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CoLEÇÃO ENFOQUES

Filosifia

Alain Renaut

O indivíduo Riflexão acerca da jiloscjla do sujeito

Tradução

Elena Gaidano

[J] DI FEL

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CvpyníJhr © Hatícr, 19lJ 5 Título • 5inal: L 'illdmJu

l'ap;1: ' "ti h:rnandcs

Editora"ão: Art Linc

1998 Impresso no Brasil

Primed in Brazil

CIP-13rasiL Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

!{ 327i I{L:naut, Alain

O indidduo: rdlcxão acerca da Hlosofla do sujeito I Alain Rcnaut; tradução Elena Gaidano. - Rio de Janeiro: DIFEL, 1998.

112p.- (Coleção Enfoques. Filosofia)

Tradução de: L'individu

Inclui bibliografia ISBN 85-7432-001-3

I. Individualismo. 2. hlosofla francesa. I. Título. li. Série.

98-0742

Todos os direitos reservados pela: BCD UNIÃO DE EDITORAS S.A. Av. Rio Branco, 99- 20'~ andar- Centro 20040-004- Rio de Janeiro- RJ T el.: (021) 263-2082 bx: (021) 263-6112

CDD 141.4 CDU 17.035.1

Não é pe mitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quais quer metos, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

Atendemo ,eJo Reembolso Postal.

Sumário

INTRODUÇÃO: I 11·1 U-I..OCÍ:NEA MODERNIDADE 5

1. Uma "nova liberdade" 6

2. O nascimento do humanismo e a exigência

de autonomia 8

3. Autonomia e subjetividade 14

4. O paradigma individualista 19

I. IRRUPÇÃO DO INDIVÍDUO 25

1. Igualdade versus hierarquia 26

2. Liberdade versus tradição 2 f.'

3. A cultura enquanto problema 31

11. A DISCUSSÃO fRANCESA DO INDIVIDUALISMO 39

1. A cultura do indivíduo: Gilles Lipovetsky 43

2. O intelectual nas sociedades democráticas 51

3. A barbárie individualista: Alain Finkielkraut 52

4. Contra o neotocquevilismo: autonomia e

independência 59

3

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O individuo

S. Uma ética do indivíduo? 66

6. Dificuldades do neo-heideggerianismo:

o esquecimento do sujeito 7 3

III. 0 fUNDAMENTO FILOSÓFICO DO

INDIVIDUALISMO 77

1. O modelo monadológico 77

2. As duas modernidades 82

3. Autonomia e finitude:

o sujeito enquanto aspiração do indivíduo 84

CONCLUSÃO 89

BIBLIOGRAfiA 111

4

Introdução

HETEROGÊNEA MODERNIDADE

A enigmática liberdade dos Modernos

A noção de indivíduo emerge do mais longínquo

passado da reflexão filosófica. Exemplos apontáveis para

comprovar esse fato são múltiplos e conhecidos. Citemos

(alguns, apenas para avivar a memória: já no mundo anti­

) go, Cícero denominava usualmente "indivíduo" (indivi-

1 duum) cada um dos indivisíveis corpúsculos, os "átomos",

\ que Demócrito e Epicuro haviam tomado como princí-

) pios dos corpos visíveis; no século 14, Guillaume d'Oc­

cam, contrariando a herança aristotélico-tomista, susten­

tava que o universal era mero signo ou "nome", remeten­

do a ele apenas o que existe, ou seja, os indivíduos.

No antigo atomismo ou no nominalismo medieval,

nada há, portanto, comparável, em matéria de valoriza­

ção do indivíduo, àquilo que apenas a moderna con­

cepção do mundo testemunhou. Tanto que, em muitos

aspectos, é mediante a afirmação do indivíduo enquan­

to princípio e enquanto valor (o individualismo, se se

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O indivíduo

quiser) que o dispositivo cultural, intelectual e filosófi­

co da modernidade pode simultaneamente caracterizar­

se em sua originalidade mais evidente e interrogar-se a

respeito de alguns de seus enigmas mais temíveis. E isso

acontece por vários motivos que, no fundo, remetem à

apreensão específica da liberdade, da qual os Moder­

nos, a partir do humanismo do Renascimento ou · '')

cartesianismo, foram os geniais inventores, ainda q e

tenham também contribuído, mais do que todos s

outros, para embaralhá-la e, mesmo, traí-la.

1. U a "nova liberdade"

' I á muito tempo estabeleceu-se a convicção de que

I\ uma inédita representação da liberdade humana se deu

1 com a modernidade. Hegel já observava que, se os

\1 Antigos se sa?_~~l"l:_ ~~~es __ en_g~a_::_~~- ~i?a?_~os, nem Pla­tão, nem Aristóteles souberam que o homem enquanto

tal é livre: "A exigência infinita da subjetividade, da au­

tonomia do espírito em si era desconhecida dos ate­

nienses." 1 O próprio Heidegger, apesar de tudo o que

o opõe a Hegel, reassumiria essa tese, evocando a liber­

dade moderna como uma "nova liberdade" e descre­

,endo-a, ele também, em comparação ao "desabrochar

1 G. W. F. Hegel, Leçons sur /'histoire de la Philosophie (Lições acer­ca de história da filosofia), Introdução, I, Gallimard, 1954.

6

Introdução

1do Ser enquanto subjetividade", bem como à idéia de

uma "legislação autônoma da humanidade": "Na nova

liberdade, a humanidade quer assegurar-se do desen-

J :,olvimento autônomo de todas as Ias faculdades para

~xercer seu domínio sobre toda a Terra. "2

Em vez de questionar de forma demasiadamente

direta, porque excessivamente ingênua, a pertinência

que tal concepção de humanidade é suscetível de con­

servar em relação às exigências do pensamento con­

temporâneo, é mister cnfi·entar duas questões levanta­

das pela insistente correlação entre a modernidade e

essa pretensão ~_uma liber_<:lade concebida em termos

-1 ~e autonom_i(l:

1/(Í 1 -Em primeiro lugar, em que medida é de fato uma

"nova liberdade" a que irrompe, desconhecida de

Platão ou de Arist(>teles, determinando assim ur~'! nova

rep~e-~~n~~~~-o do ser hum(lpo? E com que linhas de

ruptura com o universo pré-moderno essa irrupção se

solidariza, sobretudo no que toca ao :V~!?r atribuído ao

jndivíduo enquanto tal?

- Em segundo lugar, mesmo admitindo que a auto­

nomia seja "resolutamente moderna", será que con­

vém, conforme sugerem tanto Hegel como Heidegger,

identificá-la pura e simplesmente com a "liberdade dos

Modernos"? Uma vez negociada a virada que teria con-

2 M. Heidegger, Nietzsche, 11, 8, Gallimard, 1971.

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O indivíduo

duzido a seu surgimento, já não tratar-se-ia ap• nas,

de.sde o "moderno" até o "contemporâneo", de 1zer

um único e mesmo valor arcar com todas as suas ,on­

se( ~ncias?

2. O nascimento do humanismo e a exinência de au­

tonomia

O termo "autonomia" é de cunhagem grega. De

fato, um certo número de textos faz referência à auto­

nomia (autonomia) quando trata da liberdade (Demó-~----

crito, B 264; Plutarco, Vida de Licurgo, XIII, 47 a; Sófo-

cles, Antígona, 821 e 87 5; Isócrates, Panath., 215). Por

\ vezes, ambas as expressões -liberdade (eleu~~~~-9) e au­

tonomia- encontram-se expressamente associadas pa­

ra definir a condição de uma cidade não submissa à do­

minação externa (Heródoto, I, 95-96, VIII, 140; Xe­

nofonte, Helênicas, III, 1, 20-21; Demóstenes, Acerca da

coroa, 305). Será necessário, então, voltar a discutir a

complexa questão da "liberdade grega", contestando a

tese clássica, pela qual era proclamado "livre" na cidade

aquele que nela possuía as prerrogativas do cidadão?

