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Vincent Negri * Estudo jurídico sobre a proteção do patrimônio cultural por meio das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas: O patrimônio cultural sob o prisma da resolução 2199 (2015) do Conselho de Segurança 1 * Jurista, pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). 1 Este artigo foi originalmente publicado no portal da UNESCO. Esta tradução foi autorizada pelo autor e pela Organização.

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Vincent  Negri*  

Estudo  jurídico  sobre  a  proteção  do  patrimônio  cultural  por  meio  

das  resoluções  do  Conselho  de  Segurança  das  Nações  Unidas:  

O  patrimônio  cultural  sob  o  prisma  da  resolução  2199  (2015)  do  

Conselho  de  Segurança1  

* Jurista, pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). 1 Este artigo foi originalmente publicado no portal da UNESCO. Esta tradução foi autorizada pelo autor e pela Organização.

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Estudo jurídico sobre a proteção do patrimônio cultural por meio das resoluções do

Conselho de Segurança das Nações Unidas: O patrimônio cultural sob o prisma da resolução 2199 (2015) do Conselho de Segurança

Vincent Negri

A resolução 2199 (2015), adotada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas no

dia 12 de fevereiro de 2015, foi estruturada sobre três eixos:

— Reforçar as medidas que visam secar as fontes de financiamento do Estado Islâmico

do Iraque e do Levante (EIIL), da Frente al-Nusra e de todas as demais pessoas, grupos,

empresas e entidades associadas à Al-Qaida;

— Condenar a destruição do patrimônio iraquiano e sírio, cometida principalmente pelo

EIIL e pela Frente al’Nusra, e exigir dos Estados-membros a tomada de medidas para impedir o

comércio de bens culturais que foram retirados ilegalmente do Iraque desde agosto de 1990 e da

Síria desde março de 2011;

— Prevenir os sequestros e a tomada de reféns realizados pelos grupos terroristas e a

proibição do pagamento de resgates e de concessões políticas.

I. As afiliações normativas da resolução 2199 (2015)

A questão da destruição e da dispersão do patrimônio cultural, inscrita em uma agenda

mais abrangente concernente a sanções contra o terrorismo, é inserida em uma dupla

continuidade: (a) de um lado, como continuidade de uma ação normativa da UNESCO dedicada à

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proteção do patrimônio cultural; (b) de outro lado, na esteira das resoluções precedentes do

Conselho de Segurança que visam à luta contra o terrorismo.

a) O interesse geral da humanidade na proteção e salvaguarda do patrimônio cultural

Apesar de sua diversidade, os instrumentos jurídicos adotados pela UNESCO dedicados

à proteção do patrimônio cultural são articulados no âmbito do interesse geral da humanidade em

proteger e salvaguardar esse patrimônio, cujas premissas figuram no Tratado de 15 de abril de

1935 sobre a proteção de todas as instituições artísticas e científicas e monumentos históricos,1 o

Pacto Roerich. Eles são, ainda, incorporados pelos artigos 47 e 56 dos Regulamentos das

Convenções de Haia de 1899 e 1907,2 consideradas, hodiernamente, direito costumeiro. A

recepção — e, nesse sentido, o reconhecimento — desse interesse pelos Estados pode variar de

intensidade em função da natureza das normas que implementam e organizam a proteção do

patrimônio cultural – proteção setorial em função da natureza dos bens, materiais ou imateriais,

culturais ou naturais, móveis ou imóveis, etc. –, e seguindo o contexto ligado aos conflitos ou às

crises. Complementando ou à margem desses instrumentos convencionais, cuja ambição é de

estabelecer a responsabilidade coletiva dos Estados pela proteção do patrimônio cultural dos

povos, outras normas possuem uma abrangência mais informal, não cogente.

No espaço normativo que tange a esses dois polos, a Convenção para a Proteção dos

Bens Culturais em caso de Conflito Armado, com o seu Regulamento de execução e Primeiro

Protocolo, adotados em Haia, em 14 de maio de 1954, acompanhada do Segundo Protocolo,

adotado em Haia, em 26 de março de 1999, exprimem de maneira mais forte as obrigações

internacionais que incumbem aos Estados em preservar o patrimônio cultural no evento de um

conflito armado; no lado oposto, a Declaração concernente à Destruição Intencional do

Patrimônio Cultural, adotada em Paris, em 17 de outubro de 2003, durante a 32ª sessão da

Conferência Geral da UNESCO, é um texto desprovido de caráter cogente, emitindo unicamente

uma normatividade relativa. A fraca amplitude dessa Declaração, que consiste em uma resposta a

1 O preâmbulo faz referência à necessidade de “preservar em qualquer tempo de perigo todos os monumentos imovíveis (sic) nacionais ou pertencentes a particulares que formam o tesouro cultural das nações”. 2 Convenção (II) concernente às leis e aos usos da guerra terrestre, adotada em Haia, em 29 de julho de 1899; Convenção (IV) relativa às leis aos e usos de guerra terrestre, adotada em Haia, em 18 de outubro de 1907.

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um contexto de crise, e não de conflito armado, que coloca um conjunto de princípios que visam

prevenir e desencorajar a destruição intencional do patrimônio cultural pelos Estados em suas

atividades em contexto de paz e em contexto de guerra,3 é um sintoma do limite da ação

normativa da UNESCO.4 Essa ação é concentrada, em sua forma mais completa, na formulação

de um direito internacional concertado. A força das regras internacionais unilaterais, no que tange

à primazia do direito internacional sobre as ordens jurídicas nacionais, não está presente no

domínio de intervenção da UNESCO.

