18 Vicente Barreto Voto e Representacao

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  • INICIA NA PGINA AO LADO >>>>> BLOCO 2

    Voto e Representao Vicente Barretto Faculdades Cndido Mendes

    CONCEITUAO E HISTRICO DO SISTEMA REPRESENTATIVO

    l. Conceito de representao poltica

    [Origem do termo]

    uando falamos usualmente em representao poltica estamos, na maioria das vezes, fazendo referncia ao sistema representati-

    vo moderno, i.e., ao regime poltico no qual os governantes so, eleitos pelo povo. Esta acepo, no entanto, tem um significado his-trico especfico, que poder nos levar a uma definio parcial do que seja a representao poltica. Procuraremos ento conceitu-la no seu significado mais geral e depois faremos um breve resumo sobre a histria de representao poltica.

    A idia da representao de um indivduo por outro , essen-cialmente, uma idia moderna. Na Grcia Antiga havia eleies e as cidades-estados enviavam embaixadores para negociaes, ativi-dades essas que consistiam em certo sentido em representao. Em grego, no entanto, no havia uma palavra correspondente, que significasse o que atualmente entendemos por representao. O substantivo "representao" vem do latim repraesentare, que signi-ficava literalmente trazer presena algo ausente, ou a materializaco de urna abstrao em um objeto (por exemplo, a beleza numa escultura ou num rosto feminino). palavra no era aplicada para significar um tipo de relao entre seres humanos.

    Somente com o surgimento de instituies polticas represen- tativas que se comeou a elaborar o conceito de representao poltica. Talvez tenha sido o filsofo ingls Thomas Hobbes o

    VOTO E REPRESENTAO 15

    Q

  • primeiro autor a desenvolver o conceito de representao. Esta preocupao conceitual de Hobbes no encontrou nos autores mo-dernos muitos seguidores, pois mesmo John Stuart Mill, que escreveu todo um livro sobre o governo representativo, no considerou ne-cessrio definir o que entendia por representao. O uso da palavra comeou a ser comum quando, a partir do sculo XVI, as insti-tuies parlamentares modernas comearam a tomar forma e aper- feioar-se. Sir Thomas Smith, na sua obra De Republica Anglorum (1583), usa a expresso livremente ao descrever as instituies parlamentares.

    O texto central para a conceituao da representao o cap-tulo 16 do Leviat de Thomas Hobbes, intitulado Das Pessoas, Autores e Coisas Personificadas. Hobbes parte da diferenciao entre pessoas naturais e pessoas artificiais, sendo as primeiras aque-las que falam por si mesmas e as pessoas artificiais aquelas que falam representando as palavras e aes de outro.

    A representao poltica, i.e., aquela encontrada na sociedade poltica onde os indivduos so representados por outros indivduos para darem a sua opinio e determinar os destinos da comunidade, aparece somente quando se constitui o estado. Hobbes, portanto, admite, antes da representao poltica, a representao privada, nascida do acordo entre dois indivduos e relacionada com assuntos particulares.

    Podemos ento conceituar representao poltica como sendo a relao existente entre o cidado e o governante, na qual a ao do governante est de acordo com a vontade do cidado. O governo representativo ser, portanto, aquele que utiliza tcnicas para assegurar a concordncia entre as decises governamentais e a von-tade dos governados, destacando-se entre essas tcnicas a eleio das autoridades. A representao poltica pode ocorrer, portanto, em diferentes regimes. Nos prprios regimes autoritrios pretende-se que exista uma representatividade do governo e por essa razo procura-se, mesmo em regimes fechados como a URSS, manter o processo eleitoral para a formalizao da escolha dos dirigentes. Esta prtica poltica, porm, no significa que esses regimes tenham um governo representativo como atualmente conceituado pela Cincia Poltica. O sistema representativo contemporneo tem uma hist-ria de alguns sculos atravs dos quais foi-se aperfeioando at assumir a forma atual. Vamos fixar a nossa ateno sobre a evo-luo do governo representativo como ocorreu no mundo ocidental, lembrando que o governo constitucional definido como aquele no qual o uso do poder limitado por uma constituio que define as funes das autoridades pblicas somente possvel atravs do sistema representativo.

    2. Histrico do sistema representativo Ao estudarmos a histria do sistema representativo ficamos

    sempre com a pergunta: por que no apareceu antes este sistema de governo? Vamos verificar que, como na natureza, os rgos e funes existem para atender determinadas necessidades do ser vivo. Assim, por exemplo, os galhos da rvore do umbu so todos retor-cidos para dentro para que a planta possa defender-se das intem-pries do serto. Da mesma forma, na sociedade as instituies

    16 CURSO DF. INTRODUO CINCIA POLTICA

    Definio de representao poltica e governo representativo.

    polticas e sociais nascem quando se tornam necessrias. O sistema representativo no surgiu antes porque os grandes imprios asiticos foram organizados em funo de crenas religiosas nas quais o indi-vduo e suas vontades individuais no tinham a menor importncia. Na Antigidade Clssica, onde nas cidades-estados apareceu, pela primeira vez, o sentimento da dignidade humana, o pequeno nmero de cidados permitia-se a participao poltica direta, no sendo necessrio o sistema representativo. Aristteles considerava essa participao essencial, considerando malfico para a vida social a existncia de estruturas polticas maiores do que a cidade-estado. Entre os romanos a ascendncia final do Senado tirou qualquer possibilidade de existir uma representao autntica.

    Na Idade Mdia, porm, encontramos o embrio do futuro sistema representativo. O esprito de solidariedade corporativa nas cidades medievais, mosteiros e igrejas era altamente desenvolvido. Nas ordens religiosas iniciou-se a utilizao de representantes dos monges e frades nas reunies gerais de suas comunidades, a maioria das vezes para eleger o abade ou o superior-geral. O sistema de governo das ordens religiosas e das corporaes medievais criou as condies para a transferncia para a sociedade poltica das tcni-cas, que mais tarde seriam denominadas de sistema representativo.

    Evoluo do sistema Na histria Inglesa podemos observar a plena evoluo do representativo ingls. sistema representativo. As prprias condies da evoluo poltica

    inglesa mostram como o sistema representativo nasce e aperfeioa-se para atender a interesses polticos determinados. O feudalismo ingls diferenciou-se profundamente do feudalismo do resto da Europa, sendo que na Inglaterra encontramos o sistema feudal im-portado sobrepondo-se s organizaes comunitrias locais. Depois da conquista normanda (1066) o sistema feudal estabelecido por Guilherme, o Conquistador, tomou a forma de uma organizao hierrquica com um poder real muito forte. O sistema feudal ingls caracterizou-se, ao contrrio do sistema feudal continental, por um forte poder central. A nobreza e os comerciantes uniram-se contra o poder real, procurando limitar as suas atribuies. Como es-creve A. Esmein "A Inglaterra, depois da conquista normanda, comeou por uma monarquia quase absoluta, e talvez por isto teve, no sculo XVII, uma monarquia representativa. A Frana feudal comeou com uma realeza quase inteiramente impotente, e pro-vavelmente por isto que acabou, no sculo XVII, cm uma monar-quia absoluta" (A. Esmein, 1914).

    O exerccio do poder monrquico na Inglaterra medieval era feito de acordo com os costumes feudais, tendo assim um certo con-trole. J no sculo XII o rei tinha por costume ouvir o concilium formado pelos principais bares, vassalos da coroa quando queria alguma regulamentao nova. Ao mesmo tempo, o conci- lium adquiriu funes judiciais especficas, servindo como corte superior. Alm do nome genrico concilium, essas assemblias eram chamadas, tambm, de Parlamento. Durante o sculo XIII o Par-lamento de prelados e bares passou a reunir-se periodicamente, tomando o nome de Magnum Concilium. O Magnum Concilium era chamado ento para autorizar os subsdios solicitados pelo rei. O art. 12 da Magna Carta (1215) estabelece que "Nenhum subsdio

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  • ou auxlio ser imposto em nosso reino a no ser pelo Conselho comum do nosso reino...".

    O Magnum Concilium iria ser a origem de um dos ramos do sistema representativo ingls, a Cmara dos Lordes. A represen-tao popular originariamente identificada com a burguesia iria organizar-se na Cmara dos Comuns.

    Na Inglaterra, em 1254, foram convocados para participar jun-tamente com o clero e os senhores feudais, dois representantes de cada condado nas deliberaes sobre a concesso de um auxlio. O mesmo ocorreu em 1261 e 1264, quando alm dos cavaleiros repre-sentantes dos condados, tambm participaram dois representantes por vila ou burgo privilegiado. Esta convocao foi feita por sugesto de Simon de Montfort, que, por essa razo, foi considerado o fundador do Parlamento ingls. Os ingleses consideram, porm, que foi o Parlamento convocado por Eduardo I (1295) o prece-dente decisivo na histria da representao poltica e que cha-mado o Parlamento modelo (great and model Parliament). De fato o parlamento modelo compreendia representantes da nao inteira, constituda dos trs estados do reino (nobreza, clero e burguesia). O poder da Cmara dos Comuns ir crescer, sendo a sua grande vitoria a conquista do poder legislativo propriamente dito, i.e.t o poder de iniciativa ou de propor leis. O aumento da fora poltica dos comuns est relacionado com a crescente partici-pao dos burgueses na vida econmica e social da poca. Podemos dizer que a institucionalizao da participao poltica dos burgue-ses foi feita em relao direta com a sua importncia econmica para o reino.

    Desta forma o direito de autorizar o imposto consolidou-se no final do sculo XIII, num estatuto da poca de Eduardo I chamado de Statutun de tallagio non concedendo. Neste Estatuto consa-gra-se pela primeira vez um texto legal o princpio bsico do estado liberal "nenhum imposto sem representao" (no taxation without representation). O Estatuto declara em seu cap. 1:

    Nenhuma tallage ou ajuda ser cobrada ou determinada por ns ou nossos herdeiros, em nosso reinado, sem a boa vontade e o assentimento dos arcebispos, bispos, condes, bares, cavaleiros, burgueses e outros homens livres do pas".

    A histria do governo representativo na Inglaterra desenvolveu-se, em funo do crescente poder legislativo da Cmara dos Comuns e da Cmara dos Lordes. Os remanescentes poderes do rei foram sendo progressivamente transferidos para a rea de competncia das cmaras legislativas. O controle final sobre os atos reais foi consagrado depois da Revoluo de 1688, quando entrou em prtica o princpio de que as receitas concedidas pelos comuns para um servio determinado deveriam ser empregadas pelo poder executivo somente para custear as despesas deste servio. Esta longa evoluo do direito ingls produziu uma nova forma de governo, desconhecida na Antigidade, o governo representativo.

    Podemos de forma resumida fixar a teoria e as regras do gover-no representativo.

    1 - Os representantes tm poderes do povo; este transmite atravs de eleies um direito que reside nele mesmo.