J Há forte tendência da interpretação sugerindo con­

clusões de matizes diferentes, como estimar que a pro­

blemática moderna da liberdade esteja plenan 'nte

\ _:~~;ia:~~s~: ;,~~~~~.~~~~: ~~~·~: ~~: 8

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IntrodufãO

/mas também às pessoas. Partindo dessa orientação "con­

_tinuísta"_, é forte a tentação de considerar que a lógi­

ca interna da cultura grega já então residia numa exigên­

cia clara e assumida de autonomia: durante quatro sécu­

los de cultura helêni~a, o processo democrático particu­

larmente testemunhou tal exigência. Logo que se iden­

tifique a maneira como as cidades gregas não cessavam

de "recolocar em questão sua instituição" e de "modi­

ficar as regras" da vida comunitária quando do "surgi­

mento da autonomia", torna-se irresistível aquela ten­

tação.3

A questão se resume em saber se se trata de uma

redescoberta do sentido autenticamente grego da liber­

dade ou de pura !ll1~ã?!_~-t~?~_p_e~-~~~~_: São controvérsias intermináveis, que eu não pretenderia arbitrar em pau-

( cas linhas. Parece-me possível e desejável, entretanto,

salientar em que medida as condições exatas exigidas

pela moderna valorização da autonomia ainda estavam

muito longe de serem preenchidas no quadro da cultu­

ra e da filosofia gregas.

O que supõem, efetivamente, essa concepção e essa

valorização da humanidade enqu< \to capacidade de au­

tonomia, ambas constitutivas do humanismo moderno

e condutoras, ao longo de complexo percurso, à afir-

(!,C. Castoriadis, "La création de la démocratie", in Le Oébat, n? 38, janeiro-março de 1986.

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/

O indivíduo

"mação do· indivíduo enquanto princípioJ Nesse aspec­

to, o que define intrinsecamente a modernidade é, se111

dúvid~:-;n1an~k~c~~o oser-humano nela é concebido

e ~Ü~r~~~~? c~mo foi1te de suas representações e de

seus atos, seu fundamento (mbjectum, sujeito) ou, ainda,.

seu autor: o homem do humanismo é aquele que não

concebe màis receoer iioniias e leis nem da natureza das

coiSas; riem 'de IS~us, mas que pretende fundá-las, ele

pr6pri~;, ~ p~rtir d~ ~ua razão e de sua vontade. Assim, o

direito natural moderno será um direito "subjetivo", -------··--~-~~-------~~-----___.._._- .. ~·------ - '\.

criado e definido pela razão humana (racionalismo jurí:-

dic~) o;"p~Í~~~~;t~d~ ~~;a~~ (vol~ntarismo jurídico), e ~ ·

'não mais u~ direito ~'obj<:tivo", inscrito em qualquer or­

; dem imanente ou transcendente do mundo. É assim, ~ --~-

' ainda, que as sociedades modernas s~" conceberão, no

~V\ re~stro políti~~. pl~~~mente ~uto-instituídas por meio

. ' do esq~em~ d~ contratualismo: o humanismo jurídico

dos Moder~os, apÜcando ao direito a convicção de qw

homem. é o p:i11_cíp!o. ~e tod_a nor.matização, tomará c -

mo pr ~ssuposto que o homem é o autor de seu direitc e

que esse direito se aflrma unicamente por ser funda J

sobre ' acordo "contratual" das partes interessadas. Lm

suma le acordo com a fórmula de Sartre: "o homem

não p• .ssui outro legislador senão ele próprio". , I

· (. Jntudo, aquilo que caminha junto com a com-

preensão da liberdade em termos de autonomia teria si­

do plenamente concebível dentro do contexto intelec-

10

\ '''

,J

Introdução

tual e cultural em que os gregos problematizaram sua

liberdade? A necessidade de responder de forma negati­

va enraíza-se com particular precisão naquilo que a re­

flexão jurídica e política de Aristóteles revela a este res­

peito: ?. ~-i!_:~to que os cidadãos possuem (e que define

sua "liberdade") de exercer coletivamente parte da so­

berania fundamenta-se não no reconhecimento do prin­

cípio de autonomia (em cujo caso esse direito deveria

1 ser estendido a todo homem enquanto tal), mas na or­

} ganização finalizada de uma natureza no seio da qual /

I "alguns são feitos para comandar, e outros, para obede-

c_er". Assim, o fundamento definitivo da soberania resi-

1 de na hierarquia das naturezas no contexto da ordem do l . ' I ~undo e não na vontade humana e11quanto tal, ditando

/

suas próprias leis e se submetendo 1 autoridade que ela

reconhece. Em tais condições, não é de estranhar, con-

forme muitos comentaristas já observaram, que a pró-

pria Ética a Nicômaco, ao questionar as condições da vir­

tuJe, poupe uma verdadeira teoria a respeito do c1ue os

Modernos denominam a~ livre: de fato, nenhuma refe­

rência consistente aí aparece sobre o que, para nós,

constitui o único fundamento verdadeiro de tal ato, a

saber, l!ma vontade capaz de autodeterminação.

/ De r~~t~, ~orno poderia ser diferente já que esse

poder de escolha, constitutivo da liberdade dos Mo­

{ demos, só poderia adquirir algum signifl.cado no con­

\ texto de uma contingência absoluta do futuro, de uma v - ·- .. ·-~--·· . .

