Faulhaber - Ribeiro de Almeida 1999 Recursos e Representacao

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CDD: 306.0899811 RECURSOS E REPRESENTAÇÃO EM DISPUTA ENTRE OS TICUNA/AMIBRASIL Priscila Faulhaber l Fábio Vaz Ribeiro de Almeida 2 RESUMO O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise, ainda preliminar, de aspectos da construção social da identidade dos índios Ticuna no Brasil, bem como da situação histórica constituída pelo con- tato com a sociedade nacional brasileira, pelo contato com a sociedade nacional brasileira, particularmente na luta pelo acesso à sobrevivên- cia econômica, na qual eles atualizam cotidianamente o "ser Ticuna". As diferentes instituições que representam o Estado Nacional são paternalistas, o que se soma ao sistema de patronagem local. Os dife- rentes atores externos, em sua relação com os Ticuna, modificam assim a maneira dos mesmos se relacionarem entre si. Esta situação produz uma re-invenção de suas tradições e identidades, mediada pela emer- gência de novos papéis no seio daquela sociedade. A análise enfoca a luta para controlar a organização representativa dos Ticuna, e a tentativa de um grupo de intermediários em impor seus pró- prios interesses, contra as formas de ação societária Ticuna do povo Ticuna como um todo, e contra os seus líderes que estão procurando manter a integridade da sua visão de mundo, seus próprios mitos e práticas rituais. PALA VRAS-CHAVE: Identidade social, Sociedade nacional, Re- invenção das tradições, Organizações Ticuna, Grupo de intermediários. MCT/CNPq-Museu Paraense Emílio Goeldí Departamento de Ciências Humanas. Pesquisadora. Caixa Postal 399. Cepo 66040-170. Belém-PA. 2 Fundação Universidade do Amazonas. Pesquisador Visitante. E-maíl: [email protected]. 271

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  • CDD: 306.0899811

    RECURSOS E REPRESENTAO EM DISPUTA

    ENTRE OS TICUNA/AMIBRASIL

    Priscila Faulhaber l

    Fbio Vaz Ribeiro de Almeida2

    RESUMO O objetivo deste trabalho apresentar uma anlise, ainda

    preliminar, de aspectos da construo social da identidade dos ndios

    Ticuna no Brasil, bem como da situao histrica constituda pelo con

    tato com a sociedade nacional brasileira, pelo contato com a sociedade

    nacional brasileira, particularmente na luta pelo acesso sobrevivn

    cia econmica, na qual eles atualizam cotidianamente o "ser Ticuna".

    As diferentes instituies que representam o Estado Nacional so

    paternalistas, o que se soma ao sistema de patronagem local. Os dife

    rentes atores externos, em sua relao com os Ticuna, modificam assim

    a maneira dos mesmos se relacionarem entre si. Esta situao produz

    uma re-inveno de suas tradies e identidades, mediada pela emer

    gncia de novos papis no seio daquela sociedade.

    A anlise enfoca a luta para controlar a organizao representativa dos

    Ticuna, e a tentativa de um grupo de intermedirios em impor seus pr

    prios interesses, contra as formas de ao societria Ticuna do povo

    Ticuna como um todo, e contra os seus lderes que esto procurando

    manter a integridade da sua viso de mundo, seus prprios mitos e

    prticas rituais.

    PALA VRAS-CHA VE: Identidade social, Sociedade nacional, Re

    inveno das tradies, Organizaes Ticuna, Grupo de intermedirios.

    MCT/CNPq-Museu Paraense Emlio Goeld Departamento de Cincias Humanas. Pesquisadora. Caixa Postal 399. Cepo 66040-170. Belm-PA.

    2 Fundao Universidade do Amazonas. Pesquisador Visitante. E-mal: [email protected].

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    mailto:[email protected]

  • Bol. Mus. Para. Emilio Goeldi, sr. Antropol., 15(2), 1999

    ABSTRACT - Ths paper presents a prelimnary analyss of aspects of the social construction ofidentity among Ticuna lndians in Brazl. We also examine aspects ofthe current conditions ofTicuna contactwith the Brazilian national society, which has been characterized by a struggle for economic survival, and a situation where "being Ticuna" becomes a prevalent ssue.

