ÉTICA - COMO PRINCIPIO DA PRATICA PEDAGOGICA

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89 Revista de divulgação técnico-científica do ICPG Vol. 2 n. 7 - out./dez./2004 ISSN 1807-2836 A ÉTICA COMO PRINCÍPIO DA PRÁTICA PEDAGÓGICA Sandra Pereira Eduardo José Legal Curso de Especialização em Psicopedagogia Resumo A educação e a ética caminham juntas na formação de seres humanos livres, responsáveis, fraternos, solidários, em suas inter- relações mútuas e com a natureza. Assim como a educação formal, o comportamento ético também se constrói concomitantemente com o desenvolvimento intelectual da humanidade no seu processo de busca do conhecimento. A educação (formal ou não) é o meio de construção e reconstrução de valores e normas. A ética é fundamental nas relações de aprendizagem, pois, sendo uma conduta que permeia esses processos, à medida que o aprendente desenvolve conhecimento, aprende as regras e normas implícitas nele. Este artigo tenta contribuir para a reflexão social e pedagógica sobre os princípios éticos de vida e sua importância na formação do sujeito. 1. INTRODUÇÃO A conduta ética é uma conseqüência de um pensamento ético e isso implica considerar o bem-estar das outras pessoas, começando pelas mais próximas com as quais convivemos em nosso dia-a-dia. Agir eticamente é perceber que somos membros de uma comunidade, e não indivíduos isolados. Assim como uma estrela não brilha se não houver aurora, assim também uma ética não emerge se não houver previamente uma ambiência que permite sua formulação. O ethos assume então seu caráter originário de habitat humano, aquela parte do mundo que foi domesticada, amada, originada para ser a casa do ser humano, onde reencontra um útero protetor. Essa ambiência é formada pela ternura e pelo cuidado (BOFF, 2000, p.117). Vivemos em um contexto pluralista. Há uma diversidade étnica e cultural bastante conhecida em nosso país. Neste contexto, a escola é, também, um lugar para o diálogo, construção com o diferente (opostos), de aprendizagem sobre a convivência humana, do respeito. É um local rico em oportunidades para que os educandos trilhem o caminho da ética e da moral respeitando essa diversidade cultural. Nossa postura como educadores deve se pautar em uma consciência ética que se transmita por meio do nosso fazer profissional. Sabendo que a conduta ética se constrói durante as relações com seus pares, família e instituições, torna-se imprescindível que o trabalho do educador seja guiado pelos preceitos éticos. A escola é o primeiro espaço público que a criança vivencia e cuja organização é distinta da família. Novas experiências sociais colaboram para a construção moral. Neste sentido, a escola também participa, e a família não é a única responsável pela educação moral e ética das crianças e adolescentes. Todos nós queremos que nossas vidas sejam dignas e respeitadas. A lógica da transversalidade permite que questões éticas sejam abordadas pelos educadores com a colaboração das várias áreas do desenvolvimento do conhecimento. Todas as disciplinas escolares, em seus conteúdos, podem possibilitar a reflexão mediadora à luz de diferentes pontos de vista (situações, conflitos, negociações, etc.). Em História, por exemplo, as guerras podem ser exploradas como oportunidades para debater os interesses em jogo; em Português, os modos culto ou popular de falar nossa língua, assim como os vários sotaques, podem servir de ponte para a discussão das diferenças culturais e regionais; em Ciências, as questões ambientais, os cuidados com a saúde, etc. O presente artigo foi articulado em seis etapas. A primeira traz o entendimento sobre ética e moral enquanto palavra propriamente dita: Moral versus Lei e ética, em uma reflexão sobre a ação humana; uma síntese de idéias éticas numa visão dos grandes pensadores. A segunda etapa discorre sobre a importância do comportamento ético na sociedade e sua relação com as representações culturais. A terceira etapa apresenta a educação como o ato mediador e propiciador dos valores humanos e humanizadores e o professor como agente desse processo. A quarta etapa discute a importância do comportamento ético do educador na escola e na sociedade, ou seja, do modelo educacional. A quinta etapa reflete sobre a importância da escola no processo do desenvolvimento ético e moral dos aprendentes, possibilitando a formação de seres humanos mais críticos. Por fim, nas considerações finais, apresentamos sugestões sobre a postura que deve tomar o educador, trabalhando os valores éticos e morais na sua pluralidade cultural. 2. ÉTICA E MORAL: DISTINÇÕES NECESSÁRIAS Definir e compreender o que é ética se apresentam como um desafio que acompanha a humanidade desde que surgiu a preocupação com o bem-estar e a sobrevivência dos grupos organizados que ocupavam o planeta (SANTOS, 2001). Ética é tema de estudo e trabalho dos pesquisadores e estudiosos das relações e da organização humana no que se refere à manutenção e propagação da vida. Trata-se de um conhecimento que perpassa todas as ações humanas e que interfere diretamente no futuro do nosso planeta. A definição grega da palavra ética encontra-se em ethos, que quer dizer costume, disposição, hábito, e no latim, mos (moris), significando vontade, costume, uso, regra, teoria da