11

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O indivíduo

indetermif!ª-ção. ~_, __ Jil_ǧ_-!ll_<?, _9e U!!l-~- desordem do mun-. .._.....,._,..._..-- -- . ···-···-

~~~gl!~-P-QXA.eQ11iç~oL~ ~?-~m<:>!ogia grega, da qual a obra de Aristóteles fornece uma das tematizações filosó-

fi~;~-~~i;-~~~b~d~~~-~ã~~~~~~~ d~ ~egar? Na medida em

qu~-~ co;;;;~-é, po; ~i só, u~a ~rdem, "a liberdade do

homem não está ligada à contingência, mas, ao contrá­

rio, lhe é oposta".S Disso é testemunho, de forma parti­

cularmente surpreendente, a espantosa reflexão em que

Aristóteles compara o universo a uma casa, os homens

livres representando os astros, porque "lhes é menos

lícito agir ao acaso" e porque todas as suas ações- 1,

pelo menos, sua maioria - são regradas; e, ao con1 á­

rio, ''os escravos e os animais", cujas "ações rarame te

são ordenadas para o bem do conjunto, sendo na m; Jr

parte das vezes deixadas ao acaso", simbolizandc as

part inferiores ("sublunares") do universo (Metcpsica,

A, 1 J75 a 19-22). Enfim: "São, pois, os escravos que

são . vres no sentido moderno da palavra, porque não

sabem o que fazem, ao passo que a liberdade do ho­

mem grego e sua perfeição são medidas de acordo com

~a determinação maior ou menor de suas ações". ó É mister, portanto, convir que, pelo menos no que diz

~~speito a seu princípio, essa liberdade grega, longe de

4 M. Merleau-Ponty, Sens et Non-sens (Senso e contra-senso), 111, Nagel, 1984. s P. Aubenque, La Prudence chez Aristote (A prudência em Aris­tóteles), PUF, 1963, p. 91. b lbid.

12

Introdução

já ter sido concebida sobre o modelo da auto_dete~L­

nação (auto-nomia), inscreve-se no registro de hetero-

;;mia (~~; ou e é ~ ~~;i~ri~Ecie-aue -âita alei f ~ão há _____________ ._.1.:____ -·---~-- ··-·· -------- J..,_ ..... -' ·"·-·- ~--··- ·---

dúvida, certamente, sobre o fato de que tal representa-

ção da liberdade tenha ocorrido <?._~~~- -~ -~<:~Qanç~ na_

.?!?e~ ~o _I?':~c!_o_se .E<?!!l0~ . .2i.l~~er~<f~_EQ!:__t_~~~ões em. . favor das quais a valorização da autonomia p<?de esqui-

\ ~~mente esboçar-se; para que essa valorização se afir-

1 masse plenamente, foi necessária a profunda e radical

~ecomposição do cosmo, só realizada pela modernida­

. de por meio da revolução galileana. Por certo, os gregos

_.conceberam que os seres humanos "podiam criar por si

mesmos alguma ordem, impondo leis":7 disso pode-se

concluir que o surgimento da autonomia pressupõe,

contudo, que se deixe de precisar _g_~e_! -~~~~-~-~~si~ . ~ria da deveria supostamente inscrever-se_ na ordem do

~nundo, como se fora, tanto para Aristóteles como para

Platão, por ele ditada.

Poder-se-ia afirmar, portanto, já que as condições

de representação da liberdade em termos de rigorosa

jltl_toçl~tenl!_i_!l_ª-Ção surgiram com a il~t:da dQcosmo an­

tigo e por meio da irrupç~o __ correlata do humanismo,_

que toda a modernidade se deva inscrever a partir daí,

homogeneamente, na lógica inerente à afirmação do

_;:incípio de autonomia? O conjunto dos documentos

7 C Castoriadis, /oc cit.

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\

O indivíduo

dos Modernos, a esse respeito bem mais complexo do

que com freqüência se supôs, merece ser permanente­

mente estudado. Há, na verdade, duas maneiras princi­

pais de homogeneizar a modernidade, do ponto de

vista de sua _:~1:~esentação da liber?_a.de! e de eludir, as­

sim, a principal pergunta que o destino do princípio de

autonomia nos leva a formular, hoje, em suas relações

potenciais para a valorização do indivíduo.

3. Autonomia e subjetividade

<'

~ Inicialmente, pode suroir a tentação de inscrever . r o·

o conjunto da trajetória percorrida pela modernidade

sob a ~exig~~-ci~-?~-~~t.<?_~_?.~~:.....f.oi esse o caminho se­guido por Heidegger, mediante sua desconstrução da

filosofia moderna enquanto constituinte, de Descartes

a Nietzsche, ~a ':metafísica _?a ~ubjetiv_id~?e.:'. Sa[ :-se como essa soberania do sujeito desenvolveu-se sup· sta-

mf .1te em quatro grandes etapas e como foi atril âdo

papel decisivo à que, com Kant, encontrou sua te ati­

zac ') mais completa:

1. Ço!l1 Desca~tes em~_giria. a idéia de que a natu­

re7 ~-~~?--~-E~rm~~-~-a por f~:ça.~ i~vis~v.eis., __ sendo mer~ . \ \/ ~\ mat:éria-prima e podendo, assim, ser perfeitamente do~

'\.\" \' minad~_E~?;_r~~ã() __ (tudo é suscetível de ser conhecido) e

,..;\" tJ r_e.~a VOJ?-~a?_~-(~ t<:>t.~lidade ?? real é utilizável pelo ho-

1/' \~':: m~~--qu~--"-~~a à realiza~ão de seus fins): é uma concep­\f~

~f 14

Introdução

ção antropocêntrica do mundo, em que Heidegger situa

precisamente a própria _:~~§:1~ia ~?. -~u~l!a~~s~?. e para a qual tudo se torna meio_para a realização do home_I_!l~

2. Com o advento do Iluminismo, parece consu­

mar-se uma ruptura com a razão cartesiana: a ciência

~~vvton~a~a- ~~[uta .':.~~éia de -~~~Jí~i5=~~ priori~ p~~~~~ impor à racionalidade científica o reco~h~~im~nt~ cl~.

~e~-~- Íimit~_s. Contu~o, ~- ciê~cia c~~ti~~~-~-~E~~~~~~~~~ . se como instrumento n~!l_trQ.J pgst9 a __ ser:_viço de flns

g_ue a ultrapassam e a partir dos quais ela encontra seu

~alor, quer se trate da em~ncipação, qu~r da feÍicidade

da humanidade .

3. Admite-se que Kant, mai" do que Heidegger,

deu início a uma virada decisiva, sem deixar de reco­

nhecer a importância e as virtualidades do momento

criticista, 8 inscrito na lógica unidimensional da moder­

nidade. ~- ~~--~a~o com Kant que surge realmente a idéia ~e autonomia, medi~~t~ ~-~~Íti~; da ~~;~~ J; f~Ücida-~~-~eflnida como autônoma, a vontade ~oral, que é ~o mesmo tempo agente e princípio (o valor supremo)

~a moralidacle, nada quer além ele si mesma enquanto

!i_berdade que dita a lei à qual se submete. Pela primeira

vez, aparece uma representação da vontade que se toma como objeto .

8 A esse respeito só se pode remeter o leitor a seu grande estudo de 1929, Kant et /e probleme de la métaphysique (Kant e o problema da metafísica), Gallimard, 1953.

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I I

O indivíduo

4. A teoria nietzschea~~- ~~--~~~9~t~de __ <!_e __ poder':

(lpenas radicalizari(i _ _9. que s~rgira !=om Ka11~: o querer

~~ll"l_l:~n~-'=~ssa inteiramente de_ se dir~g!!._a _ _um fim para

_ s_e_~~ltar s~_!Jr~~~ me_~l!l_C? <:~e_ ~~:_~~~_?__q~~eidegge! 1~nomina __ "vonta.de da vontade", abrindo caminho para _

a busca do poder pelo poder ou do poder ~:r:tguanto -~a_l_:__

A universalização dessa derradeira representação do hu~

