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Gramado – RS De 29 de setembro a 2 de outubro de 2014 O “REDESIGN” DO CORPO NO CONTEMPORÂNEO: aspectos projetuais em intervenções corporais Mariana Arruda Simoni Universidade Anhembi Morumbi [email protected] Cristiane Ferreira Mesquita Universidade Anhembi Morumbi [email protected] Resumo: Este artigo aborda aspectos relativos à compreensão do corpo como instância de criação que proporciona ao sujeito possibilidades de intervenção e de reinvenção de sua aparência. Diversos registros históricos comprovam que, desde a pré-história, o desejo de intervenção corporal é inerente às necessidades humanas. Na contemporaneidade, esse desejo, aliado ao fascínio pela autonomia corporal e potencializado pelos avanços da tecnologia e da medicina, possibilita inúmeras variedades de transformações do corpo, diluindo as fronteiras entre o natural e o artificial. Diferentes práticas exercidas sobre o corpo podem ser entendidas e associadas com procedimentos do campo do design, pois envolvem projetos, produção e comercialização. Neste contexto, esta pesquisa apresenta alguns trabalhos da artista ORLAN, cujas obras relacionam aspectos projetuais e praticas artísticas visando o “redesign” de seu corpo. Palavras-chave: Design; “redesign”; Intervenções corporais; Projeto; ORLAN. Abstract: This paper discusses aspects related to the understanding of the body as instance of creation that gives the possibilities intervention and reinvention in its appearance subject. Several historical records show that since prehistoric times, the desire body intervention is inherent to human needs. In contemporary times, this desire, coupled with the fascination with bodily autonomy and enhanced by advances in technology and medicine, provides numerous varieties of body transformations, thinning the boundaries between the natural and the artificial. Different activities carried out on the body can be understood and related to the field of design procedures, because they involve design, production and marketing. In this context, this research presents some works of artist ORLAN, whose works relate projective aspects and artistic practices that aim to “redesign” your body. Keywords: Design; “redesign”; Body interaction; project; ORLAN.

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Gramado – RS

De 29 de setembro a 2 de outubro de 2014

O “REDESIGN” DO CORPO NO CONTEMPORÂNEO: aspectos projetuais em intervenções corporais

Mariana Arruda Simoni

Universidade Anhembi Morumbi

[email protected]

Cristiane Ferreira Mesquita

Universidade Anhembi Morumbi

[email protected]

Resumo: Este artigo aborda aspectos relativos à compreensão do corpo como instância de criação que proporciona ao sujeito possibilidades de intervenção e de reinvenção de sua aparência. Diversos registros históricos comprovam que, desde a pré-história, o desejo de intervenção corporal é inerente às necessidades humanas. Na contemporaneidade, esse desejo, aliado ao fascínio pela autonomia corporal e potencializado pelos avanços da tecnologia e da medicina, possibilita inúmeras variedades de transformações do corpo, diluindo as fronteiras entre o natural e o artificial. Diferentes práticas exercidas sobre o corpo podem ser entendidas e associadas com procedimentos do campo do design, pois envolvem projetos, produção e comercialização. Neste contexto, esta pesquisa apresenta alguns trabalhos da artista ORLAN, cujas obras relacionam aspectos projetuais e praticas artísticas visando o “redesign” de seu corpo. Palavras-chave: Design; “redesign”; Intervenções corporais; Projeto; ORLAN.

Abstract: This paper discusses aspects related to the understanding of the

body as instance of creation that gives the possibilities intervention and

reinvention in its appearance subject. Several historical records show that

since prehistoric times, the desire body intervention is inherent to human

needs. In contemporary times, this desire, coupled with the fascination with

bodily autonomy and enhanced by advances in technology and medicine,

provides numerous varieties of body transformations, thinning the

boundaries between the natural and the artificial. Different activities

carried out on the body can be understood and related to the field of design

procedures, because they involve design, production and marketing. In this

context, this research presents some works of artist ORLAN, whose works

relate projective aspects and artistic practices that aim to “redesign” your

body.

