Finanças Públicas - Cap. IV
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Capítulo III – Sector Público, Contabilidade Pública e Contabilidade Nacional
§ Sector Público e as regras da contabilidade pública e da contabilidade nacional
Pode entender-se por setor público todas as entidades controladas pelo poder político,
onde se inclui não só a totalidade das administrações públicas, como a totalidade do setor
empresarial de capitais total ou maioritariamente públicos. Assim, para além dos subsetores das
administrações públicas (central, regional, local e segurança social), inclui-se entre outras, o
setor público empresarial, que integra as empresas públicas, as empresas municipais, as
sociedades anónimas de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos.
O conceito de Administrações Públicas (AP) baseia-se numa ótica económica para
caracterização das instituições que lhe pertencem, concretiza-se no Sistema Europeu de Contas
(SEC 95) que fundamenta uma contabilização em termos de contabilidade nacional. O conceito
de Setor Público Administrativo (SPA) assenta numa classificação jurídico-institucional dos
entes públicos, cujas contas são contas do SPA na ótica da contabilidade pública.
- Distinção entre contabilidade pública e contabilidade nacional
Em ambos os casos se trata de sistemas contabilísticos de natureza orçamental (registo
da execução orçamental, quer quanto às receitas e despesas) e de natureza patrimonial (balanço
e demonstração de resultados), ainda que obedecendo a critérios e lógicas diferenciadas.
A contabilidade pública baseia-se em critérios de natureza jurídico-institucional e
encontra-se regulada pela Lei n.º 8/90, de 20 de Fevereiro e pelo Decreto-Lei n.º 155/92, de 28
de Julho. O registo faz-se de acordo com o Plano Oficial de Contabilidade Pública (POCP), cujo
regime consta do Decreto-Lei n.º 232/97, de 3 de Setembro. A ótica da contabilidade pública é
uma ótica histórica, que se faz no respeito pela estrutura e organização convencionais da
administração pública portuguesa. O registo é essencialmente um registo de caixa, ou seja, as
receitas e despesas são registadas atendendo ao momento da sua efetividade financeira.
Finalmente, a contabilidade pública tem um interesse sobretudo interno: ela orienta os serviços
competentes da Administração Pública portuguesa na elaboração das respetivas contas ou
demonstrações financeiras.
Por sua vez, a contabilidade nacional baseia-se em critérios de natureza económica,
desde logo, quando se trata de proceder à distinção entre Administrações Públicas e Setor
Empresarial. O seu regime fundamental é de origem comunitária (fundamentalmente contido no
SEC 95) e é bastante mais recente do que a contabilidade pública. Assim, à luz do SEC 95,
fazem parte das Administrações Públicas, as entidades qualificadas como produtores não
mercantis, em relação a cujos bens o consumo seja de natureza individual ou coletiva e dando
azo a pagamentos obrigatórios. As suas instituições têm natureza redistributiva. Por sua vez,
integram o Sector Empresarial do Estado as entidades que sejam qualificadas como produtos
mercantis. Adicionalmente, acresce a esta atuação substancialmente empresarial, a adoção de
forma jurídica empresarial e que os capitais respetivos sejam maioritária ou exclusivamente
públicos.
A estrutura genérica das administrações públicas, à luz do SEC 95, é dada por:
- Administração central;
- Administração estadual;
- Administração Local;
- Fundos da Segurança Social.
Cumpre ainda referir que a contabilidade nacional é assumidamente uma contabilidade
de compromissos (‘accrual basis’ ou acréscimo): nesta medida, registam-se receitas e despesas
atendendo ao momento do seu surgimento do ponto de vista jurídico.
Ainda, a contabilidade nacional é de interesse sobretudo externo: os seus destinatários
são as instituições comunitárias competentes (fundamentalmente, a Comissão Europeia e o
Eurostat), responsáveis pela monitorização e avaliação das finanças públicas dos Estados
membros e pela validação da informação contabilística por estes veiculada. O apuramento
definitivo do valor do défice anual só é calculado e assumido, depois de feita essa validação.
A contabilidade nacional é pois, hoje, um instrumento fundamental de uniformização da
informação contabilística produzida e prestada pelos Estados membros que procura prevenir
situações de discricionariedade contabilística e garantir uma comparabilidade fidedigna, não
apenas da situação orçamental dos Estados membros entre si, mas também da evolução
verificada, ao longo do tempo, em cada Estado membro.
- Concretização das regras do SEC 95
O Regulamento (CE) n.º 2223/96 estabeleceu uma metodologia destinada a permitir a
elaboração de contas e quadros em bases comparáveis, com o objetivo de descrever de forma
sistemática e pormenorizada o total de uma economia, seus componentes e suas relações com
outras economias. E com base neste objetivo, o sistema agrupa unidades institucionais em
sectores com base nas suas funções, comportamentos e objetivos principais.
Conceito de unidade institucional
Por unidades institucionais, o SEC 95 entende as entidades económicas com capacidade
de possuir bens e ativos, de contrair passivos e de realizar atividades e operações económicas
com outras unidades em seu próprio nome.
De acordo com esta definição, a unidade institucional é, pois, um centro elementar de
decisão económica, caracterizando-se pela unicidade de comportamento e pela autonomia de
decisão no exercício da sua função principal.
Dizer-se que uma unidade goza de autonomia de decisão no exercício da sua função
principal significa, nos termos do SEC 95, que a mesma:
- tem direito a ser proprietária de bens ou ativos e poderá, por conseguinte,
transacionar a propriedade dos mesmos com outras unidades institucionais;
- tem capacidade para tomar decisões económicas e realizar atividades
económicas pelas quais é diretamente responsável perante a lei;
- tem capacidade para contrair passivos em seu próprio nome, aceitar obrigações
ou compromissos futuros e celebrar contratos.
Por outro lado, a ideia de que uma unidade dispõe de contabilidade completa traduz-se
na circunstância de a mesma dispor de documentos contabilísticos que reflitam a totalidade das
suas operações económicas e financeiras efetuadas no decurso do período de referência das
contas e de um balanço dos seus ativos e passivos.
A integração das unidades institucionais em sectores institucionais
As unidades institucionais são agrupadas em conjuntos designados por sectores
institucionais, os quais podem ser divididos em subsectores e que agrupam as unidades
institucionais que têm um comportamento económico análogo.
Para fins do sistema institucionais encontram-se agrupadas em cinco sectores
institucionais, mutuamente exclusivos, constituídos pelos seguintes tipos de unidades: (i)
sociedades não financeiras; (ii) sociedades financeiras; (iii) administrações públicas; (iv)
famílias; (v) instituições sem fim lucrativo ao serviço das famílias. O conjunto destes cinco
sectores constitui o total da economia.
Critérios de inclusão da unidade institucional em determinado sector institucional
Quando a função principal da unidade institucional consiste na produção de bens e
serviços, é necessário primeiro distinguir o tipo de produtor. No SEC 95 distinguem-se:
- produtores mercantis privados e públicos;
- produtores privados para utilização final própria;
- outros produtores não-mercantis privados e públicos.
Conceito de produção mercantil
A produção mercantil é, segundo o SEC 95, aquela que é vendida no mercado.
Por outro lado, a produção destinada a utilização final própria consiste nos bens ou
serviços que são retidos para consumo final pela mesma unidade institucional ou para formação
bruta de capital fixo pela mesma unidade institucional.
Por fim, a outra produção não mercantil abrange a produção que é fornecida
gratuitamente, ou a preços que não são economicamente significativos, a outras unidades.
§ Noção de preço economicamente significativo
De acordo com o SEC 95, a produção apenas se considera vendida a preços
economicamente significativos se mais de 50% dos custos de produção forem cobertos pelas
vendas. Assim:
- se mais de 50% dos custos de produção forem cobertos pelas vendas, a
unidade é um produtor mercantil, sendo incluída no sector das sociedades financeiras ou não
financeiras;
- se as vendas cobrirem menos de 50% dos custos de produção, a unidade
institucional é um outro produtor não mercantil.
v. págs. 233 a 236
§ O caso particular das instituições sem fins lucrativos
No âmbito do SEC 95, uma instituição sem fim lucrativo (ISFL) define-se como uma
entidade jurídica ou social criada com o fim de produzir bens e serviços cujo estatuto não lhe
permite ser uma fonte de rendimentos, lucros ou ganhos financeiros para as unidades que a
criam, controlam ou financiam. Na prática, as suas atividades produtivas geram excedentes ou
défices, mais quaisquer excedentes que se realizem não podem passar para a posse de outras
unidades institucionais.
Existem ISFL no sector das administrações públicas e no sector privado. Dentro deste,
as ISFL podem ainda integrar sectores diferentes conforme tenham a natureza de produtor
mercantil ou não mercantil.
§ Ilustração do setor público e perímetro orçamental
v. págs. 238 e 239
- Sector público e perímetro orçamental
Perímetro orçamental e desorçamentação: os casos especiais das empresas públicas e
das parcerias público-privadas
A desorçamentação consubstancia uma forma de fraude à lei ou de manipulação das
regras contabilísticas. Podem significar práticas de desorçamentação, por exemplo: i) retirada
artificial de uma entidade do sector público, qualificando-o como entidade privada (v.g.
fundação, associação, etc.), ainda que ela possa continuar a ser apoiada se não pelo lado do
financiamento, ao menos pela via fiscal (desagravando-a ou concedendo-lhe um regime fiscal
mais favorável); ii) retirada artificial do perímetro orçamental (entenda-se do Orçamento do
Estado) de entidades, qualificando-as já não como entidades administrativas mas sim como
empresas públicas e mantendo embora canais de financiamento público às mesmas (v.g.
transferências orçamentais); etc.
Nos últimos anos, em Portugal, têm assumido especial relevância as implicações
financeiras e contabilísticas, por um lado, das empresas públicas e, por outro lado, das
parcerias público-privadas. O regime do Sector Empresarial do Estado encontra-se regulado no
Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro, e suas alterações, compreendendo empresas
públicas de natureza societária (a sua forma jurídica é a de sociedade anónima), cujo capital seja
maioritária ou exclusivamente público e, bem assim, empresas públicas de natureza estatutária e
a que se denominou de Entidades Públicas Empresariais (EPE). A diferença entre estas duas
modalidades de empresas públicas está na sua forma jurídica como no facto de, no primeiro
caso, predominarem elementos jus-privatísticos, ao passo que no segundo se acentuam os de
caráter juspublicístico.
Os orçamentos das empresas públicasnão figuram no Orçamento do Estado nem nos
orçamentos das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais. Todavia, as regras do SEC 95
intentaram ‘capturar’ os encargos financeiros associados a transferências financeiras entre as
administrações públicas e sector empresarial local, mormente através da consolidação de
contas. Significa isto que a contabilização de receitas e despesas deverá fazer-se, não apenas
através de valores brutos de transferências (valores não consolidados), mas também através de
valores líquidos dessas mesmas transferências (valores consolidados). A consolidação permite
assim, olhando, por exemplo, para o sector Estado verificar quais as receitas públicas que
advêm da sua relação directa com a economia e quais as receitas que resultam das intermediaões
com outros sectores públicos e privados de que o Estado recebe transferências (e, portanto, só
indirectamente se relacionando com a economia). De igual modo, no que toca à despesa, a
consolidação permite verificar quais as despesas realizadas diretamente com a economia e quais
as que supõem uma intermediação de outros sectores, para os quais o Estado realiza
transferências (só indiretamente relevando sobre a economia).
Não obstante estas preocupações, a imaginação humana é fértil e tem sido sempre
possível tornear as exigências legais: proliferam práticas na Administração Pública conhecidas
como de ‘engenharia financeira’, ‘contabilidade criativa’, etc.. Daí que, nem as exigentes e
apertadas regras da União Europeia, tenham impedido situações de mentira orçamental e
contabilística. Portugal não escapou a essa voragem criativa, e que tornou desconhecidas as
situações financeiras de muitas empresas nacionais, regionais e municipais. Não admira por isso
que uma das preocupações centrais, expressas no Memorando de Entendimento já aqui referido,
tenha sido a de “melhorar o atual reporte mensal da execução orçamental, em base de caixa para
as Administrações Públicas, incluindo em base consolidada”.
Mas para além dos mecanismos de consolidação de contas, existe uma outra forma de
‘capturar’ a realidade orçamental de certas entidades empresariais, até aí não integradas no
perímetro orçamental das administrações públicas. Essa forma consiste na reclassificação de
entidades empresariais. Consideram-se entidades públicas reclassificadas as que
independentemente da sua natureza e forma foram incluídas no sector público administrativo no
âmbito do SEC 95. Considerando-se, por seu turno, não mercantil, a entidade que não vende a
sua produção a preços economicamente significativos, de tal modo que a principal fonte de
financiamento não é a receita associada a um preço, tarifa ou taxa pelos bens e serviços que
presta.
