Gatos

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Gatos (uma pequena história de terror e perversão) Capítulo I Não me atreveria a contar algo sobre gatos se não contivesse um grama de verdade. É verdade que muitas lendas foram alimentadas com estranhas histórias, desde os gatos do antigo Egito, que viviam rondando as pirâmides, se esgueirando por passagens estreitas, fazendo com que muitas múmias desfizessem parte de suas faixas para criarem laços e armadilhas, ou simplesmente deixando caçar os famosos ratos mumificados. Com o tempo, histórias de gatos deixaram de figurar nos anais do horror, citando apenas de passagem o caso de Jacques de Trouville, mágico mambembe que vomitava gatos, alguns ainda vivos morreu com gangrena na garganta. Nos dias atuais, gatos e humanos convivem em franca harmonia, exceto quando os primeiros tentam convencer os outros de seus dotes musicais. Mas fora isso, sadia tolerância. Mas algo ocorreu em meados (ou miados) de 19… Poucas pessoas se atreveriam a contar, ainda que protegidos entre quatro paredes. Não sem antes olhar para os lados, ou o que é pior, para cima, para se assegurar de que nenhum gato, ou parente remoto do bichano, estivesse a sondar, com o pelo eriçado e a chispa nos olhos. Sou capaz de apostar que não. Mas, enfim, me atrevo a contar todos os fatos referentes à vinda de Fabhion Pratt de São Paulo e os posteriores acontecimentos funestos que culminaram em sua retirada, rumo a selva mais densa ao norte do país. Fabhion era um rapaz afável, de tez pálida e gestos graciosos, matematicamente estudados. Levava os amigos ao seio do seu lar, dando intermináveis saraus onde se discorria sobre filosofia, artes, religião, sedução de mulheres, magia negra, jogos de azar, toda uma gama de culturas que dominava, dosando adequadamente lances de valentia e lambidas na testa. Falava-se de tudo, mas havia certa relutância em por à baila o nome de Kadja von Trapp, antiga paixão que o recebia em seu solar com um gato ao colo chamado Broxa. A essa simples menção, seu semblante era só devastação, e quase sempre, ato contínuo, despachava os amigos e caía em recolhido silêncio por uns dias. Era conhecido por sua tendência quase surreal de colecionar casos e amores de tempos em tempos. Alguns ultrapassavam a fronteira do tolerável. Os vizinhos reclamavam do barulho. Uma vez foi flagrado fazendo amor atrás do botijão de gás. Outras vezes, como um lugar de sua predileção, encostado ao interruptor. Era o que ele chamava de transa “poltergeist”. Num dos seus diários, ele descrevia como era o seu processo de sedução, pouco antes do coito e dos biscoitos: “Primeiro, eu a levo para o quarto ao som de ABBA Gold. Num movimento furtivo, sem ela notar, passo banha de porco nas virilhas e nas axilas. Pouco antes de tirar-lhe as roupas íntimas com os dentes, dou-lhes uma rasteira, derrubo-lhes no chão e taco talco Jonhson no bumbum. Em seguida, passo óleo de peroba na cara, sento na cadeira de rodas, ligo o motor e passo por cima de suas costas, massageando sempre, mas sempre quando tento subir pela bunda, caio e bato com a cabeça na quina da cama. Quase sempre funciona.” Era este o primeiro passo para uma noitada regada a Elma Chips. Soube, por fontes indiretas, que teve uma infância brilhante. Sua casa era um verdadeiro celeiro de animais. Seu pai criava canários, sua irmã criava peixinhos, seu tio criava um louro, a governanta criava percevejos no colchão e Fabhion criava apenas monstrinhos, pois seu hobby era genética. Anos mais tarde, teria grande satisfação em encontrar uma linhagem perdida de monstros na figura de Wendell. Mas isso não vem ao caso agora. Desde aquela época detestava gatos e era obrigado a conviver com eles, pois sua mãe sofria de certa alergia a ratos e o médico receitara a companhia de um certo número de gatos como medida preventiva, incluindo dormir perto dos tais bichanos. Fabhion dormia obrigatoriamente com os pais num quarto pequeno, alguns móveis e 79 gatos quizilentos. Toda noite, reunidos, eles formavam um negão, tomando-lhe o travesseiro e as cobertas. Vem daí a sua aversão aos gatos.