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89Revista de divulgaçãotécnico-científica do ICPG

Vol. 2 n. 7 - out./dez./2004ISSN 1807-2836

A ÉTICA COMO PRINCÍPIODA PRÁTICA PEDAGÓGICA

Sandra PereiraEduardo José Legal

Curso de Especialização em Psicopedagogia

Resumo

A educação e a ética caminham juntas na formação de seres humanos livres, responsáveis, fraternos, solidários, em suas inter-relações mútuas e com a natureza. Assim como a educação formal, o comportamento ético também se constrói concomitantementecom o desenvolvimento intelectual da humanidade no seu processo de busca do conhecimento. A educação (formal ou não) é omeio de construção e reconstrução de valores e normas. A ética é fundamental nas relações de aprendizagem, pois, sendo umaconduta que permeia esses processos, à medida que o aprendente desenvolve conhecimento, aprende as regras e normas implícitasnele. Este artigo tenta contribuir para a reflexão social e pedagógica sobre os princípios éticos de vida e sua importância naformação do sujeito.

1. INTRODUÇÃO

A conduta ética é uma conseqüência de um pensamentoético e isso implica considerar o bem-estar das outras pessoas,começando pelas mais próximas com as quais convivemos emnosso dia-a-dia. Agir eticamente é perceber que somos membrosde uma comunidade, e não indivíduos isolados.

Assim como uma estrela não brilha se não houver aurora, assimtambém uma ética não emerge se não houver previamente umaambiência que permite sua formulação. O ethos assume então seucaráter originário de habitat humano, aquela parte do mundo quefoi domesticada, amada, originada para ser a casa do ser humano,onde reencontra um útero protetor. Essa ambiência é formadapela ternura e pelo cuidado (BOFF, 2000, p.117).

Vivemos em um contexto pluralista. Há uma diversidadeétnica e cultural bastante conhecida em nosso país. Nestecontexto, a escola é, também, um lugar para o diálogo, construçãocom o diferente (opostos), de aprendizagem sobre a convivênciahumana, do respeito. É um local rico em oportunidades para queos educandos trilhem o caminho da ética e da moral respeitandoessa diversidade cultural.

Nossa postura como educadores deve se pautar em umaconsciência ética que se transmita por meio do nosso fazerprofissional. Sabendo que a conduta ética se constrói durante asrelações com seus pares, família e instituições, torna-seimprescindível que o trabalho do educador seja guiado pelospreceitos éticos.

A escola é o primeiro espaço público que a criança vivenciae cuja organização é distinta da família. Novas experiências sociaiscolaboram para a construção moral. Neste sentido, a escolatambém participa, e a família não é a única responsável pelaeducação moral e ética das crianças e adolescentes.

Todos nós queremos que nossas vidas sejam dignas erespeitadas. A lógica da transversalidade permite que questõeséticas sejam abordadas pelos educadores com a colaboração dasvárias áreas do desenvolvimento do conhecimento. Todas asdisciplinas escolares, em seus conteúdos, podem possibilitar areflexão mediadora à luz de diferentes pontos de vista (situações,conflitos, negociações, etc.). Em História, por exemplo, as guerras

podem ser exploradas como oportunidades para debater osinteresses em jogo; em Português, os modos culto ou popular defalar nossa língua, assim como os vários sotaques, podem servirde ponte para a discussão das diferenças culturais e regionais;em Ciências, as questões ambientais, os cuidados com a saúde,etc.