Keywords: Design; “redesign”; Body interaction; project; ORLAN.

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1. INTRODUÇÃO

No contemporâneo é intenso o debate sobre os modos de lidar com o corpo,

assim como intervir sobre ele a partir de inúmeras técnicas e procedimentos. A tentativa de transformar o próprio corpo livrando-o de antigos significados pré-determinados e representações vem ganhando cada vez mais adeptos, principalmente a partir da segunda metade do século XX.

Este artigo1 colabora para a compreensão de aspectos projetuais relacionados ao corpo, tomado como espaço que proporciona ao sujeito possibilidades de intervenção e reinvenção de sua aparência. Para tanto, serão apresentadas considerações teóricas sobre o campo do design, sobre o corpo e sobre o trabalho da francesa ORLAN, artista que associa sua arte a práticas de intervenções cirúrgicas que transformam sua aparência.

A crescente abrangência e reconhecimento da atuação do design na contemporaneidade, bem como de suas articulações com o universo artístico, disparou nosso olhar para o fato de que diversos artistas que utilizam o corpo como suporte ou matéria-prima o fazem a partir de uma lógica próxima dos projetos em design, que se faz presente em determinadas ações de intervenção corporal. Leva-se em consideração que os avanços tecnológicos proporcionam a realização de intervenções e recriações corporais cada vez mais complexas e que as mesmas se articulam com lógicas e interfaces projetuais.

Nesse contexto de aproximação entre design e arte, nota-se um campo propício e fecundo à investigação, de modo que nossos estudos colaboram no sentido de enriquecer perspectivas de compreensão, acerca de ambos os campos de conhecimento, bem como de suas inter-relações e diálogos no contemporâneo.

Em síntese, nosso objetivo pode ser delineado como uma investigação do “redesign” corporal, por meio de desenvolvimento de projetos e metodologias que podem ser observados em intervenções corporais que evidenciam projetos envolvendo possibilidades de reinvenções corporais. Para trilhar nosso caminho, abordamos aspectos relacionados ao design e “redesign”, bem como as fronteiras entre arte e design, estabelecendo conexões e associações entre as áreas destacadas.

2. DESENVOLVIMENTO

Este artigo apresenta conceitos relacionados ao campo do design,

ligados especificamente aos aspectos projetuais metodológicos envolvidos em sua prática. Essa perspectiva visa enfocar nossa proposta de articulação entre design, “redesign” e a arte de ORLAN.

2.1 Aspectos projetuais em design

1 Artigo desenvolvido com base na ampla pesquisa de dissertação de Mestrado em Design da autora.SIMONI,

Mariana Arruda. O redesign do corpo: aspectos projetuais em intervenções corporais. Dissertação (Mestrado em

Design)- Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, 2014.

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O design abrange bem mais que o processo de projetar e fabricar objetos. Segundo Soares, do ponto de vista antropológico, o design “é uma das atividades projetuais, tais quais as artes, o artesanato, a arquitetura, a engenharia e outras que visam à objetivação no sentido estrito, ou seja, dar existência concreta e autônoma a ideias abstratas e subjetivas” (SOARES, 2004, p. 25). Já Cardoso (2008), do ponto de vista etimológico, afirma que o design contém nas suas origens uma ambiguidade que parte de uma tensão dinâmica entre um aspecto abstrato de projetar, atribuir e outro concreto de registrar e formar.

Dentre as inúmeras definições de design, a maioria concorda que o design pode ser considerado a união entre um aspecto abstrato de conceber, projetar e atribuir e outro concreto, de registrar, configurar e formar. O domínio do design não se limita aos produtos, mas inclui sistemas e serviços que determinam, por exemplo, a identidade pública, tais como design gráfico, de embalagens, de interiores e digital.

Fuentes relaciona o design ao fazer criativo que conta com metodologias para aumentar o conhecimento e dar maior sustentação ao ato criativo, ampliando os pontos de vista sobre um determinado problema, “facilitando uma perspectiva criativa, global até sua resolução” (FUENTES, 2006, p. 14). O percurso para a criação das soluções pode contar com elaboração de esboços, protótipos, croquis, ou modelos para tornar visualmente perceptível a proposta da solução, constituindo metodologias especificas.