    Brazilian institutions charged with handling lndian ajfairs are paternalistic at both regional andfederallevels, as well as with respect to local "patrons". Although each has difterent ways ofdealing with the

    Ticuna, all significantly injluence the way the Ticuna inferact between themselves, prompting a re-invention of indigenous traditions and identities, and the emergence of new roles within their society. The primary analysis focuses on the struggle to manage and maintain

    the representativeness of Ticuna organizations, in the face ofattempts by intermediary groups to impose theirwill. This intervention commonly

    conflicts with Ticuna interests as a whole and pUs itse~f against community leaders that are trying to restore the integrity oftheir ideaIs, world view, myths and ritual performances.

    KEY WORDS: Social identity , National society, Re-invention of

    traditions, Ticuna organizations, lntermediary groups.

    INTRODUO

    Trataremos nesta comunicao de processos circunstanciais

    observados entre os Ticuna que vivem no Brasil, presenciados em pes

    quisa de campo em 1997, sobre a disputa pela representao travada

    entre as organizaes Conselho Geral da Tribo Ticuna (CGTI) e Fede

    rao das Organizaes e dos Caciques e Comunidades Indgenas da

    Tribo Ticuna. Os Ticuna brasileiros interagem com agentes da poltica

    indigenista brasileira desde os anos vinte, e mais fortemente a partir de

    1942, quando o SPI passou a atuar na regio, o que implicou na "nacio

    nalizao" scio-territorial Ticuna. Eles haviam sido anteriormente

    atingidos pela explorao da borracha, sendo submetidos "situao de

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  • Recursos e representao em disputa entre os Ticuna

    barraco". Se a interveno do SPI, e depois da FUNAI, garante uma

    certa assistncia a esta populao at ento desassistida, representa tambm a instituio de um paternalsmo de estado que se sobrepe ao

    do sistema de explorao extrativista, caracterizado pela hierarquizao dos laos patro-cliente.

    Na situao histrica instituda com a presena do Estado na assistncia ao ndio que vivia na regio (Oliveira 1988), os encarrega

    dos do PI Tikuna, redefinem papis sociais entre os prprios ndios ao

    interagir com lideranas que, embora no fossem importantes na "tradi

    o" Ticuna, rapidamente ganham significao dentro daquela

    sociedade. A anlise desta situao releva um processo que pode ser

    caracterizado como de "reinveno das tradies" (Hobsbawn 1988),

    uma vez que os "capites" no representavam apenas os interesses de

    patres e posteriormente encarregados, mas conforme argumenta

    Oliveira, s se sustentavam, e s se sustentam, como resultado de com

    posies e alianas internas que configuram uma determinada relao

    de foras entre os diferentes "gmpos vicinais" de cada aldeia (Oliveira

    1988). E vai ser um gmpo destes capites, em uma situao histrica bastante diferente, o responsvel pela constituio do Conselho Geral

    da Tribo Ticuna (CGTT), j em 1982, sendo portanto um dos precurso

    res do movimento indgena no Estado e no pas.

    A atuao da FUNAI nos dias de hoje, difere daquela do SPI de

    1942 na medida em que as organizaes Ticuna tm alguma fora e

    poder de reivindicao, tendo inclusive conseguido superar uma pol

    tica explicitamente contrria aos seus interesses durante o governo

    militar, aps 1964. Se em muitas ocasies a interveno vinha de uma

    poltica de Estado baseada na ideologia da integrao do ndio, hoje o

    que se v a completa inrcia do rgo tutor na regio, pelo menos em termos de uma poltica indigenista definida. O que move a ao do

    administrador regional muitas vezes a presso dos ndios,

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  • BoI. Mus. Para. Emlio Goeldi, sr. Antropol., 15(2), 1999

    freqentemente materializada na forma de ameaas prpria integri

    dade fsica que quase sempre feita de forma individuaP. Este tipo de

    relao e de prtica formou vrias geraes de ndios que viam, ou

    vem, na tutela um meio de vida, e aj udou a formar um grupo que se

    imagina uma "elite indgena" pela proximidade com o poder, tanto a

    nvel local quanto federal (Almeida 1996).

