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GENTE DE FRONTEIRA: FARELO LIMA, O GUARDIÃO DA BARRANCA Natali Braga Spohr Doutoranda em História na Universidade Federal de Santa Maria-UFSM Professora na Universidade Federal do Pampa-Unipampa, Campus Jaguarão, RS/Brasil. E-mail: [email protected] RESUMO Este estudo apresenta as aproximações de campo iniciais com José Humberto Battanoli de Lima, o Farelo, que se manifesta como um guardião da memória (LE GOFF, 1992) do Festival da Barranca. O autodenominado pescador, fez parte de todas as quarenta e oito edições do Festival, como idealizador, artista e organizador, além de residir, há mais de vinte e cinco anos no local em que ocorre o evento, acrescenta-se a isso, o fato de que na atualidade, Farelo Lima é um dos únicos participantes fundadores que está vivo, sendo assim uma importante fonte de pesquisa. Tal como Menocchio (GINZBURG, 1987), Farelo tem sua própria cosmogonia, que numa rotina singular de autoexílio, amalgama um gauchismo de tons idílicos, tradicionais e em transformação, condição essa última, inerente a tudo que permeia à cultura. Palavras-chave: Patrimônio Cultural. Memória. Festival da Barranca. Tentando entender a Barranca (ou patrimônio de quem e para quem?) O Festival da Barranca acontece desde 1972 em São Borja, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, às margens do Rio Uruguai, linha de fronteira com a Argentina. O evento é espaço de significativa e extensa produção de música e poesia no decorrer da última metade de século e dele participam cantores, compositores, poetas, ficcionistas e memorialistas, e além de pessoas ligadas ao meio artístico regional, políticos e produtores rurais. Nas décadas de 70 e 80 do século XX, os festivais nativistas passam a fazer parte da sociedade no Rio Grande do Sul, muito por conta das iniciativas anteriores, como por exemplo do Movimento Tradicionalista Gaúcho, o MTG, que foi estabelecido em 1966 e

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GENTE DE FRONTEIRA: FARELO LIMA, O GUARDIÃO DA BARRANCA

Natali Braga Spohr

Doutoranda em História na Universidade Federal de Santa Maria-UFSM

Professora na Universidade Federal do Pampa-Unipampa, Campus Jaguarão,

RS/Brasil.

E-mail: [email protected]

RESUMO

Este estudo apresenta as aproximações de campo iniciais com José Humberto Battanoli

de Lima, o Farelo, que se manifesta como um guardião da memória (LE GOFF, 1992) do

Festival da Barranca. O autodenominado pescador, fez parte de todas as quarenta e oito

edições do Festival, como idealizador, artista e organizador, além de residir, há mais de

vinte e cinco anos no local em que ocorre o evento, acrescenta-se a isso, o fato de que na

atualidade, Farelo Lima é um dos únicos participantes fundadores que está vivo, sendo

assim uma importante fonte de pesquisa. Tal como Menocchio (GINZBURG, 1987),

Farelo tem sua própria cosmogonia, que numa rotina singular de autoexílio, amalgama

um gauchismo de tons idílicos, tradicionais e em transformação, condição essa última,

inerente a tudo que permeia à cultura.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural. Memória. Festival da Barranca.

Tentando entender a Barranca (ou patrimônio de quem e para quem?)

O Festival da Barranca acontece desde 1972 em São Borja, na fronteira oeste do

Rio Grande do Sul, às margens do Rio Uruguai, linha de fronteira com a Argentina. O

evento é espaço de significativa e extensa produção de música e poesia no decorrer da

última metade de século e dele participam cantores, compositores, poetas, ficcionistas e

memorialistas, e além de pessoas ligadas ao meio artístico regional, políticos e produtores

rurais.

Nas décadas de 70 e 80 do século XX, os festivais nativistas passam a fazer parte

da sociedade no Rio Grande do Sul, muito por conta das iniciativas anteriores, como por

exemplo do Movimento Tradicionalista Gaúcho, o MTG, que foi estabelecido em 1966 e

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deriva de vários acontecimentos que transcorriam na sociedade rio-grandense desde o

final da década de 1940. Ocasião em que o Estado Novo se extinguia e jovens estudantes,

encorajados pela abertura política e saudosos das suas raízes rurais, tomam iniciativas que

geraram esse movimento. João Carlos Dávila Paixão Côrtes, Luiz Carlos Barbosa Lessa

e Glaucus Saraiva, foram os fundadores do MTG, para Tau Golin (1983, p.11), o

tradicionalismo pode até ser inserido dentro da cultura popular, mas é produzido pela elite

latifundiária e agropastoril, que por deter potencial de dominação, influencia as

manifestações culturais. No entanto, somente representa a realidade de uma minoria

oligárquica.