As preocupações com as Parcerias Público-Privadas (PPP) também já não são de
hoje. Como era referido pelo FMI (2004), inexiste um modelo uniforme e compreensivo de
reporte e contabilidade financeira das PPP. Esta insuficiência contribui claramente para que as
PPP sejam usadas para contornar os controlos financeiros a que o sector público está adstrito,
bem como para retirar o investimento público e dívida associada do balanço do Estado. Para
além disso, as garantias que o Estado geralmente concede, nas PPP, ao financiamento privado
acabam por expô-lo a custos ocultos ou implícitos mais elevados do que os resultantes do
financiamento público tradicional. A existência de um modelo, internacionalmente aceite, de
reporte e de contabilidade contribuiria certamente para promover uma maior transparência na
celebração de PPP e para um acrescido escrutínio público – temos como ponto de partida o
‘System of National Accounts – SNA’ de 1993 e o ‘Government Finance Statistics Manual –
GFSM’ de 2001.
Posteriormente, o EUROSTAT (2004) procurou definir alguns critérios operativos que
permitissem qualificar os ativos PPP, como públicos ou privados e proceder à respetiva previsão
dentro ou fora do balanço do Estado. E isto tanto para o modelo concessivo, como para o
modelo da Private Finance Iniciative (PFI).
Relativamente ao modelo concessivo (as concessões constituem, pelo menos em
Portugal, a forma jurídica dominante de contratualização de uma PPP), a abordagem da
EUROSTAT é relativamente simples: desde que menos de 50% das receitas do projeto sejam
provenientes de pagamentos pelo sector público (sob forma de subsídios ou outros), a
infraestrutura ficará fora do balanço do Estado. No entanto, surgem algumas questões (v. pag.
245).
Quanto ao modelo PFI britânico – v. págs. 245 e 246.
Relativamente ao modo como se procede ao tratamento orçamental das receitas e
despesas das PPP, importa distinguir consoante os investimentos das PPP sejam qualificados
como privados ou públicos. Assim:
- caso os investimentos sejam qualificados, de acordo com as regras
contabilísticas supra, como investimentos públicos, a componente corrente dos
pagamentos a efetuar pelo Estado deve ser tratada como despesa primária, ao passo que
a componente de serviço de dívida deverá ser inscrita como despesa de capital. Por
conseguinte, os encargos do Estado assim assumidos afetam, anualmente, o respetivo
défice orçamental e o seu financiamento reflete-se na dívida pública.
- caso os investimentos das PPP sejam qualificados como investimentos
privados, havendo no entanto lugar a pagamentos regulares feitos pelo Estado por
serviços resultantes dos ativos construídos e explorados pelas empresas privadas, tais
pagamentos afetarão o défice orçamental (devem ser inscritos como despesa primária),
mas o valor do investimento realizado é registado no património da empresa privada,
bem como o seu financiamento, não afetando a dívida pública.
Seguindo estas práticas e orientações internacionais, a legislação portuguesa procura
minimizar o risco financeiro em que se traduz a celebração de uma PPP. Da LEO resultam
desde logo, como limitações de natureza procedimental/institucional, a necessidade de as
despesas relativas às PPP (quando deem azo a pagamentos públicos), constarem quer dos mapas
orçamentais, quer nos elementos informativos que acompanham a proposta de lei do OE.
Para além destas limitações da LEO, cumpre mencionar a concretização de uma
cláusula ‘gateway’ no diploma regulador das PPP, no art. 18.º, n.º 3.
Conceitos relevantes: descentralização financeira; descentralização político-
administrativa; descentralização fiscal; independência orçamental; autonomia
financeira
O Estado português é um Estado unitário, parcialmente regional (cf. Art. 6.º CRP). Os
dois subsectores identificados como ‘Regiões Autónomas’ e ‘Autarquias Locais’ traduzem a
expressão máxima da descentralização: podemos assim referi-la como descentralização
político-administrativa, na medida em que elas são pessoas coletivas de população e território
distintas da pessoa Estado, representadas por órgãos diretamente eleitos pelo voto, a quem
representam.
Em ambos os casos, já num plano financeiro, verifica-se de igual modo uma ampla
autonomia, quer no que diz respeito à determinação das funções e do nível de despesa
(‘functions assignement’), quer no que respeita à determinação da receita, mormente da receita
fiscal própria (‘tax assignement’). A descentralização fiscal refere-se pois a este último aspeto
e ela pode desdobrar-se em planos diferentes: por um lado, traduz-se na possibilidade que estas
entidades têm de ser titulares da receita tributária (maxime fiscal), referente a tributos cobrados
nessas circunscrições; por outro lado, traduz-se na autonomia fiscal, ou seja, na possibilidade,
constitucionalmente conferida, de as mesmas entidades exercerem poderes tributários em
relação a esses tributos/impostos.
Um outro corolário evidente e que resulta da natureza politicamente descentralizada das
Regiões Autónomas e Autarquias Locais, é o da independência orçamental destas entidades
relativamente ao Orçamento do Estado. Ou seja, os orçamentos anuais de cada uma das Regiões
Autónomas e de cada uma das autarquias locais (municípios e freguesias) não constam do OE.
Já quanto ao conceito de autonomia financeira, pode-se retirar da Lei de Bases da
Contabilidade Pública (Lei n.º 8/90, de 20 de Fevereiro) e do Regime da Administração
Financeira do Estado (Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho) e, ainda, do art. 2.º LEO. Ali
encontramos três Administrações Públicas que contêm fundamentalmente dois tipos de
serviços: serviços dotados de autonomia meramente administrativa (‘serviços integrados’) e
serviços dotados de autonomia administrativa e financeira (‘fundos e serviços autónomos’). Os
primeiros podem fundamentalmente realizar atos de gestão corrente.
O segundo tipo de serviços é marcado por uma forma mais intensa de autonomia, a
autonomia financeira. A relação que mantém com os membros do Governo competentes tende a
ser uma simples relação de tutela. A condição fundamental para atribuição do estatuto de
autonomia administrativa e financeira é a de que pelo menos dois terços das receitas respetivas
sejam receitas próprias. A autonomia financeira, teórica e tradicionalmente, desdobrava-se em
quatro dimensões principais:
- autonomia orçamental (stricto sensu) – traduz-se na possibilidade de estes
serviços elaborarem e executarem os respetivos orçamentos, com grande margem de
liberdade.
- autonomia patrimonial – significa a possibilidade e capacidade de detenção e
gestão de património próprio. Insere-se a possibilidade de aquisição, alienação, etc.
- autonomia tesouraria – implica a possibilidade de arrecadação e gestão de
fundos de forma autónoma em relação à tesouraria do Estado. Esta autonomia está hoje,
na prática, fortemente limitada, dada a concretização do princípio da tesouraria única do
Estado, nos termos da qual a gestão das entradas e saídas de fundos deve fazer-se
através da Caixa central e única do Estado, que é o Tesouro público. A única exceção a
esta regra continua a ser a Segurança Social (cf. Art. 48.º, n.º 4 LEO).
- autonomia creditícia – traduz a possibilidade de recurso ao crédito, com ampla
liberdade. Também esta forma de autonomia está hoje posta em crise devido a
sucessivas restrições que têm vindo a ser colocadas.
Em suma, verificamos que, na prática, a autonomia financeira é hoje bastante mais
reduzida do que foi no passado e do que o é na teoria. Na verdade, ela reduz-se hoje à
autonomia orçamental e patrimonial e mesmo, quanto a estas, com sucessivas restrições.
As relações financeiras entre as Administrações Públicas e os setores empresariais
respetivos, e as relações financeiras entre si
O mecanismo típico, que vem assumindo importância crescente, é o mecanismo da
consolidação de contas. Este mecanismo permite confrontar as receitas e as despesas com um
valor bruto, não consolidado, e as receitas e as despesas com o seu valor consolidado, i.e.
líquido de transferências (para outros sectores).
O Estado financia outros sectores: as Regiões Autónomas, através de uma subvenção
geral e, bem assim, através de uma subvenção específica (Fundo de Coesão para as Regiões
Ultraperiféricas); os Municípios, através de uma subvenção geral (Fundo de Equilíbrio
Financeiro) e de uma subvenção específica (Fundo Social Municipal); as Freguesias, através de
uma subvenção geral (Fundo de Financiamento das Freguesias); as empresas públicas
(nacionais), pela via de financiamentos e indemnizações compensatórias.
A consolidação financeira é um bom instrumento de visualização das relações
financeiras entre sectores, e permite perceber a dimensão dos fluxos financeiros entre todos eles:
os canais de transferências. A informação contabilística a enviar às instâncias comunitárias
competentes é cada vez mais completa, dificultando estratégias de desorçamentação.
O ‘orçamento’ da segurança social: particularismos da estrutura e gestão orçamentais
O orçamento da Segurança Social (OSS) é incorporado no Orçamento do Estado (cf. art.
105.º, n.º 1 CRP). No entanto, o setor da Segurança Social mantém uma considerável autonomia
relativamente à gestão orçamental do Estado central. Ela é a principal exceção à regra da
unidade de tesouraria do Estado. O OSS constitui também uma exceção à regra da unidade em
sentido material: assim, conquanto o orçamento seja formalmente unitário (cf. n.º 3 do art. 105.º
CRP), materialmente descortinam-se no OE ‘micro orçamentos’, de que se evidencia justamente
o OSS. Este particularismo repercute-se, depois, na regra da especificação orçamental.
Na verdade, de acordo com a atual Lei de Bases da Segurança Social (LBSS), a Lei n.º
2/2007, de 16 de Janeiro, o sistema de segurança social desdobra-se do seguinte modo:
- em primeiro lugar, surge o sistema de proteção social de cidadania (dimensão
não contributiva), o qual integra o subsistema de ação social, o subsistema de
solidariedade e o subsistema de proteção familiar;
- em segundo lugar, o sistema previdencial (dimensão contributiva);
- em terceiro lugar, o sistema complementar que integra um regime público de
capitalização, para além de regimes complementares de iniciativa coletiva e individual
(privados).
A esta estrutura particular correspondem, por sua vez, formas diferenciadas de
financiamento. Assim, enquanto o sistema de proteção social de cidadania é financiado por
transferências do OE e também através da consignação de receitas fiscais, já sistema
previdencial é financiado por quotizações dos trabalhadores e contribuições das entidades
empregadoras. O sistema previdencial é, entre nós, um sistema de repartição. No entanto,
apresenta algumas concessões à capitalização (sistema em que os trabalhadores acumulam
reservas financeiras próprias, destinadas ao pagamento da sua própria pensão uma vez atingida a
idade legal de reforma). Ver o art. 91.º LBSS.
O Decreto-Lei n.º 367/2007, de 2 de Novembro, veio regulamentar a LBSS no que diz
respeito ao financiamento do sistema de segurança social. E, assim, adapta as formas de
financiamento à estrutura do sistema dela resultante – essas formas são: para o sistema de
proteção social de cidadania, o financiamento através de transferências do OE e da consignação
de receitas fiscais; para o sistema previdencial (repartição), o financiamento através das
contribuições sociais.
Concluindo. Em primeiro lugar, o sistema ‘previdencial-repartição’ constitui o epicentro
financeiro de todo o sistema de segurança social. Ele é também a interface que faz a ligação
entre as duas outras componentes do sistema, de um lado, o sistema de proteção social de
cidadania, do outro, o sistema ‘previdencial-capitalização’.
Em segundo lugar, verifica-se que tendo em conta a estrutura atual do sistema, o sistema
de proteção social de cidadania estabelece ‘vasos comunicantes’ financeiros entre as partes que
o compõem.
Em terceiro lugar, verifica-se que o sistema de proteção social de cidadania recebe
indiferecialmente, em bloco, as transferências do OE que depois distribui pelas suas
componentes. Já no que respeita à consignação de receitas fiscais, após a alteração ocorrida em
2010, o IVA passou a ser afeto especificamente ao subsistema proteção familiar. Finalmente,
quanto ao sistema previdencial-repartição, embora as suas principais fontes de receitas sejam as
contribuições sociais, ele pode ser financiado também através de transferências do OE ou por
transferências do FEFSS, se a sua situação financeira o justificar (art. 14.º, n.º 3). Em suma, tal
significa que o princípio da adequação seletiva é unidirecional: ele visa essencialmente proibir a
utilização das contribuições sociais para financiar despesas de caráter não contributivo; mas já
não veda, pelo menos em determinadas circunstâncias, a situação inversa, ou seja, que as
trasnferências do OE possam ser utilizadas para colmatar a situação deficitária do previdencial.