manismo moderno, com a qual se encerra o destino da

idéia de autonomia, seria, assim, a técnica ou, se p: fe~

rirmos, essa razão puramente instrumental que já 1ão

que tio na os fins e faz da vontade (ou do poder) um

flm em si.

O sentido de tal desconstrução é claro: a razã_:_ _ _:!~

De: 1rtes e do Iluminismo teria apen~ conduzid<: __ ~~

for~ ~~ _ _lógica, _p~-~!?e~-~!.: u~-_E.~ov~~..<:~!~_jt?_~i!l!E!t:~.

r a d _ :_~!i~_c:çã~_:__~-_:~_~':_-~_:>_1!!~ ~-:_?_e v o n ~-~_:-'--~~_<lt!a! 3: --~~~: maç~-~l~den~~-_do ho11_1:~E_1 eng_~~n~~-:S_uje~~~-jf~n4a­mentoJenc:_~~l~r(lria sua_ reél:U~açã<? ~(li_s __ p_e.r._f~i!_i!i !lesse

sentido, ~- e:x:plicit~<i~o-- ~ai1~~~11~-i~ _ _E~il1c_íp~_ de __ (ll:!_to_~ no~~--~!!ia silEpl_~smente inscrever-se no seio de um

percu~~_o_ -~~~~~e fatal, que termina com o triunfal de-:

--~~_E_v~b:_Í.~l~<:~!~ _ ~-~ _.\!JE.él .. !~C~9c~nci~:e~~l!P<l~êl:_~xcll1-:-_ _ ~j_:ra~_:~~: __ :o~ ~-~um~nto contínuo de sell: pod~r, in~ dependente do r_:_eço a ser pago. Seria, então, necessá-

rio convir que a própri~_essência do m?_9e~~· tal como

expressa pela ~-~ação do -~EJe~!_~_~ __ (iut~nOE.,l~ estaria

em jogo até nas formas mais aberrantes da tecnicização

16

) do mundo: longe de se poder lançar, nessas condições,

uma representação da modernidade contra outra, tudo

conduziria ao sacrifício global da modernidade e de

seus valores, a começar por esse valor da autonomia,

que melhor lhe exprime a essência.

Será realmente necessário fris. · por que as conse­

qüências políticas de tal sacrifício parecem ameaçado­

ras, especialmente em função dos estreitos laços entre

autodeterminação_ e democraçia? Segundo a lógica dessa

~-~IT1og~nei_~ação da f!l_?_clc!~:!~-~~e_,_ a Introdução à metcpsi­

ca, fruto de um curso ministrado por Heidegger em

~}_?...!.... enfatiza a "decadência espiritual da 1erra", tal

qual se manifesta por meio do }?lpério planetário da

técnica.'! Ao evocar os conflitos entre Oriente e OciJen­

te, Heidcgger descreve nestes termos o dilema em que a

Europa se encontra: ''A Rússia e a América são ambas,

do ponto de vista metatlsico, a mesma coisa; apresen­

tam o mesmo sinistro frenesi de técnica desenfreada e

de organização inconseqüente do homem normatizado."

É um texto desconcertante na medida em que anu­

la pura e simplesmente a idéia de gue possa haver algu­

ma dif(·rença de natureza entre as democracias ociden­

tais e o sistema stalinista, sugerindo implicitamente que

a afirmação democrática do indivíduo enquanto valor,

" M. Heidegger, lntroduction à la métaphysique (Introdução à meta­física), Gallimard, 1967, p. 49.

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O indivíduo

como, por exemplo, mediante a declaração dos direitos

humanos, participe de desenvolvimento semelha e ao

do totalitarismo da União Soviética. Como, entre anto,

pr deria ser diferente no quadro de tal descons1 ução

da modernidade? Efetivamente, da mesma forrr que

H 'idegger não poderia repetir Descartes ou Kar. • con­

tJ Nietzsche, não faria o menor sentido optar pela

dt .nocracia liberal do Ocidente contra o coletivismo do

C ·iente ou vice-versa; ambos os sistemas lhe pareciam,

de fato, como sendo apenas ~~~-~s faces _ _polí!~~~s _da

~?~~~ni1~?_e __ ~ er~-~? __ té~~~~ como as duas formas que a dominação da subjetividade assumiu na política.

Senão, vejamo~~ g_ s~ p_()~g__u~-=-~-~~-~-~cl!da em que - o

~o~-~1? s~ _ _!o~.11-~~s~j~ito, __ d~_modo signifi~~tivo e es­

senci~~q-~~--~~-s~~~da sur.ge_para ele a questão ex­

E.~~~~~ _c!~ ~~ber~~-?ev~ e quer ser um Eu redu_~i1? à sua gratuidade e abandonado a seu arbitrário ou, então um -·-·-· "- ----·" ----·--· ··-- ' ' Nós da sociedade." 10

--Dito de outra maneira, tanto o indivíduo da socie-

dade liberal como o poder do coletivo que lhe é posto

em oposição no Oriente são e permanecem .!_~pre~~n­

taç_ões_ da _subjetividade_Lp_ertencendo, enquanto tais, à

era da !llod~r-~~cl~_de!_~_l_lão _s.ep_~cl~ ~~p~~ar d;Í~e~~~ remédio contra os efeitos da tecnicização ~~~clial. Não

cabe aqui indicar-~~~~ e~~~~ t~~;~ (p~~se;;; d~~de os

10 M. Heidegger, Chemins qui ne menent nulle part (Caminhos que não levam a parte alguma), Gallimard, 1986, pp. 83-84.

18

Introdução

anos 30 por meio da identificação da Rússia e da Amé­

rica, tidas simplesmente como duas fàces da "técnica

desenfreada") puderam confundir-se, a partir dessa filo­

sofia, com os principais aspectos da "revolução conser­

vadora" empreendida pelo nacional-socialismo.'' Sim­

plesmente, conviremos que essa ~:._c~5ão hom~gene~­

zant~-~-a modern!dade, dissolvendo ~~!!._1_!1~5_ã?_.~o indi-_ V.~ciuo no império supostamente uniforme da metafísica ?_o sujeito, deve suscit~r h~Je W~~d~-d~;;~~fl~~~~. --

No entanto, ao distanciar-se de Heidegger, a refle­

xão não eliminou a tentação de homogeneizar a moder­

nidade e nem mesmo o risco de fàltar à problemática

do indivíduo. f-Iá, com efeito, uma segunda forma de

homogeneização, certamente menos perturbadora, mas

que, caso não se tenha cuidado, conduzirá também à

eliminação da_profunda tens~o ins~rita na concepção da

liberdade em termos de vontade autônoma.

4. O paradiema individualista

Na história intelectual recente, o recuo do marxis­

mo possibilitou reinterpretar a lógica global da moder­

~idade de acordo com um paradigma totalment~ dife­

rente do que sugeria perceber o~ fenômenos sociais e

11 Ver L. Ferry e A. Renaut, Heidegger et /es Modernes (Heidegger e os Modernos), Grasset, 1988.

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O indivíduo

culturais em termos de crescente alienação em relação

"10 coÍ~tivo. Outro paradigm~ já a~p~~~e~1t~- d~~en~ol--vido, no contexto anglo-americano, por trabalhos como

os de D. Bell, Chr. Lasch, R. Sennett ou, ainda, L.

Trilling.I2 Na França, R. Aron foi certamente o primei­

ro, já na década de 1960, a reavaliar a sociologia e a

filosofia política de Tocqueville, 13 paralelamente à sua

crítica da tradição proveniente de Marx. Não obstante,

f(Ji necessário aguardar que a crise do marxismo se ti­

vesse ampliado, mais recentemente, até tomar a forma,

nos anos 80, de um verdadeiro desmoronamento, para

que se assistisse ao real p~~~?_.?e -~~--_12~_?_t<:_>~quevi~

lismo, g~~nter.p~~-~-~-~i~~~r.i~-~~-~~-?C:~l1!?ade não a

E_~!!~--~~-iesen_\i'~1YliE~!:tü__~()_m~?o_ de __ pro_~~ção capi­

talista,_?:1~s __ 4_c:__él_<:_O~~ co:n ~m~ ~inâmica ~e emancipa­

ção do indivíduo_~~f!l r~lação a<? fardo _das tradições e