    Por outro lado, na situao brasileira, os atores dominantes, ou

    seja, as "elites regionais", constituem sua representao sobre a regio

    - Amaznia! Alto Solimes, a partir de uma suposta homogeneidade de

    sua populao, que estigmatizada como "cabocla"4. Mas o contato

    intertnico local no produz uma homogeneizao sob a categoria

    "caboclo" ou ndio, acabando por ter implicaes em tennos da emer

    gncia do movimento Ticuna. A viso homogeneizadora compatvel

    com os objetivos daqueles que impem restries territorializao

    Ticuna, cujos territrios no Brasil so reconhecidos pela FUNA!. Com

    a demarcao de terras Ticuna (a partir de 1993~, foi gerada uma situa

    o de conflito, orquestrada em grande parte pela interveno de

    madeireiros, atores que controlam o poder a nvel local, e tm interesse

    em acabar com as barreiras no sentido de explorar livremente os recur

    sos do territrio Ticuna. Esta situao intensificou conflitos entre os

    seus dirigentes, na luta pela representao, e acirrou os conflitos entre

    3 Uma conversa com o Sr. Walmir Torres, que h mais de dez anos ocupa o cargo de administrador da Delegacia Regional de Tabatinga. ilustra muito bem a relao de alguns ndios com o rgo. Nos falando dos parcos recursos de que dispe na sua delegacia e de sua utilizao, ele diz: "O pouco que tenho eu uso quando algum ndio chega aqui reclamando. Pago a gasolina dele e ele fica mais calmo. Tou muito velho pra pegar porrada!". A longevidade deste funcionrio no cargo tambm pode ser explicada por esta estratgia, que se por um lado eficaz (do ponto dc. vista do funcionrio), por outro inviabiliza qualquer projeto de autonomia.

    4 No cabe nos limites desta comunicao uma avalao crtica dos estudos antropolgicos sobre a construo da identidade de caboclo (Cardoso de Oliveira 1972; Ffgole 1985; Lima Ayres 1992; Faulhaber 1997). Cabe d~stacar que trata-se de uma categoria ambgua, diferenciada em categorias constrativas. no sentido da classificao da populao "nativa" da regio amaznica atravs de um estigma constitudo a partir de uma autovalorizao da "elite"local.

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  • Recursos e representao em disputa entre os Tcuna

    faces, conflitos estes inerentes s suas formas de organizao socie

    tria (Oliveira 1977, 1988). Este texto pretende fornecer elementos

    para discusso e anlise desta situao conflitiva.

    A produo simblica das identidades regionais foi considerada

    por Bourdieu como um estado particular da luta de classificaes, ou

    seja, as relaes de fora materiais ou simblicas entre os que tm inte

    resses em um determinado modo de classificao. Na definio de

    regio esta luta se daria a partir de uma viso oficial, dominante, reco

    nhecida e considerada legtima, que ignora uma identidade

    desconhecida e ainda no reconhecida (Bourdieu 1989:118).

    Os critrios de identifi

  • Boi. Mus. Para. Emlio Goeld, sr. Antropol., 15(2), 1999

    No alto Solimes, verifica-se a constituio de um segmento

    Ticuna que passa a se ver como mais prximo da sociedade envolvente,

    atuando como mecanismo de dominao de atores (madeireiros,

    comerciantes) e agncias (PUNAI, igrejas evanglicas) que interagem

    com a coletividade Ticuna. Esse segmento, investindo numa disputa

    faccional no interior do CGTT, acabu por gestar uma entidade concor

    rente no controle da representao, apoiada por organizaes que

    sempre procuraram representar os interesses de um grupo limitado de

    ndios, tais como os professores e os monitores de sade.

