os jovens ouviam em fitas cassete; os momen-

    tos em que se viu em meio a um encontro tenso entre os Suy e colonosbrasileiros para tratar questes de limites territoriais; e sua atuao comoetnomusiclogo engajado.

    A participao, como convidado, em uma cerimnia do rato em 1996permitiu-lhe ratificar em grande parte sua etnografia, a no ser pela maiorelaborao devido quase duplicao da populao e pela partida de futebol

    depois do banho que encerra a cerimnia. A terra em litgio, que motivou a

    sua volta em 1993, foi finalmente devolvida aos Suy. Se a primeira edioterminava com um tom incerto e sombrio a respeito do futuro dos Suy e da

    ento iminente intensificao de seu contato com a sociedade envolvente,esta nota final d um testemunho confiante de como eles tm sido, defato, capazes de lidar com as canes, e os poderes, do mundo que os cerca.

    O livro de Seeger, cuja traduo para o portugus certamente seria valiosa,segue como leitura indispensvel, tanto na antropologia da msica em geralquanto na etnologia indgena das TBAS.

  • 7/29/2019 Hering Coelho_msica indgena nas terras baixas

    9/13

    245A NOVA EDIO DE WHYSUY SING, DE ANTHONY SEEGER

    Recebido em 21 de julho de 2006

    Aprovado em 13 de novembro de 2006

    Lus Fernando Hering Coelho doutorando do Programa de Ps-Graduaoem Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail:

    Notas

    * Agradeo ao Prof. Rafael Jos de Menezes Bastos pela provocao e peloapoio na elaborao deste texto; aos colegas dos ncleos de pesquisa MUSA Arte,Cultura e Sociedade na Amrica Latina e Caribe (PPGAS-UFSC) e MUSICS Msi-ca, Cultura e Sociedade (CEART-UDESC), pelas luzes. comisso editorial da RevistaMana, pela cuidadosa reviso dos originais. Finalmente, obrigado CAPES pela bolsade doutorado em antropologia social que tem possibilitado meu trabalho.

    1 Todas as referncias a nmeros de pginas remetem a este livro, salvo indicao

    em contrrio. Do mesmo modo, todas as tradues de citaes so minhas.

    2 Em sua primeira edio, de 1987, o livro mereceu vrias resenhas, entre asquais a de Feld (1989) e o que sobre ele est contido em Beaudet (1993).

    3 Conforme Loch (2004:120-125). Os primeiros desenvolvimentos do HarvardCentral Brazil Research Project, por vrios autores, esto reunidos em Maybury-Lewis(1979). Para um balano dos estudos g, conforme Carneiro da Cunha (1993). Paraum ensaio bibliogrfico sobre a msica nas TBAS com nfase no universo g, vejaMenezes Bastos (1996).

    4 Neste sentido, a lista de trabalhos importantes dificilmente poderia ser esgo-tada aqui. Entre tantos, pode-se mencionar os de Blacking (1995), Menezes Bastos

    (1999, 1989), Feld (1990), Roseman (1991).

    5 Esta caracterstica de construo de perodos rituais atravs de uma esp-cie de bricolagem, na qual cerimnias menores, relativamente autnomas, soencaixadas em uma determinada ordem, parece ser um fenmeno importante nasTBAS, com uma pertinncia que cruza fronteiras lingsticas. Trabalhos como osde Basso (1985, 1987), Menezes Bastos (1989) e Teixeira-Pinto (1997), por exem-plo, chamam a ateno, em diferentes planos analticos, para o carter musicaldos modos de organizao do ritual, respectivamente entre os ndios Kalapalo,Kamayur e Arara.

  • 7/29/2019 Hering Coelho_msica indgena nas terras baixas

    10/13

    ARTIGO BIBLIOGRFICO246

    6 Este tambm um modelo de ampla pertinncia nas TBAS.

    7 Estas gravaes foram relanadas, com notas revistas, como o volume 75 dasrie Music of the Earth: Fieldworkers Sound Collections. Tokyo: JVC Video SoftwareDivision, 1992.

    8 Sobre a esttica musical suy, entre outras questes, conforme tambm Se-eger (1980).

    9 Basso (1985, 1987), estudando narrativas entre os Kalapalo povo caribealto-xinguano tambm evidencia os vnculos ntimos entre a forma da narrativa

    e a explicitao de seu contedo.