~~~ ~j~~~~~~s f}~~!:!Eais. Certamente, tal mudança de

12 A obra de R. Sennett, Les Tyrannies de l'intímité (As tirani da intimidade), Seuil, 1979, apareceu em Nova York em 1974 (Th Fali of Public Man); a de Chr. Lasch, Le Complexe de Narcísse (0 · .)m­plex de Narciso), Seuil, 1979, data de 1975; a de D. Bel' Les Contradíctíons culturelles du capítalísme (As contradições cul . rais do capitalismo), PUF, 1979, foi publicada em 1976; quanto Sín­cérít·. et Authentícíté (Sinceridade e autenticidade), de L. T'tlling (Gr2 ;t, 1994), o original é de 1971 (Harvard). 1 l C especialmente R. Aron, Essaí sur les líbertés (Ensaio sobre as liber •ades), Gallimard, 1965, cap. 1: "Tocqueville e Marx"; Les Étaf ·s de la pensée sociologíque (As etapas do pensamento socioló­gico), Gallimard, 1967.

20

Introdução

paradigma interpretativo, --~-ubstituindo a lógica de alie-

1_1ação pela _lógica de emanc_ir_~s;ã_() __ ~I19~v:i-~:t:t~l, não excluía

-~ possibilidade de que essa afirmação do indivíduo pu­

desse coexistir, conforme o próprio Tocqueville adverti­

t:a, com novas formas de despotismo. Assim - conside­

rando apenas alguns antropólogos, historiadores, filóso­

fos ou sociólogos c1ue, na França, adotam o ~-~~i~~él__

de )àcqueville -, autores tão distintos quanto L. Du­

mont ou F. Furet, M. Gauchet, G. Lipovetsky; P. Ro­

sanvallon, A. Ehrenberg e muitos outros mais comparti­

lham atualmente, mediante tônicas irredutíveis entre si,

uma compreensão da modernidade que consiste em ~ --· .... ~ ,---·-·------ ~--. ····-- ··---- ---------~--- ---·· ·------~-- .. ----·--··-

4 ~E~r às sociedades tradicio?ais _aquelas em que o indiví-

// duo~~ se permite estar.mais ~u~n~etid~ a si p~óp_rio.I4. · Diante desse paradigma mdlVlduahsta, CUJa fecundi-

dade intelectual não cogito contestar .:levo confessar que,

14 L. Dumont, Homo aequalís, genese et épanouíssement de l'ídéo­logíe économíque (Homo aequalís, gênese e desenvolvimento da ideologia econômica), Gallimard, 1977, e Essaís sur l'índivídualís­me, une perspectíve anthropologíque sur l'ídéologíe modernc (En­saios sobre o individualismo, uma perspectiva antropológica da ideo­logia moderna), Le Seu i I, 11983; F. Furet, Penser la Révolutíon françaí­se, (Pensar a Revolução Francesa), Gallimard, 1978; G. Lipovetsky, L 'Ere du vide. Essaís sur l'índívídualísme contemporaín (A era do vazio: Ensaios sobre o individualismo contemporâneo), Gallimard, t1983j e L 'Empire de l'éphémere. La mode et son destín dans les sôéiétés modernes (0 império do efêmero, A moda e seu destino nas sociedades modernas), Gallimard, (1987;i M. Gauchet, Le Désen­chantement du monde. Une hístofre polítíque de la relígíon (0 desencanto_~om o mundo. Uma história política da religião), Gal­limard, ~=8~)e La Révolutíon des droíts de l'homme (A revolução

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O indivfduo

há alguns anos, vem crescendo em mim a inquietação de

que ele possa contribuir, pelo menos em alguns de seus

aspectos menos prudentes, para a produção de nova ce_:

~eira a respeito da compl_exidade _c!_~ _mq_4erno._ts Em

198_3, quando L. Dumont - que em muitos aspectos

pode ser considerado fundador (ou, pelo menos, "refun­

dador") da apreensão "individ~~lista" da m<?~~!"_:r::i_~~-~­

ado_!a~i!._ldivídu<2__<:_0r:t~_Y.?!~~~~m~ __ <!_~.E_I_:m~~--m_?:­derno, o faz desi~a~~<?_C:()_nstan_~E-l_e~t~ __ o in~!~í~~-~()_-

~-~~:__'~!-~:J-~pe~~~~~~· -~-utÔ~()IllO __ t:• P?E C:()_~:'~q~l}cia, essencialmen~<: . ..Eª-.<?.:~~ci_~l". Quando, em 1987, explo­rando o paradigma neotocquevileano em sucessivos cam­

pos e com palpável sucesso, G. Lipovetsky pest .isa a

"lógica dos valores culturais m9derr1_~", caracte. za de

rr aneira intercambiável os movimentos sociais qu estu­

dou pela "exigência de autonomia individual" e pe , "ex-

c . direitos do homem), Gallimard, 1989; A. Ehrenberg, Le Cu/te de la performance (O culto do desempenho), Calmann-Lévy, 1991 e I ·ndividu incerta in (0 indivíduo indefinido), Calmann-Lévy, 0 995; f. Rosanvallon, Le Sacre du citoyen. Histoire du suffrage uni'Versel en France (A sagração do cidadão. História do sufrágio universal na França), Gallimard, 1992. Dos trabalhos desses diversos autores, menciono apenas aqueles em que a referência ao paradigma indivi­dualista ("neotocgueviliano") é máis evlôente.""Tenâo_ã_natureza intelecfUãrllorror à- compãração, não ignoro que a reunião desses trabalhos chocará seus autores, bem como alguns de seus leitores. ~Essa inquietação foi essencialmente expressa por minhas duas contribuições ao debate sobre o individualismo: 68-86. ltinéraires de /'individu (68-86. Percursos do indivíduo) (em colaboração com L. Ferry), Gallimard, 1987; L 'Ere de /'individu. Contribution à une his­toire de la subjectivité (A era do indivíduo. Contribuição para uma história da subjetividade), Gallimard, 1989.

22

Introdução

í plosão do gosto por independência". Em 1995, quando

A. Ehrenberg proc-ura zelosamente discernir o teor espe­

cífico adotado nos anos 90 por um individualismo mais

desenca11tadç> ou mais "ÍI1certo" do que na fase hedonista

e de conquista dos anos 80, enfàtiza que o "novo" indivi­

dualismo se caracteriza pela "ascensão da norma de auto­

nomia", vendo nisso, entretanto, mera fase na história de

uma "experiência democrática contemporânea", que ele

descreve tanto em termos de "extE·•1são da subjetividade"

quanto de "desinibição da individu.ilidade". ]oda dificul­

dade reside, entretanto, em saber se as noções e os valo­

~~s tidos, explicitamente~~- ~ã~, ~~mo equivalentes nes­

~as_diferentes análises do indiVidualismo contemporâneo~

./ -::: autonomia/independência e sujeito/ indivíduo - são de

\ fat-;; substÍhiíveis uns pelos outros. Ao se sobrepor, sem

estabelecer maiores nuances ou discernimento, o valor da

independência ao da autonomia e o princípio do indiví­

duo ao do sujeito, a ponto de perceber no "surgimento

\ do indivíduo enquanto categoria organizadora do social"

\ (P Rosanvallon) a única coisa que entra em jogo na mo­

dernidade, não se estaria transmitindo um conceito im­

preciso desta última, estranhamente distante da maneira

, rigorosa como a idéia de liberdade fora tematizada no vo-

] cabulário da autonomia pela filosofia moderna?

Essas questões, que gostaria de reformular nas pági­

nas seguintes, certamente possuem embasamento filosófi­

co, ainda que apenas pelas diferenciações conceituais que

elas mobilizam. Ganham mesmo, na medidaem que essas

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O indivíduo

dife~~!l<:::~~çõ~s conceitu<l:is desencadeiam também confli­tos de valor, _pm significado prático e, particularmen-

- ~-------' te, político. N~ era da grande reconciliação política dos

opostos em torno dos modernos valores da democracia,

acabei por convencer-me de que a indistinção assim 1

:o­

vocada ou mantida não era necessariamente uma virt de,

e q· e, sem dúvida, era preciso reformular a questã' de

1 saber o que pode e deve ser uma cultura autenticarr 1te

derr •crática (moderna). Não compreendo essa questão

cor · a democratização da cultuE~- (que se resolve pelo núrr ~ro de bibliotecas de bairro ou a definição das condi­

çõe~ de acesso à universidade), mas a determinação pro­

priamente democrática de uma cultur~: Se, efetivamente,

todos compreendem sem demasiada dificuldade uma cul­

tura aristocrática, centrada nos princípios e valores da tra­

dição e da hierarquia, temo que haja grande confusão no

discernimento ·dos princípios e valores de uma cultura

democrática;~~~!!-dúvi~~ p()_d_e-s~p~~~e:~-~r_que _!al_~ltu~ rateria algo_a ver com a fundação das normas e das leis

em determinada relação do homem consigo mesmo; res­

ta saber, entretanto, em que condições essa relação do

homem consigo mesmo pode ser produtora d~ normas ~ - -

I-leis. Esse enigma, para cuja solução pretendo aportar al-

., gumas pistas, partilha em boa parte uma questão trágica

por excelência - entendo a pergunta que se enunciava a

Édipo como um enigma e que, no fundo, consistia em

perguntar: quem é o homem?