    A identidade tnica regional, que se apresenta sob a forma do

    caboclismo, emerge enquanto uma homogeneizao social e territorial

    imposta na estruturao do poder local. Os membros de uma das fac

    es se aproximam de atores e agncias da sociedade envolvente e

    concebem a si mesmos como uma "elite indgena", agenciando a

    distribuio dos papis de prestgio social e procurando controlar a

    explorao dos recursos. Atuam como uma rede de relaes de paren

    tesco e de clientela que controla o acesso aos cargos de agentes de

    sade, professor, e mandatrio da PUNAI. Por outro lado, ainda como

    um elemento discursivo desta disputa, alguns so vistos pelos membros

    da faco que lhe oposta, e talvez mesmo pelo conjunto da sociedade

    Ticuna, como caboclos.

    A DISPUTA PELO CONTROLE DA REPRESENTAO

    Consideramos que essa disputa para saber quem fala pelos Ticuna

    est ligada a capacidade de, a partir de uma legitimidade construda na

    relao com o "outro", gerir recursos e apontar solues para as novas

    demandas da sociedade Ticuna. Est tambm ligada possibilidade,

    que outros atores sociais percebem, de influrem na poltica Ticuna, e,

    deste modo, auferirem algum benefcio poltico ou financeiro.

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  • Recursos e representao em disputa entre os Ticuna

    Analisando, em sua dissertao de mestrado, algumas das recen

    tes transformaes pelas quais passa a sociedade Ticuna, Fabio Vaz R. '

    de Almeida aponta paTa, o surgimento de novas demandas gei'ando transformaes do habitus pela fora com que os leva a penetrar no mundo da economia moderna, de modo a satisfazer esses novos anseios

    e provocando freqentemente o que Bourdieu chamou de desarraigamento da ordem tradicional (Almeida 1996),

    Cabe destacar pelo menos trs estratgias, utilizadas por alguns

    Ticuna como meio de suprir estas novas demandas, pois do origem ao

    .surgimento de papis diferenciados no seio da sociedade Ticuna, de

    onde sero questionadas as lideranas tradicionais. Essas trs estratgias podem ser resumidas em apenas uma caracterstica fundamental,

    que a de tentar, atravs da relao com a sociedade nacional, conse

    guir um emprego que lhe propicie um salrio ao final do ms. Seja

    como professor, contratado pelas prefeituras, pela FUNAI ou pela

    Secretaria Estadual de Educao, seja como monitor de sade, contra

    tado pela FUNAI ou poder executivo municipal, ou ainda atravs do

    envolvimento na poltica regional; esses ndios assalariados adquirem

    uma crescente evidncia, medida pela quantidade de bens que conse

    guem comprar e pela possibilidade de constiturem novas e mais

    amplas alianas.

    No caso do envolvimento com a poltica regional, o salrio pode,

    ento, vir de fonua direta, com a candidatura e eleio de representan

    tes indgenas para a cmara dos vereadores e outros cargos da

    administrao pblica, ou de fonua indireta, atravs do apoio aos can

    didatos, que mais tarde retribuem os aliados com empregos ou

    quaisquer outros benefcios. De qualquer fonua, este tipo de aliana

    tem freqentemente se mostrado infeliz para as organizaes Ticuna,

    na medida em que propicia, aos polticos que historicamente tinham

    uma relao de conflito com o grupo, a cooptao de falsas 1 ideranas.

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  • Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi, sr. Antropol., 15(2), 1999

    Dentre o grupo de opositores do CGTT muito poucos so "verda

    deiras lideranas",5 no sentido de serem escolhidas pelas suas

    "comunidades" atravs de eleio baseada no arranjo de poder entre os

    diferentes grupos vicinais. A composio da diretoria da FOCCrr

    demonstra muito claramente este ponto. Dos cinco membros que res

    pondem por esta organizao, trs deles jamais foram capites em suas

    aldeias de origem ou em qualquer outro lugar. Apenas dois participa

    ram historicamente da constituio do movimento indgena no Alto

    Solimes, sendo que um nico, o Ticuna Adrcio Custdio Manoel,

    atende a ambos os requisitos, tendo sido o 2 coordenador do CGTT.

    Sua divergncia com o antigo companheiro de luta, Pedro Incio

    Pinheiro, teve incio a partir das eleies municipais de 1992, quando

    apoiaram candidatos diferentes ao municpio de So Paulo de Oli

    vena, e foi potencializada pela natural ambio de chegar posio de

    maior destaque, assim como pelo fato de ter sido arregimentado pela

    faco oposta como meio de obter legitimidade.