Capítulo IV – Morfologia e vicissitudes do Orçamento do Estado
§ Natureza, caraterísticas e funções do Orçamento do Estado (OE)
O Orçamento do Estado é o documento onde são previstas e computadas as receitas e as
despesas anuais, competentemente autorizadas. Daqui resultam os seus dois elementos centrais:
o OE é uma previsão em que se associam funções económicas; o OE é uma autorização ao
que se associam funções jurídicas e políticas do OE.
Relativamente às funções económicas do Orçamento, é possível distinguir, segundo
Sousa Franco, entre uma dupla perspetiva:
- a perspetiva da racionalidade económica, na medida em que o orçamento
permite uma gestão mais eficiente e racional dos dinheiros públicos;
- a perspetiva da eficácia como quadro de elaboração das políticas financeiras,
pois que, através do Orçamento é possível conhecer também os aspetos fundamentais da política
económica do Estado.
No que diz respeito às funções políticas e jurídicas, o orçamento assume-se, num
primeiro plano, como autorização política que visa, por um lado, a garantia dos direitos
fundamentais e, por outro, o equilíbrio e a separação dos poderes, já que, mediante aquela
autorização, a eles resulta cometido um importante papel financeiro – autorizar as despesas e as
receitas, que depois serão, em sede de execução orçamental, efetivamente realizadas e cobradas.
O OE é uma lei, em sentido formal e material. O sistema orçamental português é,
atualmente, um sistema monista – a lei do OE é só uma. O OE é uma lei (vertente normativa),
mas é também um conjunto de mapas, agregadores e desagregadores de receita e despesa
(vertente contabilística). Ele é, ora uma lei de autorização (jurídico-política) de realização de
receita e cobrança de despesa, ora um ‘mero’ suporte contabilístico de previsões de receita e de
dotações de despesa previamente criadas por lei ou outras fontes jurídicas.
A lei no OE tem sido ainda qualificada por alguns autores como uma lei de valor
reforçado, tanto pela razão do especial procedimento conducente à sua aprovação (cf. n.º 3 do
art. 112.º CRP), como por ser um caso de lei irrevogável. O procedimento é especial, não
apenas por causa da iniciativa exclusiva do Governo (art. 161.º, al. g)), mas também por causa
dos tempos da sua aprovação, entrada em vigor e vigência, que visam garantir a sua duração
anual e a sua duração ao longo do ano civil. A natureza sui generis da Lei do OE, associada a
este valor especial que ela tem no elenco das fontes de Direito, repercute-se depois nas relações
que ela estabelece com outras leis e, desde logo, com a Lei de Enquadramento Orçamental.
§ O enquadramento legal do Orçamento do Estado
- As relações entre a Lei de Enquadramento Orçamental e o OE
A Lei de Enquadramento Orçamental é o quadro fundamental do OE: a sua existência e
razão de ser resultam, em primeira linha, do disposto no n.º 1 do art. 106.º CRP.
As relações jurídicas entre estas duas leis têm sido muito discutidas na doutrina,
funcionando a lei de enquadramento como ‘lei-sujeito’ e a lei do Orçamento do Estado como
‘lei-objeto’, cujo conteúdo e procedimento aquela trata de regular (o objeto da LEO é o OE). A
ideia de uma subserviência ou dependência desta última em relação à LEO, encontra no entanto
alguns obstáculos dificlmente ultrapassáveis.
1.º Obstáculo
É certo que a LEO é uma lei e é uma lei de valor reforçado (cf. art. 3.º LEO). Acontece
que o OE também é uma lei em sentido formal e material (arts. 106.º, n.º 1 e 161.º, al. g) CRP) e
é também considerada por diversos autores como uma lei de valor reforçado.
O primeiro obstáculo vislumbrado está na não previsão, no texto constitucional, de
qualquer relação de dependência hierárquica de umas leis de valor reforçado em relação a outras
e muito menos de critérios definidores dessa dependência. Entre si, são, portanto, leis de igual
valor.
2.º Obstáculo
Reside no facto de a função paradigmática da LEO não aparecer blindada por qualquer
outra exigência, mormente no plano da sua aprovação ou alteração, podendo ela ser alterada, a
todo o tempo, por uma lei parlamentar aprovada por maioria simples. No limite, poderia dar-se
o caso de a lei de enquadramento ser alterada pela própria lei enquadrada, a lei do OE.
Contrariar este entendimento pressuporia elaborar dogmaticamente em torno novamente
do disposto no n.º 1 do art. 106.º CRP, afirmando que a Constituição verdadeira reclama não
apenas uma lei que materialmente enquadre o OE, mas sim, também, uma lei que formalmente
se assuma como lei de enquadramento.
- Os planos de incidência da LEO
Em grande medida, por causa da ambivalência da LEO, esta é hoje um repositório de
matérias que vão muito para lá da sua conceção e conteúdo iniciais. Para além disso, a LEO é
uma lei multifacetada, na medida em que nela encontramos “modos de olhar”, níveis de
incidência, muito diferentes. Assim, em primeiro lugar, identificamos planos de incidência
sobre a vertente normativa e outros de incidência sobre a vertente contabilística do OE. Ora,
aquilo que se verifica é que a LEO é cada vez menos uma lei de incidência formal, reguladora
de procedimentos e estruturas orçamentais, para ser cada vez mais uma lei de incidência
substancial, preocupada com os resultados (‘outcomes’) orçamentais.
Podemos identificar como parte do corpo regulador de uma LEO, três eixos:
- primeiro eixo: Estrutura, conteúdo e resultados orçamentais;
- segundo eixo: Processo orçamental;
- terceiro eixo: Controlo orçamental e responsabilidade financeira.
- As alterações mais recentes na LEO: o Memorando da ‘Troika’ e as
principais tendências e influências no desenho do sistema orçamental português
As razões determinantes das alterações mais recentes são de dupla ordem:
- por um lado, a crise económico-financeira e o Memorando de Entendimento
assinado com a ‘Troika’;
- por outro lado também, as boas práticas internacionais no domínio das
finanças públicas e da orçamentação pública e que vinham sendo incorporadas também
na legislação ou documentação europeia relevante.
O Memorando de Entendimento foi assinado entre o Governo português de então e
a ‘Troika’ (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional), em
2011, e do qual resulta um programa de ajustamento que regula e condiciona os termos da
mencionada assistência. O programa de ajustamento é o reverso da assistência financeira
concedida a Portugal pelas instâncias comunitárias e pelo FMI, e fica marcado por um princípio
de condicionalidade estrita. Portugal beneficiou desta assistência, a seguir a outros países
europeus, a Irlanda e a Grécia. Trata-se de um mecanismo de ‘backstop’ financeiro temporário,
enquadrado pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento. Os objetivos fundamentais do programa
de ajustamento eram então:
(i) realização de reformas estruturais que potenciem o crescimento económico, a
criação de emprego e o aumento da competitividade;
(ii) a implementação de uma estratégia de consolidação orçamental, apoiada por
medidas orçamentais de natureza estrutural e por um maior controlo financeiro sobre as
parcerias público-privadas (PPP) e empresas públicas, tendo em vista a diminuição do rácio da
dívida pública/PIB para valores sustentáveis e a redução do défice orçamental para valores
inferiores a 3% do PIB em 2013;
(iii) a implementação de uma estratégia para o sector financeiro, baseada na
recapitalização e desalavancagem, com medidas que salvaguardem o sector financeiro dos
perigos de uma desalavancagem não regulada, reforçando os mecanismos de mercado, apoiadas
em facilidades não convencionadas (‘backstop’).
Quanto ao consenso, os saldos superavitários e deficitários são, em boa medida, o
resultado do funcionamento dos estabilizadores automáticos. Se a economia enfrenta uma
recessão, o desemprego aumenta e consequentemente a despesa pública com os subsídios
também, o que agrava o défice. Se, pelo contrário, a economia cresce, os impostos (sobre o
rendimento) aumentam e o superavit torna-se uma realidade. Agora a controvérsia: os saldos são
manipuláveis, tendo em vista a passagem de informações no mercado de quem empresta
(poupança) e de quem obtém empréstimos (investimento).
Em todo o caso, a dúvida que se coloca é a seguinte: será possível crescer no meio de
tantos ajustamentos? Não há resposta empírica definitiva mas uma coisa parece certa. Esta visão
da consolidação como forma de obtenção de mais empréstimos a juros baixos implica a
condenação da política orçamental como instrumento ativo da economia.
Podemos afirmar que a atual crise veio aprofundar um conjunto de tendências
(internacionais) relativas ao desenho dos sistemas orçamentais. E na sequência destas propostas
de reforma, é possível identificar um conjunto de boas práticas internacionais:
1 – Os sistemas orçamentais estão menos concentrados nos procedimentos e nos
formatos orçamentais e mais nos resultados orçamentais (‘fiscal outcomes’), pelo que a micro
orçamentação está subordinada aos objetivos da macro orçamentação: disciplina orçamental e
sustentabilidade de longo prazo das finanças públicas.
2 – Em consequência, a micro orçamentação exibe um conjunto de características
novas, a saber:
- exacerbação dos instrumentos de programação plurianual da despesa pública
(‘medium-term fiscal frameworks’, ‘medium-term budget frameworks’);
- desenvolvimento de técnicas orçamentais ‘top down’;
- novas regras ou princípios orçamentais (‘fiscal rules’);
- relaxamento, na gestão orçamental, dos controles sobre os inputs e focalização
nos resultados (outputs).
- Vinculações internas e externas do OE e o conteúdo principal da LOE
Vinculações internas do OE: as regras orçamentais
Anualidade
A regra da anualidade envolve uma dupla exigência: votação anual do Orçamento pelo
Parlamento e execução anual do Orçamento pelo Governo e Administração Pública.
No ordenamento financeiro português, o sistema vigente é, desde 1930, o de gerência.
Como tal, podem incluir-se no Orçamento tanto todas as receitas a cobrar efetivamente durante
o ano e as despesas a realizar efetivamente, independentemente do momento em que
juridicamente tenham nascido. Este sistema torna fácil e clara a execução orçamental; no
entanto, dificulta a responsabilização de cada Governo pela elaboração e execução dos
orçamentos que lhe são imputáveis.
Para obviar os inconvenientes do orçamento de gerência, o legislador previu: (i) que a
elaboração do orçamento fizesse um enquadramento da perspectiva plurianual (Mapa XVII, ver
art. 29.º LEO) e (ii) que os orçamentos dos organismos do sector público administrativo
integrem programas, medidas, projectos ou ações que impliquem encargos plurianuais.
Também com vista a assegurar a cobertura orçamental de despesas em orçamentos
futuros, o art. 22.º do Decreto-Lei n.º 197/99 dispõe ainda que o cabimento de despesas em
orçamentos futuros seja assegurado por um compromisso de inscrição, assumido pelo Ministro
responsável pela despesa (o da tutela) e pelo Ministro que faz o orçamento. E embora em
Portugal, o ano económico coincida com o ano civil e vigore a regra da inscrição no Orçamento
dos créditos e débitos originados naquele período orçamental, independentemente do período
em que se concretizam, admite-se o fecho da execução orçamental das despesas num período
complementar: até 15 de Fevereiro do ano seguinte àquele a que respeita, embora nos últimos
anos, este período tenha decorrido até 21 de Janeiro.
Este período complementar vem permitir sustentar que o período orçamental vai para
além do ano civil.
Plenitude
Ao prever a existência de “um só orçamento e tudo no orçamento” pretende-se evitar a
existência de massas de receitas e despesas que escapem à autorização parlamentar e ao controlo
orçamental. Nestes termos, a regra da plenitude tem sido entendida como imposição de
aprovação de orçamentos que permitam aos serviços e organismos administrativos tomar
conhecimento das receitas que podem cobrar e das despesas que podem realizar.
A regra da plenitude, no que toca ao Orçamento do Estado, tem uma abrangência
limitada. Concretizando, esta regra não abrange:
- as operações de tesouraria;
- a gestão patrimonial do Estado; e
- os fenómenos de independência orçamental (Regiões Autónomas, Autarquias
Locais, Sector Público Empresarial, Associações Públicas, Fundações Públicas).
Assim, a plenitude orçamental, no que toca ao Orçamento do Estado, só se aplica às
receitas e despesas dos serviços integrados, serviços e fundos autónomos e segurança social: só
elas têm de constar de um único orçamento (o Orçamento do Estado) e de estar todas nesse
mesmo orçamento.
Discriminação
A discriminação tem três sub-regras: a não compensação, a não consignação e a
especificação.
Trata-se da sub-regra da não compensação ou do orçamento bruto, a qual deve ser
integrada na regra da discriminação orçamental. Segundo esta sub-regra, as receitas e despesas
devem ser inscritas no Orçamento de forma bruta e não líquida – não devendo ser deduzidas às
receitas as importâncias gastas com a sua cobrança, nem às despesas as receitas originadas pela
sua realização.