    18 CURSO DE INTRODUO CINCIA POLTICA

    O modelo ingls de governo representativo

    2 Os representantes, ainda que eleitos por zonas eleitorais, representam por fico o povo inteiro; podem deliberar sobre os assuntos de interesse geral ou local compreendidos em suas atri-buies.

    3 Os deputados, de acordo com a doutrina inglesa, tm "inteira liberdade, no exerccio do seu mandato, no sendo simples delegados ou mandatrios dos eleitores.Veremos mais adiante como este ponto de teoria ser amplamente discutido pela teoria poltica e jurdica sobre a natureza da representao.

    4 Os representantes devem ser eleitos para um mandato temporrio. Isto porque uma das caractersticas do sistema repre-sentativo consiste no controle popular sobre os representantes, que exercido periodicamente atravs de eleies.

    5 O governo representativo na Inglaterra estabeleceu-se de forma a representar no a nao como um todo, mas grupos com uma existncia coorporativa: os condados, as vilas, os burgos, as universidades. A representao poltica constituiu-se assim em funo de interesses definidos e no em virtude da maioria da populao. Impedia-se que, ao contrrio do sustentado pelos revo-lucionrios franceses, a maioria dominasse o Estado. A idia domi-nante bem expressa por Lord Brougham:

    "A populao exclusivamente no pode sem risco considerar-se como critrio do nmero de representantes a ser eleito, e devemos rejeitar qualquer combinao que atribua a uma grande cidade a escolha de um grande nmero de representantes, concedendo-lhe um nmero de representantes proporcional sua populao."

    3. TEXTOS 3.1 Thomas Hobbcs Leviat, cap. XVI, "Das pessoas. Auto

    rs e Coisas Personificadas". "Uma pessoa aquele cujas palavras ou aes so consideradas

    quer como suas prprias, quer como representando as palavras ou aes de outro homem, ou de qualquer outra coisa a que sejam

    atribudas, seja com verdade ou por fico. Quando elas so consideradas como suas prprias, ele se chama

    uma pessoa natural. Quando so consideradas como representando as palavras e aes de um outro, chama-se-lhe uma pessoa fictcia

    ou artificial. A palavra pessoa de origem latina. Em lugar dela os gregos tinham

    prsopon, que significa rosto, tal como em latim persona significa o disfarce ou a aparncia exterior de um homem, imitada no palco. E por vezes mais particularmente aquela parte dela que disfara o rosto, como mscara ou viseira. E do palco a palavra foi transferida para qualquer representante da palavra ou da ao, tanto nos tribunais como nos teatros. De modo que uma pessoa o mesmo que um ator, tanto no palco como na conversao corrente. E personificar representar, seja a si mesmo ou a outro; e daquele que representa outro diz-se que portador de sua pessoa, ou que age em seu nome (sentido usado por Ccero quando diz: Unus sustinco tres Personas; Mei, Adversari, et Judicis Sou por

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    Definio de pessoa natural e artificial.

    Origem da palavra pessoa.

  • tador de trs pessoas: eu mesmo, meu adversrio e o juiz). Recebe designaes diversas, conforme as ocasies: representante, manda- trio, lugar-tenente, vigrio, advogado, deputado, procurador, ator e outras semelhantes.

    Quanto s pessoas artificiais, em certos casos algumas de suas palavras e aes pertencem queles a quem representam. Nesses casos a pessoa o ator, e aquele a quem pertencem suas palavras e aes o autor, casos estes em que o ator age por autoridade. Porque aquele a quem pertencem bens e posses chamado proprie-trio, em latim Dominus e em grego Kyrios; quando se trata de aes chamado autor. E tal como o direito de posse se chama domnio, assim tambm o direito de lazer qualquer ao se chama autoridade. De modo que por autoridade se entende sempre o direito de praticar qualquer ao, e feito por autoridade significa sempre por comisso ou licena daquele a quem pertence o direito.

    De onde se segue que, quando o ator faz um pacto por autori-dade, obriga atravs disso o autor, e no menos do que se este mesmo o fizesse, nem fica menos sujeito a todas as conseqncias do mesmo.

    Portanto aquele que faz um pacto com o autor ou represen-tante, sem saber que autoridade ele tem, f-lo por sua conta e risco. Porque ningum obrigado por um pacto do qual no autor, nem conseqentemente por um pacto feito contra ou margem da autoridade que ele mesmo conferiu.

    Quando o ator faz qualquer coisa contra a lei de natureza por ordem do autor, se pelo pacto anterior for obrigado a obedecer-lhe, no ele e sim o autor que viola a lei de natureza. Pois a ao, embora seja contra a lei de natureza, no sua; pelo contrrio, recusar-se a pratic-la contra a lei de natureza, que obriga a cumprir os contratos. E aquele que faz um pacto com o autor, atravs da mediao do ator, sem saber que autoridade este tem, simplesmente confiando em sua palavra, e no caso de esta autori-dade no lhe ser comunicada aps ser pedida, deixa de ter obri-gao. Porque o pacto feito com o autor no vlido sem essa garantia. Mas se aquele que assim pactuou antecipadamente sabia que no podia esperar outra garantia seno a palavra do ator, neste caso o pacto vlido, porque aqui o ator se constitui a si mesmo como autor. Portanto, do mesmo modo que, quando a autoridade evidente, o pacto obriga o autor, e no o ator, assim tambm, quando a autoridade fingida, ele obriga apenas o ator, pois o nico autor ele prprio.

    Poucas so as coisas incapazes de serem representadas por fico. As coisas inanimadas, como uma igreja, um hospital, uma ponte, podem ser personificadas por um reitor, um diretor ou um super-visor. Mas as coisas inanimadas no podem ser autores, nem por-tanto conferir autoridade a seus atores.

    Todavia os atores podem ter autoridade para prover a sua conservao, a eles conferida pelos proprietrios ou governadores dessas coisas. Portanto essas coisas no podem ser personificadas enquanto no houver um estado de governo civil.

    20 CURSO DE INTRODUO CINCIA POLTICA

    Definio de ator, autor e autoridade.

    Relacionamento entre autor e ator.

    A unidade da multido.

    Representatividade do voto

    De maneira semelhante, as crianas, os imbecis e os loucos, que no tm o uso da razo, podem ser personificados por guardies ou curadores, mas no podem ser autores (durante esse tempo) de qualquer ao praticada por eles, a no ser que (quando tiverem recobrado o uso da razo) venham a considerar razovel essa ao. Mas, enquanto durar a loucura, aquele que tem o direito de gover-n-los pode conferir autoridade ao guardio. Mas tambm isso s pode ter lugar num estado civil, porque antes desse estado no h domnio de pessoas.

    Um dolo, ou mera faco do crebro, pode ser personificado, como o eram os deuses dos pagos, que eram personificados pelos funcionrios para tal nomeados pelo estado, e tinham posses e ou-tros bens, assim como direitos, que os homens de vez cm quando a eles dedicavam e consagravam. Mas os dolos no podem ser auto-res, porque um dolo no nada. A autoridade provinha do estado, portanto antes da instituio do governo civil os deuses dos pagos no podiam ser personificados.

    O verdadeiro Deus pode ser personificado. Conforme efetiva-mente foi, primeiro por Moiss, que governou os israelitas (que no eram o seu povo, e sim o povo de Deus), no em seu prprio nome, com Hoc dicit Moyses, mas em nome de Deus, com Hoc dicit Dominus. Em segundo lugar pelo Filho do Homem, seu prprio Filho, nosso abenoado salvador Jesus Cristo, que veio para sub-meter os judeus e induzir todas as naes a entrarem no reino de seu Pai, no cm seu prprio nome, mas em nome de seu Pai. Em terceiro lugar pelo Esprito Santo, ou confortador, que falava e atuava nos apstolos. O qual Esprito Santo era um confortador que no veio por si mesmo, mas foi mandado pelos outros dois, dos quais procedia

    Uma multido de homens transformada em uma pessoa quan-do representada por um s homem ou pessoa de maneira a que tal seja feito com o consentimento de cada um dos que constituem esta multido. Porque a unidade do representante, e no a unidade do representado, que faz que a pessoa seja una. E o representante o portador da pessoa, e s de uma pessoa. Esta a nica maneira como possvel entender a unidade de uma multido.

    Dado que a multido naturalmente no uma, mas muitos, eles no podem ser entendidos como um s, mas como muitos autores, de cada uma das coisas que o representante diz ou faz em seu nome. Cada homem confere a seu representante comum sua prpria autoridade em particular, e a cada um pertencem todas as aes praticadas pelo representante, caso lhe haja conferida autori- dade sem limites. Caso contrrio, quando o limitam quanto quilo em que os representar, ou at que ponto, a nenhum deles pertence mais do que aquilo cm que deu comisso para agir.

    Se o representante for constitudo por muitos homens, a voz do maior nmero dever ser considerada como a voz de todos eles. Porque se o menor nmero se pronunciar (por exemplo) pela afir- mativa e o maior nmero pela negativa, haver votos negativos mais do que suficientes para destruir os afirmativos. E assim o excesso de votos negativo, no recebendo contradio, ser a nica voz do representante.

    VOTO E REPRESENTAO 21

  • Um corpo representativo de nmero par, sobretudo quando o nmero no grande, onde portanto muitas vezes as vozes so iguais, conseqentemente outras tantas vezes mudo, e incapaz de ao. Todavia, em alguns casos os votos contraditrios iguais em nmero podem decidir uma questo, tal como na condenao ou absolvio, a igualdade de votos, embora no condene, efetivamente absolve; embora, pelo contrrio, no condenem na medida em que no absolvem. Porque quando se realiza a audincia de uma causa, no condenar o mesmo que absolver; mas a recproca, isto , dizer que no absolver o mesmo que condenar, no verdadeira. O mesmo se passa numa deliberao entre a execuo imediata e o adiamento para outra ocasio, pois quando os votos so iguais, no decretar a execuo um decreto de dilao.

    Por outro lado, se o nmero for mpar, como trs ou mais (sejam homens ou assemblias), onde cada um tem autoridade, atravs de um voto negativo, para anular o efeito de todos os votos afirmativos dos restantes, esse nmero no representativo. Por-que devido diversidade de opinies e interesses dos homens, ocorre muitas vezes e em casos da maior gravidade, que ele se torna uma pessoa muda e destituda de capacidade, do mesmo modo que para muitas coisas mais, para o governo de uma multido, especialmente em tempo de guerra.

    H duas espcies de autores. O autor da primeira espcie o simplesmente assim chamado, o qual acima defini como sendo aquele a quem pertence, simplesmente, a ao de um outro. Da segunda espcie aquele a quem pertence uma ao, ou um pacto de um outro, condicionalmente. Quer dizer, que o realiza se o outro no o faz at ou antes de um determinado momento. Estes autores condicionais so geralmente chamados fiadores, em latim fidejussores e sponsores; quando especialmente para dvidas, praedes; e para comparecimento perante um juiz ou magistrado, vades".