    Dentro das estratgias da FOCCIT para ampliar sua legitimidade,

    conta-se ainda a tentativa do vice-presidente da organizao, e secret

    rio de assuntos indgenas do municpio de Benjamim Constant, de

    indicar os capites das aldeias do municpio, sob o argumento de que

    caso no fossem aceitos seus indicados, a prefeitura nada faria para

    aquela "comunidade". Essa atitude teve resultado em algumas aldeias,

    sendo rechaada com veemncia por outras.

    A criao da nova organizao, qual sugestivamente num pri

    meiro momento colocaram o nome de ACGTT (Associao do

    Conselho Geral da Tribo Ticuna), aparece, ento, como um lance no

    jogo poltico onde urna das faces que disputam este espao de

    5 Expresso utilizada pelos capites com o objetivo de demonstrar a falta de legitimidade de seus adversrios, e que acaba por constituir uma identidade contrastiva incorporada pelo grupo.

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  • Recursos e representao em disputa entre os Ticuna

    representao, justamente aquela ligada aos polticos regionais e que dominam com mais eficincia alguns cdigos de nossa sociedade, sem condies de tomar o poder dentro da organizao tradicional, o CGTT, parte para o recurso extremo. A histria de vida de alguns dos membros da diretoria desta nova organizao reveladora dos comprometimentos e alianas que esto dispostos a fazer.

    O discurso de contestao das lideranas tradicionais, tem como ponto de partida justamente a verificao da impossibilidade desta via do emprego "oficial" para todos. Aqueles que so excludos desta alter

    nativa, e no so poucos, sentem-se desprotegidos pelos seus lderes. A respeito da importncia que tais funes adquirem no imaginrio do

    grupo, Guilherme Macedo relata como em uma cerimnia na aldeia de Campo Alegre, o capito abenoa as criancinhas desejando-lhes serem

    professores ou monitores de sade quando crescerem (Macedo 1996).

    Foras polticas e instituies da sociedade envolvente influen

    ciam, deste modo, a FOCCIT, apoiada ainda pelas organizaes de professores e agentes de sade, e seus membros agenciam seu poder

    simblico e material com relao aos seus grupos de mobilizao. Sem contar a fora persuasiva dos madeireiros e comerciantes, que contro

    lam o poder a nvel local, e para romper todas as barreiras explorao

    dos recursos dos territrios indgenas cooptam alguns capites e outros agentes que no atuam como representantes legtimos dos seus grupos

    vicinais. Os atuais jogos polticos expressam, assim, uma reestrutura

    o dos dispositivos criados pelo regime tutelar, cujos ordenamentos

    persistem apesar da inoperncia e da falncia da mquina administra

    tiva criada pela poltica indigenista.

    A FOCCIT se apresenta, ento, como um exemplo da constituio de estruturas falsamente representativas, uma vez que estes no so "verdadeiros" representantes de cada comunidade Ticuna, mas agentes de uma distribuio de cargos que corresponde a uma estruturao do

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  • Boi, Mus, Para. En1l7io Goeldi, sr. Antropol., 15(2), 1999

    poder local orquestrada a partir dos interesses daqueles que controlam os mecanismos de explorao e de dominao.

    Em oposio a esta proximidade com a sociedade nacional e suas elites, surge um movimento de retomada dos ensinamentos dos mais velhos, de Yoi e dos cantos do Evare, do qual o capito geral do CGTT,

    Pedro Incio, torna-se um fervoroso advogado. Este implica na prescri

    o de uma maior integrao com a natureza e afastamento, pelo menos

    ao nvel do discurso, da "vida dos brancos". Os relatos coletados indi

    cam que sua viso de mundo supe uma harmonia com o meio

    ambiente, harmonia esta que estaria ameaada quando se aproxima do "mundo dos brancos".