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Uma pequena história de terror e perversão

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Page 1: Gatos

Gatos

(uma pequena história de terror e perversão)

Capítulo I

Não me atreveria a contar algo sobre gatos se não contivesse um grama de verdade. É verdade que muitas

lendas foram alimentadas com estranhas histórias, desde os gatos do antigo Egito, que viviam rondando as

pirâmides, se esgueirando por passagens estreitas, fazendo com que muitas múmias desfizessem parte de

suas faixas para criarem laços e armadilhas, ou simplesmente deixando caçar os famosos ratos mumificados.

Com o tempo, histórias de gatos deixaram de figurar nos anais do horror, citando apenas de passagem o

caso de Jacques de Trouville, mágico mambembe que vomitava gatos, alguns ainda vivos – morreu com

gangrena na garganta.

Nos dias atuais, gatos e humanos convivem em franca harmonia, exceto quando os primeiros tentam

convencer os outros de seus dotes musicais. Mas fora isso, sadia tolerância.

Mas algo ocorreu em meados (ou miados) de 19… Poucas pessoas se atreveriam a contar, ainda que

protegidos entre quatro paredes. Não sem antes olhar para os lados, ou o que é pior, para cima, para se

assegurar de que nenhum gato, ou parente remoto do bichano, estivesse a sondar, com o pelo eriçado e a

chispa nos olhos. Sou capaz de apostar que não. Mas, enfim, me atrevo a contar todos os fatos referentes à

vinda de Fabhion Pratt de São Paulo e os posteriores acontecimentos funestos que culminaram em sua

retirada, rumo a selva mais densa ao norte do país.

Fabhion era um rapaz afável, de tez pálida e gestos graciosos, matematicamente estudados. Levava os

amigos ao seio do seu lar, dando intermináveis saraus onde se discorria sobre filosofia, artes, religião,

sedução de mulheres, magia negra, jogos de azar, toda uma gama de culturas que dominava, dosando

adequadamente lances de valentia e lambidas na testa. Falava-se de tudo, mas havia certa relutância em por

à baila o nome de Kadja von Trapp, antiga paixão que o recebia em seu solar com um gato ao colo chamado

Broxa. A essa simples menção, seu semblante era só devastação, e quase sempre, ato contínuo, despachava

os amigos e caía em recolhido silêncio por uns dias.

Era conhecido por sua tendência quase surreal de colecionar casos e amores de tempos em tempos. Alguns

ultrapassavam a fronteira do tolerável. Os vizinhos reclamavam do barulho. Uma vez foi flagrado fazendo

amor atrás do botijão de gás. Outras vezes, como um lugar de sua predileção, encostado ao interruptor. Era o

que ele chamava de transa “poltergeist”.

Num dos seus diários, ele descrevia como era o seu processo de sedução, pouco antes do coito e dos

biscoitos: “Primeiro, eu a levo para o quarto ao som de ABBA Gold. Num movimento furtivo, sem ela notar,

passo banha de porco nas virilhas e nas axilas. Pouco antes de tirar-lhe as roupas íntimas com os dentes,

dou-lhes uma rasteira, derrubo-lhes no chão e taco talco Jonhson no bumbum. Em seguida, passo óleo de

peroba na cara, sento na cadeira de rodas, ligo o motor e passo por cima de suas costas, massageando

sempre, mas sempre quando tento subir pela bunda, caio e bato com a cabeça na quina da cama. Quase

sempre funciona.”

Era este o primeiro passo para uma noitada regada a Elma Chips.

Soube, por fontes indiretas, que teve uma infância brilhante. Sua casa era um verdadeiro celeiro de animais.