    Princpio do primado da assemblia.

    a nfase colocada mais fortemente sobre o princpio e a virtude da obedincia.

    b) A ASSEMBLIA, SUMMA POTESTAS. Outro princ-pio, fundamentalmente "democrtico", o do primado da assemblia, comunidade, captulo geral, ou congregatio. Somente ela est habilitada a legislar. Somente ela pode modificar as "leis", ab-rog- las e interpret-las. Somente ela tem o direito de dispensar e absolver. Tudo, bem entendido, juxta et praeter Statuta, quer dizer, conforme os princpios constitucionais da ordem, e no "contra", para retomar as expresses dos cartuxos.

    Certamente ela no governa; mas ela elege o superior-geral e seus assistentes e pode revog-los. Ela decide sobre as grandes opes "polticas" e controla sua aplicao...

    De fato, o superior-geral seu sdito (subjicitur, diz o arti- go 22 do Eptome dos Jesutas), "inferior et subditus" explicita Surez, seu "tenente", acrescentam os cartuxos (1310), seu "vice- gerente" (1426), seu "vigrio". Tambm ele exerce as suas funes exclusivamente super annum quer dizer quando a assemblia no est reunida.

    De fato, ele possui a "plena auctoritas", pois necessrio gover-nar. No entanto, ele a exerce somente "ad aedificandum" (art. 784 dos jesutas), e secundum Constitutiones et Decreta Congregationum Generalium" (ib).

    O primeiro Parliamentum autntico e supranacional a primeira assemblia legislativa do tipo moderno aparece, na his-tria do Ocidente, com o captulo geral de Citeau, em 1115, ou seja, cem anos antes do sistema bastante rudimentar instaurado pela Magna Carta na Inglaterra.

    3.2 Deo Moulin: Ls origines chrtiennes des techniques lec- torales et dliberatives contemporaines, IPSA Montreal, 1973.

    a) UM REGIME DE DIREITO. O primeiro fato a subli- nhar, pois esclarece o que vai ser dito de forma luminosa, que o regime "poltico" das ordens religiosas e da Igreja , essencialmente, um regime de direito, isto , um regime cujas estruturas, esprito, funcionamento e at mecanismos de reviso e adaptao constitucional so minuciosamente definidos e determinados pela regra e pelas constituies.

    "Militares sub Regula vel Abbate" escreveu So Bento (534) referindo-se ao combatente que o monge. Deve-se obedincia regra e sua conscincia, diz a regra franciscana (1223), "ubi pecca- tum non cernitur", precisam os jesutas.

    O contrato que liga o religioso u sua ordem obriga tanto a um como a outro. Sua interpretao autoriza, portanto, ao monge apre-sentar objees se o superior ordena que faa coisas "impossveis" (moral ou fisicamente): "non superbiendo aut resistendo vel con- tradicendo", de fato, como se deve numa sociedade bem organizada; mas o princpio estabelecido e permanecer, mesmo nas ordens onde

    22 CURSO DE INTRODUO CINCIA POLTICA

    Q. A. 2 Que fatores histricos podem ser considerados como causas do surgi-mento do governo representativo?

    Q. A. 3 Por que cada homem o responsvel pelos atos de seu representante, segundo Thomas Hobbes?

    II DEMOCRACIA PARTICIPATRIA OU

    DEMOCRACIA REPRESENTATIVA-

    l . Natureza jurdica da representao poltica Todos os problemas relacionados com o sistema representativo

    encontram-se centralizados em torno da questo do controle do eleito pelo eleitor. Trata-se dc determinar a natureza da representao

    VOTO E REPRESENTAO >> 23.

    Definio de regime de

    direito.

  • poltica, quais os deveres impostos ao representante e os direitos no transferveis atravs do vnculo representativo.

    Na sociedade moderna o povo no pode reunir-se na praa do mercado como fazia em Atenas, Roma e nos cantes suos, e deci-dir sobre os assuntos de interesse comum. A teoria poltica mo- derna no desenvolveu um consenso sobre a natureza jurdica da representao.

    Thomas Paine foi o primeiro a distinguir entre a "democracia Distino entre simples" e a "democracia representativa". A "democracia simples" "democracia simples" e consistia na sociedade autogovernando-se; a "democracia represen- "democracia tativa" consistia no sistema de governo capaz de "abarcar e confe- representativa". derar todos os vrios interesses e todas as partes do territrio e da populao... Atenas teria pela representao superado sua pr- pria democracia" (T. Paine, 1961).

    A representao poltica constitui o ncleo dos regimes demo-crticos contemporneos. , principalmente, atravs do vnculo representativo que se exerce a vontade popular nas democracias contemporneas. Ainda que esta concepo de representao como instrumento da prtica democrtica seja geralmente aceita pelos autores, encontramos sobre o tema opinies divergentes sobre a natureza da representao poltica. Diferentes respostas podem ser dadas pergunta: "quais os direitos e obrigaes do represen-tante poltico em relao aos representados, em outras palavras, quais as obrigaes do eleito diante dos seus eleitores durante o exerccio do mandato que lhe foi conferido"? Esta pergunta respondida por trs tipos de resposta terica, que (como j vimos no Bloco I) fundamentam trs modelos de representao poltica: 1) a representao poltica como delegao; 2) a representao poltica como relao fiduciria; 3) a representao como "espe-lho"'ou representatividade sociolgica (M. Cotta, 1976).

    2. Modelos de representao poltica Os trs modelos de representao poltica correspondem a

    momentos histricos diferentes na histria dos regimes polticos contemporneos. Tomados cm sua forma pura. colocam alguns problemas, que posteriormente sero discutidos. O primeiro tipo de representao tem sua origem nas idias de Rousseau; o segundo tipo encontra cm Edmund Burke seu mais lcido expositor; o ter-ceiro resulta de algumas teorias sociolgicas contemporneas.

    a) REPRESENTAO POLTICA COMO DELEGAO. O representante neste modelo concebido como um executor da vontade dos seus eleitores. As instrues dos constituintes obrigam o representante em seus votos e decises. Na verdade o papel do representante assemelha-se ao de um embaixador. Este modelo ins-pira-se na representao medieval e teve em Rousseau seu grande terico. Rousseau baseia a sua crtica ao sistema representativo no fato de que a vontade popular, que ele chama de "vontade geral", no encontra neste sistema sua expresso real:

    "A soberania no pode ser representada pela mesma razo por-que no pode ser alienada; consiste ela essencialmente na vontade geral e a vontade geral no se representa: ou ela mesma ou algo

    24 CURSO DH INTRODUO CINCIA POLTICA

    diferente; no h meio termo. Os deputados do povo no so nem podem ser seus representantes, eles so unicamente seus comissrios; nada podem decidir em definitivo. Toda lei que o povo no tenha pessoalmente ratificado nula; no uma lei. . O povo ingls pensa que livre; mas engana-se bastante, pois ele somente livre durante as eleies dos membros do Parlamento; assim que eles so eleitos, torna-se escravo, no nada. O uso que ele faz da liberdade, nos seus poucos momentos, bem merece que ele a perca" (Contrat Social, III. cap. XV).

    A crtica de Rousseau ao sistema representativo iria, no entanto, ser utilizada em face das necessidades de organizao do estado moderno. Rousseau, nas Considerations sur le Gouvenement de Pologne, sustenta que necessrio estabelecer uma distino entre o poder executivo e o poder legislativo. O poder legislativo no pode ser, por sua natureza, representado, mas levando-se em consi-derao as dificuldades na administrao do estado moderno, a representao poltica dever ser exercida tendo dois meios atravs dos quais a corrupo da vontade geral pelos legisladores seja evi-tada, ou nas palavras de Rousseau: impedir que "do rgo da liber-dade faa-se o instrumento da escravido" (Considrations sur le Gouvernement de Pologne, cap. VII) .

    Teoria do mandato Rousseau prope ento o que se chama modernamente a insti-imperativo. tuio do mandato imperativo: "o primeiro (meio) , como j

    disse, a freqncia das Dietas, que mudando vrias vezes os representantes, torna sua seduo mais custosa e mais difcil...

    O segundo meio o de obrigar os representantes a seguir exata-mente suas instrues e a prestar contas severas a seus constituintes de sua conduta na Dieta. No posso a respeito deixar de expres-sar o meu espanto diante da negligncia, da incria, ouso dizer a estupidez da nao inglesa, que, depois de armar os seus deputados com o poder supremo, no lhes pe nenhum freio para controlar o uso que dele podero fazer durante os sete anos inteiros de seu mandato" (ibidem, cap. VII).

    A teoria do mandato imperativo sustenta, precisamente, que desde que o mandatrio est vinculado pelos termos do mandato, isto significa que tudo o que fizer contra a vontade do mandante ser nulo. O representante dever agir em cada caso de acordo com as instrues especficas recebidas do seu eleitor. O deputado estar preso linha poltica, ao programa fixado pelo eleitor. O representante ser exclusivamente o transmissor da vontade dos seus eleitores, sendo que qualquer posio assumida contra a vontade dos mesmos no ter nenhum efeito.

    b) REPRESENTAO POLTICA COMO RELAO FI-DUCIRIA. O representante recebe a confiana do eleitor para decidir de forma autnoma. O eleitor ao votar sabe que transfere ao representante o poder de legislar e estabelecer as normas legais que iro controlar a sociedade. Atravs de uma fico jurdica, o eleito representa no somente aqueles que nele votaram, mas toda a nao.

    VOTO E REPRESENTAO 25

    Critica de Rousseau ao modelo de representao como delegao.

  • O mandato representativo foi o instrumento poltico do estado liberal. Os representantes, como representantes de toda a nao, romperam os laos com os eleitores. Neste sentido a afirmao

    de Rousseau quando ao fato de que os cidados ingleses eram livres somente na hora de votar assume contornos de verdade. Este argu-mento foi por diversos autores respondido lembrando que pelo menos na hora de votar os cidados ingleses eram livres, enquanto os cidados dos outros pases europeus, na poca, nem tinham eleies para exercer esta liberdade mnima.

    O grande defensor do mandato como uma relao, que no Argumentos de E. Burke obrigava o eleito diante do eleitor, foi Edmund Burke, que no seu sobre a representao como clebre Discurso aos Eleitores de Bristol, desenvolveu a argumen- uma relao de confiana. tao central da teoria do mandato como relao fiduciria.

    "Meu importante colega (o opositor de Burke na disputa pela cadeira) afirma que a sua vontade deve ser subserviente de vocs. Se todo o problema fosse este, a coisa seria fcil. Se o governo fosse uma questo de vontade de cada lado, a sua sem dvida deveria ser superior. Mas governo e legislao so assuntos de inteligncia e escolha, e no de inclinao; e que tipo de razo esta na qual a deciso antecede a discusso, na qual um conjunto de homens deli-beram e outros decidem, e onde aqueles que chegam a uma con-cluso esto, talvez, a trezentas milhas de distncia daqueles que ouvem as opinies?