O interesse geral da humanidade no que concerne à proteção e a salvaguarda do

patrimônio cultural permeia o direito internacional. Assim, o Tribunal Penal Internacional para a

antiga Iugoslávia (TPII) entendeu que, além do prejuízo e da perda sofrida por um povo, os quais

afetam a sua cultura e identidade religiosa, “é a humanidade como um todo que é afetada pela

destruição de uma cultura religiosa específica e de seus objetos culturais”.5 Quanto à definição do

ato de perseguição projetada pela Comissão de Direito Internacional, a qual prolonga esse

princípio matriz e integra a dimensão cultural: “a perseguição pode ser feita de diversas formas,

3 Doc. UNESCO 32C/25, 17 jul. 2003, Anexo II, p. 2. 4 Embora ela tenha inspirado as Convenções da UNESCO – especialmente a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972 e a Convenção de Haia para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado de 1954 – e outros instrumentos internacionais – Protocolo Adicional I de 1977 às Convenções de Genebra de 1949, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional –, a declaração é “um texto de direito não cogente que não visa à modificação das obrigações existentes dos Estados em virtude de acordos internacionais em vigor na matéria de proteção de patrimônio cultural. Seu objetivo principal é triplo: (i) enunciar os princípios de base para a proteção do patrimônio cultural, visando expressamente à destruição intencional em tempo de paz e em tempo de guerra; (ii) reforçar a sensibilização do fenômeno cada vez mais difundido da destruição intencional desse patrimônio; (iii) incentivar indiretamente a participação dos Estados que não são parte da Convenção de Haia de 1954 e seus dois Protocolos, aos Protocolos Adicionais de 1977 e aos demais acordos que regem a proteção do patrimônio cultural” [Doc. UNESCO 32C/25, 17 jul. 2003, Anexo II, § 6, p. 2]. 5 Julgamento do TPII, 26 de fevereiro de 2001, Le Procureur c/ Dario Kordic et Mario Cerkez, Caso n° IT-95-14/2-T, § 206 et 207 : “Esse ato [de destruição e degradação e dos edifícios consagrados à religião] é similar à ‘destruição ou ao dano deliberado de edifícios consagrados à religião’, o que constitui uma violação das leis ou costumes da guerra visada pelo artigo 3 d) do Estatuto [do TPII]. Por conseguinte, esse ato já é qualificado como crime em virtude do direito internacional costumeiro e, em particular, do Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia. Ademais, o Tribunal Militar Internacional [Tribunal de Nuremberg], a jurisprudência deste Tribunal Internacional e o relatório da Comissão de Direito Internacional (CDI) de 1991, entre outros, todos consideraram que a destruição de edifícios consagrados à religião constitui, sem equívoco, um ato de perseguição no sentido de crime contra a humanidade. Esse ato, quando é perpetuado com a intenção discriminatória requerida, equivale a um ataque contra a identidade religiosa de um povo. Como tal, ilustra de maneira quasi exemplar a noção de ‘crimes contra humanidade’, pois, de fato, é a humanidade em seu conjunto que é afetada pela destruição de uma cultural religiosa específica e de seus objetos culturais. A presente Câmara conclui, assim, que a destruição de ou o dano deliberado a edifícios muçulmanos consagrados à religião ou à educação pode constituir, se cometidos com a intenção discriminatória requerida, um ato de perseguição”.

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por exemplo (...) a destruição sistemática de monumentos ou edifícios que representam um certo

grupo social, religioso ou cultural, etc.”6 Assim, se o princípio reafirmado pela UNESCO,

segundo o qual “os ataques cometidos contra os bens culturais, pertencentes a qualquer povo,

constituem um ataque ao patrimônio cultural da humanidade inteira, na medida em que cada povo

aporta sua contribuição à cultural mundial”7, foi progressivamente imposta como uma matriz do

direito internacional do patrimônio cultural, sua oponibilidade continua, em grade medida,

condicionada à vontade dos Estados de se confirmar ou se abster. Contudo, esse princípio

questiona igualmente a afirmação de um direito imperativo e do papel crescente do costume na

constituição de uma ordem pública cultural internacional.8

b) O patrimônio cultural no prisma da luta contra o terrorismo

Desde 2001, o Conselho de Segurança das Nações Unidas acentuou sua produção de

normas que visam à luta contra o terrorismo. Se, na prática do Conselho de Segurança, essa

preocupação não é nova, os atentados de 11 de setembro 2001 marcam um ponto de inflexão na

formulação das resoluções do Conselho de Segurança. Na década de 1990, o Conselho de

Segurança tratava regularmente das questões de terrorismo, prescrevendo sanções contra os

Estados suspeitos de possuir conexões com atos terroristas: a Líbia (1992), o Sudão (1996) e o

Talibã (1999). A intensificação das iniciativas contra o terrorismo começa em 1999: a resolução

12699 incentiva os Estados a colaborar para prevenir e reprimir todos os atos terroristas,

principalmente a “trocar informações em conformidade o direito internacional e nacional e

cooperar sob o plano administrativo e judiciário de maneira a prevenir os atos terroristas”.10 Essa

6 Relatório da Comissão de Direito Internacional, 43ª sessão, 29 de abril - 19 de julho de 1991, Supplément A/46/10. Ver o Projeto de Código de Crimes contra a Paz e Segurança da Humanidade, p. 260 e segs., especialmente p. 292. 7 Preâmbulo da Convenção de Haia para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado de 1954. Ver também UNESCO/RES/31C/26 (2001), Atos que constituem um crime contra o patrimônio comum da humanidade. 8 Ver UNESCO/RES/27C/3.5 (1993): “(...) os princípios fundamentais que são a proteção e a preservação de bens culturais em caso de conflitos armados poderiam ser considerados como pertencentes do direito internacional costumeiro (…) a aceitação universal da Convenção de Haia de 1954 e seu protocolo é uma condição essencial de uma proteção eficaz dos bens culturais em período de conflito armado”. 9 S/RES/1269 (1999) de 19 de outubro de 1999.

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resolução inicia um movimento de intensificação da ação do Conselho de Segurança na luta

contra o terrorismo, amplificada após o 11 de setembro de 2001.

