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    /51/ A esttica narcsica da sociedade de consumo1

    Verlaine Freitas2

    Resumo: O objetivo do texto fazer uma anlise de um dos elementosque fundamentam a sociedade de consumo e particularmente a cultura

    de massa, a saber, o carter narcsico do indivduo. A tese mais geralque pretendemos defender a de que a sociedade contempornea

    estabelece uma postura esttica fundada no gozo narcisista de percebertodos os objetos consumidos como signos da inteireza do prprio ego.

    Como auxlio para essa anlise, tomamos o conceito de trgico a fim

    de mostrar como que at mesmo o sofrimento pode ser assimiladosegundo essa dinmica narcsica e esttica.

    Abstract: The text goal is to make an analysis of one of the elements

    that founds the consumption society and particularly the mass culture,namely, individual's narcissistic character. The most general thesis to

    be defended is that the contemporary society establishes an aesthetic

    posture, founded in the narcissistic lust of realizing all of theconsumed objects as integrity signs of the ego. To assist the analysis,

    we take the concept of tragic in order to show how even the sufferingcan be assimilated according to this narcissistic and aesthetic dynamic.

    Palavras-chave :

    Cultura de massa, narcisismo, trgico, consumo, Theodor Adorno, Jean Baudrillard.

    /52/ Keyword:Mass culture, narcissism, tragic, consume, Theodor Adorno, Jean Baudrillard

    Uma caracterstica da cultura de massa a de que virtualmente qualquerobra particular espelha todo o sistema de produo (tanto dos bens de consumo em

    geral quanto das mercadorias culturais). Aquilo que s poderamos perceber olhandopara todo o conjunto de tais produtos parece se deslindar in nucena concretude de cadaobra. Isso se deve ao fato de que os sistemas de produo, consumo e publicidadetornaram-se to homogneos, que virtualmente toda mercadoria apenas reafirma, comalguma variao, o poder de uns poucos princpios de sua efetividade. Nosso objetivoaqui esclarecer um desses pilares de sustentao da sociedade de consumo. E paraexemplificar nossa tese inicial indicada acima, vejamos um exemplo.

    Um horscopo teria como sua funo mais substancial nos dias de hoje,integrantes do que podemos chamar de capitalismo tardio, no prever do futuro, nemdizer das condies materiais de nossa existncia, mas sim propiciar o conhecimento doque se passa intimamente em ns, de tal maneira que nossa identidade profissional,

    afetiva, social, etc., seja alcanada por um discurso que ecoa nossa expectativa e nossosmedos em relao ao que podemos configurar numa identificao que oscila entre orudemente precrio e o abstratamente totalizante. O que se quer obter nos mapasastrais e nos peridicos dirios uma forma de individualidade abstrata, concebida detal modo que a vida possa ser pautada por uma diretriz razoavelmente consciente. Apergunta que esta produo cultural procura responder : o que sou eu?, e no quem

    1Publicado na revistaEducao efilosofia. Vol.17, nmero 34. Uberlndia: UFU, 2003, pp.51-64. Os nmeros entrebarras (/ / ) indicam as pginas dessa edio.2Doutor em filosofia e professor da UFMG

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    sou eu?, pois qualquer leitor destes textos sabe muito bem que aquilo que est sendofalado no se dirige especificamente a ele, mas quela pessoa que tem aquele signo, comtal ascendente, que se iguala potencialmente a inumerveis outras pessoas.3Esta carnciade identidade relaciona-se a um estado patolgico / 53/ da sociedade contemporneabastante bem descrito a partir da noo psicanaltica denarcisismo.

    Da mesma maneira que Narciso, o personagem da mitologia grega,apaixonou-se por sua prpria imagem e acabou sucumbindo ao afogar-se na superfcieda gua que lhe refletia, o indivduo contemporneo possui uma sede por conquistaruma expresso razoavelmente coesa daquilo que ele possa chamar de eu. A paixo deNarciso, no indivduo contemporneo, significa a busca desse objeto to acalentado,que parece ser o nico capaz de permanecer constante, apesar das flutuaes de toda asdesavenas polticas, correntes ideolgicas, variaes de humor do chefe, alteraes nomercado de cmbio, etc. como se o prprio ego fornecesse uma ancoragem para que

    todo o espetculo da vida possa fazer sentido. Assim como Arquimedes precisava deum ponto fixo para mover o mundo, o indivduo contemporneo parece precisar deum fio constante, cuja tenso ele possa medir com toque dos dedos, da mesma maneiraque se toca uma corda de violo, a partir da qual ele ento possa estabelecer um vnculoentre si mesmo e o mundo, o qual passa a ser percebido, assim, como uma espcie deressonncia dele mesmo.