O presente artigo foi articulado em seis etapas. A primeiratraz o entendimento sobre ética e moral enquanto palavrapropriamente dita: Moral versus Lei e ética, em uma reflexão sobrea ação humana; uma síntese de idéias éticas numa visão dosgrandes pensadores. A segunda etapa discorre sobre aimportância do comportamento ético na sociedade e sua relaçãocom as representações culturais. A terceira etapa apresenta aeducação como o ato mediador e propiciador dos valores humanose humanizadores e o professor como agente desse processo. Aquarta etapa discute a importância do comportamento ético doeducador na escola e na sociedade, ou seja, do modeloeducacional. A quinta etapa reflete sobre a importância da escolano processo do desenvolvimento ético e moral dos aprendentes,possibilitando a formação de seres humanos mais críticos. Porfim, nas considerações finais, apresentamos sugestões sobre apostura que deve tomar o educador, trabalhando os valores éticose morais na sua pluralidade cultural.

2. ÉTICA E MORAL: DISTINÇÕES NECESSÁRIAS

Definir e compreender o que é ética se apresentam comoum desafio que acompanha a humanidade desde que surgiu apreocupação com o bem-estar e a sobrevivência dos gruposorganizados que ocupavam o planeta (SANTOS, 2001).

Ética é tema de estudo e trabalho dos pesquisadores eestudiosos das relações e da organização humana no que serefere à manutenção e propagação da vida. Trata-se de umconhecimento que perpassa todas as ações humanas e queinterfere diretamente no futuro do nosso planeta.

A definição grega da palavra ética encontra-se em ethos,que quer dizer costume, disposição, hábito, e no latim, mos(moris), significando vontade, costume, uso, regra, teoria da

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natureza do bem e como ele pode ser alcançado. “A ética é ateoria ou a ciência do comportamento moral dos homens emsociedade, ou seja, é ciência de uma forma específica decomportamento humano” (VASQUEZ, 2000, p.23).

A ética vai além da obediência às regras e normas sociais.Atua no campo dos conflitos das relações humanas. Nãosoluciona questões polêmicas, mas seu objetivo é justamenteinvestigar, procurar a reflexão. A ética pressupõe uma buscaracional de como as pessoas devem viver para ter uma vida boa.(SANTOS. 2001)

O ser humano, de natureza organizativa, está em buscapermanente de satisfação, prazer e bem-estar. Insatisfeito com aslimitações impostas pela vida, norteada pelas característicasambientais e por sua própria forma de encarar e lidar com osdesafios com os quais se defronta a cada dia, o homem constrói,de forma ininterrupta e inacabada, uma sabedoria.

Todas as organizações humanas têm suas leis que senorteiam também pelo ethos, como uma forma de vida melhorpara elas. Boff (2000), ao definir ética, insiste ser necessário queos humanos se voltem ao sentido originário da ética e damoralidade.

A ética pertence à natureza humana, presente em cadapessoa, enquanto a moral são as distintas formas de expressãocultural e histórica da forma como viabilizam a proposta da ética.

A ética existe prioritariamente no singular, uma vez quepertence à natureza humana, presente diferentemente em cadapessoa. Assim, a ética é diferente para cada um e é dependentedo local onde ocorre. Fazer o bem implica, necessariamente, comoe para quem. A moral, então, determina o modo como a ética deveser exercida e com quem.

VASQUEZ (2000, p.21) aponta que[...] a ética é teoria, investigação ou explicação de um tipo deexperiência humana ou forma de comportamento dos homens, oda moral, considerado, porém, na sua totalidade, diversidade evariedade. Ela se ocupa de um objeto próprio: o setor da realidadehumana que chamamos moral, constituído por um tipo peculiar defatos ou atos humanos.

A ética não cria a moral, mas se depara com uma série depráticas morais já em vigor; ela é referência para que a escolha dosujeito seja aceita como um princípio geral que respeite e protejao ser humano no mundo.