    O apoio destas "elites" locais aos dirigentes da FOCCIT parece

    denotar uma intencionalidade neste processo de "luta pelas classifica

    es" e pelo controle das associaes representativas, acentuando as

    divises entre os Ticuna, e fortalecendo assim o grupos de interesse

    voltados explorao. As lutas das faces Ticuna, observadas em

    suas filigranas, so uma manifestao da dinmica deste povo e sua

    ocupao e expanso territorial. A existncia de conflitos internos

    implica em que membros de algumas "comunidades" se voltem contra

    os interesses de seu grupo de pertencimento e sejam instrumentalizados

    - independente de sua identificao com os rituais caractersticos do "ser Ticuna" - em proveito dos atores dominantes.

    Apenas a ttulo de exemplificao dos ganhos que esta elite domi

    nante pde obter em um momento onde o faccionalismo interno s

    organizaes Ticuna ganha fora, gostaramos de lembrar o ano de

    1993, poca da demarcao de cerca de um milho de hectares das terras tradicionais do povo Ticuna, dentre as quais vare I, a principal

    delas. Esta demarcao havia sido conseguida atravs da luta de lide

    ranas do CGTT, que alm de pressionarem por anos at verem seus direitos constitucionais garantidos, tiveram flego para conseguir junto

    280

  • Recursos e representao em disputa entre os Ticuna

    ao governo da ustria o financiamento necessrio aos trabalhos de demarcao, e participaram ativamente na fiscalizao desta empreitada, realizada por uma firma especializada. Nesta mesma poca a participao poltica dos Ticuna no municpio de Benjamim Constant era intensa, chegando a contar com trs vereadores, alm do viceprefeito. Isso para ficar apenas neste exemplo.

    Hoje, depois do investimento de algum recurso por parte dos poderosos locais na promoo e acinamento desta luta faccional, os Ticuna tm que se contentar com apenas um nico representante parlamentar e com a presena espria do antigo vice-prefeito e atual secretrio para assuntos indgenas do municpio, que tambm vicecoordenador da FOCCIT. Aqui a promiscuidade entre organizao indgena e poder pblico evidente.

    Alm disso, os Ticuna tm hoje contestada sua principal rea pelos ndios Cocama, grupo tnico que at recentemente sequer reconhecia sua identidade indgena, e que hoje, tambm patrocinados por polticos locais, contestam a Tena Indgena vare 1.6

    A identidade Ticuna acionada, portanto, por ndios de ambas as faces com o objetivo de garantir o acesso aos recursos naturais e s fontes de financiamehto, que o controle do tenitrio e da organizao indgena propiciam respectivamente. Paralelamente a este acionar de identidades, que podem variar de significado segundo a ocasio, h uma tentativa de desqualificar o oponente, seja fazendo-lhes acusaes que jamais poderiam ser provadas, como a acusao de enriquecimento

    6 A COIAMA, entidade indgena Cocama cuja sede, curiosamente, est situada na cidade de Manaus, dividindo o espao com o jornal "O Solimes", financiado por grupos polticos com interesse na criao do Territrio do Alto Solimes, entrou com uma contestao junto FUNAI, que, caso seja considerada procedente, pode vir a nviabilizar a regularizao definitiva da T.I. vare I. interessante ressaltar que as lideranas Ticuna ligadas ao CGrr j tiveram a oportunidade de manifestar seu repdio tanto criao deste territrio quanto ao municpio de Belm do Solimes, contrariando muitos interesses.

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  • Boi. Mus. Para. Eml1io Goeldi, sr. Antropol., 15(2), 1999

    ilcito que a FOCCIT faz a Pedro Incio, seja desautorizando a entidade oponente como representante dos Ticuna, ou ainda questionando mesmo a identidade indgena dos seus oponentes, como freqentemente tm feito as lideranas do CGTT em relao FOCCITT.

    CONSIDERAES FINAIS

    "Ser Ticuna" no justifica, portanto, as posies que os diferentes

    atores tm tomado na disputa pelo monoplio da representao, e muito menos garante a legitimidade dos propsitos destes representantes, conforme querem alguns. O acionar desta identidade em oposio aos "civilizados", como costumam dizer, faz parte das estratgias polticas

    utilizadas em uma determinada situao histrica e que s podem ser melhor compreendidas se levarmos em conta a dinmica Ticuna, ligada

    que est s transformaes histricas nas estruturas econmicas, nas disposies e nas ideologias.