    Dar uma opinio um direito de todos os homens; a dos cons-tituintes uma opinio de peso e respeitvel, que deve ser sempre ouvida com satisfao pelo representante e que deve sempre con-siderar seriamente. Mas instrues autorizadas, mandatos emitidos, pelos quais os membros so obrigados a obedecer, cega e implicita-mente, a votar, a defender, ainda que contrrios mais evidente convico do seu julgamento e conscincia, essas so coisas inteira-mente desconhecidas pelas leis desta terra e que surgem de um erro fundamental de toda a ordem e sentido de nossa Constituio.

    O Parlamento no um congresso de embaixadores de interes-ses hostis e diferentes, que devem manter-se, como agente e advo-gado contra outros agentes e advogados: o Parlamento uma assem-blia deliberativa de uma nao, com um interesse, aquele do todo onde os objetivos locais, os preconceitos locais no devem servir de guia, mas o bem geral, resultante da razo geral do todo. Vocs de fato escolhem um membro; mas quando vocs escolheram, ele no o membro de Bristol, mas um membro do Parlamento'' (E. Burke, ver Referencias Bibliogrficas).

    c) REPRESENTAO COMO REPRESENTATIVIDADE SOCIOLGICA. A representao poltica nos modelos acima especificados referem-se a um momento histrico que se caracterizou por uma realidade social e econmica especifica. Tratava-se de elaborar teoricamente a representao poltica para uma sociedade individualista, que tinha na economia de mercado a forma de suas relaes econmicas. A fico da representao foi ento desen-volvida para atender precisamente a funo do representante, numa sociedade na qual a representao de interesses sociais e econmicos era essencial para o seu funcionamento. A representao poltica foi expressa de modo semelhante nos diferentes textos constitucio-nais dos sculos XIX e XX. A democratizao do estado liberal

    26 CURSO DE INTRODUO CINCIA POLTICA

    Origem da representao profissional.

    modificou, no entanto, a realidade social e econmica. Esta modi-ficao alterou basicamente a caracterstica dos rgos representa-tivos. A natureza jurdica da representao poltica passou a ser encarada no mais como era entendida por Rousseau ou Burke, mas sim como reflexo de toda a realidade social. Nas palavras do prof. Paulo Bonavides: "A representao s concebvel e ex-plicvel hoje se a vincularmos com a dinmica daqueles grupos (grupos de interesses), com os interesses polticos, econmicos e sociais que eles agitam tenazmente, buscando-lhes a prevalncia, via de regra, em nome de posies ideolgicas, cuja profunda an-lise o constitucionalista jamais poder eximir-se de levar a cabo" (P. Bonavides, 1972).

    Q. A. 4 Quais as crticas de Rousseau ao modelo de representao poltica de delegao?

    Q. A. 5 Como Edmund Burke justificou a representao como uma relao de confiana?

    3. A representao profissional A discusso da natureza dos vnculos entre o representante

    poltico e o eleitor e o exame do funcionamento do poder legis-lativo em diversos pases mostram que a representao do estado liberal sofre profundas alteraes. A progressiva influncia da vontade do eleitor sobre a atuao do representante, mesmo quando essa vontade contraria "a mais convincente convico de seu jul-gamento e conscincia" (Burke), contribui decisivamente para a descaracterizao do modelo imaginado pelos tericos liberais. As deficincias do sistema representativo levaram crtica de sistemas substitutivos da representao clssica.

    Um desses sistemas alternativos o da representao profissio-nal, que se pretendeu substituir representao proporcional, esta-belecida h mais de um sculo. A idia da representao profis-sional surgiu no seio da sociedade industrial tendo em vista que os interesses econmicos e sociais, exercendo um papel relevante nos mecanismos dessa sociedade, achavam-se afastados da participao poltica direta.

    As organizaes profissionais e os sindicatos seriam os canais mais legtimos de representao, isto porque na sociedade industrial a atividade essencial do indivduo desenvolve-se em torno do local de trabalho. Assim, na profisso que o homem da sociedade industrial encontra os meios de subsistncia individual e partici-pao na sociedade. Os fascistas, nas cmaras corporativas, leva-ram a idia da representao profissional s ltimas conseqncias.

    A crtica que os tericos da representao profissional faziam forma clssica da representao proporcional era de que a unidade geogrfica a circunscrio eleitoral no podia identificar-se com

    VO TO E REPRESENTAO 27

    Evoluo para o modelo de representatividade sociolgica.

  • uma opinio ou interesse particular, acabando a representao sendo a expresso dos interesses econmicos mais poderosos. A Consti- tuio de 1934 do Brasil teve em seu Congresso uma representao profissional a bancada classista, constituda de representantes de organizaes trabalhistas e patronais.

    6 A participao justifica-se num sistema democrtico em funo do auto-aperfeioamento individual e das melhorias sociais conseguidas em virtude desta participao.

    7 Podemos caracterizar o modelo participatrio como aquele no qual o "imput" mximo (participao) necessrio e onde o

    Atualmente a representao de interesses profissionais faz-se atravs dos grupos de presso. Esses renem interesses afins que fazem valer sua influncia junto aos representantes polticos (examinaremos os grupos de presso na Unidade VI deste Curso).

    4. O problema da democracia participatria

    O problema da democracia participatria est relacionado com a exausto dos canais de representao da democracia liberal cls- sica. A prtica e a teoria poltica demonstram que o indivduo, nos sistemas representativos modernos, no tem controle sobre a deciso dos governantes. A resposta dada pelos tericos da demo- cracia participatria atribui esta deficincia do sistema represen- tativo ao fato de que a sociedade moderna estrutura-se em funo de grandes organismos, sendo que o indivduo no tem controle sobre o pequeno agrupamento social ao qual est diretamente liga do. Alguns autores, como o socialista ingls G.D.H. Cole, procuram demonstrar que a servido em que vivem os indivduos no mundo tem sua origem no sistema industrial: "O sistema industrial... em grande parte a chave para o paradoxo da democracia. Por que os que so nominalmente absolutos so de fato impotentes? Em parte porque as circunstncias de suas vidas no os acostumaram ou prepararam para o poder e a responsabilidade. Um sistema servil na fbrica reflete-se inevitavelmente em servilismo poltico" (G. D. H. Cole, 1918). A democracia a nvel nacional no seria assim atingida atravs do exerccio do voto, nas eleies para depu-tados e senadores, mas quando a participao do indivduo, come-asse no local de trabalho, proporcionando-lhe assim uma educao democrtica.

    A teoria da democracia participatria pode ser, portanto, resu- Pontos essenciais da teoria mida em alguns pontos, que a diferenciam da teoria da democracia da democracia representativa tradicional. Os pontos essenciais dessa teoria, toma- participatria. dos no contexto da teoria liberal, so os seguintes:

    1 A existncia de instituies representativas a nvel nacio- nal no suficiente para que a democracia preencha a sua funo como mtodo de governo.

    2 O povo deve ter um alto grau de participao em todos os nveis e grupos sociais a que pertence, a fim de que insumos sejam gerados constantemente para alimentar a conscincia demo- crtica nacional.

    3 Somente atravs da participaro consegue-se este "treina-mento social".

    4 A teoria da participao procura explicar a necessidade de participao igual no processo de tomada de deciso.

    5 A "igualdade poltica" significa a igualdade de poder na determinao da deciso final.

    Motivaes da criao das sociedades humanas.

    Condies necessrias para a preservao da

    propriedade.

    output abrange no somente polticas (decises), como principal-mente o aperfeioamento das capacidades polticas e sociais dos indivduos.

    5. TEXTOS 5. l John Locke, Segundo Tratado do Governo Civil, cap. IX.

    "Dos fins da Sociedade Poltica c do Governo":

    "Se o homem no estado de natureza to livre, conforme disse-mos, se senhor absoluto da sua prpria pessoa e posses, igual ao maior e a ningum sujeito, por que abrir ele mo dessa liberdade, por que abandonar o seu imprio e sujeitar-se- ao domnio e con-trole de qualquer outro poder? Ao que bvio responder que, embora no estado de natureza tenha tal direito, a fruio do mesmo muito incerta e est constantemente exposta invaso de terceiros porque, sendo todos reis tanto quanto ele, todo homem igual a ele, e na maior parte pouco observadores da eqidade e da justia, a fruio da propriedade que possui nesse estado muito insegura, muito arriscada. Estas circunstncias obrigam-no a abandonar uma condio que, embora livre, est cheia de temores e perigos cons-tantes; e no sem razo que procura de boa vontade juntar-se em sociedade com outros que esto j unidos, ou pretendem unir-se, para a mtua conservao da vida. da liberdade e dos bens a que chamo de propriedade.

    O objetivo grande e principal, portanto, da unio dos homens em comunidades, colocando-se eles sob governo, a preservao da propriedade. Para este objetivo, muitas condies faltam no estado de natureza.

    Primeiro, falta uma lei estabelecida, firmada, conhecida, rece-bida e aceita mediante consentimento comum, como padro do justo e injusto e medida comum para resolver quaisquer controvrsias entre os homens: porque, embora a lei da natureza seja evidente e inteligvel para todas as criaturas racionais, entretanto os homens, sendo desviados pelo interesse bem como ignorantes dela porque no a estudam, no so capazes de reconhec-la como lei que os obrigue nos seus casos particulares.

    Em segundo lugar, no estado de natureza falta um juiz conhe-cido e indiferente, com autoridade para resolver quaisquer dissen-ses, de acordo com a lei estabelecida; porque, sendo cada homem, nesse estado, juiz e executor da lei de natureza sendo os homens par-ciais para consigo, a paixo e a vingana podem lev-los a exceder-se nos casos que os interessam, enquanto a negligncia e a indiferena os tornam por demais descuidados nos casos de terceiros.

    Em terceiro lugar, no estado de natureza falta muitas vezes poder que apie e sustente a sentena quando justa, dando-lhe a devida execuo. Os que ofendem por qualquer injustia raramente deixaro de, pela forca, sempre que forem capazes, sustentar a in-

    28 >> CURSO DE INTRODUO CINCIA POLTICA VOTO E REPRESENTAO 29

    Grupos de presso: representao de interesses profissionais.

    Deficincias da democracia participatria.

  • Justia; essa resistncia torna freqentemente o castigo perigoso e destrutivo para os que o tentam.

    Assim os homens, apesar de todos os privilgios do estado, de natureza, mantendo-se em ms condies enquanto nele permane-cem so rapidamente levados sociedade. Da resulta que raramente encontramos qualquer grupo de homens vivendo dessa maneira. Os inconvenientes a que esto expostos pelo exerccio irregular e in-certo do poder que todo homem tem de castigar as transgresses dos outros obrigam-nos a se refugiarem sob as leis de governo e nele procurarem a preservao da propriedade. isso que os leva a abandonarem de boa vontade o poder isolado que tm de castigar, para que passe a exerc-lo um s indivduo, escolhido para isso entre eles; e, mediante as regras que a comunidade ou os que forem por ela autorizados, concordarem em estabelecer. E nisso se con-tm o direito original dos poderes legislativo e executivo, bem como dos governos e das sociedades.