    Para delinear o que poderia ser o esboo mais geral desse indivduo queprocura assentar sua identidade em contornos tanto mais estveis, seria interessanteremeter nossa anlise a um dos trs lemas da revoluo francesa, que acabou instituindoum modo de auto-compreenso por assim dizer metafsico, que o conceito deliberdade. Se podemos falar de uma ontologia do modus vivendi do indivduocontempornea, uma espcie de fundamento metafsico para o reino dos fatosempiricamente constatveis, este o do espao da liberdade humana. Todo o espritodo capitalismo, com seu mito da concorrncia e do mercado que se auto-regule, estfundamentado na possibilidade de os empresrios poderem exercer livremente, sem osentraves da orquestrao estatal, sua atividade econmica. O / 54/ neoliberalismo, comtodas suas diferenas em relao aos comeos histricos da vida burguesa, acabafazendo apelo mais radical ainda ao espao da pretensa concorrncia livre entre osempresrios. O horizonte descortinado pela idia de liberdade invade quase todas asesferas da cultura. Ele vai desde os interesses mercadolgicos das altas esferasempresariais at a falsa possibilidade do operrio de escolher para quem ele quer

    trabalhar. Kant, representante emrito do iluminismo no mbito filosfico,estabeleceu a liberdade moral como fundamento da subjetividade, a partir da idia quetodos ser racional tem o direito de fazer de si como capaz de agir independente daconcatenao causal dos fenmenos. Mas no s na esfera moral ocorre essa

    3Deve-se notar, aqui, uma semelhana acentuada entre os signos astrolgicos e o totemismo. Este um sistemade parentesco tribal bastante freqente que consiste em assumir um animal (o totem) como patriarca de um cl.

    As diversas famlias nomeiam-se a partir da relao com esse ente, considerando-o sagrado e protetor de todosque se afiliam a ele. Cada membro tem sua identidade assegurada precisamente pelo fato de se perceber sob agide da guia, do touro, do leo, etc.

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    determinao do sujeito a partir da liberdade, pois a esfera esttica tambm umespao para o uso livre de nossas faculdades. O juzo de gosto, diz Kant, baseado,tem seu fundamento, no uso livre que podemos fazer de nossa imaginao e de nossoentendimento, de tal maneira que nossa mente encontra-se em um estado timo, deharmonia, em que a imaginao no se submete ao poder determinante da abstraoconceitual do entendimento. O prazer da beleza no seria vinculado a nenhuminteresse, seja este vinculado ao agradvel da sensao, nem materialidade do objetocorrespondente ao que se considera perfeito ou til nele. A imaginao, nessemomento, produz uma espcie de esquema sem conceito, como que tentasse, em vo,

    vincular a singularidade da representao sensvel e a universalidade conceitual doentendimento. Esta impossibilidade de acoplagem entre essas duas faculdadescaracteriza um estranhamento entre sujeito e objeto de tal maneira que o nico modode explicar a emergncia dessa forma que vemos a assuno de que haveria uma

    finalidade imanente a ela para favorecer nossas faculdades. como se o objeto, em suaforma, possusse uma finalidade sem que consegussemos estabelecer conceitualmentequal o fim que a explica. Imaginativamente, percebemos essa finalidade, mas nossointelecto mostra-se fracassado na tentativa de delimitar abstratamente essa nossaatividade.

    A sociedade de consumo atual, fundamentalmente expressa pelosprodutos da indstria cultural, parece introduzir uma caricatura bastante distorcidadessa caracterstica da liberdade de nossas faculdades / 55/ do juzo esttico kantiano.Todos os produtos que podemos comprar, msicas que podemos ouvir, filmes eprogramas que podemos assistir, etc., produzem um ambiente em que proliferamelementos apropriveis segundo uma dinmica ldica, despreocupada, que parece ser ooposto exato da premncia do trabalho maante e repetitivo a que se est sujeitonormalmente na vida cotidiana. Se a falsa liberdade de escolha dos locais de trabalho desmascarada pela monotonia do trabalho que no possui criatividade, a infinidade deopes de objetos que nos circulam parece colocar uma imagem enftica do mar depossibilidades em que nossa liberdade possa ser exercida virtualmente sem limites. Oprottipo dessa experincia a do espectador com o controle remoto diante dotelevisor. Com o mero apertar de um boto ele pode varrer toda a gama de programasem qualquer horrio que escolha, fugindo at mesmo dos limites estipulados pelotempo, pois a possibilidade de gravar os programas pelo videocassete acaba conferindoao ato temporalmente circunscrito de relao com o objeto uma amplitude virtualmente