Seu pai criava canários, sua irmã criava peixinhos, seu tio criava um louro, a governanta criava percevejos no

colchão e Fabhion criava apenas monstrinhos, pois seu hobby era genética. Anos mais tarde, teria grande

satisfação em encontrar uma linhagem perdida de monstros na figura de Wendell. Mas isso não vem ao caso

agora. Desde aquela época detestava gatos e era obrigado a conviver com eles, pois sua mãe sofria de certa

alergia a ratos e o médico receitara a companhia de um certo número de gatos como medida preventiva,

incluindo dormir perto dos tais bichanos.

Fabhion dormia obrigatoriamente com os pais num quarto pequeno, alguns móveis e 79 gatos quizilentos.

Toda noite, reunidos, eles formavam um negão, tomando-lhe o travesseiro e as cobertas. Vem daí a sua

aversão aos gatos.

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Os anos se passaram, e tirando um único incidente, em que Fabhion perdera a 1ª colocação em um concurso

público para um gato filhinho de papai, o resto de seus dias em São Paulo transcorreu em absoluta calma.

Sinto que era estranho um gato num concurso, mas numa comissão, especialistas concordaram em um

ponto: além das línguas requisitadas – inglês e espanhol – o gato também falava siamês, levando clara

vantagem sobre Fabhion. Até hoje ele não se perdoa pelo fato.

A primeira notícia da aversão de Fabhion pelos gatos aconteceu em uma noite de tempestade, quando Belle,

sua camareira e namorada, descobriu em suas gavetas uma página de diário, com o seguinte trecho,

parcialmente riscado:

“Já tive dois gatinhos, um se chamava Nitro e o outro Glicerina. Os nomes eram uma homenagem às minhas

aulas no laboratório. Como estava mal financeiramente, e nas últimas, tentei cruzá-los, sacudindo um no

outro, pois eram de raça. Sofri violenta explosão…”

Horrorizada, Belle guardou os papéis e despiu-se rapidamente, à espera de Fabhion. Estava na hora do

grande ritual.

Capítulo II

Wendell estava fazendo aquelas imitações horrendas de Ultraseven, no auditório 403, para ilustrar uma

palestra do Prof. Stelman sobre Patologias do Indivíduo Sem Simancol quando foi abordado por um senhor,

de barba grisalha e capote idem, perguntando se conhecia Fabhion.

– Sim, conheço, marcamos hoje com a turma um luau e eu fui encarregado de levar o som, os discos da

Vanderléia e as minhas irmãs, além dos brioches recheados com poder.

O senhor não esboçou nenhuma reação, mas rapidamente enfiou no bolsão da bermuda de Wendell um

pacote amarrotado.

– Entregue essa encomenda a Fabhion, meu bom rapaz. É de extrema importância que tal objeto esteja nas

mãos do Sr. Pratt o quanto antes.

– Mas…

Não deu tempo de Wendell tentar vender seus bonecos licenciados pela Tec Toy. O sombrio senhor já havia

desaparecido entre os blocos do CCHLA.

Capítulo III

Carta de Fabhion para Kadja von Trapp:

“Sua imbecil,

(para não perder o costume) porque não me deixa em paz? Não vês como sofro? Passei o dia todo vendo o

desenho do Mickey e fiquei irritado com o que fizeram com o pobre do ratinho, ser operado de fimose, pra

quê? Hein, sua vaca? Triste, isso tudo é muito triste. Para que me ligar altas horas da madruga, imbecil?! Eu

não sei discutir contigo com as bochechas cheias de aveia Quaker!!! Pára com isso, não me atormentes mais!

Estou muito perto da morte e sinto ter que abandonar o barco agora. Pretendo o suicídio o mais breve

possível, mas só depois de concluir os dois períodos de Farmácia. As balas são de prata, o revolver é

empinado e a coronha tem a forma de tua bunda, mas é só. Mato-me e levo comigo toda a gama de

conhecimentos que irá faltar ao mundo. Sim, pus no tambor seis balas de eucalipto, não sou burro. E (para

não perder o costume) como está você, sua imbecil? Sua peçonhenta, sua loira com dois neurônios e meio.

Raios a levem para bem longe de mim!

Do seu ex-amante,

Fabhion”

***