A ética tem a moral como base de estudo, analisa as opçõesque os seres humanos fazem, verifica se essas estão de acordocom os padrões sociais ou com aquilo que se considera a melhorforma de agir coletivamente.

Por meio da ética, podemos nos perguntar criticamentesobre a consistência e coerência dos valores que norteiam suasações e busquem sua fundamentação para que elas tenhamsignificado autêntico em suas relações sociais.

A ética está sempre ancorada à qualidade de vida, nãosimplesmente com a vida. Ética está ligada à forma de vida e acomportamentos humanos que garantem uma qualidade de vidamelhor, que tem a ver com a proteção, com a provisão e com asegurança.

Ao conjunto escolhido e organizado de problemas,soluções e respostas que a humanidade gerou para si dá-se onome de cultura humana. Entre as várias possibilidades deatividades, há aquelas julgadas melhores e aquelas julgadaspiores. As melhores são aquelas indicadas como mais eficazes

para a realização dos indivíduos; piores são aquelas menoseficazes ou eventualmente ruinosas para a realização ou bem dohomem.

Moral é um conjunto de hábitos e costumes efetivamentevivenciados por um grupo humano, ou seja, por uma sociedade.Nas culturas dos grupos humanos, estão presentes hábitos ecostumes considerados válidos porque são bons; bons porquesão justos; justos porque contribuem para a realização dosindivíduos. Atos gerados conforme esses hábitos serão julgadosmorais ou moralmente bons.

Por outro lado, há hábitos e costumes consideradosinválidos porque maus; maus porque injustos; injustos porqueatrapalham ou impedem a realização dos indivíduos. Esses atosgerados conforme esses hábitos serão julgados como imorais oumoralmente maus. Injustos porque atrapalham ou impedem arealização dos membros. Esta lógica vai estabelecer os padrõespara a prática dos costumes e hábitos e o próprio grupo.

Embora “moral” e “ética” sejam, na base, sinônimas, épossível aproveitar a existência de duas palavras para atribuirsignificados diferentes, mas sempre complementares às duaspalavras. Segundo Taille (2001, p.68), “[...] pode-se chamar demoral as diversas regras e valores dos homens e de ética o estudodestas regras e valores [...]”. A moral refere-se às leis quenormatizam as condutas humanas, e a ética corresponde aos ideaisque dão sentido à vida.

2.1. LEI X MORAL E ÉTICA

Moral é um conjunto de hábitos e costumes efetivamentevivenciados por um grupo humano. São considerados válidosporque são bons e justos, pois contribuem para a realização dosmembros do grupo. Os hábitos e costumes inválidos são aquelesmaus.

A moral é cumprida por meio das leis, que são acordos decaráter obrigatório para garantir justiça e direitos mínimos do ser.Portanto, as leis e a moral possuem semelhanças comoinstrumentos de justiça humana, originando-se das necessidadeshumanas, partindo de sua história, do seu jeito de organizar-se econviver. Enfim, ambas podem ser questionadas quando nãoconseguem promover a paz e o bem comum (SANTOS, 2001).

Existem, também, diferenças entre a moral e a lei. A moral éum instrumento informal que apresenta possibilidades devariações conforme o grupo, indicada como conteúdo bom oumau que pode ser escolhido pelo grupo. Quando é rejeitada porum membro, provoca a rejeição do grupo pelo transgressor. Já alei é um instrumento formal, escrito e promulgado, que também seapresenta como sistema jurídico único para o grupo. A lei épassível, apenas, de interpretações variáveis e, ao sertransgredida, impõe penalidades. É, portanto, obrigatória.

Ética é a reflexão sobre a ação humana. Ela não impõemoral e lei, mas propõe caminhos possíveis para oaperfeiçoamento de ambas. Como salienta Vasquez (2000), porcausa de seu caráter prático, enquanto disciplina teórica, tentou-se ver na ética uma disciplina normativa cuja função principalseria a de indicar o comportamento melhor do ponto de vistamoral.

A caracterização da ética como disciplina normativa podelevar – e, no passado, freqüentemente a levou – a esquecer seu

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caráter propriamente teórico. Certamente, muitas éticastradicionais partem da idéia do que devem fazer, ditando normasou princípios pelos quais pautam determinados comportamentos.