    indefinida. O espectador precisa sentir concretamente sua potncia de escolher, vera si mesmo como um centro de livre arbtrio, de livre deciso, de tal modo que asubstancialidade de seu ego seja assegurada. Vrios programas de televiso tentamconcentrar esta possibilidade de escolha sem que o espectador tenha que mudar decanal, oferecendo-lhe diversas alternativas em que possa votar. bastante grande onmero de programas que acrescentam alguma espcie de enquete ou de pesquisa parasaber a opinio do espectador. preciso passar a cada um dos consumidores a idia deque ele no um ser passivo, mas sim suficientemente ativo para determinar aquilo queele quer. Entretanto, exatamente neste mar de possibilidades em que o espectador

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    pode-se imaginar como sendo livre, que ele est emaranhado em um fimcomercialmente bem determinado. Independente da escolha que ele faa, toda a suaatividade serve o propsito de mant-lo como o espectador. Sua liberdade apenas amscara ilusria e cnica para a manipulao dele como mero consumidor. O livre jogoentre imaginao e entendimento, ncleo da esttica kantiana, torna-se apenas umailuso ardilosamente planejada. Da mesma maneira que o consumidor quando entra umshopping /56/ center permanece um consumidor, independente do produto quecompre, no meio de infindveis lojas que vendem virtualmente tudo, desde casinhapara o seu cachorro at o ltimo modelo da Mercedes-Benz, o ouvinte das msicas decultura de massa, independente de seu gosto musical, configura-se como apenas maisum que consome e que sustenta a indstria cultural.

    O fundamento da cultura do consumo a da apropriao esttica dogozo narcsico de manipular ludicamente qualquer coisa que se afigure como signo da

    inteireza de si mesmo. Em outras palavras, a grande fantasia que move o indivduocontemporneo a de que ele possui um ego suficientemente forte capaz de prolongara sensao de prazer que ele busca em cada um dos objetos que poderia refletir suaimagem. O ego e todos infinitos objetos que podemos comprar e que gostaramos dependurar na parede como psteres funcionam como uma espcie de ecossistema emque a ordem da natureza mostra apenas que o desenrolar da histria confirma que nsmerecemos ter aquilo que desejamos; como se a simples possibilidade de comprarmosou de ouvirmos ou de assistirmos alguma coisa pudesse proporcionar este vnculo,semelhante a um cordo umbilical, que estabelecesse aquele prazer pleno de integraocom a ordem uterina da natureza. Todos gostaramos de nos sentir em casa no mundo,que funciona como uma enorme metfora para o tero materno e para uma espcie deconcepo espacial de nossa prpria subjetividade. Tudo o que se pretende dos objetos apenas que eles confirmem que o nosso desejo tem uma certa legitimidade, expressanesta marcha inexorvel de nossa vida e que vai se estendendo medida queconseguimos gerar um tecido razoavelmente homogneo capaz de circunscrever toda anossa libido, nosso desejo que se apossa dos objetos como se quisesse apossar-se doprprio eu. As civilizaes mticas no conheciam muito bem os limites daindividualidade e do todo coletivo, que tambm se mesclava com as foras csmicasnaturais e divinas. Hoje em dia, na nsia de buscar esta solidez almejada como o cumeda felicidade, o sujeito tambm parece perder aquilo que ele tanto procura, que olimite que circunscreve a sua prpria identidade. Os objetos nos do uma identidade

    estereoscpica, constituda por esta trama de relaes espaciais e de multiplicidadetemporal / 57/ expressas nos programas de televiso e nas msicas que podemos irpassando aleatoriamente com os botes dos aparelhos de som. A rigor, no se gostamuito dos programas, nem das msicas, nem dos filmes, nem dos objetos quecompramos. Eles so apenas catalisadores do processo de busca eterna de ns mesmos,em que o fracasso constante desta busca acaba no sendo sentido como algo ruim, poisfaz parte do prprio jogo, como, na expresso de Jean Baudrillard, uma errncialdica. Para os consumidores da indstria cultural, fcil extrair prazer daquilo queno se gosta. Pois qualquer produo medocre d precisamente o prazer de sercriticado, proporciona a suprema satisfao narcisista de se perceber como algum que

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    tem bom gosto, que capaz de apreciar o que bom e de diferenciar daquilo que ruim. Por mais mal gosto que algum possa ter, ele pode estar tranqilo de que teroportunidade de ver alguma outra coisa que ele pode taxar de mau gosto: no h limitepara a necrose de nossas capacidades de apreciao do valor esttico das coisas.