As iniciativas de natureza orgânica – criação de Comitês especializados à semelhança do

Comitê instituído pela resolução 137311 – aprimoraram, portanto, os graus de exigência de

implicação dos Estados na luta contra o terrorismo, que devem agora levar em conta as medidas

tomadas para impedir as atividades terroristas e criminalizar suas diversas formas, assim como

promover a cooperação entre os Estados, estes podendo se beneficiar de uma assistência técnica

para acompanhar essas medidas.12

Essa abordagem global e multiforme, promovida pelo Conselho de Segurança, e o

reforço da cooperação na Comunidade Internacional, induziu um desafio na luta pelo terrorismo,

que não pode mais ser combatido somente pela via militar e pelas medidas coercitivas, mas deve

ser também combatido com o tratamento das condições favoráveis à propagação do terrorismo.

Nessa esteira, o Conselho de Segurança ressaltou que “continuar a trabalhar no plano

internacional para aprofundar o diálogo das civilizações e a compreensão entre elas, com o

objetivo de impedir a depreciação de uma ou outra religião ou cultura, pode ajudar no combate às

forças que incitam a polarização e o extremismo e contribuirá para reforçar a luta contra o

terrorismo.”13

Uma primeira referência à cultura e ao patrimônio aparece em 1999, na resolução 1267

sobre a situação no Afeganistão,14 na qual o Conselho de Segurança “se declara (...) fortemente

compromissado com a soberania, independência e integridade territorial e a unidade nacional do

Afeganistão, assim como com o respeito ao patrimônio cultural e histórico do país”.

O ápice desse processo de integração do diálogo cultural e da preservação do patrimônio

cultural nos desafios e meios na luta contra o terrorismo será fixado pela resolução 1483 sobre a

10 Essa instrução de cooperação interestatal no plano administrativo e judiciário para prevenir os atos de terrorismo, conforme o direito internacional, poderia (deveria?) ser interpretada como favorizando a conclusão dos acordos bilaterais sob o fundamento do artigo 9 da Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais de 1970. 11 S/RES/1373 (2001) de 28 de setembro de 2001. 12 S/RES/1535 (2004) de 26 de março de 2004. 13 Declaração do Presidente do Conselho de Segurança, 27 de setembro de 2010; S/PRST/2010/19. 14 S/RES/1267 (1999) de 15 de outubro de 1999.

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situação do Iraque. 15 Depois de pedir “a todas as partes concernidas que cumpram suas

obrigações sob o direito internacional, lê-se particularmente no que tange às Convenções de

Genebra de 1949 e ao Regulamento de Haia de 1907”,16 o Conselho de Segurança consagrou o

sétimo ponto da resolução à questão dos bens culturais desviados das instituições iraquianas:

O Conselho de Segurança, […] Agindo sob a égide do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, […] 7. Decide que todos os Estados-membros devem tomar as medidas requeridas para facilitar a restituição, em bom estado, às instituições iraquianas os bens culturais iraquianos e outros objetos que possuem um valor arqueológico, histórico, cultural, científico ou religioso que foram retirados ilegalmente do Museu Nacional Iraquiano, da Biblioteca Nacional e de outros lugares no Iraque, desde a adoção da resolução 661 (1990) de 6 de agosto de 1990, especialmente no que tange à interdição ao comércio ou transferência desses objetos e dos objetos a respeito dos quais se tem razões para crer que foram retirados ilegalmente e pede à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, à Interpol e a outras organizações internacionais competentes que facilitem a implementação deste parágrafo;

II. A inclusão da salvaguarda do patrimônio cultural no poder normativo do Conselho de Segurança

A resolução 1483 (2003) foi a fonte de inspiração do dispositivo que a resolução 2199

(2015) de 12 de fevereiro de 2015 utilizou para reforçar a proteção do patrimônio cultural

iraquiano e sírio. Os parágrafos 15 à 17 da resolução mostram:

15. Condena as destruições do patrimônio cultural iraquiano e sírio, cometida em particular pelo EIIL e pela Frente al-Nusra, sejam danos acidentais ou destruição intencional, particularmente de lugares e objetos religiosos, que são objeto de destruições visadas;

15 S/RES/1483 (2003) de 22 de maio de 2003. 16 Notaremos que o Regulamento de 1907 é aquele adotado pela Convenção (IV) relativa às leis e aos usos de guerra terrestre, adotada em Haia, em 18 de outubro de 1907. O artigo 47 do Regulamento dispõe que “a pilhagem é formalmente proibida”; na segunda alínea do artigo 56, precisa-se que “qualquer apreensão, destruição a ou degradação intencional de estabelecimentos semelhantes [estabelecimentos destinados aos cultos, à caridade e à instituição, às artes e à ciência], monumentos históricos, obras de arte e de ciência, é proibida e deve ser investigada”.

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16. Nota com preocupação que o EIIL, a Frente al-Nusra e outras pessoas, grupos, empresas e entidades associadas à Al-Qaida geram receita procedendo, diretamente ou indiretamente, à pilhagem e ao contrabando de objetos que pertencem ao patrimônio cultural proveniente de sítios arqueológicos, de museus, de bibliotecas, arquivos e outros locais na Síria e no Iraque, que são, em seguida, utilizados para financiar seus esforços de recrutamento ou para melhorar suas capacidades operacionais de organização e execução de atentados terroristas; 17. Reafirma a decisão que foi tomada no parágrafo 7 da resolução 1483 (2003) e decide que todos os Estados-membros devem tomar as medidas necessárias para impedir o comércio de bens culturais iraquianos e sírios e de outros objetos que possuem um valor arqueológico, histórico, cultural, científico e religioso que são retirados ilegalmente do Iraque desde 6 de agosto de 1990 e na Síria desde 15 de março de 2011, particularmente no que tange à interdição do comércio transnacional desses objetos e permitindo, assim, que sejam restituídos aos povos iraquiano e sírio e pede à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, à INTERPOL e a outras organizações internacionais competentes que facilitem a execução das disposições do presente parágrafo;

A resolução 2199, particularmente em seu parágrafo 17, e, anteriormente, o parágrafo 7

da resolução 1483, confronta a proteção do patrimônio cultural ao unilateralismo, no domínio

tradicionalmente coberto por uma ação normativa da UNESCO concentrado na formulação de

um direito internacional concertado.17

A dupla filiação normativa dos parágrafos 15 a 17 da resolução 2199 – filiação da ação

normativa da UNESCO no domínio da proteção do patrimônio cultural e as precedentes

resoluções do Conselho de Segurança que visam à luta contra o terrorismo – operam uma

inclusão da proteção internacional do patrimônio cultural no espaço normativo do Conselho de

Segurança. No entanto, essa alteração de paradigma, substituindo uma norma imperativa

unilateral por um direito internacional concertado, permanece limitada pelo perímetro de

intervenção do Conselho de Segurança sob a égide do capítulo VII da Carta das Nações Unidas.