    No estado de natureza, o homem tem dois poderes para suprimir a liberdade que tem quanto a prazeres inocentes:

    O primeiro consiste em fazer o que julgar conveniente para a prpria preservao e a de terceiros dentro do que permite a lei da natureza, pela qual, sendo a todos comum, ele e todos os demais homens formam uma nica comunidade, constituem uma sociedade nica, distinta de todas as outras criaturas. E, se no fosse a cor-rupo e o vcio de homens degenerados, no haveria necessidade de nenhuma outra, nem seria preciso que os homens se separassem dessa comunidade grande e natural e por meio de acordos positivos se combinassem em associaes menores e divididas.

    O outro poder que o homem possui no estado de natureza o de castigar os crimes cometidos contra essa lei. Ele abandona um e outro quando se rene a uma sociedade poltica privada, se assim se pode cham-la, ou particular, e se incorpora a qualquer comunidade distinta do resto dos homens.

    O primeiro poder, isto , de fazer tudo quanto julgue conve-niente para a prpria preservao e dos demais homens, ele aban-dona para que seja regulado por leis feitas pela sociedade, at o ponto em que o exija a preservao dele prprio e do resto da sociedade; leis essas da sociedade que a muitos respeitos limitam a liberdade de que gozava pela lei da natureza.

    Em segundo lugar, abandona inteiramente o poder de castigar e compromete a fora natural de que dispe - que anteriormente podia utilizar para a execuo da lei da natureza em virtude da autoridade prpria singular que possua, conforme julgasse con-veniente - para auxiliar o poder executivo da sociedade, conforme a lei desta o exigir; visto como, encontrando-se agora em novo estado, no qual poder gozar de muitas vantagens resultantes do trabalho, auxlio e sociedade de terceiros na mesma comunidade, tanto como proteo contra a fora total dela, ter de renunciar igualmente a grande parte da liberdade natural de prover a si mes-mo conforme o exigirem o bem, a prosperidade e a segurana da sociedade, o que no s necessrio mas justo, desde que os outros membros da sociedade assim tambm faam.

    30 CURSO DE INTRODUO CINCIA POTICA

    Substituio dos poderes individuais pelo poder

    legislativo.

    Crtica de Rousseau ao governo representativo.

    Todavia, embora os homens quando entram em sociedade abandonem a igualdade, a liberdade e o poder executivo que tinham no estado de natureza nas mos da sociedade, para que disponha deles por meio do poder legislativo conforme o exigir o bem dela mesma, fazendo-o cada um apenas com a inteno de melhor se pre-servar a si prprio, sua liberdade e propriedade eis que criatura racional1 algum a pode "supor-se que troque J a sua condio1 para pior , o poder da sociedade ou o legislativo por ela constitudo no se pode nunca supor se estenda mais alm do que o bem comum, mas fica na obrigao de assegurar a propriedade de cada um, pro-vendo contra os trs inconvenientes acima assinalados, que tornam o estado de natureza to inseguro e arriscado. E assim sendo, quem tiver o poder legislativo ou o poder supremo de qualquer comuni-dade obriga-se a govern-la mediante leis estabelecidas, promulgadas e conhecidas do povo, e no por meio de decretos extemporneos; por juizes indiferentes e corretos, -que tero de resolver as contro-vrsias conforme essas leis; e a empregar a fora da comunidade no seu territrio somente na execuo de tais leis, e fora dele para prevenir ou remediar malefcios estrangeiros e garantir a sociedade contra incurses ou invases. E tudo isso tendo em vista nenhum outro objetivo seno a paz, a segurana e o bem pblico do povo".

    5.2 J. J. Rousseau O Contrato Social, cap. XV, "Dos Depu-tados ou Representantes":

    "Desde que o servio pblico deixa de constituir a atividade principal dos cidados a eles preferem servir com sua bolsa a servir com sua pessoa, o estado j se encontra prximo da runa. Se lhes for preciso combater, pagaro tropas e ficaro em casa; se neces-srio ir ao Conselho, nomearo deputados e ficaro em casa. fora de preguia e de dinheiro, tero, por fim, soldados para es-cravizar a ptria e -representantes para vend-la.

    a confuso do comrcio e das artes, c o vido interesse do ganho, a frouxido e o amor comodidade que trocam os servios pessoais pelo dinheiro. Cede-se uma parte do lucro para aument-lo vontade. Dai ouro, e logo tereis ferros. A palavra finana uma palavra de escravos, no conhecida na polis. Num estado verdadeiramente livre, os cidados fazem tudo com seus braos c nnda com o dinheiro: longe de pagar para se isentarem de seus devercs, pagaro para cumpri-los por si mesmos. Distancio-mc bastante das idias comuns, pois considero as corvias menos con-trrias liberdade do que os impostos.

    Quanto mais bem constitudo for o estado, tanto mais os ne-gcios pblicos sobrepujaro os particulares no esprito dos cidados. Haver at um nmero menor de negcios particulares, porque a soma da felicidade comum fornecendo uma poro mais considervel elicicade de cada indivduo, restar-Ihe- menos a conseguir em seus interesses particulares. Num?, polis bem consti-tuda, todos correm para as assemblias: sob um mau governo. ningum quer dar um passo para ir at elas, pois ningum se interessa pelo que nelas acontece, prevendo-se que a vontade geral no dominar, e porque, enfim, os cuidado* domsticos tudo absor-vem. As boas leis contribuem para que se faam outras melhores, as ms levam a leis piores. Quando algum disser dos negcios

    VOTO E REPRESENTA CO 3 1

    O poder coercitivo individual no estado de natureza.

    Transferncia do poder do individuo para a sociedade poltica

  • do estudo: que me importa? - pode-se estar certo de que o estado est perdido.

    A diminuio do amor ptria, a ao do interesse particular, a imensido dos estados, as conquistas, os abusos do governo fizeram com que se imaginasse o recurso dos deputados ou representantes do povo nas assemblias da nao. o que em certos pases ousam chamar de terceiro estado. Desse modo, o interesse particular das duas ordens colocado em primeiro e segundo lugares, ficando o interesse pblico em terceiro.

    A soberania no pode ser representada pela mesma razo por que no pode ser alienada: ela consiste essencialmente na vontade geral e a vontade absolutamente no se representa. ela mesma ou outra, no h meio-termo. Os deputados do povo no so, nem podem ser seus representantes: no passam de comissrios seus, nada podendo concluir definitivamente. nula toda lei que o povo diretamente no ratificar; em absoluto, no lei. O povo ingls pensa ser livre e muito se engana, pois s o durante a eleio dos membros do parlamento: uma vez estes eleitos, ele escravo, no nada. Durante os breves momentos de sua liberdade, o uso que dela faz mostra que merece perd-la.

    A idia de representantes moderna; vem-nos do governo feudal desse governo inquo e absurdo no qual a espcie humana s se degrada e o nome de homem cai em desonra. Nas antigas repblicas, e at nas monarquias, jamais teve o povo representantes, e no se conhecia essa palavra. bastante singular que em Roma, onde os tribunos eram to reverenciados, no se tenha sequer ima-ginado que eles pudessem usurpar as funes do povo e que, no meio de to grande multido, nunca tivessem tentado decidir por sua conta um nico plebiscito. Pode-se julgar, no entanto, qual o embarao que s vezes a multido causava pelo que aconteceu no tempo dos Gracos, quando uma parte dos cidados deu seu sufrgio do alto dos telhados.

    Onde o direito e a liberdade so tudo, os inconvenientes nada so. No seio desse povo prudente, tudo era colocado em sua medida certa: deixavam seus litores fazer o que seus tribunos no teriam ousado; no temiam que os litores quisessem represent-los.

    No entanto, para explicar como os tribunos algumas vezes o representavam, basta conceber como o governo representa o sobe-rano. No sendo a lei mais do que a declarao da vontade geral, claro que no poder legislativo, o povo no possa ser representado, mas tal coisa pode e deve acontecer no poder executivo, que no passa da fora aplicada lei. Tal fato leva-nos a ver que, se exami-narmos bem as coisas, muito poucas naes possuem leis. De qual-quer modo, certo que os tribunos, no tendo qualquer parcela do poder executivo, jamais puderam representar o povo romano ba-seando-se nos direitos de seus cargos, mas somente usurpando-os do Senado.

    Entre os gregos, tudo o que o povo tinha de fazer fazia-o por si mesmo: encontrava-se freqentemente reunido na praa. Residia num clima ameno, no era de modo algum vido; os escravos exe-cutavam seu trabalho e a sua grande ocupao era a liberdade. No possuindo mais as mesmas vantagens, como conservaramos os

    32 CURSO DE INTRODUO CINCIA POLTICA

    mesmos direitos? Vossos climas mais agressivos vos impem maiores necessidades; seis meses por ano, a praa pblica no suportvel; vossas lnguas insonoras no podem fazer-se ouvir ao ar livre; pre- feris o vosso ganho vossa liberdade, e temeis muito mais a misria do que a escravido.

    Qu! A liberdade s se mantm com o apoio da servido? Talvez. Os dois excessos se tocam. Tudo o que, de qualquer modo, no est na natureza apresenta seus inconvenientes; a sociedade civil mais do que todo o resto. Tais posies infelizes estabele-cem-se naqueles lugares em que s se pode conservar a prpria liber-dade a expensas da de outrem, e onde o cidado s pode ser perfeitamente livre quando o escravo extremamente escravo. Essa era a situao de Esparta. Quanto a vs, povos modernos, no tendes escravos, mas o sois; pagais a liberdade deles com a vossa. Acre-ditais certo enaltecer essa preferncia; nela encontro mais covardia do que humanidade.

    De modo algum entendo, por tudo isso, que se deve possuir escravos, nem que seja legtimo o direito de escravido, uma vez que demonstrei o contrrio; falo somente das razes pelas quais os povos modernos, que se crem livres, tm representantes, e por que os povos antigos no os tinham. De qualquer modo, no momento em que um povo se d representantes, no mais livre, no mais existe".

    Q. A. 6 Segundo John Locke, quais os objetivos da sociedade poltica e do governo?

    III

    A REPRESENTAO DO ESTADO LIBERAL

    l. Caractersticas do estado liberal O estado liberal fundamenta-se em quatro teses polticas

    bsicas: a tese da liberdade, a da igualdade poltica, a da proprie-dade e a da segurana. Diversos autores tm estudado as caracte-rsticas do modelo liberal, sendo que a maioria destaca nos tericos do liberalismo e, tambm, nas estruturas sociais dos estados liberais, o papel da propriedade. O direito de propriedade constitui a pedra angular da sociedade liberal, tendo assim um papel privilegiado cm relao s teses bsicas do liberalismo.