O ético transforma-se, assim, em uma espécie de legisladorde comportamento moral dos indivíduos e da comunidade. Masa função da ética é a de teoria: explicar, esclarecer ou investigaruma determinada realidade, elaborando os conceitoscorrespondentes.

2.2. IMPORTÂNCIA DO COMPORTAMENTO ÉTICO NA SOCIEDADE

Visto que todo ser humano é um animal social dentro demuitos sistemas, a ética aparece como a ciência da conduta idealdentro de uma comunidade. Seria incabível pensá-la paraindivíduos isolados, pois a ética é gerada a partir da convivênciacom outros seres humanos. No meio social, tudo quanto oindivíduo faz projeta conseqüências que afetam a vida de outraspessoas.

A existência do espaço social e do espaço individual éinegável. Indivíduos existem em grupos, como um no grupo, ouseja, é a célula mater geradora da sociedade e a gera para seuserviço. As instituições, formas organizadas das práticas sociaisconsideradas válidas por suprirem bem as necessidadesindividuais, são necessárias enquanto mecanismos do contratode convivência.

Para Aristóteles, as virtudes humanas eram funções queo indivíduo deveria esforçar-se em seu favor, no desenvolvimentopessoal, ou seja, fazer de si mesmo um elemento singular dentrode uma sociedade (SANTOS, 2001). Porém, a função ocupadapelo indivíduo deve existir a fim de melhorar a sua comunidade,pois aquele que se desenvolve bem e serve ao próximo éconsiderado um ser humano virtuoso.

A ética social se faz necessária neste novo milênio comouma prática social participativa, mesmo que seja, inicialmente, empequena escala, mesmo dentro das casas dos indivíduos. Ela é oobjeto da reflexão ética porque permite questões de valores e osinteresses que sustentam as formas de atuação social, por meiodo ensino da cidadania, e dimensiona os limites a seremimplantados ou ampliados.

A troca entre os membros do grupo sugere umaaprendizagem significativa e, ao mesmo tempo, cria possibilidadede lidar com muitas verdades, ensinando o indivíduo a convivercom o diferente.

O convívio social amplia as possibilidades iniciais e apresentaformas distintas de proceder no âmbito público, promovendotransformações efetivas nas atitudes e procedimentos, decorrentestambém na resignificação de valores. Promover espaçosparticipativos faz parte de uma atuação social comprometida comos princípios de liberdade, na pluralidade, e da colaboração. Talcompromisso traz implícita uma prática social empenhada comintervenções na realidade, capazes de provocar transformaçõesnos modos de agir e pensar de um grupo social ou indivíduos queestejam expostos a um processo de formação intencional edeliberado. (NUNES; SCLIAR, 1998, p.4).

2.3. ÉTICA E EDUCAÇÃO

A questão ética é universal e há necessidade de refletir

sobre ela como um todo. As conquistas de uma sociedadesecularizada, pluralista e voltada ao enriquecimento próprio fizeramo ser humano dar mais valores aos bens materiais do que ao valorpessoal e à vivência comunitária dos valores. Lembrando queética deve estar presente na família e na escola, como no conjuntoda sociedade, pais e educadores devem assumir os princípiosfundamentais da pedagogia ética.

É neste momento que devemos refletir sobre a ética e aeducação. Uma grande dificuldade encontrada pelos educadoresé desenvolver um raciocínio moral e ético bem fundamentado,sem violar a liberdade e frustrar as aspirações dos educandos.

Desde que se entenda por educação o conjunto das ações visando apermitir e facilitar ao educando o harmonioso e pleno autodesenvolvimento de si mesmo, tanto no campo da convivênciacomo na construção do conhecimento, no equilíbrio dos sentimentose nas habilidades indispensáveis ao provimento e satisfação de suasnecessidades e da comunidade em que vive, não é difícil compreenderque a educação envolve a totalidade do ser humano e se estende atodas as facetas do seu agir (CATÃO, 1997, p.120).