O projetar é intrínseco à atividade e ao universo do design. Segundo diversos autores, projetar é a própria definição de design. O contexto contemporâneo salienta metodologias que englobam também a reformulação de objetos já existentes, contribuindo para uma abordagem que pode ser denominada como “redesign”, vinculado à manobras de recriação.

2.2 Fronteiras diluídas

Ao longo da história, arte e design apresentam inúmeros momentos de

interseção e proximidade, estabelecendo diversos diálogos e conexões que diluem fronteiras entre esses campos. As relações que se constituíram entre ambas as áreas se mostraram fecundas e necessárias para os exercícios criativos e profissionais. Foi em 1588 que, pela primeira vez, o termo design foi relacionado com a arte e descrito como: “um plano desenvolvido pelo homem ou um esquema que possa ser realizado. O primeiro projeto gráfico de uma obra de arte ou, um objeto das artes aplicadas que seja útil para a construção de outras obras” (BURDEK, 2010, p. 15-16), enfatizando a proximidade entre as áreas.

O design pode se relacionar com a arte no desenvolvimento do processo criativo, por meio de referências, influências e inter-relações. Essas relações são abordadas por diversos autores que evidenciam pontos comuns entre o artista e o designer. As vanguardas artísticas romperam com inúmeros paradigmas e permitiram maiores formas de expressão na arte, como o caso do artista francês Marcel Duchamp (1887-1968) ao transpor um objeto do uso cotidiano, produzido em série para dentro de um museu, inaugurando o ready made2. Cardoso (2008) enfatiza que o

2 Segundo Alain Jouffroy (1964), o ready made consistia na escolha um objeto comum utilizado em um novo contexto e conferindo-lhe o status de obra de arte. Duchamp fazia uma crítica ao sistema da arte, desmistificando a figura do artista. Criticava espaços destinados às exposições de obras, como os museus.

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questionamento radical realizado por Duchamp subverteu as antigas noções sobre o que constituiria uma obra de arte, resultando em uma abertura para formas de expressão múltiplas e valorização de linguagens e mídias antes menosprezadas, assim como para a produção de artefatos utilitários e industriais, estimulando o reaproveitamento dos materiais.

Um exemplo relevante de design que lida com variáveis projetuais e que aponta para a diluição das fronteiras entre arte e design é o trabalho da designer australiana Lucy McRae. Segundo, informações disponibilizadas em seu site3, McRae explora a relação entre corpo, tecnologia e materiais sintéticos e orgânicos. Desafiando os limites do corpo, a designer manipula a estrutura natural do corpo para inventar formas anatômicas e adornos que recriam a condição corporal. Suas experimentações nos remetem ao campo da arte, porém também resultam em projetos de design de produtos diversos. Essa associação colabora para nossas articulações, enfatizando o caráter projetual que permeia o trabalho de alguns artistas. McRae realiza projetos em parceria com outros artistas com a finalidade de promover diferentes “redesign”s para o corpo humano. Entre elas, a parceria LucyAndBart, colaboração entre McRae e Bart Hess que produziu a modificação da estrutura da aparência de corpos, criando imagens que revelam “redesign” corporal.

Figura 1- HESS, Bart; MCRAE, Lucy. LucyandBart Evolution. Adaptado de: http://www.lucymcrae.net/lucyandbart-2/. Acesso em: 18/09/2013.

Existem variadas práticas artísticas que propõem projetos relacionados

ao corpo. Alguns podem visar alterações da aparência, como é o caso da artista francesa ORLAN (1947-), que realiza intervenções cirúrgicas a partir de procedimentos que envolvem aspectos projetuais e metodológicos presentes no universo do design. Em uma de suas performances envolvendo cirurgias, ela recria seu rosto. As performances cirúrgicas de ORLAN são transmitidas para diversos museus e galerias no momento da operação. Além disso, as ações são registradas em vídeos que multiplicam a obra e seu alcance, enfatizando o caráter da reprodutibilidade.