24

I

IRRUPÇÃO DO INDIVÍDUO

A dinâmica das sociedades democráticas

Para buscar a determinação mais correta da cultura

democrática, o caminho mais curto parece ser o de re-

, começar a partir de Tocqueville e de sua análise da mo­

dernidade. Essa análise, que é também a da lenta e difícil

!_':!E!.-l.!!-ªSQ!!LO __ ~!._~!?__.Rjgi.me, * serve para demonstrar

como a dinâmica da democratização pode identificar-se

inteiramente C:<?.I11:_ a afirmação do indivíduo enquanto

princípio e, ao mesmo tempo, enquanto valor, afirmação

que define o que Tocqueville, pioneiramente, denomi­

nou individualismo moderno.I6

* Por Ancien Régime entende-se o regime absolutista que vigorou na f_xança até 1789. (N. T.)

(~~)De fato, o próprio termo individualismo surgiu entre B. Constante Tocqueville, isto é, entre os dois autores que constituem hoje as refe­rências privilegiadas dos defensores do "individualismo democráti­co" no debate francês. Desconhecido do Constant g_ue, em 1819, compara a "liberdade dos Antigos" com a dos "Modernos", é fre­qüentemente utilizado pelo Tocqueville de 1835 - i 840, qúe ãpre-

--. senta as duas versões sucessivas de sua Démocratie en Améríque (Democrac;.ia na América). Para datação m"'is precisa, consultar A. Renaut, L'Ere de /'indívidu (A era do indiví, 'O), pp. 53 sqq.

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O indivíduo

Sabe-se que, segundo Tocqueville, são duas a ca­

ract~rísticas principais desse individualismo mod • no,

cuj 1orma de expressão política mais marcante ele pa­

( reo ter encontrado na Revolução Francesa. O indivi­

~ du :ismo traduz-se em primeiro lugar pela revolta do~ \ indivíduos contra a hierarquia em nome da igualdade. / L:

1. Iaualdade versus hierarquia

( Nesse primeiro plano, o individualismo confunde-se

com o processo de ~~~~as_~?_!l.~ qmdiçõe~, no sentido

jurídico da expressão, que Tocqueville designa como de­

mocracia; encontra seu símbolo mais cristalino na Decla-

ração dos Direitos dos Homens, bem como naquela fa­mosa "noite do 4 agosto de 1789", durante a qual foram

espetacularmente abolidos os privilégios sobre os quais

repousava a estrutura hierárquica do Ancien Régime.

/ É mediante esse primeiro plano que a análise toc­

quevileana da democracia, em muitos aspectos mero

prolongador da distinção de Benjamin Constant entre o

antigo e o moderno, fornece um quadro geral extrema­

mente precioso para interpretar os múltiplos movimen­

tos sociais que, além da própria Revolução, vão marcar a

história da modernidade; mesmo quando vieram se

declarar socialistas e até comunistas, os movimento· que

\ vis; '"am à igualização das condições só aprofund rão,

\garadoxalmente, essa dimensão do individualismo ~vo-

26

I mlpfão do indivíduo

lucionário. Isso aconteceu, por exemplo, quando, sob

influência dos socialistas, a reivindicação de real igual da­

de das condições veio suplantar a de uma igualdade me­

ramente jurídica, denunciada como superficial ou abs­

trata; trata-se de um deslocamento do "formal" para o

" I" " b · I" d ' rea ou para o su stanc1a , que certamente po era

~ se fazer acompanhar de uma crítica ao individualismo li­

beral e à sociedade civil burguesa, mas que não estará

menos pautado, enquanto crítica de um universo hierár­

quico, na própria l?gi~a do individualismo moderno.

É evidente que já não são mais visadas as hierar­

quias do !lncien Régime (compreendidas como os privilé­

gios supostamente inerentes, por natureza, a determi­

nados grupos sociais), mas novas hierarquias, como as

que instaurariam as desigualdades sociais e econômicas:

depreende-se que, nesse aspecto, é ainda a reivindica­

ção individualista, na medida em que é anti-hierárqui­

ca, que empresta a esses movimentos suas motivações e

legitimidade. Da mesma forma, o individualismo será

exercido contra a "burocracia" nas empresas, nos parti­

dos políticos e até nas universidades, em nome de uma

demanda de "democracia", concebida novamente co-

/ mo o império da igualdade e a dissolução de hierar­

\_guias fixas ou, por assim dizer, naturalizadas.

De acordo com Tocqueville, contudo, há um se­

gundo componente desse individualismo democrático,

tão importante quanto o anterior e que encontra sua

27

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)>

. I'

O indivfduo

melhor forma de expressão no espírito revolucionário.

C~ata-se da denúncia das tradições pelos indivíduos, em

nome da liberdade - em todo caso, em nome de certa

oncepção da liberdade. ·

2. Liberdade versus tradifão

Em seus trabalhos de antropologia comparada, Louis

·oumont insistiu com rigor neste ponto: as sociedades

tradicionais, independentemente de se tratar de socieda­

des primitivas ou da sociedade medieval, são caracteriza­

das pela heteronomia. É necessário compreender que,

nessas sociedades,_ a tradiçãose impõe ao indivíduo_~e~

ter sido por ele escolhida e nem, conseqüenteme!l!~!..-~r o ~ido fundada em sua própria vont~de. É-lhe imposta de

fora, sob forma de transcendência radical à qual os ho­

mens obedecem como obedecem às leis da natun a. Is-

so faz com que a existência das pessoas esteja con: :ante-

P ente situada sob a dependência dessa tradição.

Por oposição, a dinâmica moderna da dem ~racia

Sf ~á, ao contrário, a da erosão progressiva desses conteú­

c' ~ tradicionais, minados aos poucos pela idéia de __ ~uto­

~r s.!_i~!5ão, que a Revolução aflorara com particula; -~-( .§,.Jr. Herdada das teorias do contrato social, seu princípio I

onsiste em fundar a lei sobre a vontade dos homens,

ubtraindo-a tanto quanto possível, portanto, à autorida­

~ das tradições. Por meio desse processo, a Revolução

28

Irrupção do indivíduo

(

foi, em suma, a herdeira dessa crítica das superstições

ou, melhor, dos "E~~c-~~· aos quais a filosofia do

Iluminismo procurara reduzir qualquer tradição.

1: Pode-se esboçar aqui uma observação paralela ao

\ raciocínio precedente: da mesma maneira como a Re­

. volução não aboliu a hierarquia, e mesmo engendrou

outros tipos de (os da "sociedade burguesa"), a aboli­

ção desse universo tradicional que era o Ancien Réaime

não deveria conduzir à abolição imediata, instantânea,

de toda e qualquer forma de tradição. Ao contrário, a

decomposição das tradições deve ser entendida em cor-

}

, respondência a uma lógica progressiva (que a imagem da

"erosão" sugere) das sociedades democráticas. A análise

dos movimentos sociais em tern •s de individualismo

\ (compreendido, nesse segundo aspecto, enquanto erra­

\ dicação emancipatória das tradições) poderá, assim, continuar legitimamente até as sociedades contemporâ­

neas, nas quais os diversos_ movimentos de vanguarda, ... ------~~-- -··~·--· -- .

tanto no plano político como no da estética, se filiarão

a essa tendência de criticar qualquer conteúdo precon-

cebido e herdado ern nome da liberdade dos indiví-~

duos, em nome de sua criatividade ou de seu pleno

\desenvolvimento.!? É mister acrescentar, ainda, que é

precisamente ess~ segundo componente do individua-

'1_!1 Para uma aplicação deste princípio interpretativo à história dos movimentos artísticos de vanguarda, remeto a L. Ferry, Homo aes­theticus, /'invention du goOt à l'âge démocratique (Homo aestheti­cus, a invenção do gosto na era democrática), Grasset, 1988.