Essa conversão substancial do direito internacional do patrimônio cultural transfere ao Conselho

de Segurança o interesse geral da humanidade na proteção e na salvaguarda do patrimônio

cultural, até então matriz das normas patrimoniais da UNESCO e de seu domínio quase

exclusivo. O Conselho de Segurança não intervém no plano abstrato e sim em um processo de

qualificação em concreto de uma situação que ameaça a manutenção da paz e da segurança

17 Ver supra.

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internacionais.

O Conselho assume o interesse geral da humanidade na proteção e na salvaguarda do

patrimônio cultural que se faz por meio do capítulo VII – artigos 39 a 51 – da Carta das Nações

Unidas, que autoriza a tomada de medidas coercitivas, no âmbito da manutenção da paz e da

segurança internacionais. Sob o fundamento do artigo 39, o Conselho de Segurança pode

constatar “a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão” e, seguido a

tal contestação e qualificação dos fatos, fazer recomendações (art. 40) ou recorrer a medidas não

militares (art. 41) ou militares (art. 42) necessárias para a “[manutenção ou restabelecimento d]a

paz e a segurança internacionais”.18

As resoluções 1483 e 2199 são fundamentadas nos artigos 39 e 41 do capítulo VII. Artigo 39 O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão, e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com os Artigos 41 e 42, a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacional. Artigo 41 O Conselho de Segurança decidirá sobre as medidas que, sem envolver o emprego de forças armadas, deverão ser tomadas para tornar efetivas suas decisões e poderá convidar os Membros das Nações Unidas a aplicarem tais medidas. Estas poderão incluir a interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos, ou de outra qualquer espécie e o rompimento das relações diplomáticas.

O Conselho de Segurança possui um poder de apreciação discricionária da qualificação

dos fatos, atributo de sua liberdade sobre a determinação de decisões e dos meios de resposta.

Dessa competência discriminatória, observamos um conjunto de poderes de que o Conselho de

Segurança dispõe: o poder de ação e de inércia, via aquele de menor ação. Bem que a referência

do Capítulo VII seja frequentemente considerada como um indício do caráter obrigatório de uma

resolução, a terminologia utilizada revela a variação de intensidade entre as obrigações que o

Conselho de Segurança impõe aos Estados. Em espécie, tratando-se da salvaguarda do

18 Nos termos do artigo 24 da Carta das Nações Unidas, os Estados-membros “conferem ao Conselho de Segurança a principal responsabilidade pela manutenção da paz e da segurança internacionais”; não é “uma responsabilidade exclusiva que a Carta confere nesse objetivo ao Conselho de Segurança”; CIJ, 26 de novembro de 1984, Nicarágua c/ Estados Unidos da América, § 95. Essa função é de natureza política; CIJ, 26 de novembro de 1984, op. cit.

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patrimônio cultural, somente o parágrafo 7 da resolução 1483 e o parágrafo 17 da resolução 2199

esboçam uma responsabilidade coletiva dos Estados para lutar contra a dispersão dos bens

culturais iraquianos e sírios e facilitar sua restituição. Nesses parágrafos, o emprego do verbo

‘decidir’ no indicativo do presente (‘decides’ em inglês) não exprime um desejo, nem tampouco

uma intenção, trata-se de uma obrigação cuja primazia, conferida pelo Capítulo VII, impõe-se aos

Estados.

Ao prescrever que sejam tomadas medidas para impedir o comércio de bens culturais

iraquianos e sírios, postulando uma interdição do comércio transnacional desses objetos e

estipulando sua restituição, o Conselho de Segurança impõe a todos os Estados obrigações às

quais não estariam previamente vinculados. Como um legislador internacional, o Conselho de

Segurança, pelo poder normativo que ele exerce, impõe um modelo de conduta obrigatório no

que tange a uma questão específica, sendo esta relacionada à pilhagem e ao tráfico ilícito de bens

culturais, em conexão com o financiamento e desenvolvimento do terrorismo.

O escopo de tal obrigação pode ser questionado no que concerne às Convenções da

UNESCO de 195419 e de 1970.20 Essas Convenções colocam um quadro geral, a primeira sobre a

proteção de bens culturais em caso de conflito armado e a segunda no que tange à prevenção da

pilhagem e do tráfico ilícito de bens culturais, assim como sua restituição ao país de origem. Se

as disposições dessas Convenções podem ser colocadas em prática no contexto iraquiano e sírio,

sua efetividade continua condicionada à aceitação dos Estados de se obrigarem a elas, a qual se

exprime formalmente por sua adesão ou ratificação. Com a exceção a ser considerada e

demonstrada, a existência de uma obrigação consuetudinária inserida no Direito Internacional

que prescreveria uma interdição do comércio de bens culturais provenientes de zonas de conflito

e uma obrigação geral de restituição de bens culturais dessas zonas, o parágrafo 7 da resolução

1483 e o parágrafo 17 da resolução 2199 criam uma nova norma imperativa para os Estados. Na

medida em que um tratado internacional produz efeitos somente como consequência do

consentimento dos países, uma resolução do Conselho de Segurança é um ato unilateral cuja

legitimidade é adquirida em razão de sua adoção por um órgão competente e cuja primazia das

19 Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado de 1954. 20 Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais de 1970.