O fundamento passa por conseguir uma maior racionalidade e possibilitar um controlo
efectivo, político e administrativo, da execução orçamental.
O orçamento bruto é uma consequência da regra da universalidade, porquanto as
receitas e as despesas devem ser inscritas pela importância integral, sem dedução alguma.
Assim sendo, é possível perceber o orçamento bruto com a ausência da regra da universalidade.
A não consignação trata-se de outra sub-regra integrada na regra da discriminação.
Segundo esta sub-regra, não podendo num Orçamento afectar-se qualquer receita à cobertura de
determinada despesa, pretende-se evitar a existência de uma Administração Pública
fragmentária desprovida de uma gestão financeira de conjunto. Como lógica consequência da
sub-regra da não consignação existe o Tesouro, tendo a seu cargo de modo centralizado a
cobrança de receitas e a realização de despesas. Prevêm-se, no entanto, no art. 7.º, n.º 2 LEO,
exceções à presente sub-regra, as quais são consignadas excecional e temporariamente por
expressa estatuição legal ou contratual e ainda às situações de autonomia financeira em que as
receitas de determinados organismos são afetas à cobertura de determinadas despesas. Fala-se,
então, de receitas consignadas, a que corresponde o regime das contas de ordem.
Para haver consignação de receitas é preciso cumular dois critérios: (i) deverão ter lugar
no mesmo património administrativo e (ii) deverão cobrir uma despesa ou um grupo de
despesas (do Estado ou de um qualquer serviço público) – daí falar-se em despesas com
compensação em receita.
A sub-regra da especificação também se integra na discriminação orçamental e segundo
ela o orçamento deve individualizar suficientemente cada receita e cada despesa. Assim, para
cada espécie de despesas públicas deverá ser concedido um crédito que deve ser exclusivamente
afeto ao serviço (órgão) ou função prescrita: a soma fixada deve ser o máximo de despesa a
efetuar. Tem consagração constitucional no n.º 3 do art. 105.º. Fundamento: pretende-se
assegurar clareza e limpidez na elaboração, execução e controlo orçamentais. Verifica-se, assim,
que as três sub-regras da discriminação orçamental têm finalidades comuns: assegurar uma
maior racionalidade financeira e um efetivo controlo orçamental.
Comina-se a nulidade para os créditos orçamentais que possibilitem a existência de
fundos secretos – salvo se, por razões de segurança nacional, a Assembleia da República o
autorizar, sob proposta do Governo.
Publicidade
A publicação do orçamento do Estado é fundamental não só devido à sua natureza que
impõe a publicação oficial no Diário da República como condição de eficácia jurídica da
autorização e do consentimento parlamentares para a cobrança de receitas e a realização de
despesas, mas também em virtude da necessidade que a Administração Pública tem de conhecer
o conteúdo preciso de tão importante instrumento financeiro. Um orçamento não publicado não
é um orçamento.
A necessidade de publicação decorre, antes de mais, do facto de se exigir a forma de Lei
para a aprovação do Orçamento do Estado (arts. 105.º, 106.º e 161.º, al. g) CRP) e de se aplicar
o regime geral da publicidade dos atos (art. 119.º CRP).
Equilíbrio
O princípio do equilíbrio orçamental resulta de imperativo constitucional, constante do
art. 105.º, n.º 4. Pode ser encarado de duas perspetivas:
- Equilíbrio formal – postula a estrita igualdade entre as receitas e as
despesas, o que traduz a interdição dos défices e excedentes de receita – isto pressupõe
que nunca a totalidade das despesas exceda a totalidade das receitas (tributárias,
patrimoniais).
Este conceito foi sendo abandonado, fundamentalmente, após a 2.ª Grande Guerra.
- Equilíbrio substancial – baseia-se nas teorias do défice sistemático e dos
orçamentos cíclicos. Para haver equilíbrio segundo este critério (ativo de tesouraria), as
despesas efetivas só podem ser financiadas por receitas efetivas, ao passo que as
despesas não efetivas podem ser financiadas por receitas efetivas e por receitas não
efetivas. Sendo assim, o recurso a um empréstimo só serve para amortizar outro
empréstimo, isto é, défices dos anos anteriores e nunca o défice do ano orçamental em
causa.
O critério do ativo de tesouraria tem duas vertentes: (i) a do saldo total, na qual as
receitas efetivas devem ser iguais ou superiores às despesas efetivas. Este critério inclui as
necessidades de financiamento e cumula com os encargos da dívida pública; (ii) a do saldo
primário: reporta-se apenas às necessidades líquidas de financiamento, excluindo os encargos
correntes da dívida pública.
A fórmula utilizada no art. 9.º, ora em análise, parece que pretende assegurar o
cumprimento dos compromissos assumidos por Portugal. E se assim é, não poderá deixar de se
entender que o equilíbrio a que aí se faz referência é um equilíbrio substancial que se traduzirá
no respeito pelos critérios de convergência relativos ao défice e ao endividamento público, por
forma a dar cumprimento à proibição de défices excessivos constantes do art. 104.º TUE. Ou
seja, para que os orçamentos do setor público administrativo se encontrem equilibrados, para
efeitos do art. 9.º LEO, têm de respeitar os critérios de convergência, por forma a que o
Conselho não declare verificada a existência de um défice excessivo (arts. 104.º, n.º 6 e 121.º
TUE).
Note-se, porém, que apesar de este preceito exigir que o sector público administrativo
apresente um equilíbrio global, calculado de acordo com as regras da contabilidade nacional, faz
uma ressalva: o Orçamento do Estado considerar-se-á equilibrado desde que haja equilíbrio de
acordo com as regras dos arts. 23.º, 25.º e 28.º LEO.
Diferenças entre as regras clássicas e novas regras orçamentais (v. págs. 300 a 302)
Fundamento, modalidades e efeitos das novas regras orçamentais (v. págs. 302 a 323)
Emergência de novos princípios orçamentais
Estabilidade orçamental
Ligado com a preocupação de um maior rigor quanto ao equilíbrio, surge o princípio da
estabilidade orçamental (art. 10.º-A), o qual impõe a todas as entidades do setor público
administrativo a verificação de “situação de equilíbrio ou excedente orçamental, calculada de
acordo com a definição constante do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais”.
Parece-nos que a introdução dos novos princípios da solidariedade recíproca (art. 10.º-
B) e transparência orçamental – que gera um dever de informação entre todas as entidades
públicas (art. 10.º-C) serve, e bem, o intuito de um reforço da estabilidade orçamental.
O princípio da estabilidade orçamental é o corolário mais evidente da aprovação do
PEC.
A estabilidade orçamental é o equilíbrio das Administrações Públicas, calculado nos
termos do SEC 95. Está em causa, para este efeito, fundamentalmente a noção de saldo global.
Como princípios complementares da estabilidade orçamental temos:
- o princípio da transparência orçamental que surge mobilizado por essa
exigência substantiva de bom comportamento orçamental. Significa a ideia de informação exata
e objetiva sobre o modo como o Estado utiliza os dinheiros públicos, sobre o custo dos
programas orçamental e, se possível, sobre os seus benefícios. Contribui para a disciplina
financeira e para a afetação adequada dos recursos.
O princípio da transparência orçamental pressupõe, antes de mais, a ideia de divulgação
ao público, no que diz respeito à estrutura e funções do Estado, às intenções da política
orçamental, às contas públicas e às projeções. Nesta medida, o princípio facilita os mecanismos
de controlo orçamental, nos planos político, administrativo e jurisdicional, de prestação de
contas (‘accountability’) e de responsabilização financeira. Além disto, pressupõe também a
abertura interinstitucional: dos governos nacionais em relação às instâncias internacionais
competentes e interessadas (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, FMI); do governo em
relação ao parlamento; etc.
- o princípio de solidariedade recíproca de onde se subentende que, da mesma
forma que o Estado central é solidário com esses níveis inferiores de decisão, também estes
devem envidar um esforço solidário com vista à prossecução desse objetivo nacional de
estabilidade orçamental.
Do ponto de vista económico, a existência de regras orçamentais desta natureza que
limitem a capacidade e a liberdade de endividamento por parte de entidades menores, encontra
também uma boa razão de ser – trata-se do problema denominado de restrição orçamental
soft (‘soft budget constraints’) e da necessidade de endurecimento dessa restrição.
Na mais recente alteração da LEO, ocorrida em 2013, prevê-se justamente um novo
princípio orçamental denominado de princípio da responsabilidade (art. 10.º-F): na verdade,
com esse princípio pretende-se vedar o ‘bail-out’ por parte do Estado em relação aos sectores
infraestaduais e, dessa forma, afirmar uma restrição orçamental ‘hard’.
Equidade intergeracional
A previsão do princípio da equidade intergeracional vem prevista no art. 10.º LEO
e, sendo algo vaga e insuficiente, reclama instrumentos para poder ter algum interesse e feito
úteis.
O acolhimento das novas regras numéricas na legislação portuguesa
Como decorrência das exigências de estabilidade orçamental (cf. art. 10.º-A e título V
LEO) e, bem assim, de sustentabilidade de longo prazo das finanças públicas, a LEO tem vindo,
nas sucessivas alterações, a concretizar um conjunto de novas regras orçamentais. Estas regras
concretizam os princípios supra. Vejamos como se concretizam.
Regras procedimentais
É de salientar o facto de a aprovação do Orçamento do Estado se fazer em articulação
com a aprovação (prévia ou em simultâneo) de outros documentos com relevância orçamental
que o vinculam ou condicionam.
Para além disso, o processo orçamental reclama a intervenção de diversos
‘stakeholders’, alguns constitucionalmente previstos, outros de origem mais recente e sem
previsão constitucional. Acresce a cada vez maior europeização do processo orçamental, o que
significa que não apenas há lugar à intervenção de entidades nacionais, mas ainda de instâncias
comunitárias, maxime a Comissão (sobretudo após a aprovação do ‘Two Pack’).
Regras numéricas
Estas são também muito significativas. Podemos encontrar na legislação portuguesa três
tipos de regras numéricas:
a) Regra de saldo ou equilíbrio: saldo estrutural ajustado do ciclio e de medidas
temporárias/excecionais
Com a alteração de 2011, foi aditado à LEO, o art. 12.º-C que concretiza a regra do
saldo estrutural ajustado do ciclo e das medidas temporárias, em conformidade com o objetivo
orçamental de médio prazo (MTBO) resultante do PEC.
Com a alteração de 2013, concretiza-se um novo princípio de orientação orçamental
(arts. 72.º-B a 72.º-D), denominado de desvio significativo, definindo-se objetivamente quando
se considera existir um tal desvio e, bem assim, as circunstâncias excecionais em que o mesmo
se justifica (recessão profunda, catástrofes naturais, etc.).
b) Regras de dívida
Podemos identificar dois tipos de regras, consistentes com dois momentos da história da
LEO:
- regras de dívida aplicáveis aos subsectores institucionais (Administração
Regional e Local).
No caso da LEO, logo em 2001, previu-se uma regra importante, no art. 87.º,
relativa ao estabelecimento, pela lei do Orçamento, de limites ao endividamento dos
subsectores do Estado. Cf. arts. 30.º, 31.º, 37.º e 38.º.
- regras de dívida aplicáveis ao Estado
Tem relevância o art. 16.º-A, relativo ao financiamento do Estado.
Por sua vez, concretizando numa parte a ‘regra de ouro’ ínsita no Pacto
Orçamental de 2012, a última alteração (2013) à LEO introduz uma nova regra
quantitativa para a dívida pública (art. 10.º-G).
c) Regras de despesa
Podemos considerar que existem hoje dois tipos de regras de despesa. Uma de caráter
implícito e indireto e que resulta da necessária subordinação do OE aos limites máximos de
despesa fixados pela lei de programação orçamental plurianual (cf. art. 12.º-D); a segunda, de
caráter expresso e direto está no art. 12.º-C, n.º 6.
É de relembrar que o grande óbice à definição de regras numéricas está na sua
próciclicidade. Ora, a minimização dos efeitos pró-cíclicos das regras numéricas é parcialmente
conseguida através da gestão orçamental, ao longo do ciclo, em observância do objetivo
orçamental de médio prazo. Mas ela é também alcançada através do recurso a instrumentos de
programação plurianual da despesa pública que permitem ir fazendo a consolidação orçamental
ao longo de uma trajetória de médio prazo.
As vinculações externas do OE: crítica do regime instituído e proposta de alteração
O regime das vinculações externas consta do art. 17.º LEO, o qual traduz, por sua vez,
um desenvolvimento do disposto no n.º 2 do art. 105.º CRP. Nos termos daquele artigo 17.º,
constituem vinculações externas:
- as obrigações decorrentes de lei, de contrato, de sentenças judiciais ou outras
obrigações determinadas pela lei (despesas obrigatórias);
- as obrigações decorrentes do Tratado da União Europeia;
- as opções em matéria de planeamento e a programação financeira plurianual.