29

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O indivíduo

lismo que fornece às sociedades modernas um de seus

) traços mais específicos, que consiste ~~tí~ua disso­

. !ução das referências oriun~~~A.9_p~-~.~~?... e "transmiti­\ cl~~~-de i~~Çã~ ~;;- ger~Çã;; estas referências, cuja trans-

missão constitui a tradição, são, por definição, indefi­

nidamente corroídas em função direta do projeto que

anima o indivíduo moderno a apropriar-se das normas

em vez de recebê-las. Dissolução contínua dos referen­

ciais herdados que significa, por outro lado, a perma­

nente revolução dessas referências.

Seguramente, é possível considerar com tra1 iüili­

J.., ·le esses temas (igualdade versus hierarquia, libt ·Jade

versus tradição) como aceitável caracterização da "f 1 de­

mncrática" e, mais especificamente, de nosso I.mndo

at .1 em sua dimensão de modernidade. O indivíduo ne­

le e afirma simultaneamente enquanto valor e princípio:

- enquanto ~r, na medida em que, na lógica da

igualdade, um homem vale outro, fazendo com que a

universalização do direito de voto seja a tradução políti­

ca mais completa de tal valor;

- enquanto p..!_i!_l~pio, na medida em que, na lógica

da liberdade, apenas o homem pode ser por si mesmo a

fonte de suas normas e leis, fazendo com que, contra a

heteronomia da tradição, a normatividade ética, jurídica

e política dos Modernos se fllie ao regime da autonomia.

Outro aspecto da análise tocquevileana enfatiza a

fecundidade de tal apreensão da dinâmica individualis­

ta; entendo que, de fato, seja muito cômodo, à luz des-

30

lrrupçào do indivíduo

ta visão do significado da modernização, indicar por que

certas problemáticas se tornam particularmente laten­

tes, e mesmo preocupantes, nas sociedades assim mar­

cadas pela irrupção do indivíduo enquanto princípio e

enquanto valor.

3. A cultura enquanto problema

/ Como sabe todo leitor de locqueville, suas análises I insistiam prioritariamente num dos possíveis efeitos

( dessa dinâmica individualista, a saber aquilo que se

I convencionou denominar ~t~rniza_ção do ~ocial. Nin­

·. guém es(1ueceu este célebre trecho de La Démocratie en

Améríque: !8 "O individualismo origina-se da democracia

e ameaça desenvolver-se na medida em que as condi­

ções se tornam iguais ( ... ) Na medida em que as con­

dições se tornam iguais, aumenta o número de indiví­

duos que, já não sendo ricos ou poderosos o bastante

para exercer grande influência sobre o destino de seus

semelhantes, conservaram ou adquiriram, não obstan­

te, instrução e bens suficientes para bastar-se a si mes­

mos. Nada devem a ninguém; habituam-se a conside­

rar-se sempre de forma isolada e até imaginam que seu

destino esteja em suas mãos. Assim, a democracia não

só leva cada homem a esquecer-se de seus antepassa-

18 A. de Tocqueville, De la Démocratie en Amérique (Da democra­cia na América), Garnier-Flammarion, 1981, 11, 2, pp. 125 e 127.

31

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O indivíduo

'dos, mas também lhe esconde seus descendentes e o

separa de seus contemporâneos; sem cessar, el? o traz

' de volta para si mesmo, ameaçando enclausurá-I intei­

ramente na solidão de seu próprio coração."

Antes de frisar a importância de tal texto par;- :}bran­

ger a problemática do individualismo nos dias • . hoje,

necessário prevenir um possível equívoco, freqüente­

,ente cometido por parte da tradição interpretativa.

~om efeito, diante daquilo que é descrito em De la Dé­

mocratie en Amérique, seria errôneo reduzir as reticências

de Tocqueville, no que diz respeito ao in~ivi_~~~~i~~o de­mocrát!co, à mesma aversão reativa que um aristocrata

poderia experimentar diante do desaparecimento dos

valores de seu universo. É certo que admira, conforme

ele mesmo enfatiza, as instituições aristocráticas, mas

não unicamente porque elas se fundam em princípios de

glória e grandeza que o nivelamento democrático lhes

parece apagar; sua admiração e, mesmo, sua nostalgia

enraízam-se sobretudo no fato de tais instituições terem

por efeito, em sua opinião, "ligar estreitamente cada ho-

/mem a vários de seus concidadãos". Em suma, os valores

herdados, nesse sentido "tradicionais", e as hierarquias

percebidas como n~~ra~~-constituíam efica~~~ princípios <f~Jaços sQÇiais. Entretanto, uma vez iniciada a dinâmica

que conduziu ao florescimento do indivíduo, estava fora

de questão, para Tocqueville, recorrer a qualquer tipo de

restauração: atribuir-lhe tal posicionamento constituiria

\~esmo, repito, grave engano.

32

\.

...

4'

Irrupção do indivíduo

O raciocínio de 1ocqueville é totalmente distinto: o

universo do Ancíen Régíme, na medida em que hierárqui­

co, era fundamentalmente um universo comunitário -

na linguagem de L. Dumo~t: h~lí~ti~~. Dit;-· d~ ~~tra forma, o indivíduo nele existia apenas enquanto mem­

~ro de uma corporação, e as diferentes corporações for­

!flayam {i_déiª _muito cara a Tocqueville) verdadeiros

contrapoderesJas::_e ao Estado central, fazendo com que,

) na prática, a totalidade de direito estivesse limitada.

Assim, é antes de mais nada enquanto liberal desejoso

de fixar os limites do Estado (e não na qualidade de

nostálgico do Ancíen Régime) que Tocqueville pensa nos

perigos da democracia, da mesma forma que é como

liberal que ele levanta uma questão hoje mais do que

nunca pertinente: como encontrar, no seio de um uni­

verso democrático e, portanto, individualista, freios

para a decomposição do tecido social e contrapoderes

g~e se possam opor ao Estado?

É precisamente neste ponto que emergem as inter­

rogações em função das quais a temática do individualis­

mo, até aqui puramente descritiva, se debruça sobre uma

verdadeira problemática. De acordo com uma perspecti­

va tão conhecida que nos limitaremos a esboçá-la, as so­

ciedades modernas pareciam a Torr~ueville ser portado-

f r~s de .u~ ris~o poten~i~lmente n.ortal: os dois princí­

( pws. (htera~qmco e tradi.CI~nal) do antigo laço social ten­

t~o sido mmados pela dmamica da igualdade e da liber-

33

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O individuo

r

-d, le, o desabrochar do indivíduo ameaçava consolidar­

se, efetivamente, por mei.o da_atomização do .col.e~ivo e,

assim, conduzir a uma s1tuaçao em que os md1V1duos,

j separados uns dos outros como as malhas de um tecido

: social em dissolução, se encontrariam cada vez mais sozi­

, nhos diante de um "Estado tutelar" ao qual não pode­

I riam opor qualquer resistência. Trata-se de risco poten-

cialmente mortal para a própria existência de uma socie­

dade digna desse nome, mas também suscetível de ser

controlado: como se sabe, o sistema de associações, que

Tocqueville tanto admirava ~;-;;cl~dãde-ãm~~i~~~;, pa­

receu-lhe o mais apto para reconstituir as mediações en­

tre o indivíduo e o E~tado~ fornecendo, portanto, possí­

vel resposta aos perigos do individualismo democrático.

A despeito dessa reflexão acerca da atomização mo­

derna do social, Tocqueville não prevê nenhuma regres­

são em direção às sociedades tradicionais (motivo pelo

qual qualquer utilização antimoderna e antidemocrática

de sua obra constitui grave usurpação); uma vez cons­

truído o modelo de evolução (possível, mas não catai)

ao qual as sociedades democráticas se expõem < .sen­

cialmente, o questionamento tocquevileano volta-: ~ pa­

ra os freios suscetíveis de serem opostos a tal evo 1Ção.