Observar a complexidade do ser humano é deixarperigosamente ocultos alguns aspectos integrantes do seu agir,restringindo a educação a determinados setores da vida humana,omitindo a relação com o outro ou, mesmo, negando-os.

A educação anteriormente mencionada seria defeituosa,aleijada, pois estaria se concentrando somente no ensino teórico,na transmissão de conceitos e informações abstratas,desprezando o lado psíquico-afetivo do educando e a suasociabilidade. Portanto, essa escola seria, simplesmente, umaagência de mão-de-obra em função do mercado de trabalho. Oprocesso mais indicado seria permitir aos nossos alunos aautonomia intelectual, ou seja, oportunizar que eles pensemcriticamente sobre determinada situação, ao contrário desobrecarregá-los com informações.

Segundo Santos (2001, p.23), “O currículo que proporcionaautonomia intelectual é amplo, isto é, lida com a dimensão humanaglobal, informando amplamente e incentivando a investigaçãodos sujeitos a respeito de suas necessidades biológicas, sociaise transcendentais em pé de igualdade [...]”

A relação íntima entre a educação e a ética é que ambastêm sua raiz no agir humano: “[...] educar é mais do que submeteràs leis ou usufruir os próprios direitos, pois tanto a aquisição deconhecimento como a submissão às leis ou a reivindicação dosdireitos deixam de ser humanizantes quando desvinculados daprática ética” (CATÃO, 1997, p.131).

Trabalhar com ética não é simplesmente colocá-la nocurrículo escolar, como uma disciplina a mais, nem mesmo propormaior ênfase em outras disciplinas. A ética deve estar presenteem todo o processo educacional, pautando-o e ajudando adesenvolver as ações humanas.

A sala de aula é um espaço muito rico em informações,conhecimentos. É um momento privilegiado de assimilação,críticas e aprimoramento. Santos (2001) salienta que assimilar éapropriar-se das informações disponíveis no meio cultural,construí-las para si. Criticar é julgá-las se importantes, valiosas,necessárias, para si. Aprimorar é propor mudanças ou inovaçõesotimizadoras para a informação assimilada e criticada (SANTOS2001).

Professores e alunos são elementos únicos do processomencionado por Santos. Portanto, devem assimilar, criticar e seapropriar juntos. O professor é o maior interessado em propiciar

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esse momento, pois é ele que inicia esse processo, nãoesquecendo, também, que é o principal exemplo para o educando.

2.4. A POSTURA ÉTICA DO EDUCADOR

O que significa, hoje, ser educador em nossa sociedadebrasileira? O que é necessário para o educador cumprir a suapostura ética de educador? O que compete ao educador naconstrução de nossa sociedade? Para responder a todos essesquestionamentos, faz-se necessário levar em consideração asinstituições onde se desenvolve a prática educativa.

A escola é uma instituição social que deve (pelo menosidealmente) transmitir o conhecimento sistematizado, ampliar avisão dos valores e da cultura como é entendida por meio dodesenvolvimento de uma postura crítica. Essa postura crítica,por sua vez, intervém na realidade dos seres humanostransformando-a e transformando-os.

A escola não é uma instituição abstrata.Tem suascaracterísticas específicas e cumpre uma função determinada àmedida que está presente e é constituinte de uma sociedade quese organiza e que a organiza também. É nesse espaço que oeducador exerce sua profissão. A idéia de profissão nos remete àde ofício, guardando o sentido de dever, de obrigação. E oexercício relaciona-se à idéia de atividade, de trabalho. O educador,enquanto profissional, trabalhador de uma determinada sociedade,tem que desenvolver sua profissão com a obrigação de sériocompromisso e responsabilidade.

Arroyo (2000) mostra-nos que ser mestre é um modo deser e um dever-ser. Ser pedagogo de nós mesmos. Ter cuidadocom nosso próprio percurso humano para, assim, podermosacompanhar o percurso das crianças, adolescentes e jovens. Éuma conversa permanente com nós mesmos sobre a formação.