Assim, ressalta-se o dialogo entre práticas do design e a arte, ainda que com maior ou menor ênfase nos aspectos projetuais.

3 http://www.lucymcrae.net/about/

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2.3 “Redesign”: reformulação e recriação

Ao abordar transformações corporais, percebemos que a ideia de

“redesign” é pertinente de ser associada a algumas práticas que envolvem ações de reformulação da aparência. Nesse sentido, “redesign” sugere redesenhar ou submeter produtos já existentes a novas configurações, a partir de projetos.

Ao consideramos que o design transforma um material bruto em um produto original, o “redesign” pode ser pensado como a ação de trabalhar sobre o produto, de maneira a transformá-lo, porém, sem descaracterizar completamente aquilo que havia anteriormente. Daí, a utilização do prefixo “re” ser pertinente, por tratar de uma nova ação, assim como colocado em verbos tais como (re)formar, (re)fazer, (re)distribuir, (re)organizar, (re)orientar, (re)aproveitar, (re)criar e (re)formular, entre outras ações que possibilitam repetições que incluem diferenças.

O “redesign” pode ser tomado como um procedimento capaz de gerar variáveis de diferenciação para o produto original, renovando-o sem comprometer a totalidade de suas características originais, tornando plausível uma relação comparativa e a identificação do produto inicial no resultado do trabalho. 3. O fascínio pelo corpo humano: matéria-prima para intervenções

Desde a pré-história o corpo é evidenciado e exerce um papel de

destaque no que tange à expressividade por meio de interferências e ações que colocam em pauta o desejo humano de intervir no corpo natural com marcas que remetem à cultura ou a desejos de diferenciação.

Apresentamos o corpo humano a partir da investigação sobre desejos de intervenções guiadas por estímulos de caráter cultural ou conduzidas por motivações individuais. Realizamos um breve levantamento histórico de momentos pontuais da pré-história até a contemporaneidade, quando o corpo assume papel privilegiado e evidencia o desejo por intervenções que por vezes se associam a características do universo do design.

Segundo Le Breton, as diversas manifestações culturais e sociais relacionadas à prática da intervenção corporal como forma de modificação da aparência ocorreram em diferentes tempos e espaços e “em inúmeras sociedades humanas, as marcas corporais são associadas a ritos de passagem em diferentes momentos da existência ou então são vinculadas a significados precisos dentro da comunidade” (LE BRETON, 2003, p. 38).

O corpo sempre esteve em foco em diferentes sociedades e o hábito do individuo submeter-se a transformação corporal é milenar, seja pela utilização de adornos, ornamentação ou representados por pinturas. Segundo Malysse (1999) a própria história da humanidade se confunde com a das práticas de modificações corporais. Selecionamos alguns exemplos de recriação da aparência corporal por meio de intervenções como o uso de adornos, acessórios, pinturas e tatuagens que modificam a natureza corporal e deformidades impostas por padrões socioculturais.

Segundo artigo publicado na revista Duetto Scientific American (1991), foi encontrado na região de Schnalstal no Vale Ötzal a 3.120 metros de altura, um corpo mumificado, protegido há milênios da deterioração pelo frio, pela escuridão e

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pelo gelo, no qual foi possível a observação de 57 tatuagens. De acordo com estudos, foi possível estimar que o cadáver pertencesse ao período pré-histórico e que vivera na Terra por volta de 2.500 a.C.. Está evidência foi considerada a mais antiga utilização de marcações corporais (DICKSON, OEGAL e HANDLEY, 2003).

No contexto contemporâneo, podemos observar o uso de técnicas e de avanços científicos que permitem a recriação dos corpos produzidos pelo “redesign”, por meio de práticas que envolvem projetos. No sentido de associar a pratica do “redesign” do corpo, foram observadas intervenções corporais que evidenciam diferentes modalidades, graus e intensidades de recriação da aparência, levando em consideração diferentes motivações, anseios e desejos.