    10 Sobre o problema da diviso esprito/corpo, Seeger remete a um tema que jhavia trazido, de maneira muito fecunda, junto com outros autores, para a etnologiaindgena a noo de pessoa (Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro 1987 [1979]) e mostra que, no caso dos Suy, ela tripartida em corpo, identidade social e esp-rito.

    11 O tema da elevao microtonal recorrente e aparece nos estudos de Me-nezes Bastos (1989:265), Hill (1993:97-130), Olsen (1996:403-410), sendo abordadotambm por Montardo (2002:137-138). Em geral, ele surge como um fenmeno dedifcil estudo, exigindo um conhecimento profundo e detalhado da teoria musicalnativa para a delimitao de sua significao precisa. Algumas das abordagens ci-

    tadas, no entanto, apontam para o carter semntico deste tipo de recurso musical,notadamente em termos do que seria uma manifestao sonora de deslocamentosespaciais e cosmolgicos. Remeto o leitor aos referidos autores para o aprofunda-mento da questo.

    12 Esta lista, que no necessariamente exaustiva, inclui apenas trabalhos demaior flego, notadamente livros publicados e/ou teses de doutorado.

    13 Os textos de Menezes Bastos (1989) e Montardo (2002) tm sua publicaoprevista para breve.

    14 Este trabalho recebeu Meno Honrosa no concurso de Teses de 2006 daAnpocs.

  • 7/29/2019 Hering Coelho_msica indgena nas terras baixas

    11/13

    247A NOVA EDIO DE WHYSUY SING, DE ANTHONY SEEGER

    Referncias bibliogrficas

    AYTAI, Desidrio. 1985. O mundo sonoroxavante. Col. Museu Paulista de Et-nologia, v.5. So Paulo: USP.

    BASSO, Ellen. 1985. A musical view ofthe universe. Philadelphia: Universityof Pennsylvania Press.

    __________. 1987. In favor of deceit. Tuc-son: The University of Arizona Press.

    BEAUDET, Jean-Michel. 1993. Lethno-musicologie de lAmazonie. LHom-

    me, 126-128:527-533.__________. 1997. Souffles dAmazonie:

    les orchestres Tule des Waypi.Nanterre: Societ dEthnologie.

    BLACKING, John. 1995 [1967]. Vendachildrens songs. Chicago and London:The University of Chicago Press.

    CARNEIRODA CUNHA, Manuela. 1993.Les tudes G. LHomme, 126-128:77-93.

    COELHO DOS SANTOS, Slvio. 1987.ndios e brancos no sul do Brasil.Porto Alegre: Movimento.

    __________. 1997. Os ndios Xokleng : me-mria visual. Florianpolis: Editorada UFSC/ Itaja: Editora da Univali.

    FELD, Steven. 1989. Why Suya sing.Yearbook for Traditional Music, 21:134-138.

    __________. 1990 [1982]. Sound and sen-timent. Philadelphia: University ofPennsylvania Press.

    GRAHAM, Laura. 1995. Performing dre-

    ams: discourses of immortality amongthe Xavante of Central Brazil. Austin:University of Texas Press.

    HILL, Jonathan D. 1993. Keepers of thesacred chants: the poetics of ritual

    power in an amazonian society. Tuc-son and London: The University of

    Arizona Press.LVI-STRAUSS, Claude. 1996 [1952].

    As estruturas sociais no Brasil Cen-

    tral e Oriental. In: AntropologiaEstrutural . Rio de Janeiro: TempoBrasileiro. pp.141-153.

    LOCH, Slvia. 2004. Arquiteturas xoklen-gs contemporneas: uma introduo antropologia do espao na TerraIndgena de Ibirama. Dissertao demestrado em antropologia social, Uni-versidade Federal de Santa Catarina.

    MAYBURY-LEWIS. 1979. Dialetical so-cieties: the Ge and Bororo of CentralBrazil. Cambridge: Harvard Univer-sity Press.

    MELLO, Maria Ignez C. 2005. Iamu-rikuma: msica, mito e ritual entreos Wauja do alto Xingu. Tese dedoutorado, Universidade Federal deSanta Catarina.

    MENEZES BASTOS, Rafael Jos de.1989. A festa da jaguatirica: uma

    partitura crtico-interpretativa. Tesede doutorado, Universidade de SoPaulo.

    __________. 1995. Esboo de uma te-oria da msica: para alm de umaantropologia sem msica e de umamusicologia sem homem. Anurio

    Antropolgico, 93:9-73.__________. 1996. Msica nas Terras

    Baixas da Amrica do Sul: ensaio apartir da escuta de um disco de m-sica xikrn.Anurio Antropolgico,95:251-263.