O artigo 17.º encontra-se desatualizado e, para além disso, devido aos constrangimentos
atuais com que se debate a economia e as finanças públicas portuguesas e dos compromissos
assumidos por Portugal no Memorando assinado com a Troika, diversas medidas de austeridade
têm vindo a ser adotadas e, de entre elas, um conjunto muito significativo de cortes ou reduções
de prestações remuneratórias, sobretudo dos trabalhadores da Administração Pública. Ora, o
teor e a expressão destas medidas interferem com algumas vinculações externas, mormente com
as denominadas despesas obrigatórias.
A ‘vinculação’ dominante é hoje a que resulta das exigências de disciplina orçamental e
de sustentabilidade das finanças públicas. Esta é, aliás, uma decorrência do n.º 4 do art. 8.º CRP
e só ela bastaria, pois que este garante a aplicabilidade automática, na ordem jurídica interna,
das disposições dos Tratados e das normas emanadas pelas instituições comunitárias. Assim, em
bom rigor, a legislação comunitária não constitui propriamente uma vinculação externa – ela é,
antes de mais e acima de tudo, fonte de direito (tal como é, de resto, a legislação nacional,
constitucional ou ordinária). As consequências que resultam destas fontes externas de direito é
que podemos qualificar de vinculações externas. V. págs. 336 e 337
Relativamente às despesas obrigatórias como vinculação externa do OE, o disposto
no n.º 1 do art. 16.º LEO leva a que possamos dizer que elas derivam, por um lado, de
obrigações decorrentes de lei ou de contrato e, por outro, de obrigações associadas ao
cumprimento de sentenças judiciais.
No que diz respeito às obrigações legais ou contratuais, poder-se-á dizer que o disposto
no art. 105.º, n.º 2 CRP e no art. 16.º, n.º 1, al. a) LEO, é ainda um resquício da tradição dualista
que, até 1982, marcou o Direito Orçamental português. E pode-se também acrescentar, num
outro plano – o plano da execução orçamental – que estas vinculações associadas a despesas
obrigatórias resultantes de lei ou de contrato se projetam na concretização do princípio da
legalidade da despesa. Assim, para que uma despesa possa ser realizada: i) deve o facto gerador
da obrigação de despesa respeitar as normas legais aplicáveis e; ii) deve ela encontrar-se
prevista/inscrita e cabimentada no orçamento. [v. págs.339 e 340]
Seja como for, a relação que é pelo menos de paridade, entre a Lei do OE e outras leis
(avulsas) ou contratos, conhece algumas condições; essa paridade relativa cede, se se der a
violação de qualquer princípio constitucional, como sejam a proteção dos direitos adquiridos
dos cidadãos ou a tutela da confiança. A lesão destes princípios funcionaria como uma pedra de
toque, obrigando nestes casos o legislador da Lei do OE a dar cabimentação a despesas legais
ou contratuais.
As obrigações decorrentes de lei ou de contrato assumem, no que à contraparte diz
respeito (os cidadãos), a natureza de direitos. E a questão que se coloca diz respeito à
sobrevivência dos direitos adquiridos no contexto atual de grave crise económico-financeira.
Esta discussão convoca argumentos vários. Contra, encontramos argumentos retirados da
Constituição, que vão desde a violação do princípio da tutela da confiança, à violação do
princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade, passando pela violação dos
princípios da irredutibilidade salarial e da proibição do retrocesso social. A favor, invoca-se a
situação de estado de emergência financeira nacional e o argumento da sustentabilidade
financeira do Estado, considerada agora valor prevalecente sobre o suposto princípio dos
direitos adquiridos e tida por condição sine qua non de concretização desses direitos.
Também não cuidamos aqui da questão de saber se e em que medida o referido
Memorando de Entendimento configurará uma verdadeira vinculação jurídica do OE.
Independentemente da sua juridicidade, ele assume-se como um pesado e limitativo
constrangimento ou restrição orçamental do Estado, acabando, na prática, por ser mais efetivo
do que assumidas vinculações jurídicas.
Do que antecede, podemos concluir que o regime das vinculações externas constante do
art. 17.º LEO, em articulação com o art. 16.º, mereceria ser repensado e reformulado, tendo em
conta aquela que é já hoje, na prática, a hierarquia de vinculações resultantes da própria LEO e,
indiretamente, da legislação comunitária aplicável em matéria de finanças públicas e em matéria
de orçamentação pública.
A relação prática entre as vinculações externas e o OE permite perceber que,
especialmente no atual contexto, constrangimentos económicos e financeiros desprovidos
geralmente de juridicidade acabam por ser mais efetivos e limitativos do que as verdadeiras
obrigações jurídicas. Permite perceber ainda que o OE é cada vez mais o instrumento legal por
excelência de criação/conformação de obrigações para o Estado, possuindo correlativamente a
palavra certa e definitiva na consumação dos direitos dos cidadãos.
Para finalizar, o Prof. propõe a reordenação das vinculações externas, constante do art.
17.º LEO, do seguinte modo:
- obrigações decorrentes dos Programas de Estabilidade e Crescimento ou
outros documentos que sejam impostos, no respeito pelas regras do PEC;
- limites de despesa definidos pelo quadro plurianual da despesa pública.
Estas são verdadeiramente as vinculações externas do OE, devendo este, no respeito
pelo preceito constitucional, harmonizar-se com as grandes opções em matéria de planeamento.
O conteúdo do OE e os cavaleiros orçamentais
A LEO procura, especialmente no seu art. 31.º, formatar o conteúdo desejável do OE –
desejável porque pretende, pela positiva, indicar o conjunto de matérias que podem e devem
estar no articulado do Orçamento e, porque pretende, pela negativa, afastar do seu âmbito
matérias que não tenham um conteúdo especificamente orçamental (por vezes, denominadas de
‘cavaleiros’ ou ‘boleias’ orçamentais).
Quanto à razão de ser da existência destas boleias orçamentais, no plano doutrinário está
em causa, fundamentalmente, a contraposição entre a tese da inconstitucionalidade e a tese da
sua irrevelância jurídica. À luz desta última, os cavaleiros de lei reforçada e, nomeadamente, os
cavaleiros orçamentais, não são inconstitucionais, precisamente por não beneficiarem do regime
jurídico orçamental, logo não interferindo na repartição de competências definidas pela
Constituição. Ou seja, matérias não orçamentais incluídas no orçamento não são ‘contaminadas’
por essa especial natureza orçamental.
Verificamos que as matérias expressamente integradas no n.º 1 do art. 31.º são muito
díspares. Com efeito, nele encontramos dois grandes grupos de matérias:
- matérias específica e indubitavelmente orçamentais (als. a) a d) e a al. p));
- matérias não especificamente orçamentais, mas tornadas orçamentais,
legalizando-se assim uma prática ou costume orçamental (als. n), e) a m) e o)) e
atribuindo-se-lhes a regularidade de aprovação própria do OE e da garantia de vigência
por um período temporal coincidente com o ano civil.
Relativamente às matérias que não constam expressamente do elenco do n.º 1 do art.
31.º, mas que habitual ou esporadicamente surgem na lei do OE, poderemos qualificá-las de
diferentes modos (sendo certo que elas podem traduzir-se, por sua vez, numa regulação direta da
matéria ou numa autorização legislativa). Assim, lá encontramos:
- matérias que serão ainda matérias especificamente orçamentais e cobertas pelo
caráter exemplificativo do n.º 1 do art.31.º, surgindo habitualmente nas lei do OE – ex.,
as alterações à legislação fiscal (que não constituam alterações estruturantes dos
Códigos fiscais), certas regras sobre funcionalismo público e sobre pensionistas;
- matérias que serão ainda matérias especificamente orçamentais e cobertas pelo
caráter exemplificativo do n.º 1 do art. 31.º, surgindo esporádica ou intermitentemente
nas lei do OE – ex., certas previsões em matéria de funcionalismo público e de contrato
de trabalho na Administração Pública ou de regras sobre contratação pública, etc.;
- matérias que só de forma indireta ou incidental têm natureza orçamental,
sendo por vezes difícil determinar se ainda estamos perante matéria orçamental ou
perante um cavaleiro orçamental (v.g. regras sobre a prestação de serviço público, o
regime de férias, feriados e faltas, regime demobilidade, etc.);
- matérias que configuram claramente um cavaleiro orçamental – ex., o disposto
no art. 75.º da lei do OE para 2012, relativo à representação da segurança social em
juízo, nos processos especiais de recuperação de empresas e insolvência.
O direito de emenda parlamentar no domínio orçamental e a sua relação com
a ‘lei-travão’
Uma das questões mais interessantes e controvertidas do Direito Orçamental português
continua a ser a do significado e extensão do exercício da emenda parlamentar em relação à
proposta inicial de lei do OE ou à proposta de lei de alteração orçamental apresentadas pelo
Governo. À primeira vista, não existem quaisquer limites constitucionais ou legais para o
exercício dessa emenda parlamentar.
Todavia, muito por força do entendimento assumido pela jurisprudência constitucional,
tem-se considerado que a iniciativa superveniente dos deputados ou dos grupos parlamentares
conhece maiores limitações quando ela incide sobre uma proposta de alteração orçamental do
que quando ela respeita à proposta inicial do OE.
Relativamente à proposta inicial do OE não existem quaisquer limitações do ponto de
vista material, pelo que as alterações propostas pelos grupos parlamentares no seu conjunto,
caso aprovadas, conduzem a um resultado completamente díspar do da proposta governamental.
A questão é, no limite, política uma vez que se o governo está sustentado por uma maioria
partidária, as propostas apresentadas pela oposição dificilmente serão aceites; se o governo está
sustentado por uma minoria partidária, então uma acção concertada da oposição pode vencer e o
governo vê-se constrangido a ter de aceitar e executar um orçamento que não é o seu. O campo
de reação que o governo tem perante iniciativas supervenientes deste tipo é de natureza
essencialmente política e passa fundamentalmente pela troca de votos (‘logrolling’) na cena
parlamentar.
Já no que diz respeito às propostas de alteração orçamental, a emenda parlamentar está,
por força da referida jurisprudência constitucional mais limitada. E isto por força de dois
argumentos fundamentais:
a) o argumento da alteração de sentido da proposta de lei (o desvirtuar da proposta)
Nesta segunda fase, os deputados, a pretexto de uma proposta de alteração orçamental,
não podem proceder a modificações orçamentais que não se inscrevam na proposta do governo,
ou seja, alargar essas modificações a outras áreas, não pretendidas pelo governo. Como diz o
Acórdão 317/86, “Não se pretende que a Assembleia da República esteja vinculada à proposta
de alteração feita pelo Governo. Pode aceitá-la ou rejeitá-la. Pode aumentar as receitas, como se
propõe, ou aumentá-las numa percentagem diferente do que a pretendida. Igualmente poderá
não diminuir as despesas, ou diminuir menos do que se pretende. Não pode é proceder a
alterações que extravasem o âmbito da proposta”.
b) o argumento da ‘lei-travão’
Trata-se da aplicação do regime constante no art. 167.º, n.º 2 CRP. A ‘lei-travão’
impede o seguinte (condições cumulativas):
- que os deputados, grupos parlamentares e cidadãos de eleitores apresentem
projetos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração (ou seja, veda a sua iniciativa
originária e superveniente);
- que envolvam o aumento da despesa ou a diminuição de receita;
- no ano económico em curso.
A aplicação da ‘lei-travão’ tem um escopo mais amplo do que apenas à proposta de lei
de alteração orçamental; ela visa qualquer iniciativa legislativa dos parlamentares que produza
os mencionados efeitos financeiros. Assim, em primeira linha, estarão em causa iniciativas
originárias dos deputados de legislação avulsa que pudesse produzir aqueles efeitos – ex.,
iniciativas de criação de novos subsídios de apoio aos desempregados. Depois, estarão em causa
quaisquer iniciativas supervenientes dos parlamentares – relativamente a propostas de lei
iniciais do governo – e que traduzam aqueles mesmos efeitos (ex., na sequência da apresentação
de uma proposta de lei na AR sobre taxas moderadoras, virem os deputados prever novas
categorias de isenções de taxa, não contempladas na proposta inicial do governo). Depois então,
estarão em causa, no quadro de propostas de alteração orçamental (sempre exclusivas do
governo), as emendas feitas por parlamentares que envolvam ou aumento de despesa ou a
diminuição de receita.