    Segundo Nietzsche, o grande protagonista da tragdia grega eraDionsio, com seus martrios e sua eterna fora de rejuvenescimento. Os protagonistasque foram trazidos cena pelos grandes tragedigrafos, squilo, Sfocles e Eurpedes,so apenas formas decadentes deste esprito dionisaco a partir do qual a tragdiasurgiu. De modo anlogo, podemos dizer que o grande heri de toda a cultura demassa a individualidade burguesa que se descolou dos grandes ideais da cultura e quepassou a apreci-los a partir de sua tica individualizada. Mas, do mesmo modo que osheris trgicos, ele tambm possui sua histria de martrio, de sofrimento. Visto daperspectiva estritamente individual, este sempre parecer sem sentido, vazio,

    injustificado. Dentre as inumerveis funes da civilizao e da cultura como um todo,fornecer uma legitimidade para tal sofrimento sempre se configurou algo de sumaimportncia, uma vez que isso garante a coeso da sociedade e a prpria vida dosindivduos. Embora a religio ainda tenha um peso considervel como meio paracumprir essa tarefa, pelo menos desde meados do sculo XX ela se mostra cada vezmais deficiente e inoperante em diversas classes sociais. A idia de um catlico no-praticante algo bastante disseminado nas classes mdias. Alm disso, o extremo cultoda individualidade, / 58/ do prazer da posse de um ego desconectado das grandesformas culturais parece carecer de relatos mais puntiformes, que reflitam esta vidadisseminada por afazeres, sentimentos e percepes sem um lastro metafsico tosubstancial quanto a religio monotesta. Isso significa que mesmo aqueles que pautamsua existncia pela mensagem religiosa necessitam de um discurso que satisfaa suansia de determinao microlgica. Esse espao preenchido precisamente pela culturade massa.

    A tragdia grega, segundo Theodor Adorno, a expresso literria domomento histrico de desenvolvimento da subjetividade, em que o indivduo comea ase perceber da fissura existente entre sua singularidade e a ordem csmica avassaladora.Nas palavras de Jean Pierre Vernant, a conscincia trgica surge no momento em queos planos divino e humano no esto totalmente unidos, mas no radicalmenteseparados, de tal modo que toda ao humana se coloca como um desafio ao futuro,em que a deciso dos deuses algo inesperado, somente se d a conhecer no desfecho

    trgico com que as aes do protagonista se encadearam de modo cego para ele, e cujosentido somente perceptvel no olhar dos espectadores, que conseguem abarcar comsua viso todas as unilateralidades dos personagens, que no se comunicam em umalinguagem homognea, mas cheia de falhas e entraves. O esprito trgico, ento, mostrao surgimento ainda precrio da conscincia da diferena entre o indivduo e a totalidadesocial e csmica. O que se pode chamar de herico significa esta ousadia em relao aombito de penumbra, de indeterminao, em que a arrogncia dos homens a nicaforma de constituir a plis, a cidade, como tendo legitimidade de existncia perante afora da necessidade natural que tudo parece englobar em um ciclo de nascimento emorte que ameaa fazer dos homens apenas mais um ser tragado nesta onda de fluxo e

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    refluxo. Tenta-se arrancar um sentido das garras da noite eterna que parece abater-sesobre os homens na sua luta esganiada por permanecer vivo.

    Se a indstria cultural quer dar aos indivduos a satisfao narcisista deeles possurem um ego, necessrio que ela lhes d, tambm, a satisfao de perceberque seu sofrimento cotidiano tem um sentido, uma razo de ser. De modo semelhantea como o heri trgico / 59/ laborava na busca da constituio de um espao decontingncia no meio da necessidade natural, o indivduo contemporneo precisa daidia de que as coisas podem ser modificadas pela sua liberdade, de que as coisas noestejam decididas de antemo, que seu esforo valha a pena. A moral puritana queprivilegia o trabalho, que confere uma dignidade para aquele que se dedica comperseverana em suas tarefas sempre ser til para a manuteno do status quo, mas elano se mantm, no estdio contemporneo do capitalismo, com a mesma forma comque o fazia no sculo XIX. A necessidade surgida a partir de meados do sculo XX a