    O estado liberal veio definir-se em funo de uma organizao poltica especfica, na qual a representao constitui o canal de expresso da vontade dos cidados, que no se identificavam com todo o povo, mas com aqueles que tinham nveis mnimos de renda. A representao, ainda que limitada, seria instrumento prprio de organizao poltica da sociedade c encontraria seu lugar c funo dentro da estrutura do estado constitucional ou estado de direito.

    A noo de estado de direito ou estado constitucional, que in-fluenciou todo o pensamento brasileiro da poca da independncia.

    l O IO H RnWSF.XTAO W

    A soberania no pode ser representada pela mesma razo por que no pode ser alienada.

    "No momento em que um povo se d representantes, no mais livre, no mais existe.

  • surge dentro de um contexto socio-econmico especfico. O proble-ma consiste na elaborao de um modelo poltico e social que garanta aos indivduos a fruio de sua propriedade em paz e segu-rana. Mostraremos, adiante, como a predominncia da idia de propriedade sobre as de liberdade e igualdade veio desmentir os pressupostos tericos do estado liberal. Por enquanto, examinare-mos qual a estrutura poltica, imaginada para estabelecer a segu-rana, preservados os trs direitos fundamentais.

    O pensamento liberal defronta-se desde as suas primeiras ela-boraes com a questo da liberdade do indivduo e da ordem pblica. Desenvolvidos os seus fundamentos durante o sculo XVII, em poca de guerras internas e revolues, trouxe desde as suas primeiras manifestaes tericas uma anttese bsica: como garantir a ordem sem afetar a liberdade individual. Foi John Locke quem sistematizou as idias que constituiriam os fundamentos do estado liberal-constitucional, e que representariam para os fundadores do estado nacional brasileiro o ideal-tipo da monarquia constitucional.

    A argumentao de Locke baseia-se em alguns princpios e idias, que tm suas razes em uma viso da natureza humana, dos seus valores morais, da lei da natureza, comum a todos os homens, da obrigao moral dela decorrente e da funo do indivduo na sociedade poltica. No nvel institucional. Locke propunha uma organizao social e poltica que garantisse os princpios formulados na interpretao do homem e seus valores.

    Locke parte do pensamento comum poca, de que o estado de natureza, anterior existncia da sociedade, criou os homens de forma "livre, igual e independente" (John Locke, ob. cit.). O poder poltico seria legtimo na medida em que nascesse do consentimento dos indivduos, que transfeririam o direito individual de autogo-verno para o corpo social. A sociedade poltica formada, portanto, para assegurar a felicidade individual, que ser definida pela razo. O bem pblico dever, porm, ser definido em funo da proprie-dade: Como se define este triplo objetivo imposto pela lei da natureza, public good, safety, and peace. trs expresses que ten-dem a se confundir? Sempre em relao a um nico termo de referncia, a propriedade tomada em sentido muito amplo e filo-sfico considerada, ao mesmo tempo, como o modo de expresso concreta da pessoa humana e como sua manifestao externa, a propsito da qual nascem todos os conflitos de direito entre os homens e todos os estados de guerra" (R. Polin. 1960).

    A lei da natureza no explcita, no determina as regras prticas que iro distinguir o certo do errado, o justo do injusto. Locke vincula ao objeto da proteo da propriedade o estabeleci-mento de leis pelos homens a fim de que constituam o padro do "certo e do errado e a medida comum para decidir todas as con-trovrias entre eles". As leis positivas, livremente elaboradas pelos indivduos, devero explicitar os princpios da lei da natureza.

    Verificamos que a idia subjacente, que marcaria toda a teoria do contrato social a de que a sociedade poltica resulta do con-senso dos indivduos. Tornou-se, portanto, lugar comum a afir-mao de que o exerccio do poder por alguns indivduos resultava do consentimento da multido. Locke torna bastante claras essas idias em diversos trechos de sua obra clssica. Neste ponto que

    34 CURSO DE INTRODUO CINCIA POLTICA

    Locke vincula o estado natural de liberdade entre os homens e a usufruio da propriedade. Explicando como os filhos herdam dos pais mostra que a usufruiro da propriedade depender do consen-timento do filho s normas sociais aceitas pelo pai. Na sociedade o filho somente faz parte da sociedade poltica quando, consentindo em aceitar a organizao social, passa a ser proprietrio.

    A passagem da sociedade natural para a sociedade poltica ocorre quando os indivduos estabelecem uma relao de "poder, visando a preencher uma funo. Essa funo caracterizada em diversos trechos por Locke como um ajustamento da situao natu-ral, na qual o indivduo, embora livre, encontra-se sempre com medo e insegurana. O homem deixa o estado de natureza constituindo um Governo para preservao da propriedade. O poder, porm, dever ser estabelecido tendo em vista a lei da natureza. Para que a sociedade garanta a propriedade do indivduo necessrio que ele seja limitado pelo "bem pblico da sociedade. um poder que no tem outra finalidade a no ser a preservao, e por isso pode ter o direito de destruir, escravizar ou empobrecer os sditos" (Locke, ob. cit.).

    A diferena entre o poder absoluto e o poder arbitrrio esta-belecida, mostrando-se como este contrrio lei da natureza. O despotismo ser para Locke a forma de poder absoluto e arbitrrio. contra este tipo de poder que os liberais iro conceber o estado constitucional. A ordem legal constitui o elemento integrador do indivduo na sociedade e dever fixar os limites ao do governo, para que a vontade do governante no se torne a expresso de um interesse pessoal. A finalidade da sociedade civil a garantia da liberdade e da paz na fruio da propriedade. Quando os homens se renem para constituir uma sociedade, eles se incorporam em um "corpo poltico", no qual a "maioria tem direito de agir" (Locke, ob. cit.). a maioria que ir expressar a vontade do corpo pol-tico. O corpo poltico para subsistir institui um governo, que ir dirigi-lo. Locke atribui maioria os poderes necessrios para rea-lizar os objetivos da comunidade. Essa maioria, porm, no simplesmente a soma dos indivduos. No pensamento lockeano ela a maioria dos "homens livres", vale dizer, daqueles que consen-tiram em participar da sociedade poltica, ou dos proprietrios, tanto naturais (aqueles que se reuniram para defesa de suas pro-priedades), como posteriores (propriedades herdadas ou adqui-ridas).

    A democracia para Locke consiste no governo da maioria, que emprega o seu poder para fazei leis e execut-las. A sua concepo de democracia compreende uma tcnica de governo, ao lado da oligarquia e da monarquia, no tendo a conotao social que o termo receberia depois da Revoluo Francesa. A tcnica de gover-no no ser desenvolvida por Locke em toda a sua plenitude, sendo Montesquieu o artfice jurdico do estado liberal. Somente no pensador francs vamos encontrar juridicamente justificada a sepa-rao de poderes, como a expresso institucional das funes polticas diferenciadas, assinaladas por Locke. Nesta diferenciao Locke enfatiza, inclusive, a predominncia do poder legislativo. O proble-ma fundamental de Locke ser, portanto, no a formalizao do poder, mas o emprego da fora soberana do governo dentro de limites legalmente definidos. Do ponto de vista conceitual o limite

    VOTO E REPRESENTAO >> 35

  • ao poder encontra sua origem na obrigao moral de que ningum pode renunciar prpria liberdade. O homem nasce possuindo dois direitos naturais: o direito de liberdade individual e o direito de propriedade: "Em uma primeira abordagem, teramos imagi-nado que Locke, pai do liberalismo moderno, tivesse colocado limites estreitos e explcitos ao poder soberano, em relao aos quais todo abuso de poder e toda arbitrariedade seriam fceis de definir, julgar e refrear. Poderamos esperar que instituies polticas, capazes de limitao c compensao mtua, tivessem sido imaginadas. Cons-tatamos que nada existe e esta decepo talvez explique certas inter-pretaes antiliberais de sua doutrina..." (R. Polin, 1960).

    Verificamos que, em ltima anlise, Locke distingue, numa primeira etapa, o problema da liberdade do problema da segu-rana, para depois fazer com que uma dependa da outra. A liber-dade, escreveria Montesquieu, consiste na "tranqilidade espiritual que provm da opinio que cada um tem de sua segurana". O bem pblico identificado com a propriedade condio sine qua para o exerccio da liberdade. Da a nfase dada por Locke necessidade de fortalecimento do governo, como rgo executor das leis e, por-tanto, garantidor do bem pblico. Esta dimenso do pensamento liberal, conseqncia da antinomia entre liberdade e propriedade, ir explicar a nfase encontrada em diversos pensamentos liberais no fortalecimento do governo para a defesa do bem pblico.

    O prprio Locke tornou bastante explcita esta componente. Basta comparar sua primeira obra poltica, Civil Magistrate com o Second Treatise para constatarmos que a ameaa estabilidade do poder constitua um perigo a ser enfrentado por um governo forte: "No ser a fora do poder governante mais necessria do que peri-gosa, em ocasies na qual empregada contra a multido, to im-paciente como o mar diante do controle, e cujas tempestades e inun-daes no podem ser reguladas?... A quem devemos nos sub-meter? queles que as Escrituras chamam de deuses, ou queles que os homens de saber sempre acharam e por isso chamam de animais?" (P. Laslett, 1965). Mesmo na formulao primitiva do seu pensamento poltico, marcado pelos meses de incerteza entre a queda de Cromwell e a Restaurao dos Stuarts, Locke exigia que essa autoridade forte, apta a manter os homens no estado de socie-dade poltica, salvando-os do estado de guerra, deveria ser uma autoridade legal. A segurana da nao nesses tempos de crise e revolta seria mantida na medida em que as leis fossem preser-vadas e regulassem a utilizao da fora pela autoridade.

    Neste texto original e no publicado, Locke, como assinala Raymord Polin, aponta a fidelidade liberdade de conscincia, como o campo onde o governo nada pode fazer. Locke afirma, inclusive, inclusive que todas as leis feitas pela autoridade so justas desde que regulem a ao e no o pensamento. Deve-se, portanto, en-tender "a funo da autoridade na sociedade liberal dentro de um arqutipo mental. A autoridade existe para preservar a liberdade e a propriedade do indivduo, regulando o comportamento deste de acordo com um sistema de leis; as leis, por sua vez, constituem a expresso jurdica da vontade de homens livres expressa atravs do poder legislativo.

    36 CURSO DE INTRODUO CINCIA POLTICA

    O prprio controle da utilizao do poder pelo governante regulado concretamente no Second Treatise. Quem dever ser o juiz para decidir se o prncipe ou o legislativo age de forma contrria confiana nele depositada? "O Povo deve ser o juiz". Isto por-que o povo o depositrio originrio do poder de autogovernar-se e conserva este poder ainda que delegado. Ao transmitir para o governante o poder, conferindo-lhe autoridade para dirigir a socie-dade poltica, ele poder necessariamente retirar a sua confiana no governante, quando este no permanecer fiel ao bem pblico.