3.1 O “redesign” do corpo no cenário contemporâneo

O contemporâneo é o período histórico que compreende mudanças de

paradigmas ocorridas a partir da Segunda Guerra Mundial e que se consolidam ao longo da segunda metade do século XX. Incluem transformações nos âmbitos da ciência, da economia, da geo-política, da cultura, da tecnologia, entre outras instâncias que alteram lógicas de produção e difusão, meios de comunicação, percepção de tempo e espaço, ou seja, que transmutam os modos de vida.

Diferentes formas de pensar o corpo e de relacionar-se com ele ganharam destaque. Mesquita (2008) aponta que o corpo funciona como um dos espaços de materialização dos cruzamentos entre a ciência, tecnologia, design, moda, arte e inúmeros outros setores produtivos, especialmente a partir dos anos 1950. Mesquita e Castilho ressaltam ainda que no contexto de superexposição dado ao corpo, este “se mostra tão fortalecido quanto fragilizado, tão famoso quanto esquecido, tão exposto quanto blindado, tão visível quanto inexpressivo” (MESQUITA e CASTILHO, 2012, p. 8).

Goldenberg e Ramos (2002) apontam que na segunda metade do século XX, viveu-se o chamado culto ao corpo, que ganhou dimensão social inédita ao adentrar a era das massas. Fenômenos como a industrialização, a difusão generalizada das imagens e o aumento dos cuidados com o corpo, influenciaram o desejo de experimentar e interferir no corpo, expandindo o consumo de produtos de beleza e colaborando para tornar a aparência uma dimensão essencial da subjetividade.

As tecnologias disponíveis em cada momento da história proporcionam possibilidades de recriação dos corpos. Aliado ao desejo de modificação e relacionado aos esforços da ciência, as técnicas de reconstrução vêm experimentando crescentes desenvolvimentos, principalmente em processos cirúrgicos que permitem até mesmo reinventar a noção de tempo, rompendo com padrões associados ao envelhecimento e recriando aparências que condizem com desejos individuais.

Nesse tipo de prática, o design pode partir de projetos e o corpo pode atender os anseios de seu proprietário. Seguindo as ideias de Cardoso (1998), ao realizar o ato de projetar, o indivíduo que o faz não somente projeta uma forma ou um objeto, mas, também se projeta naquela forma ou naquele objeto. Em suas palavras, “a coisa projetada reflete a visão de mundo, a consciência do projetista e, portanto, da sociedade e da cultura às quais o projetista pertence” (CARDOSO, 1998, p. 37).

O corpo humano pode ser um espaço privilegiado para diversas experimentações da biotecnologia e dos investimentos do mercado. Neste contexto,

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Sant’Anna (2001) afirma que o corpo passa a ser visto muito mais como aquilo que se tem do que como aquilo que se é. Graças à sua plasticidade, o material corpóreo permite cortes e inserções, pois tem a flexibilidade de tornar-se uma matéria que responde às modificações, na medida em que técnicas cirúrgicas são aplicadas.

Le Breton declara que o cenário contemporâneo revela um contexto de individualização e mercantilização do mundo, afirmando que o corpo tornou-se um acessório do individuo: “o consumismo em que estão mergulhadas as sociedades, e particularmente as jovens gerações, fez do corpo um objeto de investimento pessoal. Agora, o que importa é ter um corpo seu, assinado. O design não é mais exclusividade dos objetos” (LE BRETON, 2007).

Le Breton segue contribuindo para nossa discussão, quando aponta que o corpo pode ser considerado um acessório do individuo, um artefato, e na carne, seu proprietário encena e constitui diferentes personagens: “o corpo é então submetido a um design às vezes radical que nada deixa inculto” (LE BRETON, 2003, p. 22). Em síntese, o corpo não é pensado hoje como um simples suporte: “ontologicamente distinto do sujeito, torna-se um objeto à disposição sobre o qual agir a fim de melhorá-lo” (LE BRETON, 2007, p. 15). Em diálogo, Castilho e Martins (2008) apontam que, com a progressiva complexificação da organização social, temos uma nova realidade a investigar e a refletir sobre o “redesign” do corpo contemporâneo.