    de uma felicidade imediata, vista como uma espcie de premiao pelo mrito que no recompensado atravs dos salrios miserveis que so pagos a cada trabalhador.Todas as infinitas variaes de jogos, como as loterias, sorteios, concursos de slogans,logotipos, etc, alm da eterna busca por talentos para os programas televisivos,constituem partes de uma enorme narrativa mtica, que a da felicidade gratuita, semesforo, recebida como um dom divino, auferido a quem a recebe como uma espciede premiao pelo esforo cotidiano. Todas essas instituies de bajulao daconscincia narcisista de merecimento da felicidade contribuem para fomentar o prazerda integrao do indivduo na sociedade, uma vez que a premiao tem seu sentidosocial assegurado na medida em que o indivduo pode perceber intimamente que amerece, que ela no absolutamente casustica. Alm disso, a prpria marcha daestrutura econmica capitalista sabe mostrar aos indivduos que sua discrepncia emrelao s leis do mercado configura sua morte virtual.

    A cultura de massa a da resignao perante a onipotncia coletiva. Damesma maneira que o indivduo sabe que a ordem econmica no segue seus desejos,que prefervel tentar se adaptar a ela do que estabelecer uma vida que lhe sejaindiferente, todos grandes heris, mocinhas, ricaos, smbolos sexuais, etc., da indstriacultural estipulam imagens e ideais com que as pessoas podem se identificar como setodos eles dissessem respeito a alguma coisa que ele pode perceber em si mesmo, sejaem seus desejos efantasias mais onipotentes e infantis, at suas idiossincrasias menosnobres e elevadas. Entretanto, todo este mundo onrico de humanizao exacerbada,

    / 60/ borbulhante de caractersticas individuais e sublimes, no permite umaidentificao imediata e simples. Como diz Adorno, as pessoas no so to estpidas osuficiente para achar que elas tm o direito de se colocar no lugar de seus dolos. Aindstria cultural sempre conta com um resto de bom senso por parte de seusconsumidores, que, sabendo usar o princpio de realidade, percebem com clareza queeste mundo onrico no est a seu dispor, como se dependesse de sua vontade realizareste cu de bem-aventurana aqui na terra. Desse modo, a conjugao desse idealapreendido pela imaginao e o entendimento claramente estabelecido do princpio derealidade resulta na resignao, na conscincia de que prefervel riscar de vez portodas a esperana de participar desse mundo das estrelas e se contentar com este gozo

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    imaginrio de pertencer a ele. Assim, a indstria cultural produz incessantemente umacatarse dos mpetos revolucionrios, subversivos, crticos e libertadores. Todos elessolicitam do indivduo a conscincia de que a felicidade somente se alcana pelo esforode superao do estado de misria, atravs do trabalho sistemtico e contnuo dopensamento crtico, que virtualmente negado pela srie de associaes entre imagensborbulhantes que se oferecem sem cessar mente dos consumidores.

    Essa ponte entre a particularidade desejante e impotente e auniversalidade rica e inacessvel estabelecida precisamente pelo que ns conhecemospor consumo. No existe muita diferena, no mbito da indstria cultural, entre ver umprograma e comprar os produtos anunciados nos intervalos comerciais, pois a lgica doprocesso a mesma para as duas atitudes: trata-se de estabelecer um vnculo entreaquelas duas esferas do particular e do universal. Mas uma caracterstica que devemosenfatizar de que este vnculo feito como se fosse um curto-circuito, sem o esforo

    de constituio de uma rede de elementos simblicos resultantes de nossoautoconhecimento, que, procurando superar as deficincias de nosso olhar para a redede significantes que constituem nosso desejo, almeja construir um sentido a partir desteprprio labor. De modo anlogo a como a f do religioso produz um contato imediatodo pecador na sua insignificncia com o deus todo poderoso em sua infinitamagnificncia, a tela da televiso conecta aquele ser cansado, sedento por ummomento / 61/ de distrao, de relaxamento, com um mundo prenhe de umauniversalidade vicejante em infinitas imagens que se descortinam sua frente e quepodem ser selecionadas a todo instante com movimento de seu polegar. Da mesmamaneira que o homem seria feito imagem e semelhana de Deus, pois tem o livre-arbtrio infinito de escolher entre o bem e mal, o consumidor tambm foi feito imagem e semelhana do astro rico e bonito, na medida em que pode escolher assistir ofilme em que o gal a estrela principal e depois comprar os culos usados no prpriofilme. A indstria cultural a religio do divertimento. Do mesmo modo que ocristianismo um religamento daquele pecador que se afasta de Deus, a indstriacultural aproxima o consumidor da identidade que ele sempre procura, perdido na sriede esforos que parecem inteis, sem sentido, corrosivos para seu amor-prprio. Demodo anlogo a como Dionsio sempre ressurgia das cinzas com vigor renovado, oindivduo narcisista contemporneo sempre parece emergir a cada sesso de cinemacom seu ego engrandecido.