O primeiro deles foi a Califórnia da Canção Nativa, cuja edição inicial ocorreu em

dezembro de 1971, na cidade de Uruguaiana, distante em torno de duzentos quilômetros

de São Borja. Inspirados pelo festival pioneiro, Apparício Silva Rillo, José Lewis Bicca,

Antonio Augusto Fagundes (Nico Fagundes) e Carlos Castilhos, ou como muitos ouviram

deles, “um espírito”, criou/criaram o Festival da Barranca, ou somente, Barranca.

E aí aconteceu. Por acaso, repito, contrariando os racionalistas. A gente

estava no “Pesqueiro da Bomba”, no Rio Uruguai, na Semana Santa de

1972. Havia tomado umas que outras, alguém falou na Califórnia da

Canção acontecida em primeira edição no dezembro anterior, em

Uruguaiana, quando uma voz (acho que do Passaronga, outros acham

que outro, há quem jure que de um espírito) sugeriu: - E se a gente

fizesse o nosso festival? Aqui mesmo, no improviso, na barranca do

rio? (RILLO, 1985)1.

O tema proposto aos compositores é conhecido na noite de sexta-feira, para ser

apresentado na noite de sábado, de modo que os participantes têm vinte e quatro horas

para elaborar a obra. As premiações são, Cigarra de Acampamento, para aquele que

canta por mais tempo e anima o grupo; O Comendador, para quem alcançar um alto grau

alcoólico, porém sem ser qualificado como um “borracho” inconveniente; Troféu Quá

Quá, premia a música irreverente e com humor; Troféu Sérgio Jacaré, para a melhor

letra e Troféu Apparício Silva Rillo, ao primeiro lugar.

1 RILLO, A. S. Entendendo a Barranca. Disponível em: <http://www.angueras.com.br/barranca1.html>.

Acesso em: 03 de abr. de 2019.

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A organização inicial daquilo que seria tido como patrimônio cultural brasileiro,

numa perspectiva de valorização da nacionalidade, relaciona-se intimamente com os

regionalismos e, no Rio Grande do Sul2, foram representados (e elaborados) pela

literatura de Simões Lopes Neto e de Dante de Laytano, bem como pelo Instituto

Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul - IHGRGS, criado em 1920, os quais foram

precedidos por Araújo Porto Alegre, poeta, escritor e político do século XIX, ou seja, são

pessoas e instituições que, inclusive, influenciaram posteriormente a criação do MTG.

Em A Invenção das Tradições, Eric Hobsbawm e Terence Ranger (1997)

estabelecem um conceito para tradição, onde apontam que a ideia de recorrência presente

tanto nas tradições inventadas ou recriadas são dispositivos acionados com o intuito de

tornar a prática crível enquanto legado.

O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas nunca

indefinido. Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas, construídas

e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira

mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo

– às vezes coisa de poucos anos apenas – e se estabeleceram com

enorme rapidez. (...) Por “tradição inventada” entende-se um conjunto

de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente

aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar

certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que

implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado.

(HOBSBAWM, E. e RANGER, T., 1997, p. 9).

Entende-se que cultura são “atitudes, mentalidades e valores e suas expressões e

concretizações ou simbolizações em artefatos, práticas e representações” (BURKE, 2008,

p. 8-9), enfim, um universo onde os sujeitos fazem um movimento contínuo de

reorganização e adaptação. O que permite refletir sobre os processos de construção dos

patrimônios e entendê-los como forjados, como narrativas de valor que consolidam a

imagem dos grupos ou da nação e que está, a todo tempo, sendo reconstruída.