    A teoria da resistncia legtima ao poder soberano desenvolvida por Locke receberia, porm, um tratamento diferente no pensa-mento revolucionrio francs. A idia de democracia irrompe na Revoluo Francesa sem as barreiras morais e institucionais elabo-radas por Locke e Montesquieu. Enquanto no modelo liberal o homem usufrui de certos direitos e liberdades porque participa de uma determinada sociedade poltica, a Revoluo Francesa procla-ma que todos os homens, pelo fato de terem nascido, so detentores de direitos.

    O direito de autogoverno, para Locke, insere-se entre aqueles usufrudos dentro da sociedade poltica. A interpretao ampla c radical dada pelos revolucionrios de 1789 representou uma pro-funda mudana no liberalismo. "Quando os homens da Revoluo Francesa diziam que todo o poder residia no povo, eles entendiam por poder uma fora natural, cuja fonte e origem encontra-se fora do mundo poltico, uma fora que por sua prpria violncia foi libertada pela revoluo e como um furaco varreu todas as insti-tuies do ancien rgime" (H. Arendt, 1965).

    Q. A. 7 Na fase inicial do estado liberal, como era a concepo de governo democrtico?

    Q. A. 8 Para John Locke, que funo deveria ter a autoridade e as leis na sociedade liberal?

    2. Estado liberal e democracia O problema central que coloca a representao poltica no

    estado liberal a sua limitao. Enquanto o liberalismo desde o princpio proclama o respeito dos direitos individuais a todos os membros da sociedade poltica, tambm verdade que nos seus primrdios estabelece restries ao direito do povo, considerado como um todo, de governar-se a si mesmo. A primeira forma his-trica do liberalismo identifica-se com a garantia dos direito; do indivduo em relao ao estado; a segunda corresponde ao processo de democratizao do estado liberal que ocorre a partir da segunda metade do sculo XIX.

    A democracia aparece como idia-fora no cenrio poltico oci-dental (durante a Revoluo Francesa. Identifica-se o ideal demo-

    VOTO E REPRESENTAO 37

  • crtico para pensadores desta poca com a redistribuio violenta dos valores e dos bens sociais, retirando do indivduo todo direito autnomo e transferindo-o para a coletividade. O liberalismo em sua primeira, fase entende o princpio da igualdade como frmula jurdica, que tendia a ordenar o progresso social em funo de meios institucionalizados e legais, respeitando os direitos e reconhecendo os frutos individuais da liberdade.

    Podemos ento dizer que a primeira etapa da histria do libe-ralismo coincide com o entendimento de que a sociedade poltica deve ser dirigida atravs de representantes dos "mais racionais", na expresso de John Locke. E os "mais racionais" so os que tm maiores interesses a proteger, isto , os proprietrios. Temos em Benjamin Constant o desenvolvimento desta teoria restritiva da re-presentao poltica. O representante ser eleito pelo segmento so-cial mais consciente, ainda que represente todo o povo e busque o bem comum da coletividade. o que podemos chamar de teoria clssica do liberalismo, onde a representao escolhida atravs do sufrgio restrito ou voto censitrio.

    A evoluo histrica e o progresso social e econmico das socie-dades liberais fizeram com que o mercado de bens exigisse um maior nmero de compradores e que, em virtude das prprias condies de produo e distribuio dos bens da indstria, fosse necessrio um mercado consumidor economicamente forte. Assim como no incio da idade moderna a burguesia, em funo de sua crescente participao na produo de bens para a sociedade, exige da monar-quia absoluta uma maior participao na direo dos negcios p-blicos, tambm, durante o sculo XIX, a massa de no-propriet-rios, em razo de seu papel de consumidores, reivindica uma maior participao no governo. o que se chama o processo de democra-tizao do estado liberal, institucionalizado atravs do sufrgio amplo.

    3. TEXTOS 3.1 Benjamin Constant, Prncipes de politique, cap. VI, "So-

    bre as condies da propriedade". "Nossa constituio no se pronuncia sobre os requisitos de

    propriedade necessrios para o exerccio dos direitos polticos, pois que estes direitos confiados a colgios eleitorais esto, por isso mes-mo, nas mos dos proprietrios. Mas se substitussemos estes colgios por eleies diretas, os requisitos de propriedade torna-se-iam in-dispensveis.

    Nenhum povo considerou como membros do Estado a todos os indivduos residentes, no importa de que maneira, em seu terri-trio. No tratamos aqui da distino que separava na antigidade os escravos dos homens livres ou, modernamente, nobres de plebeus. A democracia mais absoluta estabelece duas classes: em uma rele-gados estrangeiros e aqueles que no atingiram a idade prescrita por lei para exercer os direitos da cidadania; a outra constituda de homens que atingiram esta idade e nascidos neste territrio. H portanto um princpio segundo o qual, entre indivduos agru-pados em um territrio, existem os que so membros do Estado e outros que no o so.

    38 CURSO DE INTRODUO CINCIA POLTICA

    Este princpio que, para ser membro de uma associao, necessrio um certo grau de sabedoria e um interesse comum entre os membros desta associao. Os homens abaixo da idade legal no se supe possurem este grau de discernimento; no se supe que os estrangeiros se comportem em funo deste interesse. A prova est, em que, os primeiros, ao atingirem a idade determinada, por lei, tornam-se membros da associao poltica, e que os segundos tornam-se por suas residncias, propriedades ou relaes. de se supor que estas coisas do aos primeiros sabedoria e aos outros o interesse requisitado.

    Mas este princpio tem necessidade de uma extenso posterior. Em nossas sociedades atuais, o nascer no pas, e a maioridade, no so suficientes para dar aos homens as qualidades prprias ao exerccio dos direitos de cidadania. Aqueles cuja indigncia os coloca em eterna dependncia e que esto por ela condenados aos trabalhos cotidianos no so nem mais esclarecidos do que as crian-as sobre os negcios pblicos, nem mais interessados do que os estrangeiros quanto prosperidade nacional, da qual no conhe-cem os elementos e da qual no participam, seno indiretamente das vantagens.

    No quero com isto menosprezar a classe trabalhadora. Esta classe no menos patriota do que as outras. Est sempre pronta aos sacrifcios mais hericos, e seu devotamento portanto mais admirvel porquanto no recompensado nem pela fortuna nem pela glria. Mas um, eu penso, o patriotismo que encoraja a morrer por seu pas, e outro o que torna capaz de bem conhecer seus interesses. necessrio, portanto, condio a mais do que o nascimento e a idade prescrita por lei. Esta condio o tempo disponvel aquisio da sabedoria, retido de julgamento. So-mente a propriedade assegura este tempo disponvel: s a proprie-dade torna os homens capazes de exercer os direitos polticos.

    Podemos dizer que o estado atual da sociedade, misturando, embaralhando e confundindo de mil maneiras os proprietrios e no-proprietrios, de uma parte d aos segundos os mesmos in-teresses e meios que aos primeiros; que o homem que trabalha no tem menos que o homem que possui necessidade de repouso c se-gurana; que os proprietrios no so de direito e de fato seno distribuidores das riquezas comuns entre todos os indivduos, que melhor para todos, que a ordem e a paz favoream o desenvolvi-mento de todas as facilidades e de todos os meios individuais.

    Estes raciocnios tm o defeito de muito provar. Se fossem concludos, no haveria motivo para negar aos estrangeiros os di-reitos da cidadania. As relaes comerciais da Europa fazem com que seja do interesse de grande maioria europia que a traqili-dade e a felicidade reinem em todos os pases. O desmoronamento de um imprio, qualquer que seja, to funesto aos estrangeiros que, atravs de suas especulaes financeiras, ligaram suas fortunas a este imprio quanto este desmoronamento pode ser para seus prprios habitantes, exceo feita aos proprietrios. Os fatos o demonstram. Durante as guerras mais cruis, os negociantes de um pas fazem seguidamente votos e algumas vezes esforos, para que a nao inimiga no seja destruda. Entretanto uma considerao

    VOTO E REPRESENTAO 39

  • to vaga no parecer suficiente para elevar os estrangeiros ao rl de cidados.

    Anotem que o objetivo necessrio dos no-proprietrios che-gar propriedade: todos os meios que lhes so dados so empre-gados para esse fim. Se liberdade de pensar e agir que vocs lhes devem juntarem-se os direitos polticos que vocs no lhes de-vem, esses direitos nas mos de um maior nmero serviro infali-velmente para invadir a propriedade. Eles tomaro este voto irre-gular em vez de seguir o voto natural, o trabalho: isto ser para eles uma fonte de corrupo, para o Estado uma fonte de desordem. Um escritor clebre chamou a ateno para o fato de que to logo os no-proprietrios tm direitos polticos, das trs coisas uma acon-tece: ou eles recebem incentivo deles prprios e ento destroem a sociedade; ou eles recebem-no do homem ou homens no poder, tor-nando-se instrumentos de tirania; ou eles recebem-no dos aspiran-tes ao poder, tornando-se instrumentos de faco. necessrio en-to o requisito de propriedade; tanto para o eleitor como para os elegveis.

    Em todos os pases que tm assemblias representativas, in-dispensvel que estas assemblias, qualquer que seja sua organiza-o posterior, sejam compostas por proprietrios. Um indivduo, com um mrito esfuziante, pode cativar o povo; mas as corporaes tm necessidade, para manter a confiana, de ter interesses eviden-temente conformes a seus deveres. Uma nao supe sempre que os homens reunidos so guiados por seus interesses. Ela cr tam-bem que o amor ordem, justia e conservao ter maioria entre os proprietrios. Eles no so teis somente pelas qualidades que lhes so prprias, mas ainda pelas qualidades a eles atribudas pela prudncia que supomos terem e pelos preconceitos favorveis que inspiram. Coloquemos entre os legisladores no-proprietrios, por mais bem intencionados que sejam, e a inquietude dos pro-prietrios paralisar todas as suas medidas. As leis mais sbias se-ro suspeitas e conseqentemente desobedecidas, enquanto que a organizao oposta teria conciliado o assentimento popular mesmo para um governo defeituoso para alguns.

    Durante nossa revoluo, os proprietrios concorreram, ver-dade, com os no-proprietrios na feitura de leis absurdas e espo-liadoras. Isto porque os proprietrios tinham medo dos no-pro-prietrios investidos de poder. Eles queriam se fazer perdoar suas propriedades. A preocupao de perder o que tm torna-os pusi-lnimes e imitam ento o furor daqueles que querem adquirir o que no tm. As faltas e os crimes dos proprietrios foram tima conseqncia da influncia dos no-proprietrios.

    Mas quais os requisitos de propriedade que se pode estabelecer eqitativamente?

    Uma propriedade pede ser to restritiva que aquele que a possui s seja proprietrio em aparncia. Aquele que no tem na renda territorial, diz um escritor que tratou muito bem desse as-sunto, a soma suficiente para viver durante o ano sem ser obrigado a trabalhar para outro no inteiramente proprietrio. Ele se encontra quanto poro de propriedade que lhe falta, na classe assalariada. Os proprietrios so donos de sua existncia, pois po-dem se recusar a trabalhar. Somente aquele que tem renda neces-

    sria para existir independentemente de toda vontade alheia pode exercer direitos da cidadania. Um requisito de propriedade in-ferior ilusrio; um requisito de propriedade mais elevado in-justo.