As interferências corporais são formas de materializar signos. Por esse motivo, os objetos de adorno podem adquirir funções decorativas e simbólicas, “perdendo intensidade naquilo que se refere ao utilitário, mas (re)propondo-se ciclicamente como arquétipos que fundamentam a cultura humana, desenvolvendo-se por meio da valorização da forma, das características de uso e que levam ao processo criativo, o design” (CASTILHO e MARTINS, 2005, p. 36).

Pires faz uma distinção entre as motivações das praticas corporais. Primeiramente aquelas que buscam um padrão de beleza determinado social e culturalmente veiculado pelas mídias, gerando práticas que moldam o corpo e evidenciam formas, escondendo ou eliminando excessos. Entre elas, estão a musculação, as dietas e as cirurgias plásticas. Em outra perspectiva, estão aquelas que visam atingir a construção de um ideal corporal particular e peculiar, fora dos padrões dominantes. Entre elas estão adeptos da body modification, prática que compreende, por exemplo, a “mudança das cores da epiderme e a feitura de incisões, queimaduras, perfurações, mutilações e implantes de diferentes tipos, com a finalidade de modificar os contornos e acrescentar elementos à silhueta” (PIRES, 2005, p. 18).

Em muitos momentos, o “redesign” corporal é construído com o auxílio de processos cirúrgicos, as quais podem alterar tanto a aparência quanto a estrutura corporal, auxiliando a compreensão do corpo como instância de criação como espaço de experimentação.

Entre os exemplos que envolvem a recriação da aparência corporal por meio de intervenções cirúrgicas, encontra-se a americana Cindy Jackson considerada a mulher com maior número de cirurgias plásticas do mundo. Apelidada de “Barbie Humana”, ela já foi submetida a 52 operações. Segundo reportagem4, ela não tem planos de parar “contando que eu possa ter alguma melhora, não interessa o quão

4 Reportagem G1: Com 52 cirurgias plásticas, americana detém recorde mundial. Disponível em: http://g1.globo.com/planeta-

bizarro/noticia/2011/04/com-52-cirurgias-plasticas-americana-detem-recorde-mundial.html. Acesso em: 10/10/2013.

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pequena, vou fazer, porque tudo se soma. O conceito de ficar velha não existe para mim”, seguindo com suas praticas projetuais de “redesign” de si mesmo.

Figura 2- JACKSON, Cindy. Global Plastic Surgery & Anti-Ageing Expert. Adaptado de: < http://www.cindyjackson.com/>. Acesso em: 02/12/2013.

Outro exemplo de “redesign” acontece com a modelo ucraniana Valeria

Lukyanova, que utiliza a boneca Barbie como referência de padrão de beleza. Le Breton (2007) afirma que a reconstrução de um corpo pode se remeter a transformação da natureza em cultura, utilizando-se de um objeto como referência.

Figura 3 – LUKYANOVA, Valeria. Adaptado de: http://www.valerialukyanova.net/. Acesso em: 07/09/2012.

Mais um exemplo de intervenção corporal por meio de cirurgias

plásticas faz referências a padrões de beleza de celebridade é apontado em uma matéria da revista VEJA5. A reportagem mostra que, na medida em que evoluem as técnicas de cirurgia plástica e outros tipos de intervenção facial, as mulheres se veem “enfeitiçadas” pela possibilidade de ter um rosto mais bonito. Mostra que muitas

5 ROMANINI, Carolina; LIMA, Roberta de Abreu. “A perfeição é possível?” VEJA Especial BELEZA.

Disponível em: http://veja.abril.com.br/291008/p_094.shtml. Acesso em: 23/02/2013.

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mulheres demandam ao médico o nariz, a boca ou os olhos de determinadas celebridades ao exprimir o desejo de recriação facial.