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medidas prescritas se origina do Capítulo VII.21

III. Os compromissos dos Estados para com o patrimônio cultural no que tange às decisões do Conselho de Segurança

As modalidades de execução das decisões do Conselho de Segurança para o Estado e

partindo dessas relativas ao patrimônio iraquiano e sírio, são declinadas, no Capítulo VII, pelo

artigo 48. Artigo 48

1. A ação necessária ao cumprimento das decisões do Conselho de Segurança para manutenção da paz e da segurança internacional será levada a efeito por todos os Membros das Nações Unidas ou por alguns deles, conforme seja determinado pelo Conselho de Segurança. 2. Essas decisões serão executas pelos Membros das Nações Unidas diretamente e, por seu intermédio, nos organismos internacionais apropriados de que façam parte.

O Direito Internacional, no qual estão inseridas as convenções maiores da UNESCO,

dedicadas à proteção do patrimônio cultural, exige dos Estados que estes respeitem seus

compromissos internacionais, mas deixam-nos livres, de certa maneira, no que tange ao modo de

executar as obrigações internacionais provenientes de Convenções. O artigo 48 da Carta das

Nações Unidas densifica essa exigência e impõe aos Estados a responsabilidade direita pelo seu

comprimento,22 e, portanto, pela plena efetividade das decisões do Conselho de Segurança. A

conformidade com essas decisões, tomadas sob a égide do Capítulo VII, é uma exigência estrita;

deixar aos Estados uma capacidade de interpretação ou apreciação das decisões diminuiria, até

ruinaria, a abrangência das mesmas. Seria reintroduzir o princípio do consentimento dos Estados,

que, por natureza, não é requerido na edição unilateral de uma norma imperativa; seria minar a 21 Nesse sentido, o julgamento da CIJ de 14 de abril de 1992, explicita, no que tange às obrigações geradas pelas resoluções do Conselho de Segurança sob o fundamento do Capítulo VII, que “as obrigações das Partes, nesse sentido, prevalecem sobre suas obrigações em virtude de outro acordo internacional”; CIJ, 14 de abril de 1992, Líbano c. Reino Unido, § 39. 22 Esse não é o caso dos regulamentos adotados pela Organização Mundial de Saúde, que são aplicados diretamente na ordem jurídicas interna dos Estados. O artigo 22 da Constituição da Organização Mundial da Saúde dispõe que “Os regulamentos adotados [...] entrarão em vigor para todos os Estados-membros depois de a sua adoção ter sido devidamente notificada pela Assembleia da Saúde, exceto para os Estados-membros que comuniquem ao diretor-geral a sua rejeição ou as suas reservas dentro do prazo indicado na notificação”.

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primazia desse ato unilateral sobre os tratados.23 Desprovido de capacidade de interpretação ou de

apreciação da norma imperativa, como as medidas prescritas pelo parágrafo 7 da resolução 1483

e pelo parágrafo 17 da resolução 2199, o Estado tem uma obrigação de transcrição no direito

interno das condições de efetividade da norma imperativa. A mesma exigência pesa sobre as

instituições regionais, como a União Europeia, cuja prerrogativa é substituída pelas atribuições

dos Estados para regulamentar o comércio e a circulação de bens e mercadorias.

Na Europa, o Regulamento Europeu n. 1210/2003 de 7 de julho de 2003, relativo a

determinadas restrições específicas aplicáveis às relações econômicas e financeiras com o Iraque,

impõe regras que devem ser respeitadas pelos 28 membros da União Europeia. O artigo 3 desse

regulamento trata, de maneira específica, da proteção dos bens culturais iraquianos de acordo

com a resolução 1483 do Conselho de Segurança.

Artigo 3 1. São proibidos: a) A importação ou a introdução no território da Comunidade; b) A exportação ou a remoção do território da Comunidade e; c) O comércio de bens culturais do Iraque e outros bens de importância arqueológica, histórica, cultural, científica (pela sua raridade) e religiosa, incluindo os enumerados no anexo II, quando tenham sido ilegalmente removidos de sítios iraquianos, principalmente, quando: i) Esses bens fizerem parte integrante das colecções (sic) públicas inventariadas nos museus, arquivos e fundos de conservação das bibliotecas iraquianos (sic), ou nas instituições religiosas iraquianas ou; ii) Existam dúvidas razoáveis de que foram exportados do Iraque sem autorização do seu proprietário legítimo ou em violação da legislação e regulamentação iraquianas. 2. Esta proibição não se aplica, se se provar que: a) Os bens culturais foram exportados do Iraque antes de 6 de Agosto de 1990 ou; b) Os bens culturais estão a ser restituídos às instituições iraquianas de acordo com o objetivo (sic) de regresso em segurança referido no ponto 7 da Resolução

23 Ver CIJ, 14 de abril de 1992, op. cit.

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Estudo  jurídico  sobre  a  proteção  do  patrimônio  cultural   13  

1483 (2003) do CSNU.

Essas regras possuem um caráter obrigatório em todas as suas disposições: os Estados-

membros da União Europeia devem aplicá-las do mesmo modo como são definidas.24 Elas são

diretamente aplicáveis no quadro jurídico interno dos Estados-membros e impõem-se a todos os

sujeitos de direito – particulares, profissionais do mercado de arte, Estado, museus, instituições...

– sem que qualquer transcrição desse regulamento, que projeta o parágrafo 7 da resolução 1483

no direito interno dos Estados-membros da União Europeia, seja requerida.

Outros Estados incorporaram em seu direito interno as obrigações enunciadas pelo

parágrafo 7 da resolução 1483.

Na Suíça, a Ordonnance en date du 7 août 1990 instituant des mesures économiques

envers la République d’Irak, dispõe, em seu artigo 1°:

Art. 1° – Bens culturais 1. É proibida a importação, o trânsito, a exportação, o comércio, a corretagem, a aquisição e toda outra forma de transferência de bens culturais iraquianos que foram roubados da República do Iraque, subtraídos do controle de seus possuidores de direito no Iraque contra sua vontade ou exportados ilegalmente da República do Iraque desde 2 de agosto de 1990. 2. A exportação ilegal de um bem cultural iraquiano é presumida quando é estabelecido que este se encontrava na República do Iraque após 2 de agosto de 1990.