2 Ver: Ana Lúcia Goelzer Meira. “O Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Rio Grande do Sul no século XX: atribuições de valores e critérios de intervenção”. Tese de doutorado em Arquitetura. Porto Alegre: Faculdade de Arquitetura da UFGRS, 2008. Darlan de Mamann Marchi. “O Patrimônio antes do Patrimônio em São Miguel das Missões: dos jesuítas à UNESCO”. Tese de doutorado em Memória Social e Patrimônio Cultural. Pelotas: Instituto de Ciências Humanas da UFPel, 2018.

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Para pensarmos o desenvolvimento do conceito de patrimônio cultural no Brasil,

três acontecimentos históricos e políticos são preponderantes: a Semana de Arte Moderna

(1922), o Estado Novo (1937-1945) e a criação do Serviço do Patrimônio Artístico

Nacional (SPHAN), através do Decreto-Lei 27/37, de 30 de novembro de 1937, com

ênfase a esse último, uma vez que a evolução do conceito de patrimônio cultural e o órgão

federal tem suas histórias entrelaçadas.

Foi somente a partir da Constituição Federal de 1988, que é deslocada do Estado

para a sociedade e seus cidadãos ou segmentos, a responsabilidade pela atribuição do

valor cultural e que os bens imateriais passaram a ser considerados, conforme o Artigo

216 (BRASIL, 1988). Denota-se que ao final do século XX, ocorre uma mudança de

enfoque da perspectiva física para um olhar mais subjetivo da paisagem, pautada pela

relação sujeito/objeto, o que provocou o estímulo às relações harmoniosas entre seres

humanos e o meio ambiente, nesse contexto, em 1992, ocorre a Convenção do Patrimônio

Mundial, primeiro instrumento legal a reconhecer e proteger paisagens culturais, como

bem patrimonial independente (FONSECA, 1997).

Apesar de ser considerado uma manifestação de relevância cultural do Rio Grande

do Sul e integrar o Calendário Oficial de Eventos do Estado (Lei 14.850/2016) e ser,

também, patrimônio cultural imaterial do município onde ocorre (Lei 5.332/2018), o

Festival da Barranca se trata de um evento restrito aos convidados, em média de trezentos

ao ano, todos do gênero masculino, e cujas obras produzidas durante as edições,

permanecem inéditas ao final do evento, uma vez que as músicas e as poesias não são

registradas em gravações, o que evidencia novamente, que o acesso a este patrimônio

cultural não é amplo.

Canclini (1994), apresenta o paradigma participacionista, que aborda o patrimônio

e sua preservação e o relaciona com as necessidades da sociedade, em que sua seleção e

a forma de preservação devem ser decididas nas vias democráticas, por pessoas

interessadas em debater suas opiniões, uma vez que nos debates contemporâneos sobre

patrimônio cultural há destaque para à atenção aos grupos vulneráveis, ou seja, grupos

que são excluídos de forma material, social e psicológica, por conta de variáveis como

religião, saúde, opção sexual, etnia e gênero, entre outras, do acesso, participação e

oportunidades igualitárias aos bens e serviços universais.

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É mister tomar o patrimônio como uma arena de acordos e conflitos de valores,

avaliações e proposições, que explicitam como ele é, além de uma construção social, uma

prática eminentemente política. Neste contexto, pensar para quem é o patrimônio,

mesmo em meio às lembranças e aos esquecimentos que o transpõem, se constitui numa

maneira de exercitar a democracia e a compreensão que há uma pluralidade de narrativas

identitárias que fazem parte da nação, e assim, poder atuar numa perspectiva de

descolonialização dos patrimônios, uma vez que a imagem da nação está a todo tempo

sendo redimensionada, reescrita e repensada e para tanto, sublinha-se a importância do

trabalho historiográfico para a reconstrução dessas narrativas.

Procedimentos da pesquisa

O trabalho de campo, realizado através do contato por meio da observação

participante com o senhor Farelo Lima, uma das principais fontes da pesquisa em nível

de doutorado que está sendo desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em

História-PPGH/UFSM), na Linha de Pesquisa Memória e Patrimônio, ocorreu em

fevereiro de 2019, pelo período de duas semanas. Foram realizadas entrevistas abertas,

coletadas através do método da história oral, as quais foram gravadas em áudio,

posteriormente transcritas e analisados à luz da análise do discurso, que além dos

conteúdos das vozes, almeja perceber o não-dito, ou seja, os silenciamentos no interior

dos discursos. Cabe ressaltar que o contato com a referida fonte iniciou em 2015, ocasião

em que passei a residir em São Borja e ir com frequência, em jantares e rodas de violão

na Barranca do Uruguai, no exato e místico local aonde ocorre o Festival da Barranca.