    Eu penso entretanto que devemos reconhecer como proprietrio aquele que tem h muito sob contrato uma fazenda com rendimen-tos suficientes; no estado atual das propriedades na Frana, o fa-zendeiro que no pode ser expulso mais realmente proprietrio do que o citadino que no o seno em aparncia do bem dado em contrato. justo postanto dar os direitos a um e a outro. Se argumentarem que ao fim do contrato o fazendeiro perde sua qua-lidade de proprietrio, responderei que de mil maneiras cada pro-prietrio pode, de um dia para outro, perder sua propriedade.

    .. .Mas existem consideraes da maior importncia a fazer. As profisses liberais precisam, talvez mais que as outras, estarem li-gadas propriedade para que sua influncia no seja nefasta nas discusses polticas. Estas profisses, to recomendveis por vrios motivos, no contam entre suas vantagens o levar em suas idias esta preciso prtica necessria para se pronunciar sobre os inte-resses positivos dos homens. Vimos, durante nossa revoluo, lite-ratos, matemticos, qumicos darem opinies as mais exageradas, ainda que sobre outros assuntos se mostrassem claros ou estimu-lantes; mas eles viveram longe dos homens; uns acostumados a se abandonarem sua imaginao; outros a s se aterem s evidncias rigorosas; os terceiros a ver a natureza, na reproduo dos seres, se antecipar destruio. Eles chegaram por caminhos diferentes ao mesmo resultado, o de desdenhar as consideraes tiradas dos fatos, desprezar o mundo real e sensvel e raciocinar sobre o estado social como entusiastas, sobre as paixes como gemetras, sobre as dores humanas como fsicos. []

    Se estes erros foram cometidos por homens superiores, quais no sero os equvocos dos candidatos subalternos, de infelizes pre-tendentes? Urge pr freio aos amores prprios feridos, s vaidades ofendidas, a todas estas causas de amargor, de agitaro e de des-contentamento contra uma sociedade na qual nos encontramos des-locados, de raiva contra os homens que parecem injustos aprecia-dores. Todos os trabalhos intelectuais so sem dvida honorveis: todos devem ser respeitados. Nosso primeiro tributo, nossa fa-culdade distintiva, o pensamento. Todo aquele que o emprega tem direito ao nosso respeito, independentemente do sucesso. Todo aquele que o ultraja ou o repele abdica do nome de homem e se coloca fora da espcie humana. Enquanto cada cincia d ao esp-rito daquele que a cultiva uma orientao exclusiva que se torna perigosa nos assuntos polticos, a menos que seja contrabalanada. Ora, o contrapeso s pode ser encontrado na propriedade. Somente ela estabelece entre os homens laos uniformes. Ela os pe em guarda contra o sacrifcio imprudente da felicidade e da tranqi-lidade dos outros, envolvendo neste sacrifcio seu prprio bem-estar. e obrigando-os a calcularem por si mesmos. Ela os faz descer do alto de suas teorias quimricas e exageros estabelecendo entre eles e o resto dos membros da associao relacionamentos numerosos e interesses comuns. []

    40 CURSO DE INTRODUO CINCIA POLTICA VOTO E REPRESENTAO 41

  • E no consideremos esta precauo til somente na manuten-o da ordem; ela o tambm para a liberdade. Por injunes bizarras, as cincias que, nas agitaes polticas, levam algumas vezes os homens a idias de liberdade impossveis, os levam outras vezes a serem indiferentes e servis sob o despotismo. Os sbios propriamente ditos so raramente abalados pelo poder, mesmo in-justo. Odeiam somente o pensamento. Amam bastante a cincia como meio para os governantes, e as belas-artes como distrao para os governados. Assim, a carreira dos homens cujos estudos no tm nenhuma relao com os interesses ativos da vida lhes preserva as humilhaes de uma autoridade que no os v nunca como rivais. Indignam-se, de hbito, muito pouco dos abusos de poder que s pesam sobre outras classes".

    3.2 John Stuart Mill, Consideraes sobre o Governo Repre-sentativo, cap. IV, "Sob que condies sociais o governo representa-tivo inaplicvel".

    "Existem naes nas quais a paixo para governar as outras to mais forte do que o desejo de independncia pessoal que, simples aparncia de uma, encontram-se prontas a sacrificar tudo na outra. Cada indivduo deseja, como soldados individuais num exrcito, abdicar de sua liberdade pessoal de ao em favor do seu general, desde que o exrcito seja conquistador e vitorioso, e ele puder orgulhar-se de ser membro do grupo conquistador, ainda que a idia de que ele, pessoalmente, participe de alguma forma na dominao exercida sobre os conquistados seja uma iluso. Um governo cuidadosamente limitado em seus poderes e atribui-es, esperando-se que no se imiscua e que deixe as coisas se-guirem sem que assuma o papel de guardio ou diretor, no est de acordo com o gosto de tal povo. A seu ver os detentores da autoridade nunca a tem demais, desde que a prpria autoridade esteja aberta disputa geral. Um indivduo mdio entre eles prefere mais a oportunidade, ainda que distante ou improvvel, de exercer algum poder sobre seus concidados do que a certeza, para si e para os outros, de no ter poder desnecessrio exercido sobre eles. Essas so as caractersticas de um povo de caadores de lugares onde somente a igualdade respeitada, mas no a li-berdade; onde as disputas dos partidos polticos so somente lutas para decidir se o poder de imiscuir-se em tudo deve pertencer a uma classe ou a outra, talvez exclusivamente a um punhado de homens (pblicos sob outro; onde a idia aceita de democracia apenas a, de cargos acessveis disputa de todos em vez de poucos; onde, quanto mais populares as instituies, mais inumerveis so os cargos criados, e mais monstruoso o supergoverno exercido por todos sobre cada um, e pelo executivo sobre todos. Seria to injusto quanto mesquinho apontar este quadro, ou qualquer que dele se aproximasse, como sendo uma descrio objetiva do povo francs. No entanto, o grau que possui deste tipo de ca-rter provocou a queda do governo representativo, atravs de uma classe limitada, por excesso de corrupo, e o atentado ao governo representativo por toda a populao masculina, terminando por permitir que um homem tivesse o poder de enviar qualquer um, sem julgamento, para Lamlessa ou Caiena, desde que permitisse que todos acreditassem no estarem excludos da possibilidade de usufruir de seus favores. A marca do carter do povo deste

    42 CURSO DE INTRODUO A CINCIA POLTICA

    pas, que o prepara para o governo representativo, [Inglaterra] precisamente ter ele quase totalmente a caracterstica contrria. Eles suspeitam de qualquer tentativa de exerccio do poder sobre eles que no seja sancionada pelo longo uso e por sua prpria opinio de direito; mas eles no se preocupam em exercer o poder sobre os outros, no tendo a menor simpatia pela paixo de governar, en-quanto compreendem perfeitamente os motivos de interesse indi-vidual em virtude dos quais aquela funo desejada. Eles, preferem que ela seja exercida por aqueles que a detm no por quererem, mas em virtude da sua posio social. Se os estrangeiros compreendessem isto, teriam explicao para algumas das contradies aparentes nos sentimentos polticos dos ingleses; sua determinada disponibilidade a deixar-se governar pelas classes superiores, junto com to pouca subservincia a elas; seu gosto em resistir autoridade quando ela ultrapassa certos limites presentes ou a determinao com que recordam a seus governantes que sero governados somente do modo com que concordarem. A disputa de cargos, portanto, uma forma de ambio de que os ingleses, considerados nacionalmente, so quase desprovidos. Ex-cluindo-se as poucas famlias ou parentes que esto em contato direto com o funcionalismo oficial, o juzo dos ingleses a respeito do progresso na vida toma uma direo diferente a do sucesso nos negcios ou em uma profisso. Eles tm o mais profundo desprezo pela simples disputa por cargos por parte de partidos polticos ou indivduos; e existem poucas coisas a que tenham maior averso do que a multiplicao de empregos pblicos. Isto, no entanto, sempre popular nas naes dirigidas por burocracias no continente, que preferem aumentar os impostos do que dimi-nuir a menor oportunidade de um emprego para si ou seus pa-rentes, e onde o grito de economia nunca significa a abolio de empregos, mas a reduo dos salrios dos que so muito altos para que o cidado comum tenha qualquer oportunidade de ser bene-ficiado por eles."

    Q. A. 9 Em que se baseava o sistema representativo do estado liberal em sua fase inicial c quais as causas de sua crise?

    Q. A. 10 Quais as justificativas apresentadas por Benjamin Constant sobre a necessidade do voto censitrio?

    IV

    SISTEMAS ELEITORAIS E REPRESENTAO Os sistemas eleitorais consistem no conjunto de normas legais

    que estabelece a relao entre os votos da populao e o nmero de representantes. O sistema partidrio nmero e juno dos partidos polticos dentro do sistema poltico refere-se unicamente ao nmero de partidos polticos que disputam as eleies. Os par-tidos polticos so grupos sociais, como ensina a Cincia Poltica.

    VOTO E REPRESENTAO 43

  • que se caracterizam por articular e agregar interesses, advogar va-lores, orientaes e atitudes polticas, recrutar cidados para a ati-vidade poltica e legitimar o sistema poltico. Nos estados mo-dernos, o sistema representativo instrumentalizado atravs de partidos polticos que disputam eleies. Isto, no entanto, no quer dizer que a representao poltica somente pode ser exercida atravs dos partidos. Na verdade, os primeiros tericos do estado representativo moderno consideravam o partido poltico como sendo desagregador da sociedade poltica, sendo que a representa-o poltica poderia ser feita de forma direta vinculando eleitos a eleitores.

    A questo com que vamos nos ocupar refere-se, assim, aos sistemas implementadores da representao poltica, ou seja, os sis-temas eleitorais, que usualmente tm nos partidos polticos seus modos de expresso. Ao estudar o sistema eleitoral devemos ana-lisar trs temas: os votantes e os candidatos; os mtodos eleitorais e a administrao das eleies.

    l. Os votantes e os candidatos Os Cdigos eleitorais lei atravs da qual so definidas

    as normas a respeito do sistema eleitoral e do sistema parti-drio tratam de assuntos (qualificao e desqualificao dos vontantes, mtodo das eleies, diviso do eleitorado em zonas eleitorais, preveno da corrupo e ameaa liberdade do eleitor, os procedimentos judiciais e administrativos necessrios ao cum-primento da lei eleitoral) que se relacionam intimamente. No podemos analisar os sistemas eleitorais considerando de forma in-dependente os diferentes componentes do sistema eleitoral. Entre esses componentes, no entanto, podemos dizer que se destacam como o