    A situao Ticuna no Brasil estruturada pelo sistema tutelar da

    poltica indigenista brasileira que implicou na constituio de mecanis

    mos de interveno introjetados por membros deste grupo tnico. Estes representam a si mesmos enquanto uma "elite", qual no entanto, se aplica a classificao estigmatizadora de "caboclo" pelos Ticuna que

    vivem nos igaraps. Esta "luta de classificaes" estabelecida na

    dinmica da disputa pelo controle da direo do movimento Ticuna, e

    dos recursos econmicos por ela administrados. Os dirigentes Ticuna desempenham papis influenciados pela estrutura de representao

    constituda pelo regime tutelar da poltica indigenista brasileira, no

    qual o paternalismo de Estado se sobrepe ao da patronagem.

    A aparente fora da faco mais prxima da elite poltica e econmica do Alto Solimes, est diretamente relacionada sua capacidade de se comunicar para fora do grupo. portanto, freqentemente superdimensionada pelos que no conhecem a realidade que vivem os

    282

  • Recursos e representao em disputa entre os Ticuna

    Ticuna, a fora interna desta faco, que ademais tm constantes finan

    ciamentos para a realizao de assemblias, onde as reivindicaes

    sociais so encenadas, e a tradio construda, ou "renventada"

    (como sugerimos, na trilha de Hobsbawn 1988), sendo portanto um

    momento importante na disputa da representao poltica. Esses finan

    ciamentos provm dos poderes municipais, da administrao regional

    da FUNAP Estes se utilizam da presso a que nos referimos acima, e

    mesmo de entidades que vez ou outra atuam na regio, sem conhecer a

    situao ou ter uma reflexo crtica mais profunda sobre sua atuao.

    s lideranas tradicionais restam os apoios de suas "comunida

    des", que os mantm no cargo de capito por vontade prpria, alm do

    comprometimento de antroplogos e indigenistas preocupados com a

    apropriao indevida do territrio Ticuna e utilizao deste povo como

    massa de manobra eleitoral. Contam ainda, e essa parece ser sua avalia

    o atual, com o tempo, pois consideram insustentvel a situao das

    "falsas lideranas", tenno construdo nesta luta pelo monoplio da

    representao e que constitui uma identidade negativa em oposio

    sua identidade de "lideranas verdadeiras".

    Ainda que circunstanciais, as infonnaes apresentadas neste

    artigo mostram que o movimento Ticuna no Brasil est estruturado,

    assim, com referncia s prprias faces e a um regime duplamente

    paternalista, constitudo a nvel das relaes intertnicas. A disputa

    pela representao Ticuna no obedece, deste modo, unicamente sua

    dinmica intrnseca, mas tambm luta pela apropriao dos recursos

    econmicos de seu territrio, bem como ao capital simblico investido

    na construo da sua identidade enquanto o mais numeroso grupo

    7 Na verdade. a posio do responsvel pela delegada de Tabatinga tem sido ambgUa. de modo a se equilibrar no cargo sem que a disputa dos Ticuna atrapalhe sua pennanncia no cargo.

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  • BoI. Mus. Para. Enulio Goeldi, sr. Antropol., 15(2), 1999

    indgena da Amaznia brasileira que mantm ainda sua lngua, suas festas e cantos rituais, suas razes e suas histrias contadas.

    A disputa pelo monoplio da representao, com vistas apropriao dos recursos econmicos do territrio Ticuna, ganha uma marcada diferenciao entre aqueles que pretendem um projeto individualista de ascenso poltica ou econmica pessoal (perfeitamente exemplificados pelos dirigentes da FOCCIT), e aqueles que pretendem um projeto de desenvolvimento ancorado na autonomia do povo Ticuna. interessante ressaltar que os dirigentes do CGTT, grupo que pode ser identificado com este segundo projeto de desenvolvimento, jamais deixaram de se preocupar com a regularizao definitiva das reas Ticuna, mesmo depois que aquelas onde moram j estavam garantidas, e comeam hoje a discutir a necessidade de se manter um permanente monitoramento de suas reas com vistas a acompanhar propostas e usos em disputa.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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