Desde lá, as portas do lugar estão abertas o ano todo para mim, menos durante o evento,

que como já apontado, é vetado para as mulheres.

Destaca-se também, a aproximação do tema através das pesquisas que tangenciam

o assunto, uma vez que, as últimas décadas revelaram muitos trabalhos que se ocupam da

fronteira como objeto de estudo, mesmo que indiretamente, haja vista que o estado do

Rio Grande do Sul tem mais da metade do seu território pautado por ela. Esses trabalhos,

passam a propor uma orientação historiográfica de integração do espaço fronteiriço, de

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entendê-lo como parte do espaço platino3, assim, conforme Piccolo (1997, p. 218), passa-

se a compreender que a fronteira “não é uma linha, mas um espaço que se define mais

por seus atributos socioeconômicos e o limite, como conceito, é essencialmente político”.

Ainda, considera-se especialmente, os trabalhos de Luís Augusto Farinatti (2007)

e de Mariana Thompson Flores (2012), pois ambos estudos também tem por recorte

espacial a fronteira oeste do estado do Rio Grande do Sul e principalmente, preocupam-

se em apresentar novas possibilidades para se pensar o espaço fronteiriço, mais

regionalizadas e portanto, mais próximas da realidade em questão e, a partir da evolução

da noção de fronteira dinâmica, os autores elaboram a proposta de compreensão fronteira

manejada (FARINATTI e THOMPSON FLORES, 2009).

Farelo Lima, o guardião da Barranca

O narrador conta o que ele extrai da experiência - sua própria

ou aquela contada por outros. E, de volta, ele a torna

experiência daqueles que ouvem a sua história"

Walter Benjamin

José Humberto Battanoli de Lima, o Farelo, nasceu em São Borja, no dia 09 de

março de 1947. Mora, há vinte e cinco anos, desde que se separou da mãe de seus dois

filhos, na encosta do Rio Uruguai, distante treze quilômetros do centro da cidade. Além

de pescador, peão de fazenda autônomo, fez parte da banda musical de seu primo, Mano

Lima, compôs canções, e ainda, outros dizem que ele é dos melhores cozinheiros das

redondezas. A mídia local, se refere a ele como sendo o ecônomo do Festival da Barranca,

mas aqui, entende-se Farelo Lima, sobretudo, como o guardião das memórias de um

evento que figura como relevante na construção do patrimônio cultural gaúcho, há quase

cinquenta anos.

Tanto que eu só fui pescador profissional, nunca fui peão de ninguém,

nunca tive carteira assinada por ninguém. Inclusive, agora, me cortaram

até o meu salário. Mas nós ainda temos um recursinho. Daqui uns dias

3 Ver: GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. O horizonte da Província: a república Rio-Grandense e os

caudilhos do Rio da Prata (1835-1845). Tese de Doutorado – UFRJ, Rio de Janeiro, 1998. OSÓRIO, Helen.

Estancieiros, lavradores e comerciantes na Constituição da Estremadura Portuguesa na América, Rio

Grande de São Pedro, 1737-1822. Tese de Doutorado – PPGHIS/UFF, Niterói, 1999. OSÓRIO, Helen.

Apropriação de terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do Espaço Platino. Dissertação de Mestrado

– História – CPGH/UFRGS, Porto Alegre, 1990.

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eu taco na justiça, daí eu quero ver se a justiça é verdadeira... Porque a

vida inteira eu produzi, aqui mesmo, se eu me meter ali, eu tô

produzindo. Só que eu não vou meter nunca mais, porque não tenho

mais idade.4

Farelo acorda cedo, antes das cinco da manhã, sintoniza a televisão no canal

argentino e se senta no alpendre de sua casa, feita de pedras e de ferro, para resistir às

investidas do Rio Uruguai. Sem cerimônias, conta que desde os quinze anos de idade, se

apaixonou pela cachaça, sendo essa a sua bebida de álcool preferida, bem como que

ingere somente o produto de uma determinada marca. Diz que toma um litro e meio de

aguardente por dia, em pequenos goles da bebida, que mantém na geladeira. Observar o

rio é com o que Farelo mais se ocupa. Ri e aponta para os pescadores com seus barcos

caros que deixam escapar os dourados e me explica sobre os lugares e horários mais

propícios para a pesca. Lamenta que eu não coma carne, pois senão provaria seus pratos

com peixe, porém avisa que eu não me preocupe, pois ele tem uma fazenda de abóboras

e posso comer todas. Rimos. Ele arma outro cigarro e antes de acender, vai à geladeira,

toma uns goles e volta para sua cadeira e com uma disposição e respeito incríveis pelo

meu trabalho, conversa como se fossemos velhos amigos.