Nos Estados Unidos da América, o Emergency Protection for Iraqi Cultural Antiquities

Act of 2004 prevê:

H.R. 1047, TITULO III – ANTIGUIDADES CULTURAIS DO IRAQUE SEC. 3001. CAPÍTULO. Este titulo pode ser citado como ‘Emergency Protection for Iraqi Cultural Antiquities Act of 2004'. SEC. 3002. IMPLEMENTAÇÕES EMERGENCIAIS DE RESTRIÇÕES DE IMPORTAÇÕES.

24 Art. 288 do Tratado da União Europeia e do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

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14   Vincent  Negri  

(a) AUTORIDADE- O Presidente pode exercer sua autoridade sob a seção 304 da Convention on Cultural Property Implementation Act (19 U.S.C. 2603) no que diz respeito a qualquer material arqueológico ou etnológico do Iraque independentemente de se o Iraque é um Estado-parte dessa Convenção, exceto se, ao exercer tal autoridade, a subseção (c) da seção não se aplicar. (b) DEFINIÇÃO- Nesta seção, o termo ‘material arqueológico ou etnológico do Iraque’ significa bens culturais do Iraque e demais itens de importância arqueológica, histórica, cultural, científica ou religiosa retirados ilegalmente do Museu Nacional do Iraque, da Biblioteca Nacional do Iraque e de outras localidades no Iraque, desde a adoção da resolução 661 de 1990 do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

A implementação pelos Estados Unidos da resolução 1483 é apoiada pela Convention on

Cultural Property Implementation Act de 12 de fevereiro de 1983, que coloca em prática a

Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação,

Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais de 1970. A possibilidade

de tal articulação entre o parágrafo 7 da resolução 1483 e a Convenção da UNESCO de 1970 tem

como condição de partida a posição do Iraque como Estado-parte da Convenção e sua entrada em

vigor em 12 de fevereiro de 1973.

No escopo da resolução 1483, a Austrália adotou, em 2003, a regulamentação n. 97 –

Iraqi (Reconstruction and Repeal of Sanctions) Regulations 2003 –, que dispõe notadamente:

A Regulação 7 prevê que uma pessoa não deve transferir um item de propriedade cultural que foi retirado ilegalmente de uma localidade no Iraque (incluindo o Museu Nacional do Iraque, a Biblioteca Nacional do Iraque) após a adoção da resolução 661, ou sobre o qual que seja razoável a suspeita de que tenha sido retirado no período descrito; A Regulação 8 prevê que a pessoa que esteja em posse ou controle de um item de propriedade cultural mencionado na regulação 7 deve, assim que possível, entregar a propriedade para: a) um membro do efetivo das Nações Unidas ou; b) um membro das Forças Armadas ou; c) um representante da Autoridade mencionada na resolução 1483 ou; d) um representante do Museu Nacional do Iraque ou da Biblioteca Nacional do Iraque ou; e) um representante do local do qual o item foi retirado ou de onde seja razoavelmente suspeito de que tenha sido retirado ou;

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Estudo  jurídico  sobre  a  proteção  do  patrimônio  cultural   15  

f) um membro da Polícia Federal da Austrália ou da Força Policial do Estado ou Território;

Por outro viés, tratando de uma maneira diferenciada a circulação não importa qual bem,

inclusive as aplicações financeiras, no espectro da resolução 1483, o Canadá colocou em prática,

no dia 19 de outubro de 2010, um Règlement d’application des résolutions des Nations Unies sur

l’Iraq, cujo artigo 5.1 (a) “proíbe todas as pessoas que se encontram no Canadá e todo canadense

no estrangeiro (...) de efetuar intencionalmente, diretamente ou não, uma operação envolvendo

qualquer bem localizado no Canadá que, conforme cada caso: (i) pertença ao governo iraquiano

anterior ou a qualquer entidade pública identificada pelo Comitê de 22 de maio de 2003 e que

ainda pertença a ele, (ii) pertença a todo indivíduo identificado pelo Comitê, ou controlado por

ele ou atos realizados em seu nome”.

Se a responsabilidade última pela observação das exigências da resolução do Conselho

de Segurança pertence aos Estados, a satisfação das exigências no que tange à proibição do

comércio de antiguidades e de bens culturais iraquianos, assim como sua restituição,

estabelecidas pela resolução 1483, apresenta variações de intensidade normativa, o que não

deveria ser permitido no que concerne a uma resolução sob o Capítulo VII.

IV. Proposições de implementação normativas do parágrafo 17 da resolução 2199

(2015)

As variações de execução das decisões do Conselho de Segurança relativas à interdição

do comércio de bens culturais iraquianos retirados ou transferidos ilegalmente desde 6 de agosto

de 1990 afeta a efetividade da resolução.

a) Embargo e moratória

O Direito Internacional oferece medidas específicas, suscetíveis de transmissão e de

impor de forma mais ampla as proibições trazidas pela resolução 1483, como o embargo e a

moratória.

Tradicionalmente apresentada como uma medida de pressão que consiste em restringir

ou proibir as transações ou o comércio de bens, o embargo traz de forma mais recorrente as

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16   Vincent  Negri  

contramedidas. O Instituto de Direito Internacional assim definiu: “como medida de salvaguarda

em caso de violação de um direito, o embargo pode ser exercido a título de represália”.25 Essa

mesma definição lhe é concedida pelo Conselho de Segurança como sanção coletiva ou

contramedidas. 26 A decisão de embargo pronunciada pelo Conselho de Segurança dispõe,

portanto, sobre “todos os direitos ou obrigações conferidas ou impostas por todo acordo

internacional ou por todo contrato realizado, assim como toda licença ou autorização acordadas

antes da data da (…) resolução”.27

A moratória é o produto de um consenso; possui a forma de um acordo cujo objetivo e

desafio é suspender, por um tempo determinado, eventualmente prorrogável, as atividades em um

ramo preciso ou temporizar o pagamento de reivindicações.