No que se refere à reinvenção do corpo na contemporaneidade, percebe-se que o advento da cirurgia plástica possibilitou o aumento das possibilidades e da viabilidade das intervenções corporais, como ampliação das técnicas de implantes de acessórios e de adornos e das práticas de remodelação do corpo a preços mais acessíveis. Um levantamento divulgado pela International Society

of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS) revela que o número anual de cirurgias plásticas no Brasil passou de 50 mil em 1991 para 350 mil em 2001.

Além das cirurgias, outros dispositivos auxiliam a transformação dos corpos. Nas palavras de Mesquita “são exemplos de procedimentos que, entre outros, ocupam a subjetividade contemporânea do oficio do ‘design de si’” (MESQUITA, 2008, p. 93).

Para além dos exemplos, notamos que o papel de destaque do corpo se expandiu e diluiu fronteiras, invadindo a arte. O corpo na arte contemporânea é tomado como matéria-prima, como suporte ou como a própria obra de arte. Artistas utilizam recursos advindos de avanços tecnológicos e científicos para criar e recriar suas aparências e fazem com que o corpo possa tornar-se um material moldável. Sobre ele ou com ele, o artista trabalha e cria.

4. O “redesign” corporal da artista Orlan

Orlan é uma artista plástica multimídia: realiza trabalhos em vídeo,

fotografia, performance e instalação, explorando o seu próprio corpo como superfície de transformação e criação.

Os aspectos projetuais das intervenções realizadas no corpo de Orlan colaboram para a interlocução entre as áreas abordadas em nossa pesquisa. Suas práticas e obras questionam valores ligados à corporeidade, à condição feminina e aos padrões de beleza. Suas performances cirúrgicas criam novas possibilidades de “redesign” para seu corpo e colaboram para associar aspectos do design, tais como: ação projetual, reprodutibilidade e caráter comercial nas práticas da artista.

O nome verdadeiro de Orlan é Mireille Suzanne Francette Porte. Ela nasceu em 30 de maio de 1947 em Saint-Etienne, na França. Sua carreira vem se desdobrando desde os anos de 1960. Inicialmente, seu trabalho era focado em fotografia, quando posava de forma acrobática, em posições de ioga, sendo registrada em preto-e-branco.

Segundo textos que disponibiliza em seu site6, na década de 1970 a artista considera que seu trabalho começa a questionar de forma incisiva os processos de legitimação do circuito de arte e define seu corpo como um “software”, que interage com o mundo por meio das manipulações, as quais julga mais contestadoras e transformadoras na relação com os espectadores de sua obra.

Destacamos a “Reencarnação de Santa Orlan”, uma série de performances cirúrgicas realizadas em seu rosto durante a década de 1990 como um projeto de arte que evidencia a recriação da figura da mulher. Em suas palavras: “Meu corpo se tornou um espaço de reflexão”, afirma a artista, “o que eu fiz foi usar a

6 Site oficial da artista ORLAN. Disponível em: http://www.Orlan.eu.

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cirurgia para fazer um autorretrato pessoal, mas sei que foi forte demais, radical demais” (ORLAN, 1977, p. 46).

Para conceituar seu trabalho, ainda na década de 1990, Orlan escreve “O Manifesto da Arte Carnal”, texto de caráter autobiográfico em que desenvolve conceitos e definições para a arte que cria - a Arte Carnal. O texto conceitua sua Arte Carnal, evidenciando seus pensamentos, ideias, valores, aspectos e características de sua arte, além de revelar conceitos e desenvolvimentos que exerce no processo de criação. Nele, a artista descreve que seu corpo é tomado como matéria plástica, na medida em que a artista reivindica o direito de abordá-lo na sua materialidade. 4.1 “Reencarnação de Santa Orlan” “Reencarnação de Santa Orlan” é um projeto de arte que envolve cirurgias plásticas com a finalidade de transformar o rosto da artista. Estas performances cirúrgicas foram realizadas durante a década de 1990 e pode ser considerado um projeto de arte que evidencia a recriação da figura da mulher. Segundo Duarte (2004), Orlan realizou inúmeras pesquisas antes de iniciar seu projeto. Consultou um psicanalista que disse que ela cometeria um suicídio ao utilizar seu corpo como base para essas intervenções, proibindo-a de prosseguir com o trabalho. Mesmo com a advertência, ela submeteu-se às intervenções. Orlan (1999) afirma que as cirurgias buscam recriar sua aparência e transforma-la em um novo ser composto de partes “extraídas” de obras consideradas tipos de beleza clássicos, tais como: a boca de Europa de Boucher, os olhos de Psiquê de Gerome, a testa de Mona Lisa pintada por Da Vinci, o nariz da escultura de Diana (Fontainebleau) e o queixo de Vênus de Boticelli e compõe com eles - com o auxílio de um software - um modelo virtual 3D.