    __________. 1999 [1978].A musicolgicakamayur: para uma antropologia dacomunicao no Alto Xingu. Florian-polis: Editora da UFSC.

    MERRIAM, Alan P. 1960. Ethnomusico-logy: discussion and definition of thefield. Ethnomusicology, 4:107-114.

    __________. 1964. The anthropology ofmusic. Evanston: Northwestern Uni-versity Press.

  • 7/29/2019 Hering Coelho_msica indgena nas terras baixas

    12/13

    ARTIGO BIBLIOGRFICO248

    __________. 1977. Definitions of compa-rative musicology and ethnomusico-logy: a historical-theoretical perspecti-ve. Ethnomusicology, 21(2):189-204.

    MONTARDO, Deise Lucy Oliveira. 2002.Atravs do Mbaraka: msica e xama-nismo guarani. Tese de doutorado,Universidade de So Paulo.

    OLSEN, Dale. 1996. Music of the Waraoof Venezuela: song people of the rain

    forest. Gainesville: University Press

    of Florida.PIEDADE, Accio T. de C. 2004. O canto

    do kawok: msica, cosmologia efilosofia entre os Wauja do Alto Xin-gu. Tese de doutorado, UniversidadeFederal de Santa Catarina.

    ROSEMAN, Marina. 1991. Healing soun-ds of malaysian rainforest. Berkeley/Los Angeles/Oxford: University ofCalifornia Press.

    SEEGER, Anthony. 1980. Os ndios e ns:estudos sobre sociedades tribais bra-sileiras. Rio de Janeiro: Campus.

    __________. 2004 [1987]. Why Suya sing:a musical anthropology of an amazo-

    nian people. Urbana and Chicago:University of Illinois Press.

    SEEGER, Anthony & A comunidadeSuy. 1982. Msica indgena: a artevocal dos Suy. LP 12 e notas. So

    Joo del Rei: Edies Tacape 007.SEEGER, Anthony, DAMATTA, Roberto

    & VIVEIROS de CASTRO, Eduardo.1987 [1979]. A construo da pessoanas sociedades indgenas brasilei-ras. In: J. P. de Oliveira Filho (org.),Sociedades indgenas e indigenismo

    no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero.

    pp.11-29.TEIXEIRA-PINTO, Mrnio. 1997. Lei-

    pari: sacrifcio e vida social entre osndios Arara. So Paulo: HUCITEC/Anpocs/ Editora UFPR.

    TOMMASINNO, Kimiye & REZENDE,Jorgisnei Ferreira de. 2000. Kikikoi:ritual dos Kaingang na rea ind-gena Xapec/SC. Londrina: Midio-graf/ NMC/UEL/CIMI (acompanhaCD).

    URBAN, Greg. 1978. A model of Shok-leng social reality. Tese de doutorado,

    Universidade de Chicago.WERLANG, Guilherme. 2001. Emerging

    peoples: Marubo myth-cants. Ph.D.Thesis, University of St. Andrews.

  • 7/29/2019 Hering Coelho_msica indgena nas terras baixas

    13/13

    249A NOVA EDIO DE WHYSUY SING, DE ANTHONY SEEGER

    Resumo

    Lanado originalmente em 1987, WhySuya Sing? ganhou uma nova edionorte-americana em 2004. Apesar deconstituir um marco terico e etnogrfi-co importante nos campos da etnologiaindgena e da antropologia da msica, olivro ainda no conta com uma traduopara o portugus. Neste ensaio, oferece-se uma leitura da obra, buscando resumiralguns de seus pontos principais, junto auma contextualizao geral sumria dosestudos sobre povos G, e uma nota brevesobre alguns desenvolvimentos recentesnas pesquisas sobre msica indgena nasterras baixas da Amrica do Sul.Palavras-chave: Povos G, Antropologiada Msica, Msicas Indgenas, EstudosRecentes

    Abstract

    Originally published in 1987, Why SuySing? acquired a new US edition in 2004.Despite constituting a theoretical andethnographic landmark in the fields ofindigenous ethnology and anthropologyof music, Seegers book has yet to betranslated into Portuguese. This essayoffers a reading of the work, looking to

    resume some of its key points, along witha brief overall contextualization of thestudies on G peoples, and a short noteon some of the recent developments inthe research on indigenous music in theSouth American lowlands.Key words: G Peoples, Anthropologyof Music, Indigenous Music, RecentStudies