À esta época, acontecia um circuito de festivais de música e dança na Argentina,

Farelo acompanhava todas as apresentações que podia. Como um fronteiriço, o idioma

não era barreira. Por vezes, pegava seu violão, todo maltratado pelo Antônio, seu neto de

três anos e dedilhava uma milonga. Conforme apontou Thompson Flores, “a história de

uma fronteira comporta, em primeira instância, seus movimentos de avanços e recuos da

linha, o que incide considerar que existiram territórios e pessoas que estiveram dentro e

fora do limite em momentos diferentes” (2012, p. 64).

Tal qual Menocchio (GINZBURG, 1987), Farelo tem sua própria cosmogonia,

ideias sobre o mundo que compartilha em frases tais quais “não te doendo nada, a vida

vai sendo levada” ou então “o que surgir de ruim, eu saio e ataco”. Diz que conversa com

José Lewis Bicca, o Zé Bicca, falecido em 2009, e que ele o fala para “curar o porre”.

4 LIMA, José Humberto Battanoli de. Entrevistas realizadas em fevereiro de 2019. Entrevistadora: Natali Braga Spohr. São Borja/RS, 2019. Arquivos gravados em .mp3.

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Fica emocionado quando lembra dos amigos que morreram, e calmamente sentencia “não

seja louco de perguntar o tempo que falta”.

Figura 1 – Farelo Lima no alpendre de sua casa. FONTE: Acervo da pesquisa (2019).

Farelo conheceu e conviveu com muitas pessoas da cena cultural regional, das

suas memórias, traz Elis Regina e a proximidade com o produtor da cantora, o Patinete.

Conheceu Atahualpa Yupanqui, tocou com Jayme Caetano Braun e abriu o palco da

Barranca para Yamandú Costa, quando este era apenas um adolescente.

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Eu sabia, pois conhecia desde guri. Então botei no meio da roda e os

cara diziam: e aquele pipoqueiro de violão? Não, pera aí um pouquinho,

escutem ele! Daí chegou a hora do palco grande. Na roda ele é o

pipoqueiro, agora ele sozinho lá no violão... “tá, mas não era aquele que

de tarde tu tava ensinando no violão?” Não, aquilo era uma brincadeira

que eu fiz com ele, porque ele é o melhor violão do Brasil, ao menos o

mais novo violão do Brasil e eu sou o pior. E eu programei a coisa, digo,

guris hoje eu vou criar uma encrenca ali, uma tertúlia (explicar), com o

pior e o melhor violeiro do Brasil. Foi assim, eu disse: vou te ensinar

tocar milonga, guri... e ele, bandido, saia só atrás de mim, coisa simples,

1, 2,3 e deu. Era lindo e o povo entendeu, eu queria era movimentar

com aquilo, por que tava muito chato. Eu, o Augustin e o Borges, era

sempre nós tocando. Vamos colocar outro bando a tocar, que nós vamos

ficar bêbado por aí, apreciando... porque agora eles tocam (os mais

jovens), senão ficamos só nós aqui gastando as unhas e aí, renovou a

Barranca não sei quantas vezes. (LIMA, 2019).

Conforme observado por Ecléa Bosi, na obra-prima Memória e Sociedade:

lembranças de velhos, lançada em 1979, às vezes ocorrem “deslizes na localização

temporal de um acontecimento [...] Falhas de cronologia se dão também com

acontecimentos extraordinários da infância e da juventude [...] uns e outros sofrem um

processo de desfiguração” (1994, p. 419). Porém, assim como afirma Maurice Halbwachs

(apud BOSI, 1994), ninguém melhor que o velho, para exercer a função social de lembrar.

E principalmente, porque se entende que há pessoas especializadas no ofício de transmitir

e guardar essas tradições, são eles: “[...] genealogistas, guardiões dos códices reais,

historiadores da corte, tradicionalistas” (LE GOFF, 1992, p.425).