Figura 4 – Orlan, “A Reencarnação de Santa Orlan” (1990-1993). Adaptado de: http://www.orlan.eu/works/performance-2/. Acesso em: 10/09/2013.

Com o modelo virtual e tendo obtido a mescla desejada, Orlan incorpora - por meio de cirurgias - os traços resultante das colagens dos modelos clássicos de beleza e “insere” em seu próprio rosto. Duarte (2004) descreve que a “Reencarnação de Santa Orlan” foi baseada no conceito de onipresença, transmitida via satélite para diversos lugares, permitindo que

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telespectadores de todos os países passassem a intervir na operação. Durante as operações, Orlan permanece consciente e interage com o público e com o espaço, seja cantando, lendo, respondendo perguntas ou fazendo uma série de desenhos com seu sangue e gordura, os quais posteriormente são comercializados. As entrevistas, as conferências e as aparições em festivais que faz também são pagas e apresenta em exposições como produto de suas performances amostras dos líquidos, carne e sangue. Após as cirurgias, painéis são confeccionados e instalados em diversos museus e galerias mostrando o processo pós-cirurgico com fotografias exibidas durante a operação e a recuperação. Os projetos, esboços e pesquisas envolvendo as performances cirúrgicas se aproximam do campo do design na medida em que a artista cria uma metodologia projetual ao traçar as diretrizes de execução de suas transformações, que incluem etapas, planejamentos, esboços e caráter comercial, tanto na criação de objetos artísticos quanto na recriação da aparência. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ocorrência das potencialidades do corpo como cenário de intervenções é evidenciada principalmente a partir dos anos 1950, onde o corpo é cada vez mais associado a um espaço de criação e tomado como material manipulável, passível de ser projetado e recriado.

O avanço tecnológico da medicina proporciona inúmeras formas e técnicas para a recriação da aparência do individuo. Essas práticas de intervenção podem, cada vez mais, ser associadas às praticas projetuais do design, por contarem com metodologias que implicam um ato criativo capaz de inventar e/ou alterar uma realidade que antes não existia. Esta prática comum ao design aparece em algumas obras de Orlan, que apresenta suas ideias - tal como o briefing de um produto – a uma equipe composta por médicos, psicanalistas, designers, fotógrafos, cinegrafistas e estilistas. Tal como num processo de produção de prototipagem de um produto, a artista e sua equipe dividem as funções de cada etapa, desde a concepção da ideia até sua realização.

O corpo da artista e diversos materiais a serem utilizados são previamente estudados e incluídos no planejamento. Além disso, as tecnologias disponíveis para um determinado projeto é utilizada de acordo com objetivos específicos traçados, da mesma maneira que ocorre o redesign no corpo de Orlan.

Vale ressaltar outra aproximação com o campo do design, relativa à comercialização. A artista usa os restos dos materiais provenientes das cirurgias para pintar e esculpir obras que, posteriormente, são expostas e vendidas ou adquiridos por colecionadores e instituições.

O “redesign” do corpo é entendido como recriação da aparência do sujeito e é executado com o auxílio de tecnologia e ciência, presentes nas cirurgias plásticas, as quais podem alterar tanto a aparência quanto a estrutura corporal. O corpo, capaz de assumir outras formas e diferentes aparências pode ser associado a um espaço de criação e experimentação. O contexto que investigamos nos abre questões que permanecem reverberando no sentido de apontar para futuros trajetos que associem design, arte e corpo.

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