Já no que diz respeito a iniciativas originárias ou supervenientes relativas a legislação
avulsa (i.e. que não sejam alterações orçamentais), colocou-se a questão de saber se o facto de a
lei em causa prever a sua entrada em vigor e produção de efeitos no ano económico em curso
levaria à inaplicabilidade, para todo o sempre, da norma respetiva violadora do n.º 2 do art.
167.º CRP. Ora a jurisprudência constitucional nesta matéria, no Acórdão n.º 297/86,
considerou que não, isto porque tal artigo só impede que os deputados apresentem projetos de
lei que envolvam aumento de despesas no ano económico em curso, não ficando vedada a
apresentação de projetos de lei que acarretem esses efeitos apenas para os anos seguintes.
Bastaria falar em inconstitucionalidade parcial para se poder concluir que as normas em questão
só seriam inconstitucionais na medida em que aplicáveis ao ano económico em curso.
O processo orçamental – v. págs. 356 a 380
O processo orçamental inicial
O XVIII Governo Constitucional fica marcado pelo início da crise da dívida soberana e
pela ‘diabolização’ dos PECs (programas de estabilidade e crescimento). Na verdade, a rejeição
do PEC IV, em Março de 2011, acabaria por conduzir à queda desse Governo. Trata-se de
quadros macroeconómicos e de política orçamental de natureza plurianual deslizante que devem
informar, condicionar e limitar as opções anuais contidas no OE, funcionando como
instrumentos ao serviço da consolidação orçamental no quadro da aplicação da vertente
preventiva do Pacto de Estabilidade e Crescimento.
O pedido de assistência financeira concretizado com a assinatura do Memorando de
Entendimento com a Troika trouxe algumas consequências no domínio do processo orçamental.
A LEO sofrera uma importante alteração, em Maio de 2011,curiosamente pela mesma altura em
que o ainda Governo em funções assinou o Memorando de Entendimento com a Troika. A
tomada de posse no novo Governo Constitucional (XIX) implicou uma nova alteração à LEO,
logo em Outubro 2011.
Tendo por base o Memorando de Entendimento da Troika e a sua avaliação permanente,
os PECs deram lugar aos Documentos de Estratégia Orçamental. O primeiro foi apresentado
pelo Governo ao Parlamento em finais de Agosto de 2011. E desde então têm vindo a ser
atualizados, tais como o eram os PECs. São de resto formal e materialmente idênticos. Mudou o
nome e o contexto da sua aplicação – pois começam a ser aplicados no quadro de um programa
de assistência financeira embora o seu âmbito temporal neste momento abrace já o ano de 2017.
A – Previsão de receitas e despesas
Quanto aos aspetos de natureza técnica, cumpre assinalar as tarefas de previsão
orçamental (da receita e da despesa pública). O séc. XX foi marcado pelo aperfeiçoamento dos
métodos de previsão orçamental.
Existem fundamentalmente três métodos de previsão de receitas:
- método tradicional ou empírico, que remontam às finanças oitocentistas
marcadas pela estabilidade económica e pela insipiência das funções financeiras do Estado;
- método da avaliação direta, especialmente adaptado para receitas novas ou de
maior volatilidade. Aqui, a previsão faz-se tendo apenas por base o juízo humano mas que pode
tentar superar as dificuldades de previsão, pelo recurso a elementos técnicos de apoio
diversificados;
- método dos modelos, mais recente, supõe a previsão econométrica pelo
recurso a equações de regressão. Traduz uma análise de grande complexidade que hoje já não
consegue dispensar o recurso a programas informáticos.
Relativamente à previsão das despesas, as dificuldades de avaliação e previsão são
diferentes consoante se trate de:
- despesas já existentes em anteriores exercícios orçamentais – a avaliação faz-
se de forma praticamente automática; ou
- despesas ou medidas novas – a avaliação é de natureza aproximativa.
A utilização destes métodos continua, em Portugal, a fazer-se correntemente. E assim,
por razões de simplicidade, de regularidade financeira e até de contenção do aumento das verbas
orçamentais. Apesar de tudo eles revelaram duas importantes limitações. Em primeiro lugar,
pelo seu empirismo e tradicionalismo, inviabilizam qualquer ‘lógica’ racionalizadora no
processo e na decisão orçamentais, acabando por gerar critérios ‘incrementalistas’ de
justificação das despesas, com base em fatores de aumento das despesas pouco racionais. Em
segundo lugar, porque “são completamente divorciados de qualquer perspetivação global da
vida económica, são totalmente empíricos e inadequados à prossecução de políticas económicas
através do orçamento”.
De qualquer forma, também em relação à previsão deste tipo de despesas (já existentes),
visualizamos alguns avanços no plano analítico. Assim, para além daquelas técnicas de
negociação, têm-se desenvolvido um conjunto de técnicas previsionais assentes em séries
temporais e em modelos econométricos.
Já no que diz respeito às despesas novas e que correspondem às verdadeiras escolhas
políticas do Governo, a avaliação não se sustenta em qualquer base de referência. Pelo que, a
estimação deve fundamentar-se em algumas hipóteses de trabalho. Em primeiro lugar, hipóteses
atinentes à evolução económica geral. E, para além disso, importa considerar outras hipóteses
atinentes às necessidades sentidas neste ou naquele ministério. Trata-se muito mais de uma
apreciação política do que de uma estimação de carácter técnico, ainda que não dispense a
componente técnica hoje disponível, maxime no campo da modelização macro económétrica.
Apesar dos importantes progressos na ciência económica, com a utilização destas novas
técnicas – não apenas econometria (no método dos modelos), mas também a contabilidade
nacional, etc. – a verdade é que elas continuam, ainda hoje, a revelar as suas fragilidades. As
causas dessas imprecisões podem ser de dupla ordem. Por um lado, pode tratar-se de factos
involuntários, de que se destacam os erros técnicos; mas pode tratar-se ainda de atos
voluntários, de desinformação ou de mentira orçamental, seja através da inscrição inexata de
verbas, seja através da manipulação desleal dos valores orçamentais.
B – O processo de aprovação do OE
A lei do orçamento é elaborada, organizada e votada anualmente, de acordo com a LEO
(cf. art. 106.º, n.º 1 CRP). A proposta de Lei do Orçamento de Estado para o ano económico
seguinte é apresentada pelo Governo à Assembleia da República, até 15 de Outubro de cada
ano. Repare-se que a iniciativa legislativa em matéria orçamental é um exclusivo do Governo
(art. 161.º, n.º 1, al. g) CRP), o que constitui uma situação rara, relativamente à generalidade das
matérias, e é de uma ampla concorrência entre os dois órgãos de soberania, AR e Governo, no
exercício dessa mesma iniciativa legislativa. Este exclusivismo da iniciativa governamental em
matéria orçamental encontra uma importante justificação. O OE é o principal instrumento de
concretização (financeira) da política do governo, assumida e apresentada ao Parlamento no
respetivo programa, logo após a sua tomada de posse.
No final do seu mandato, o Governo deverá prestar contas ao eleitorado, da execução
desse mesmo programa político, e responsabilizar-se por ela.
O prazo, de 15 de Outubro, não se aplica aos casos em que o Governo se encontre
demitido nessa data, ou quando a tomada de posse do novo executivo ocorra entre 15 de Julho e
14 de Outubro ou ainda quando o termo da legislatura ocorra entre 15 de Outubro e 31 de
Dezembro. Nos casos referidos, o Governo tem três meses a contar da data da sua posse para
apresentar a proposta de lei ao Parlamento (art. 38.º LEO). Cabe à AR votar e aprovar o OE (cf.
art. 161.º, n.º 1, al. g) CRP), tratando-se esta matéria, de uma matéria reservada, em absoluto, ao
Parlamento.
A votação da proposta realiza-se no prazo de 45 dias após a data da sua admissão pela
AR. O Plenário discute e vota na generalidade a proposta de lei, bem como discute e vota
obrigatoriamente na especialidade.
A votação é efetuada na generalidade (quanto ao articulado no seu todo) em regra, salvo
algumas situações de votação obrigatória na especialidade, a saber: (1) nos casos em que resulta
obrigatoriedade legal, sempre que estejamos perante a criação, alteração e extinção de impostos
e nas situações em que se autorizam empréstimos e financiamentos; (2) nas restantes situações
não mencionadas, sempre que a AR entenda dever submeter à apreciação individual.
No n.º 2 prevê-se que caiba obrigatoriamente ao Plenário da AR a votação na
especialidade da criação de novos impostos e a alteração da base de incidência, taxas e regimes
de isenção de impostos existentes, bem como a matéria relativa a empréstimos e outros meios
de financiamento. No n.º 3 prevê-se que as restantes matérias sejam votadas na especialidade na
Comissão parlamentar de Economia, Finanças e Plano – notando-se aqui um afloramento da
regra da publicidade orçamental.
C – A prorrogação de vigência do OE
O regime aplicável quando não haja lei do Orçamento aprovada pelo Parlamento a
tempo de entrar em vigor a 1 de Janeiro tem como fundamento histórico a distinção entre lei
material e lei formal.
Segundo Sousa Franco, a apresentação da proposta de Orçamento é um dever do
Governo, mas a sua “não aprovação (…) equivale a uma não confiança prática no Governo ou
em alguns dos seus membros”.
Discutiu-se muito sobre a constitucionalidade da propsta de Orçamento (provisório). O
Prof. entende que, em princípio, um Governo de gestão não pode apresentar uma proposta de lei
do Orçamento. Ora, a apresentação de uma proposta de lei do Orçamento não se limita à prática
de atos que visam assegurar a mera gestão dos negócios públicos. O Prof. é, todavia, de opinião
que, excecionalmente, verificando-se manifesta insuficiência dos meios financeiros previstos no
Orçamento do ano anterior para a prossecução do funcionamento normal do Estado e da
Administração, será possível ao Governo utilizar o seu direito de iniciativa em matéria
orçamental junto da AR – em princípio, apresentando uma proposta de alteração a lei do
Orçamento em vigor. Frisa-se, porém, que se trata de um procedimento excecional, que não
pode envolver autorizaão de despesas para projetos novos ou decorrentes de alterações de fundo
na política económica, nem para a cobrança de receitas que visem financiá-las.
Deve hoje entender-se que a lei consagra uma prorrogação automática da autorização
parlamentar extensiva para além do final do ano, altura em que, normalmente, caducaria a citada
autorização. Pretende-se, afinal, evitar, deste modo, uma perturbação no normal funcionamento
do Estado em virtude da inexistência de Orçamento.
Apesar de a autorização se renovar automaticamente, isso não significa que o
Orçamento continue em vigor de forma automática para além de 31 de Dezembro. Com efeito,
torna-se indispensável que o Governo estabeleça por DL o regime orçamental transitório para o
ano em causa.
A vigência da Lei do Orçamento de Estado pode ser prorrogada quando haja rejeição da
proposta de Lei do OE pela Assembleia da República, quando a tomada de posso do novo
Governo tenha ocorrido entre 15 de Julho e 14 de Outubro, quando tenha ocorrido a caducidade
da proposta de Lei do OE em virtude da demissão do Governo proponente ou de o Governo
anterior não ter apresentado qualquer proposta, ou ainda no caso de não votação parlamentar da
proposta de lei.
A prorrogação da vigência da LOE abrange os respetivos articulados e correspondentes
mapas orçamentais, bem como os seus desenvolvimentos e os decretos-leis de execução
orçamental (art. 12.º-H LEO). Por seu lado, não abrange: as autorizações legislativas contidas
no articulado que, de acordo com a Constituição ou segundo os termos em que foram
concedidas, devam caducar no final do ano económico; as autorizações para a cobrança das
receitas, cujos regimes se destinam a vigorar até ao final do ano a que a lei respeita; e as
autorizações de despesa respeitantes a serviços, programas e medidas plurianuais que devam
extinguir-se até ao final do ano económico em causa.
Durante o período transitório em que se mantiver a prorrogação da vigência da lei do
Orçamento respeitante ao ano anterior, a execução do Orçamento das despesas obedece ao
princípio da utilização por duodécimos das verbas fixadas nos mapas orçamentais que as
especificam, de acordo com a classificação orgânica, sem prejuízo das que não obedecem ao
regime duodecimal.
O Governo e os fundos e serviços autónomos poderão, no período transitório em que
vigorar a prorrogação, emitir dívida pública fundada (de prazo superior a um ano), nos termos
da lei; conceder empréstimos e realizar operações ativas de crédito até ao limite de um
duodécimo do montante máximo autorizado pela lei do Orçamento em cada mês que vigore
transitoriamente; e a conceder garantias pessoais, nos termos da respetiva legislação (art. 12.º-H,
n.º 5 LEO).