Sobre o evento, na qualidade de um produtor cultural “prático”, Farelo discorre

sobre o Festival da Barranca, sua condição de ser restrito aos convidados, a ausência dos

pares, Apparício Silva Rillo e José Bicca, já falecidos, e como enxerga as transformações

no acontecimento cultural no decorrer das edições.

Por que o espetáculo é à parte? Tem que ser apartado mesmo, pela

qualidade que nós pudermos apresentar. Nós forcejamos e ninguém

sabe disso, tem um grupo que forceja pra Barranca ser o que ela é.

Aquele negócio que eu inventei de colocar a gurizada nas coisas,

chegava os machão véio pra cantar e eu dizia, não, faz uma base pra

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gurizada, vamo lá que essa gurizada, que isso não tem nada podre, são

tudo bom. Aí que o Zé Bicca ia. Mas morreram os que me davam

força. Ficaram uns novos, mas que estão meio titubeando ainda, não

sabendo quem sabe por onde. Nós velhos sabemos por onde, faz anos.

Tem é que dar valor ao que fizemos. Tem que mudar, a cada ano tem

que fazer. Eu nunca me esqueço quando veio aquele truco pra cá,

tinham gaiola de prender gente! Eu digo, mas o que é isso? Chegavam

aqui com uma maçaroca de ferro e erguiam aquilo ali. O primeiro que

eles ergueram foi um juiz de comarca que não teve comportamento.

Mas vem cá? Não era melhor se comportar do que trazer esses pedaços

de ferro? E aí eles foram entendendo. Teve uma vez que de manhã,

queriam fazer uma alvorada e botavam uma bateria de bombas, davam

milhões de tiro, gastavam um monte de dinheiro, espantavam tudo que

é bugio e passarinho. Vocês que vieram e prometeram proteger a

natureza trazem uma bateria de bomba? Escuta, que tal, eu ir lá no 2 RC

e pedir o melhor clarim (eu tenho uns cabos véio do meu tempo que

eram clarim) pra vir tocar alvorada pra vocês? (LIMA, 2019).

Percebe-se que há silenciamentos por parte do entrevistado sobre a não

participação das mulheres no evento, o que manifesta um assunto mal resolvido e que ao

que parece, incômodo. Não à toa que uma das primeiras coisas que Farelo disse quando

aceitou participar desta pesquisa, foi: “eu tenho pavor da pergunta, me dá nojo”.

Acerca das futuras edições, faz planos de retomar as “palestras”, ou seja, os

esquetes teatrais que apresentava com Lagoa, convidado da Barranca. Nesse ínterim, é

relevante destacar que Farelo Lima atuou em filmes e documentários produzidos

localmente, o que evidencia, ainda mais, a sua predileção por atividades artísticas.

E agora já combinamos, eu vou montar de novo as nossas palestras,

essas com o Lagoa, algo fora do comum, bom “ele atravessou o mar

morto de violão”, só pra começar. Esse cara é empregado de uma firma

muito grande, lá em Passo Fundo, Carazinho, coisa agrícola e dão

viagens pelo mundo pra ele, e ele adquire mil coisas com isso e vem

aqui e me aplica: “Farelo veio, não porque agora eu descobri uma

família de dinossauros, no vale tal e ali, eu meio borracho, me empolgo

e vamos lá pro palco registrar o trabalho. Pra nós entreter essa gente aí,

mas com nobreza. E agora pediram pra voltar por que nós não fizemos

mais, tava indo pra um lado de bobagem, cada um querendo aparecer

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mais que o outro, aqui tem uns malandros, do próprio Angüera5, que

querem aparecer, porque eles não tem aonde aparecer e aqui na

Barranca tem, de público, pelo mínimo 300 pessoas e tem gente que

precisa disso, não é o meu caso ou os outros, nós não precisamos. Pra

que tu vai ser engraçado pra alguma coisa? Que necessidade é essa?