A edição de um embargo ou de uma moratória sobre o comércio de bens culturais

oriundos do Iraque após 6 de agosto de 1990 e da Síria após 15 de março de 2011 seria somente a

reiteração e densificação da normativa enunciada pelo parágrafo 7 da resolução 1483 e do

parágrafo 17 da resolução 2199. O embargo poderia ser o eco visado pela resolução 2199,

enquanto que a moratória poderia parecer mais adequada no que tange à realidade e

temporalidade da resolução 1483. Em ambos os casos, a edição dessas medidas mostra uma

responsabilidade do Conselho de Segurança; elas teriam como vantagem a acentuação do nível

de exigência do respeito das obrigações do parágrafo 7 da resolução 1483 e do parágrafo 17 da

resolução 2199, de unificar sua execução e garantir sua primazia.

Por outro lado, elas poderiam ser percebidas como um reconhecimento implícito de uma

fraqueza na execução por parte dos Estados das obrigações prescritas e alterariam, portanto, a

abrangência das resoluções 1483 e 2199, no que tange a seus dispositivos que visam à proteção

de bens culturais.

b) Disposições modelo adereçadas aos Estados

25 25 IDI, Resolução de 23 de agosto de 1898, Anuário, 1898, t. 17, p. 284. 26 Ver S/RES/917 (1994) de 6 de maio de 1994. 27 S/RES/757 (1992) de 30 de maio de 1992, sobre o embargo à antiga Iugoslávia. Resolução citada a título de exemplo, as resoluções do Conselho de Segurança que trazem sanções econômicas e comerciais comportam esse tipo de dispositivo.

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Estudo  jurídico  sobre  a  proteção  do  patrimônio  cultural   17  

A satisfação das exigências de proteção e salvaguarda do patrimônio cultural pode ser

reforçada pela assistência fornecida pelos Estados-membros para que eles se conformem

plenamente ao parágrafo 7 da resolução 1483 e ao parágrafo 17 da resolução 2199. Esse auxílio

pode tomar a forma de diretrizes ou de disposições modelo adereçadas aos Estados para

inserirem, em seu direito interno, as obrigações presentes nas resoluções.

As diretrizes da Associação Americana de Diretores de Museus (AADM) fornecem um

quadro teórico para construir essas disposições modelo para reforçar as legislações nacionais

dentro de uma perspectiva de satisfação das exigências no que tange à proibição do comércio de

bens culturais iraquianos e sírios, assim como à sua restituição. As Guidelines on the Acquisition

of Archaeological Material and Ancient Art (revised 2013) são apoiadas pela Convenção da

UNESCO de 1970 para prescrever a interdição da aquisição e a natureza da obrigação de

diligência no que tange aos bens culturais e arqueológicos.28

O suporte dado pela Convenção da UNESCO de 1970 é um princípio de ordem

deontológica, o qual coloca a Convenção como bloqueio que funda uma nova ordem

internacional para o controle da circulação de bens culturais e de seu retorno ao país de origem.

No escopo do parágrafo 7 da resolução 1483 e do parágrafo 17 da resolução 2199, esse bloqueio

é de outra ordem; ele é fundado, no que diz respeito aos riscos de dispersão aos quais são mais

expostos os bens culturais iraquianos e sírios, nas datas de 6 de agosto de 1990 para o Iraque e 15

de março de 2011 para a Síria, como o estipulado pelo parágrafo 17 de resolução 2199.

Utilizando como apoio sobre os parágrafos 7 da resolução 1483 e 17 da resolução 2199,

a disposição modelo seguinte poderia ser adereçada aos Estados-membros para a elaboração ou a

revisão das legislações e regulamentação nacionais:

Nenhum museu ou instituição patrimonial pode adquirir o bem cultural de origem síria ou iraquiana, salvo se pesquisas profundadas sobre a proveniência desse bem estabelecerem com certitude: - que o bem cultural estava fora do país de origem – país onde ele foi descoberto ou anteriormente conservado ou identificado – antes de 6 de agosto

28 “Museus membros normalmente não deveriam adquirir uma obra a não ser que uma pesquisa substancial sobre sua proveniência demonstre que a obra não estava no país onde foi provavelmente descoberta antes de 1970 ou de onde foi legalmente exportada após 1970.”

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18   Vincent  Negri  

de 1990 para o Iraque e de 15 de março de 2011 para a Síria, ou - que o bem cultural foi igualmente exportado para fora do seu país de origem – país onde ele foi descoberto ou anteriormente conservado ou identificado – antes de 6 de agosto de 1990, para o Iraque, e de 15 de março de 2011, para a Síria.

Tal disposição deve ser articulada com a Convenção da UNESCO de 1970 para que não

seja interpretada como uma liberalização do mercado de bens culturais e arqueológicos que estão

foram de seu país de origem, antes de 6 de agosto de 1990, para o Iraque, e de 15 de março de

2011, para a Síria, inconsistente com as obrigações prescritas pela Convenção da UNESCO de

1970, Convenção da qual a Síria e o Iraque são partes. Também consiste em prevenir uma

interpretação dessas resoluções que afastaria a Convenção UNESCO de 1970,29 de modo a reter

somente as obrigações dos parágrafos 7 da resolução 1483 e 17 d a resolução 2199 e suas

referências cronológicas. Deve, assim, ser regulamentada a abrangência, no tempo, das

obrigações que são impostas ao Estado no que tange ao Iraque e à Síria. Nesse sentido, a situação

jurídica dos bens culturais que se encontram fora do Iraque antes de 6 de agosto de 1990 e da

Síria antes de 15 de março de 2011 deve continuar sendo regida pela Convenção da UNESCO de

1970, contada da sua entrada em vigor, a saber 12 de fevereiro de 1973, para o Iraque, e 12 de

fevereiro de 1975, para a Síria.30 Essa situação poderia ser o objeto da seguinte disposição

modelo:

Quando um bem cultural estiver fora de seu país de origem antes de 6 de agosto de

1990, para o Iraque, e antes de 15 de março de 2011, para a Síria, o museu ou instituição

patrimonial deve verificar e assegurar, por todos os meios e antes de qualquer projeto de

aquisição, que o bem cultural foi legalmente exportado após 12 de fevereiro de 1973, no que

tange ao Iraque, ou 21 de fevereiro de 1975, para a Síria.