O regime da execução orçamental
A execução orçamental compete em exclusivo ao Governo, nos termos do art. 199.º,
al.b) CRP. Sendo a matéria da execução orçamental da exclusiva competência do Governo,
legislar sobre a execução orçamental pressupõe a competência exclusiva do Governo. Assim,
juntamente com a aprovação da orgânica do Governo, também se deve considerar exclusiva a
competência para legislar sobre os aspetos atinentes à execução orçamental. Cfr. art. 43.º LEO.
O processo orçamental subsequente: o regime das alterações orçamentais
A necessidade de efetuar alterações orçamentais resulta da execução orçamental,
embora algumas possam ser previamente antecipadas e, logo, autorizadas no próprio OE. As
regras de competência são definidas a partir de uma escala gradativa. Os graus são:
1) Alterações da competência da AR
Valem aqui considerações idênticas às da proposta inicial de OE: a proposta de
alteração cabe, em exclusivo, ao Governo e a sua aprovação compete à AR (aplicação analógica
do art. 198.º, al. b) CRP). Nesta fase e no quadro da discussão parlamentar, podem os deputados
e os grupos parlamentares apresentar propostas de alteração á proposta originária do Governo.
Ao contrário, porém, do que sucede com a proposta originária no quadro do processo
orçamental inicial, aqui a emenda parlamentar conhece alguns limites.
Quanto ao conteúdo das leis de alteração orçamental, remete-se para os arts. 30.º a 37.º
LEO, e para tudo o que se disse a propósito das mesmas. A necessidade de apresentação dos
elementos informativos, para garantia da transparência e clareza financeira a que se reporta o
art. 89.º, e tendo também presente como função adicional a garantia do controlo global e
sistemático, a que se reporta os arts. 58.º, 59.º, 62.º, 65.º e 66.º.
2) Alterações da competência do Governo
Resulta do DL n.º 71/95, de 15 de Abril. As alterações da competência do Governo
poderão revestir as seguintes formas mais relevantes:
(i) modificações na redação de rubrica desde que não alterem as designações de
classificação económica e seus desenvolvimentos tipificados;
(ii) transferências de verbas com contrapartida na dotação provisional e ainda outras
transferências de verbas, dentro do mesmo capítulo que não alterem a classificação funcional;
(iii) créditos especiais, com cobertura em receitas sujeitas ao regime de contas de
ordem, em saldos de dotações de anos anteriores utilizados por expressa determinação da lei e,
bem assim, com compensação em receitas consignadas.
Por fim, queríamos deixar as seguintes notas a respeito das alterações orçamentais.
Importa não confundir a distinção que separa processo orçamental originário versus processo
subsequente, com a distinção antiga entre orçamento preventivo e retificado. De acordo com
esta última, o primeiro autorizava as receitas e despesas para todo o ano financeiro e o segundo
corrigia as previsões do orçamento preventivo, que decorria entre 15 de Fevereiro e 30 de Junho
de cada ano.
A necessidade de tornar imperturbável o plano financeiro, anualmente delineado pelo
Governo e aprovado pela AR, conduz ao impedimento dos deputados, dos grupos parlamentares
e das assembleias regionais apresentarem ou fazerem aprovar projetos de lei ou propostas de
alteração que não envolvam aumento das despesas positivas orçamentadas, em aplicação do
‘dispositivo-travão’, prevista no art. 167.º, n.º 2 CRP. Assim, o chamado dispositivo-travão,
peça fundamental para a concretização de um consentimento parlamentar estável e hoje
fundamental, considerando os compromissos europeus no domínio da consolidação de médio
prazo das finanças públicas, deve aplicar-se a todas as situações que conduzam direta ou
indiretamente à redução de receitas.
Como vimos anteriormente, o ‘dispositivo-travão’ interfere também em sede de
alterações ao orçamento. Há que distinguir, assim, entre: emenda durante a discussão do
orçamento da emenda durante a vigência do orçamento. Sendo que o art. 167.º, n.º 2 CRP proíbe
o aumento de despesas ou diminuição de receitas, por iniciativa de entidades estranhas ao
Governo devemos defender também algumas limitações ao direito de emenda parlamentar,
sempre que esteja cumprido o direito de iniciativa exclusivo desta entidade.
De forma sintética, podemos, assim, avançar que:
- a Assembleia da República apenas tem competência tipificada – para alterar
alguns mapas de base;
- o Governo tem competência residual – sendo que pode alterar todos os mapas,
por exclusão de partes.
Capítulo V – Fiscalização orçamental e responsabilidade financeira
§ O princípio da responsabilidade financeira e ‘accountability’
O princípio da responsabilidade financeira está intimamente associado à ideia de
‘accountability’, isto é, a ideia de prestar contas. A necessidade de prestação de contas envolve
os gestores públicos, ou seja, os responsáveis pela concretização dos diversos programas de
despesa ou responsáveis pela coleta de receita, como também os responsáveis políticos
máximos.
Atualmente a gestão orçamental tornou-se numa orçamentação de fins. Ao gestor
orçamental é exigido que execute o seu programa de despesa, isto é, que cumpra os objetivos
(outputs) traçados para essa despesa. Mais importante do que os meios, são agora os fins. Por
isso, a ‘accountability’ visa agora verificar se e em que medida os objetivos traçados foram
concretizados. E é por isso, fundamentalmente, que o gestor orçamental deve ser
responsabilizado.
Uma outra evolução é a de que os atores políticos principais (maxime os membros do
governo) podem ser responsáveis pelo incumprimento de regras políticas relacionadas com a
condução da política orçamental e, designadamente, pelo desrespeito das exigências em matéria
de disciplina orçamental.
- Apreciação da situação portuguesa à luz das melhores práticas
internacionais: novas modalidades de verificação da responsabilidade financeira; as
mutações do papel do Tribunal de Contas; significado da criação do Conselho das
Finanças Públicas
Quando a função dos orçamentos é essencialmente uma função de controlo, a
verificação de responsabilidades é prima facie uma verificação de legalidade. Quando, pelo
contrário, a função do orçamento se concentra em funções de gestão e planeamento, a
verificação da responsabilidade é também uma verificação de mérito (considerada como a regra
dos três E – economia, eficiência e eficácia). Instrumentos analíticos como a análise custo-
benefício e custo-eficácia são cruciais.
Por outro lado, isto exige o desenvolvimento de novas formas de verificação de
responsabilidades. Tradicionalmente, essa forma era o controlo ou fiscalização orçamental,
podendo este assumir uma natureza política, jurisdicional ou administrativa. O epicentro deste
sistema era, entre nós, o Tribunal de Contas na sua função jurisdicional. A ótica de gestão
trouxe outras modalidades de verificação, em particular, as auditorias e a avaliação.
Ora, é de notar, cada vez mais, que o Tribunal de Contas se apropriou de institutos
como as auditorias, tornando-as hoje num instrumento primacial da sua atuação fiscalizadora.
No entanto, a realização destas auditorias conhece alguns limites processuais, relacionados quer
quanto ao ‘tempo’ da sua verificação – em que opera a título de fiscalização sucessiva ou,
eventualmente, concomitante – quer quanto ao respeito de certos princípios fundamentais – por
ex., o princípio do contraditório (cf. Art. 87.º, n.º 3 LOPTC).
Fruto também de recomendações internacionais que vão no sentido de subordinar a
gestão orçamental a um controlo apertado por parte de entidades independentes, Portugal criou
um novo órgão de acompanhamento da política orçamental, denominado Conselho das
Finanças Públicas, cuja missão principal consta do art. 12.º-I, n.º 1 LEO: “pronunciar-se sobre
os objetivos propostos relativamente ao cenário macroeconómico e orçamental, à
sustentabilidade de longo prazo das finanças públicas e ao cumprimento da regra sobre o saldo
orçamental, prevista no art. 12.º-C, da regra da despesa da administração central, prevista no art.
12.º-D, e das regras de endividamento das regiões autónomas e das autarquias locais previstas
nas respetivas leis de financiamento”. A Lei n.º 54/2011, de 19 de Outubro, que aprovou os
respetivos estatutos, concretiza as principais atribuições deste Conselho (art. 6.º).
§ Modalidades de controlo ou fiscalização orçamental
O art. 107.º CRP diz “A execução do Orçamento será fiscalizada pelo Tribunal de
Contas e pela Assembleia da República que, precedendo parecer daquele Tribunal, apreciará e
aprovará a Conta Geral do Estado, incluindo a da Segurança Social”.
Devemos referir três tipos de fiscalização: política, administrativa e jurisdicional.
- Fiscalização política
A fiscalização política cabe à Assembleia da República e traduz-se quer na apreciação
anual da Conta Geral do Estado, nos termos do art. 107.º CRP (controlo a posteriori), quer na
apreciação, ao longo do ano, do modo como os Governos vão executando os Orçamentos e
pondo em prática as suas políticas económico-financeiras (controlo concomitante). A estas
fiscalizações junta-se a fiscalização que a Assembleia da República exerce ex ante,
nomeadamente, ao votar o Orçamento do Estado.
No exercício da fiscalização a posteriori e concomitante, a Assembleia da República é
assistida tecnicamente pelo Tribunal de Contas.
O Parlamento poderá recusar a sua aprovação à Conta Geral do Estado apresentada e
responsabilizar politicamente o Governo em funções, se for o mesmo que executou o
Orçamento do Estado. V. arts. 197.º e 194.º, n.º 1, al. f) CRP.
Além disso, a Assembleia da República poderá acionar os mecanismos de
responsabilização política, ou solicitar informações sobre o modo como se processa a execução
orçamental.
- Fiscalização administrativa
A fiscalização administrativa compete à própria entidade responsável (autocontrolo)
pela realização da despesa (ou liquidação da receita), bem como a entidades que lhe sejam
hierarquicamente superiores e de tutela, a órgãos gerais de inspeção e controlo administrativo, e
à Direção Geral do Orçamento, através das respetivas delegações junto dos Ministérios. Tal tipo
de fiscalização está virado sobretudo para aspetos de legalidade e cabimento orçamental e é
realizada a priori. Consultar anotações aos arts. 62.º a 66.º.
- Fiscalização jurisdicional: remissão
A fiscalização jurisdicional da execução do Orçamento do Estado está confiada ao
Tribunal de Contas, que é constitucionalmente um verdadeiro Tribunal e órgão supremo de
auditoria integrado no poder judicial (art. 209.º, n.º 1, al. c) CRP).
- Fiscalização e responsabilidade financeira
A responsabilidade financeira é o resultado da conjugação de três tipos de controlo: o
controlo administrativo, o controlo político e o controlo financeiro, o que a torna numa figura
um pouco sui generis, que deveria ter aplicação plena, mas não tem. Na opinião do Prof., o
Tribunal de Contas, atualmente, não concentra, na execução e no controlo das contas, a
efetivação da responsabilidade financeira. Isto porque a sua jurisdição não abarca a opção
política que, naturalmente, se interrelaciona com a questão da responsabilidade financeira,
criando-se, assim, uma zona cinzenta da qual está ausente o controlo do Tribunal de Contas.
§ Tribunal de Contas
- O âmbito da jurisdição do Tribunal de Contas
Constitucionalmente, o Tribunal de Contas é, hoje, um autêntico tribunal integrado no
poder judicial (art. 209.º, n.º1, al. c) CRP). O Tribunal de Contas tem uma integração especial
no poder judicial, não estando da dependência do Conselho Superior de Magistratura.
Dele fazem parte um Presidente – nomeado pelo Presidente da República e um mandato
com duração de 4 anos (art. 133.º, al. m) CRP) – e 16 Juízes, que são equiparados a Juízes do
Supremo Tribunal de Justiça, funcionando junto dele, como agente do Ministério Público, na
Sede, o Procurador-Geral da República e, nas secções regionais, um magistrado para o efeito
designado por aquele.
Ao Tribunal de Contas são cometidas pela Constituição (art. 107.º) e pela lei tarefas que
se revelam fundamentais no âmbito do Estado de direito e na prossecução dos objetivos de
disciplina e sustentabilidade financeira e orçamental.
Na atual fase, o Tribunal de Contas é organizado e regulado, no seu essencial pela Lei
n.º 98/97 de 26 de Agosto (LOPTC) – Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas. É
o órgão supremo de controlo, fiscalização e de auditoria das contas públicas, dando parecer
sobre a Conta Geral do Estado, incluindo a da Segurança Social e sobre as contas das Regiões
Autónomas; fiscalizando previamente a legalidade e o cabimento orçamental dos atos e
contratos de qualquer natureza que sejam geradores de despesa ou representativos de quaisquer
encargos e responsabilidades para as entidades sujeitas aos seus poderes de controlo e à sua
jurisdição; julgando a efetivação de responsabilidades financeiras; realizando auditorias;
apreciando a legalidade, bem como a economia, eficiência e eficácia das entidades sujeitas aos
seus poderes de controlo.