    Segundo Lyotard, o ps-modernismo caracterizado pela runa dos

    grandes relatos com que a Antiguidade e a poca moderna legitimavam a ordem social ede natureza. Passou-se a procurar princpios de inteleco e de justificativa prticacircunscritos a determinados grupos, no interior dos quais seus membros compartilhemda confiana de determinados preceitos indemonstrveis, semelhante a como ThomasKuhn fala da incomunicabilidade de paradigmas ou matrizes disciplinares. A indstriacultural parece fornecer uma estranha sntese entre um relato to onipresente e adisperso em infindveis e micro-relatos, reconhecveis por cada indivduo. Isso realizado precisamente pela cultura narcisista dos meios de comunicao de massa, que

    vende continuamente diversos modelos de carter, posio social, gostos, posiopoltica, etc., de tal modo que a adoo deste ou daquele trao distintivo a partir de tais

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    paradigmas estabelea a possibilidade de personificao de cada indivduo. Aparticipao no mundo das estrelas televisivas e cinematogrficas no apenas aaquisio imaginria de status, mas a insero em um mundo de signos abstratos,atravs dos quais as pessoas falam e se comunicam. No h cultura humana em sentidoestrito sem linguagem, / 62/ que nunca apenas individual, mas um patrimniocoletivo a ser assimilado por seus integrantes. A indstria dos bens culturais torna-ossignificantes, portadores de significados sociais mveis, arbitrariamente fixados. Damesma maneira como um sintoma corporal histrico o resultado de uma inervaosomtica a partir de um conflito psquico, cada gesto, cor, palavra, objeto ou cenausados na indstria cultural podem servir de apoio imaginrio para um investimentolibidinal qualquer, fomentado pela rede de foras do jogo social, poltico e econmico.Como fundamento metafsico para essa mobilidade entre os esteretipos vendidos e ossignificados que se fixam individualmente a eles a partir da dinmica dos grupos est a

    satisfao narcisista de glorificao do ego.Antes da indstria cultural, a dignificao do particular era estabelecidaatravs da mediao laboriosa dos sistemas sociais estabelecidos simbolicamente nacincia, nas leis, na filosofia, na arte e nas religies. A cultura de massa pode facilmentedispensar esse trabalho devido ao poder miraculoso da presena universal. O cinema, otelefone, o rdio, a televiso e a internet so modos de materializao compulsiva do

    vnculo outrora to instvel e difcil da espessura sofrida do indivduo e da sublimidadeterrvel do universo coletivo. Nos dias de hoje, basta aparecer na televiso para alcanarreconhecimento, prestgio e mrito. Muitos concursos oferecem como prmio to-somente aparecer num programa de televiso, como se isso, alis, no tivesse nempreo, uma vez que no faria sentido pagar para ser visto nessas circunstncias. Comodiz Adorno, show o que se mostra e j pelo simples fato de ser mostrado torna-seespetculo. A confirmao avassaladora disso so os reality-shows.

    Esse tipo de programa mostra bastante enfaticamente algo que estpresente em toda a sociedade de consumo e particularmente nos meios de comunicaode massa, que o gozo narcisista que se tem ao se poder manipular ludicamente,atravs da distncia da contemplao estetizada, o prprio sofrimento, idiossincrasias,tolices, medos, ansiedade, raivas, desejos, fantasias sexuais de toda ordem e assim pordiante. O que a indstria cultural mais vende em todos seus produtos a iluso de queas pessoas podem recriar-seo tempo todo a partir de uma coleo infinita de pequenosdetalhes de seu cotidiano, / 63/ pelo fato de poderem dispor de cada um deles em uma

    totalidade cheia do brilho da exposio universal embelezada atravs dos mecanismosultra-tecnolgicos desses meios.

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