O educador tem a função de criar condições para que oeducando aprenda sozinho. Assim sendo, o educador deveconhecer muito bem o assunto que está ensinando. Um fracodomínio do conteúdo resulta um ensino deficiente. Ensinar defato não é passar conhecimento, mas estimular o educando abuscá-lo. A tarefa do educador é despertar a mente do educando,é estimular idéias por meio do exemplo, da simpatia pessoal e detodos os meios que puder utilizar para isso; é fornecer aoseducandos lições objetivas para os sentidos e fatos para ainteligência.

Educadores que vão para a sala de aula totalmentedespreparados ou preparados em parte são como mensageirossem mensagem. Faltam-lhes a energia e o entusiasmo necessáriospara produzirem os resultados que os alunos devem esperar deseu trabalho.

2.5. A ESCOLA NO PROCESSO DODESENVOLVIMENTO ÉTICO E MORAL

A necessidade de elaborar uma ética a partir do sujeitonão tem a pretensão de modelar o educando, e sim de fornecerelementos para que ele mesmo encontre o caminho da convivênciana liberdade.

O trabalho de ensino e o convívio dentro da escola devemser organizados de maneira que os conceitos de justiça, respeito

e solidariedade sejam vivificados e compreendidos peloseducadores como aliados à perspectiva de uma “vida boa”. Dessaforma, não só os alunos perceberão que esses valores e as regrasdecorrentes são coerentes com seus projetos de felicidade, comoserão integrados às suas personalidades (SANTOS, 2001).

Outro dado importante refere-se ao fato de que não bastaensinar conceitos e valores democratizantes. É preciso que elessejam “vivificados” no convívio intra-escolar, entre os pares daação escolar, especialmente entre professores e alunos. É esse,no nosso entender, o grande diferencial, ou ponto de partida,para uma discussão abrangente sobre a ética no terreno escolar.

Construir o pensamento ético e moral no aluno não é algovisível nem imediato; esses valores se constroem no convíviocom o outro, nas ações do dia-a-dia. Além de dedicar a atenção adeterminados valores, o educador deve assumir o compromissocom a sua ação pedagógica. É de grande importância que oeducador planeje atividades específicas para reflexão dos alunossobre o comportamento humano, oportunizando, assim, que cadaum se analise, se expresse e traga, para discussão em sala,exemplos de situações sem apontar o defeito de outro.

Educação é a forma que as pessoas encontram parasignificar o seu mundo, entendê-lo e adaptar-se a ele ou, então,transformá-lo. Ahlert (1999, p .154) salienta que,

[...] através de um processo de interação entre educadores eeducandos, reproduz-se o modo de ser e a concepção de mundo queesses povos foram construindo ao longo de sua história. Nesseprocesso acontece a construção dos nossos novos conhecimentos,técnicas e formas para a reprodução da vida

É nessa criação e recriação de conhecimentos, em práticascada vez mais diferentes, no sentido de mais diálogos, dinâmicase participação, que vamos preparando novas gerações,preparando novas sociedades, transmitindo culturas e formas detrabalho, assim socializando processos produtivos.

O ser humano, enquanto ser histórico, se constrói narelação entre a herança sistêmica dos mecanismos que dãofuncionalidade às sociedades e as culturas, compreendida comoum reservatório simbólico construído pelas gerações passadas.

Uma educação ética tem o desafio de refletir criticamentesobre as moralidades. Seu papel emerge no mundo da prática,nas interações sociais.

A ética e a moral na educação de nossos alunospossibilitam a formação de um ser humano mais flexível. Um serhumano capaz de começar por uma profissão e adaptar-se a outra,com competência de aprendizagem permanente, interagindo coma realidade, tornando-se um ser humano criativo capaz de construiropções infinitas para uma cidadania globalizada.

O objetivo ético é que os indivíduos possam realizar umdesenvolvimento sustentável que satisfaça às necessidades dasgerações presentes sem sacrificar as gerações futuras; quepromova qualidade de vida sem comprometer a sustentabilidadedos ecossistemas; que estimule a vida comunitária e a cidadania;que efetive o direito inalienável das crianças. Para isso, a educaçãoprecisa garantir um processo alfabetizador que capacite para alectoescritura (leitura e escrita) e para uma alfabetizaçãosociocultural (para viver em comunidade).