~-Em suma, trata~se de pe~guntar o :~e pode res, r do

;la social depois da erosao democrat1ca de suas hguras

\tr1

_ iicionais no instante mesmo em que o corte com as

~ ~ras deveria tender a aprofundar-se, por motivos in-

34

I mrpção do indivíduo

( trínsecos às sociedades individualistas, podendo amea­

\ çar a própria existência de um mundo comum.

. É conveniente observar que um deslize bastante su­

til, e freqüentemente mal-entendido, se opera na análise

tocquevileana por meio da emergência dessa problemá-

[ tica. O conceito do individualismo (compreendido no

sentido da igualização democrática das condições) cede

lugar a uma categoria crítica, utilizável para estigmatizar

; certas tendências das sociedades modernas, em primei­

ro lugar, o recolhimento do indivíduo à esfera privada,

o culto à felicidade e ao consumo - fenômenos esses que

suscitam em Tocqueville uma leitura paradoxalmente

pouco distante daquilo que se lê em Marx quando este

evoca o indivíduo egoísta, membro da sociedade civil

burguesa. Em ambos os casos, o individualismo moder­

no é incriminado por contribuir para o surgimento de

uma figura monadária do ser hum;~ no,_ para o qual a

ação recíproca com o próximo, qut deflne o pertencer

a uma comunidade, tende a se tornar rigorosamente

estranha a sua auto-afirmação. Contudo, é precisamen­

te em função desse possível deslize, interno à dinâmica

do individualismo democrático, que se vê surgir o pro­

blema que tal dinâmica corre o risco de causar à cultu­

ra das sociedades em que se manifesta.

Efetivamente, não seria difícil estender a dimensão

crítica das análises tocquevileanas ao período contem­

porâneo. De fato, pode-se mostrar, com justeza, como

o processo virtual de atomização do social atualizou-se

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O indivíduo

particularmente sob a forma do relativismo. Isso por­

que, em função da ero~ã~-~~niíiiuã êlâs tí·adições e de

todas as referências herdadas do passado, tende a apa­

recer uma estranha cultura, que não possui ponto de

comparação possível com as sociedades anteriores:

- por um lado, a~~~~!~--~~ ~erança, que parece intrin­secamente ligada à de cultura, e, com ela, a perspectiva de

fidelidade a um passado do qual se recolhem (e "culti­

vam") os valores, parecem estar singularmente enfraqueci­

das em benefício da celebração do presente e do novo;

- por outro lado, na lógica atomizadora e particu­

larizadora das sociedades individualistas, o reconheci­

mento e, mesmo, o compartilhar de valores e referên­

cias comuns, superiores ao indivíduo e que t nbém

parecem ser constituintes da própria noção de :ultura 1 :nquanto modalidade do ser-conjunto), pareo; n des­

gastar-se em favor de uma nova maneira de ser •e não

f 11 conjunto, pelo menos uns ao lado dos outrds: para

mdivíduo, já não se trata de submeter-se a normas ou

'alores que lhe sejam externos; o que ele reivindica é,

_ obretudo, o direito de afirmar sua diferença, indepen­

dente de qual seja sua origem e sua natureza; ora, nessa

perspectiva, em que conta sobretudo o fato de ser o

que se é_(a "autenticidade"), os valores da cultura, em

torno dos quais a humanidade se reconhecia como um

todo, não tenderiam a desaparecer ou, pelo menos, a se

dissolver em benefício da crescente valorização dos par­

ticularismos enquanto tais?

36

lrruPfão do indivíduo

Esse aspecto foi explorado em múltiplos trabalhos

durante os últimos 15 anos, destacando os diversos ti­

pos de ameaças cp.1e pairam sobre a própria possibilida­

de de existência de~~ "espaço públ_~o"_ em que a co­

municação teria como ~bjeüvo iiã<;" apenas a expressão

de opiniões particulares, mas, também, sua confronta­

ção para se chegar a um acordo mínimo sobre normas

ou valores irredutíveis ao jogo de interesses particula­

res. Se é que existe essa vertente, por motivos intrínse-

, cos às sociedades estruturadas (c desestruturadas) pe­

lo desabrochar do indivíduo enquanto tal, seria neces­

sário aferir até que ponto o universo democrático a ele

se entregou. Isso porque poder-se-ia objetar, aos que

denunciam a atomização do social, outro efeito desse

desabrochar do indivíduo - efeito menos perverso e

que pode vir a opor-se diretamente à lógica da atomi­

zação, tornando mais complexa, a partir daí, a aprecia-

I Ção das sociedades individualistas. Na medida em que

/ essas sociedades se caracterizam pelo fim das tradições,

·~ os progressos do individualismo certamente eliminam

qualquer possibilidade de referência, sem outra forma

de discussão, a certezas preestabelecidas. Conseqüente­

mente, para legitimar nossas opiniões ou ~~~~ll1as, não

possuímos outro meio senão o de sair de nós mesmos e

de nos inscrevermos nesse espaço de discussão argu­

mentativa no qual o único princípio de legitimidade re­

side em nossa capacidade de nos colocarmos na posição

do outro para descobrir o melhor argumento que o pos~

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O indivíduo

sa convencer. Nesse sentido, se concordarmos com o fa­to de que o discurso jurídico constitui um dos modelos

da argumentação intersubjetiva, não terá sido por acaso

gue os anos 80 foram marcados simultaneamente por

um culto sem precedente à individualidade como tal,

\ com todas as tendências atomizadoras ou leucêmicc do

i, tecido social gue esse culto induz, e por um podere o e

\ multiforme retorno ao direito enguanto dimensão es­

\,s.en 1al do espaço den~ocrático - com todas as pers -:c-

tivas gue tal promoção do direito abre em termc da

de fi · ção de um novo princípio de vínculos sociais.

,ssim, a guestão do individualismo continua a ser

extr :mamente complexa. A aplicação do modelo toc­

guevileano às sociedades contemporâneas pode condu­

zir, ao gue parece, a apreciações fortemente contrasta­

das; a esse respeito, é significativo gue, na França, onde

a mudança de paradign1a assinalada no início deste ca­

pítulo desempenhou papel de particular importância na

história intelectual recente, 19 se tenha desenvolvido, no

último decênio, uma verdadeira disputa em torno do

individualismo, cujo conteúdo esclarece bastante os ter­

mos da problemática do indivíduo.

lY A importância que esse deslocamento assumiu, na França, é rigo­rosamente proporcional ao papel que o paradigma marxista desem­penhou para a geração precedente, ali mais do que em outros lugares.

38

li

A DISCUSSÃO FRANCESA

DO INDIVIDUALISMO

Neotocquevileanos versus neo-heideggerianos

As interrogações a respeito da existência e do conteú­

do do gue denominamos cultura, suscitadas pela afirma­

ção c!Q_!~di~í~~o e!1guant~_\'~}_o~ .e __ enq~a!!_!.O pr,_i~cípi~} deram lugar, nos últimos anos, a prolongado e acirrado

debate. Acredito gue o fato de esse debate ter-se desen­

volvido no limite do universo intelectual e do domínio da

mídia não constitui absolutamente mau sinal guanto a sua

possível riqueza; tanto é assim que, mesmo não se

referindo apenas aos especialistas das disciplinas em ques­

tão, ele pode mobilizar sobremaneira, como iremos

observar, temas e esguemas filosóficos muito específicos.

Isolemos inicialmente, independente desses temas e

esguemas, as posições com que nos deparamos.

~~J Um_pri_m<':jro _posicionª-__Il).~!ltQ_ÇQil~iste ~m _ _ç_on~.4~:­r(lt_gy~ am<!I1eipl çomo a_çyJtuJ::éL~s~ hg$_çª-qa vez_rnais

voltada para_ aguilo. gue se poderia_ çha.mar de.J_ma_:Q~IlÇJ-ª.

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