A abrangência dessas disposições pode ser estendida, por uma disposição ad hoc, aos

profissionais do mercado da arte. Outra opção pode consistir na adoção de uma redação

impessoal para visar ao conjunto de transações independentemente de seu autor, instituição ou

particular.

29 Sobre essa questão da primazia das obrigações oriundas de uma resolução do Conselho de Segurança sobre um tratado internacional: CIJ, 14 de abril de 1992, Líbia c. Reino Unido, § 39; V. supra note 21. 30 V. Em anexo as Convenções da UNESCO de que o Iraque e a Síria fazem parte.

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Estudo  jurídico  sobre  a  proteção  do  patrimônio  cultural   19  

c) Comitê de acompanhamento dos parágrafos 7 da resolução 1483 e 17 da

resolução 2199

O acompanhamento da execução dos parágrafos 7 da resolução 1483 e 17 da resolução

2199 poderia ser confiada a um comitê especializado, instituído conforme o artigo 28 do

Regulamento do Conselho de Segurança. Tal perspectiva reforça a responsabilidade dos Estados

no que tange às obrigações e exigências dessas resoluções, no que diz respeito a seus dispositivos

que visam à proteção de bens culturais. O princípio de um Comité especificamente dedicado à

execução dos parágrafos 7 da resolução 1483 e 17 da resolução 2199 colocaria o foco sobre a

questão essencial da proteção de bens culturais durante um conflito armado e o período de pós-

conflito e evita, assim, uma dissolução dessa questão dentro da regulamentação da transferência

de bens, dentro do quadro de luta contra o terrorismo, tal como previsto na legislação canadense

de 2010.31 O mandato desse Comitê deveria, portanto, corresponder a uma obrigação dos

Estados-membros de apresentar, seguindo uma periodicidade fixa, as medidas que seriam

tomadas ou previstas para colocar em execução os parágrafos 7 da resolução 1483 e 17 da

resolução 2199.

V. Conclusões

A resolução 2199 e, especialmente seu parágrafo 17, que reitera as decisões do parágrafo

7 da resolução 1483 sobre os bens culturais iraquianos, formula novas obrigações para preservar

o patrimônio sírio, reforçando a luta contra o terrorismo. Essas resoluções contêm uma disciplina

coletiva que, longe de retirar a responsabilidade própria dos Estados, deveria canalizar sua ação

individual e favorecer a adesão unanime dos sujeitos de direito ao interesse geral da humanidade

de proteger e salvaguardar o patrimônio cultural dos povos.

Essa disciplina coletiva, que é postulada pelo parágrafo 17 da resolução 2199, fortalece a

dimensão costumeira da obrigação de respeitar o patrimônio cultural dos povos – projeção

normativa de um interesse geral da humanidade – e a consolidação do caráter erga onmes. A

31 Ver supra.

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20   Vincent  Negri  

abrangência dessa norma consuetudinária deve ser avaliada à luz de princípios sobre a

responsabilidade internacional dos Estados tais quais oriundos do Projeto de Artigos sobre

a Responsabilidade Internacional do Estado por Atos Internacionalmente Ilícitos adotado pela

Comissão de Direito Internacional.32 O artigo 48, que trata da invocação de responsabilidade por

um Estado que não seja o lesado, dispõe que “qualquer Estado, além do lesado, pode invocar a

responsabilidade de outro Estado, se (…) a obrigação violada existe em relação à comunidade

internacional como um todo”.

25 de março de 2015

Tradução: Alice Lopes Fabris

32 A resolução 56/83, adotada em 12 de dezembro de 2001 pela Assembleia Geral das Nações Unidas [A/RES/56/83 (2001)], “nota os artigos sobre a responsabilidade dos Estados por atos internacionalmente ilícitos apresentado pela Comissão de Direito Internacional […] e recomenda que os governos deem a devida atenção aos mesmos; sem prejudicar a sua eventual adoção ou toda outra medida apropriada a ser tomada”.

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Anexo: Convenções da UNESCO nas quais o Iraque e a Síria fazem parte

Instrumentos normativos Data de entrada em vigor

Iraque Síria

Convenção de Haia para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado e seu regulamento de sua execução, adotada em Haia, em 14 de maio de 1954

21 de dezembro de 1967 6 de março de 1958

       Convenção de Haia para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado e seu regulamento de sua execução, adotada em Haia, em 14 de maio de 1954

21 de dezembro de 1967 6 de março de 1958

Protocolo à Convenção, adotado em Haia, em 14 de maio de 1954 21 de dezembro de 1967 6 de março de 1958

Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais, adotada em Paris, em 14 de novembro de 1970

12 de fevereiro de 1973 21 de fevereiro de 1975

Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, adotada em Paris, em 16 de novembro de 1972

5 de março de 1974 13 de agosto de 197533

Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, adotada em Paris, em 17 de outubro 2003

6 de janeiro de 2010 11 de março de 2005

Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, adotada em Paris, em 20 de outubro de 2005

22 de julho de 2013 5 de fevereiro de 2008

33 Em sua adesão a Convenção da UNESCO de 1972, dentre as reservas formuladas pela Síria, temos: “o governo da República Árabe da Síria considera que o sistema de cooperação previsto no artigo 7º impõe aos Estados membros a prestação de toda ajuda possível ao Estado cuja parte de seu território é ocupado a fim de preservar o patrimônio”.