A educação deve se agregar aos quatro pilares daeducação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viverjuntos e aprender a ser. Ahlert (1999) comenta que uma educaçãocom fins éticos constrói conhecimentos preocupados com a

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humanização e a realidade da vida, elimina o individualismo e oegoísmo da moral liberal e estimula a cooperação e solidariedadedas novas gerações.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vivemos momentos de conflitos familiares, guerras,incompreensões, egoísmo e tantas diferenças sociais, culturais,religiosas, políticas e econômicas que nada mais justo do querepensar a ética contemporânea. A escola é um espaço quepropicia as relações humanas, permite que as crianças e osadolescentes possam conviver com as diferenças, aprender arespeitar os companheiros, compartilhar, aceitar perdas e comolidar com hierarquias.

A ética ilumina a consciência humana, sustenta e dirigeas ações humanas, norteando a conduta individual e social. É umproduto histórico-cultural e, como tal, define, para cada cultura esociedade, o que é virtude, o que é o bem e o mal, certo ou errado,permitido ou proibido.

Dessa forma, a ética é universal enquanto estabelece umcódigo de normas morais válidas para todos os membros de umadeterminada sociedade e, ao mesmo tempo, tal código é relativoao contexto sociopolítico, econômico e cultural onde vivem ossujeitos éticos e onde são realizadas suas ações morais.

A falta de ética prejudica o doente que compra remédioscaros e falsos; prejudica a mulher, o idoso, o negro e o índio,recusados no mercado ou nas oportunidades culturais; prejudicaos analfabetos no acesso aos bens econômicos e culturais;prejudica as pessoas com necessidades especiais (físicas, mentaise espirituais) a usufruir a vida social; alimenta a discriminação e ahumilhação.

O valor ético do esforço humano é variável em função deseu alcance em face da comunidade. Se o trabalho executado é sópara auferir renda, em geral, tem seu valor restrito. A educaçãodeve sempre estar comprometida com os valores éticos. Portanto,educar não é somente informar ou transmitir conhecimentos, mastambém integrar o educando em uma cultura com característicasparticulares, com língua, tradições, crenças e estilos de vida dasociedade.

Assim, o educador contribui na formação de seuseducandos por meio de seu exemplo de comportamento ético, dasua própria história de vida, das regras de convivência que sãoestabelecidas ou construídas na sociedade.

Temos que repensar qual sociedade estamos formando equal queremos formar: Que postura devemos tomar? Quais sãoos valores éticos que podem ser compartilhados entre pais,educadores e educando? A nossa mudança de atitude contribuirápara a construção de uma nova sociedade e de uma nova éticaque nos aponte um caminho melhor para dar um sentido maisprofundo às nossas vidas.

Vivemos em uma sociedade que parece esquecer seuscidadãos mais humildes ou, então, que deturpa o conceito decidadania. Vivemos numa realidade social que é cruel para aquelescujos direitos são negados, colocando-os à margem de uma vidadigna. Este é o grande desafio da educação: formar os educandospara a cidadania ativa e para a consciência ética, criandoinstrumentos para que possam atuar na transformação dessarealidade. Esse desafio inclui, também, os educadores que devem

servir como exemplo de postura ética.

4. REFERÊNCIAS

AHLERT, Alvori. A eticidade da educação: o discurso de umapráxis solidária/universal. Ijuí: Coleção Fronteiras daEducação,1999.ARROYO, Miguel. Ofício de Mestre. 2. ed. Petrópolis: Vozes,2000.BOFF, Leonardo. Ethos mundial: um consenso mínimo entre oshumanos. Brasília: Letraviva, 2000.CATÃO, Francisco. A pedagogia ética. Petrópolis: Vozes, 1997.FREIRE, Paulo. Ética, utopia e educação. Petrópolis: Vozes, 1999.NUNES, D.; SCLIAR, E.. Direitos Humanos . Brasília: Agora, 1998.SANTOS, Antônio R., Ética: caminhos da realização humana. 3.ed. São Paulo: Ave Maria, 2001.TAILLE, Yves de La.Grandes pensadores em educação: o desafioda aprendizagem da formação moral e da avaliação. Porto Alegre:Mediação, 2001.VÁSQUES, Adolfo Sanches. Ética. 20. ed. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2000.