Independentemente da existência ou não de compromissos europeus em matéria de
finanças públicas, os cidadãos têm o direito de ser informados acerca da utilização dos dinheiros
púlicos e a saber que quem não cumpre as regras e normas em vigor é alvo de sanções ou, pelo
menos, de recomendações claras no sentido da correção e do aperfeiçoamento. Desde modo,
cabe aos órgãos de Auditoria e Fiscalização como o Tribunal de Contas uma tarefa essencial de
credibilização das finanças públicas tendentes à boa e correta utilização dos dinheiros públicos.
Há assim, que assegurar que o Governo, ao realizar as despesas e ao cobrar as receitas,
cumpra o plano aprovado pelo Parlamento. O Executivo terá de executar o Orçamento do
Estado dentro dos limites da lei e da autorização política que recebeu, aplicando os recursos da
melhor maneira para obter os objetivos propostos, evitando os desperdícios e a má utilização
dos dinheiros públicos.
A competência do Tribunal é ampla e complexa, não sendo apenas jurisdicional mas
também de auditoria e de controlo financeiro. Podemos distinguir quatro grandes áreas:
- competência consultiva – ver anotação ao art. 72.º;
- competência jurisdicional – o TC julga e efetiva responsabilidades financeiras;
- fiscalização a priori das despesas públicas – o Tribunal examina e concede o
visto ou emite declaração de conformidade relativamente a diversos atos geradores de
despesa (art. 5.º, n.º 1, al. c) Lei n.º 98/97 de 26 de Agosto);
- fiscalização concomitante e sucessiva – recorrendo à técnica da auditoria (arts.
49.º e 50.º da Lei n.º 98/97 de 26 de Agosto).
As competências puramente administrativas estão genericamente previstas no art. 6.º,
onde se devem incluir a aprovação do seu orçamento anual, incluindo o dos cofres (art. 32.º, al.
a)), a definição das linhas gerais de organização e funcionamento dos seus serviços de apoio
técnico (art. 32.º, al. c)) e ainda a capacidade de publicar instruções dirigidas às entidades
sujeitas à fiscalização do Tribunal de Contas. Todos da Lei n.º 98/97 de 26 de Agosto.
- Fundamentos do papel do Tribunal de Contas
De acordo com Sousa Franco, “o controlo orçamental dos dinheiros públicos tem
principalmente duas ordens de fundamentos: fundamentos jurídico-políticos – assegurar que o
Executivo se mantém dentro dos limites da lei e dos que foram assinalados pelo Parlamento,
através da aprovação da Lei do Orçamento – e fundamentos económicos – evitar os desperdícios
e a má utilização dos recursos públicos”.
Esta forma de controlo externo constitui uma limitação à independência da entidade que
é objeto do mesmo, na medida em que consubstancia uma fiscalização externa à sua atividade
que, por alguma razão, se entendeu dever ser cumulada com o necessário controlo interno (isto
é, realizado por um órgão da estrutura interna da entidade em causa que, apesar de dotado de
independência técnica, não é exterior à entidade fiscalizada).
Assim, a razão que justifica que determinada entidade deva ser objecto deste controlo
externo é o interesse público na boa administração dos recursos públicos. Por outras palavras, é
o facto de determinada entidade beneficiar, ou de alguma forma se servir, de recursos que
pertencem, em última instância, à generalidade dos cidadãos que dá fundamento à existência do
Tribunal de Contas.
A delimitação operada pelo n.º 1 do art. 1.º LOPTC
Pela análise do disposto no art. 214.º CRP e nos arts. 1.º, 5.º e 6.º LOPTC, ressalta uma
ideia-chave: a de que a jurisdição do Tribunal incide sobre a generalidade das receitas e das
despesas públicas e da correspondente atividade de gestão, sem que seja possível dissociar da
sua competência a utilização de dinheiros públicos por parte das entidades sujeitas ao seu
controlo e jurisdição.
Ao longo do tempo deu-se uma mudança de paradigma quanto à jurisdição e controlo
exercidos por este Tribunal financeiro: o critério passou a ser objectivo, estribando-se no
princípio da perseguição dos dinheiros e valores públicos.
A razão de ser do Tribunal prende-se como interesse público no controlo da legalidade,
da regularidade e da boa gestão dos dinheiros públicos. E é justamente esse interesse público
que permite, em última análise, definir o âmbito da sua jurisdição. Sendo essa a sua missão, é
também esse o limite à sua jurisdição e à sua atuação. Onde inexistam dinheiros públicos, o
exercício de funções de controlo pelo Tribunal, não tem razão de ser.
Em especial a al. a) do n.º 2 do art. 2.º LOPTC
Ao referir-se às “associações públicas, associações de entidades públicas ou associações
de entidades públicas e privadas que sejam financiadas maioritariamente por entidades públicas
ou sujeitas ao seu controlo de gestão”, a lei impõe que, relativamente a cada uma das espécies
referidas, para efeitos de determinação da respetiva sujeição à jurisdição do Tribunal de Contas,
se devem verificar os requisitos de:
- financiamento maioritário por entidades públicas; ou
- sujeição ao controlo de gestão de entidades públicas.
Conteúdo e objetivo do n.º 3 do art. 2.º LOPTC
Tendo em conta o que nele se estabelece, o n.º 3 acaba por ir totalmente de acordo a
dois aspetos fundamentais que o Prof. tem vindo a defender:
- o de que o sentido e o limite da competência (leia-se, jurisdição) do Tribunal
de Contas residem na garantia da boa gestão dos dinheiros e valores públicos;
- o de que a sua atuação, enquanto forma de controlo externo sobre a gestão de
outras entidades, deve cingir-se ao necessário para assegurar a fiscalização da
legalidade, regularidade e correção económica e financeira da aplicação dos dinheiros e
valores públicos.
Desta forma, o n.º 3 do art. 2.º LOPTC, ao pretender criar uma cláusula de salvaguarda
que permita sujeitar à jurisdição do Tribunal de Contas entidades não abrangidas nos respetivos
nºs 1 e 2, acaba por enunciar, de forma clara, os princípios que devem guiar a interpretação do
âmbito dessa mesma jurisdição.
- As competências das secções do Tribunal de Contas
O art. 1.º da LOPTC prevê que o Tribunal de Contas fiscaliza a legalidade e
regularidade das receitas e das despesas públicas, aprecia a boa gestão financeira e efetiva
responsabilidades por infrações financeiras. Tudo isto distribuído por secções especializadas, a
primeira, a segunda e a terceira secções, que realizam três tipos de fiscalização – a prévia, a
concomitante e a sucessiva – sendo que a prévia é anterior ao próprio ato praticado pelos
serviços do Estado, a concomitante acompanha estes atos ou contratos e a fiscalização sucessiva
será depois do termo desse ato ou contrato ainda que com produção de efeitos anterior.
1.ª Secção ou a secção do visto
A 1.ª Secção é aquela que exerce a fiscalização prévia e a fiscalização concomitante,
isto é, que realiza o acompanhamento do próprio ato ou contrato que está submetido a visto,
podendo, em certos casos, aplicar multas e relevar a responsabilidade financeira.
O visto ou declaração de conformidade é o ato do tribunal através do qual se faz a
apreciação da generalidade dos factos ou atos de despesa que podem ser validamente realizados,
desde que obedeçam à legalidade e ao cabimento orçamental. A Lei n.º 98/97 concebe o Visto
como condição de produção de efeitos do ato a que se refere.
Quanto à natureza do visto importa referir que trata-se de um ato através do qual se
assegura um controlo de legalidade de decisões com implicações financeiras (atos ou contratos).
O ato é da responsabilidade de um órgão independente, a que a Constituição atribui a natureza
de verdadeiro tribunal especializado em matéria financeira integrado no poder judicial. As
decisões sobre o visto constituem caso julgado material, sendo insuscetíveis de ser reapreciados,
uma vez esgotados os mecanismos de recurso previstos na Lei n.º 98/97 (art. 79.º, n.º 1, al. a)).
2.ª Secção ou a secção de auditoria
A 2.ª Secção é a chamada secção de auditoria, composta por juízes e economistas,
englobando um componente de apreciação da economia, eficiência e eficácia dos atos. Não
produz sentenças, não efetiva qualquer tipo de responsabilidades, apenas formula
recomendações, mas evidentemente que algumas das recomendações ou reservas podem ser
encaminhadas para o Ministério Público, que funciona junto do Tribunal de Contas, para um
eventual apuramento de responsabilidades financeiras (arts. 57.º ss. LOPTC).
3.ª Secção ou a secção do julgamento
É a secção que exerce a função jurisdicional, procedendo ao julgamento dos processos
de efetivação de responsabilidades financeiras e de multa, a requerimento das entidades
competentes.
A competência material para esta efetivação pertence ao Tribunal de Contas, devendo
ser requerida pelo Ministério Público. De acordo com o 59.º LOPTC, existe alcance quando,
independentemente da ação do agente nesse sentido, haja desaparecimento de dinheiros ou de
outros valores do Estado ou de outras entidades públicas. Existe desvio de dinheiros ou valores
públicos quando se verifique o seu desaparecimento por ação voluntária de qualquer agente
público que a eles tenha acesso por causa do exercício das funções públicas que lhe estão
cometidas. Consideram-se pagamentos indevidos para o efeito de reposição os pagamentos
ilegais que causarem dano para o erário público.
Por outro lado, pode também haver reposição por não arrecadação de receitas nos casos
de prática, autorização ou sancionamento, com dolo ou culpa grave, que impliquem a não
liquidação, cobrança ou entrega de receitas com violação das normas legais aplicáveis – ex.,
funcionário que deixa passar os prazos de caducidade e prescrição. Embora este fundamento de
reposição seja menos utilizado, deveria haver alguma atenção, nomeadamente tendo em conta o
período de contenção orçamental em que nos encontramos e a própria necessidade que o Estado
tem de financiamento, e que pode diminuir se conseguir arrecadar mais receita tributária,
mesmo sem aumentar os impostos. No entanto, a punição que existe nestes casos passa mais
pelo procedimento disciplinar do que pela via da responsabilidade financeira.
Quanto aos responsáveis pela reposição, eles constam do art. 61.º LOPTC. Porém, esta
responsabilização só ocorre se a ação for praticada com culpa.
Finalmente, quanto à responsabilidade financeira sancionatória, dir-se-ia que é a menos
grave, porque a pena mais grave no âmbito da efetivação da responsabilidade financeira é a
atribuição de valor por conta do próprio património do agente e a responsabilidade financeira
sancionatória resulta na aplicação de uma multa. Atenção, que a responsabilidade sancionatória
não é alternativa à responsabilidade financeira reintegratória, ou seja, a aplicação de multas não
prejudica a efetivação da responsabilidade pelas reposições devidas, se for caso disso.
Em matéria de avaliação de culpa, o Tribunal de Contas avalia o grau de culpa de
harmonia com as circunstâncias do caso.
Tudo isto para concluirmos o seguinte: ainda há muito trabalho a fazer no campo das
responsabilidades financeiras, embora já se verifique uma evolução, desde 2006, no âmbito das
competências do Tribunal de Contas. Ora, a partir de 2006 a jurisdição do Tribunal de Contas
passa a ser objetiva porque identificamos, no art. 2.º, n.º 3, um direito de sequela dos dinheiros e
valores públicos. Este direito de sequela significa que estão ainda sujeitas à jurisdição e ao
controlo financeiro do Tribunal de Contas as entidades de qualquer natureza que tenham
participação de capitais públicos ou sejam beneficiárias, a qualquer título, de dinheiros ou
outros valores públicos, na medida necessária à fiscalização da legalidade, regularidade e
correção económica e financeira da aplicação dos mesmos dinheiros e valores públicos.
Mas atenção que a jurisdição do Tribunal de Contas esgota-se os dinheiros públicos.
§ Conselho das Finanças Públicas
Nas alterações recentes da LEO, parece de destacar a criação de uma entidade
administrativa independente – o Conselho das Finanças Públicas – que se encontra encarregue
da vigilância da regra de saldo enunciada.
Ora, a fiscalização política cabe à Assembleia da República, assim como, no exercício
da fiscalização a posteriori e concomitante, a Assembleia da República é assistida tecnicamente
pelo Tribunal de Contas. Além disso, poderá accionar os mecanismos de responsabilização
política, ou solicitar informações sobre o modo como se processa a execução orçamental.
Ora, sendo, assim, em relação a esta inovação não se percebe bem o alcance da criação
do Conselho das Finanças Públicas.
Por tudo isto, o legislador português tem ainda um longo caminho a percorrer quanto ao
aperfeiçoamento do modelo vigente. Talvez o Conselho das Finanças Públicas, na qualidade de
controlador técnico independente, constitua um elemento subjetivo novo no sentido de
despolitização do estabelecimento do quadro de política macroeconómica e orçamental.