Não tem. Porque hoje eu vou ser engraçado e amanhã um

esquecido. Não tenho nada com isso. Agora o lindo é tu fazer, quando

levantam e te aplaudem de pé... eu nunca me esqueço de uma vez que

eu criei um poema de tarde aqui, era um concurso de poesia e tinha a

parte do Quá-Quá6 que tem a poesia satírica e eu sempre pendi pra esse

lado, então criei um rei que o bobo da corte dormia com mulher dele e

aquilo foi um espetáculo e o cara que me acompanhou no violão, sentou

no chão e eu dizendo o poema num banquinho comum, aquilo ali, eu

espichei o que pude, parecia que cansava eles... quando eu terminei,

aplaudiram de pé, todo mundo. (LIMA, 2019).

Aumenta o tom da voz e diz: “Onofre era um rei, se lá de qual planeta eu tirei

aquele louco e o bobo da corte dormia com a mulher dele e aí eu criei uma serenata toda

em roda daquilo ali. Quer dizer que de bobo não tinha nada...”, ri e se emociona muito

com a lembrança. Quando nos despedimos, numa tardinha de sexta-feira, Farelo me disse,

“te cuida, mana!”, eu falei que voltaria até os preparativos do próximo Festival da

Barranca7, que pela primeira vez desde a sua criação, em 1972, não ocorreu.

5 O Grupo Amador de Arte Os Angüeras, de São Borja, foi fundado em 10 de março de 1962, e desde então,

atua nos campos da música, da literatura regional, do teatro e da pesquisa sobre o folclore, além da

organização do Festival da Barranca. Os Angüeras, surgiram a partir do Departamento Cultural do chamado

“Clube dos Dez”, que se tratava de um grupo de amigos, na maioria casais, que se reuniam periodicamente. 6 Farelo Lima foi vencedor de vários Troféus Quá Quá, uma vez que diz que as composições de cunho humorístico são as que mais lhe dão prazer em criar. 7 A edição de 2020 do Festival da Barranca foi adiada sem definição de data em função da pandemia de Coronavírus (COVID-19).

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Figura 2 - Farelo Lima ao centro, com o violão. FONTE: Acervo Os Angüeras.

Algumas considerações

Entende-se, como Bakhtin/Voloshinov (1999), que o discurso reflete e refrata, ou

seja, dissemina a realidade social na sua totalidade e essa refração, traduzida em interesses

sociais e de classes, se refrata a partir de um determinado grupo social, de modo a elevá-

la numa visão de totalidade de mundo. Assim, quando acionamos identidades que

remetem às tradições do gauchismo, de acordo com Oliven (1992; 1992b), não escapamos

do arquétipo da campanha gaúcha, localizada na região sudoeste do Rio Grande do Sul e

que faz fronteira com o nordeste argentino e com o norte uruguaio, tal como do gaúcho,

tipo social humano, habitante típico desta região. Segundo Leal (1992, p.148), “gaúchos

são necessariamente homens, e virilidade é condição de ser gaúcho. O gaúcho tem o

domínio sobre o selvagem, identificando a si próprio com o selvagem, com a força, com

poder e natureza”, de modo que neste contexto, os espaços de produção de significados,

como o galpão e a estância são lugares onde tradicionalmente se elaboram noções do que

é ser homem, e sobretudo, do que é ser gaúcho.

Farelo Lima tem sua própria cosmogonia, que numa rotina singular de autoexílio,

permeada pela vivência numa fronteira, amalgama um gauchismo de tons idílicos e

tradicionais, mas como observado, também em transformação. E mesmo que essa visão

de mundo seja anacrônica, como são os mitos (HALL, 2006), ressalta-se a importância

dos guardiões das memórias, pois nem sempre a história estará à disposição para que a

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analisemos e a escrevamos, verifiquemos os acontecimentos e as suas transformações,

estas que são compreendidas como inerentes a tudo que permeia a cultura.

Por fim, é inegável a representatividade do Festival da Barranca para o gauchismo

e seu patrimônio cultural, que foi, desde sua origem, fundado na ideia do “centauro dos

pampas”, ou seja, estabelecido pela tradição e a lógica masculina. Porém, a

contemporaneidade trouxe novas questões, como a hibridização cultural e as pautas

feministas, que perguntam onde se encaixam aqueles que não são representados pela

masculinidade? E em tempos de empoderamento feminino, como identificar-se com um

espaço ou patrimônio “proibido”? Questões tais que, a partir de incursões como a que se

buscou realizar através do trabalho de campo empreendido, permitem pensar sobre a

construção das identidades e a legitimação delas como representativas.

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