Ensino de Antropologia No Brasil

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ENSINO DE ANTROPOLOGIA NO BRASIL: Formação, práticas disciplinares e além-fronteiras Florianópolis, SC - 2006 Organizadoras Miriam Pillar Grossi Antonella Tassinari Carmen Rial

Transcript of Ensino de Antropologia No Brasil

  • ENSINO DE ANTROPOLOGIANO BRASIL:

    Formao, prticas disciplinarese alm-fronteiras

    Florianpolis, SC - 2006

    OrganizadorasMiriam Pillar GrossiAntonella Tassinari

    Carmen Rial

  • Copyright 2006ABA - Associao Brasileira de Antropologia

    Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, armazenamento ou transmisso departes deste livro, atravs de quaisquer meios, sem prvia autorizao por escrito.

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Municipal Dr. Fritz Mller

    CapaIluminuras da Idade Mdia

    Woman teaching geometry; Teaching History; Hild Vision; Ensino

    RevisoFernanda Cardozo

    Rafael Azize

    Projeto grfico e impressoNova Letra Grfica e Editora

    Impresso no Brasil

    301.981 E56e Ensino de antropologia no Brasil: formao, prticas disciplinares e alm fronteiras / organizadoras Miriam Pillar Grossi, Antonella Tassinari, Carmen Rial. -- Blumenau : Nova Letra, 2006 454p.

    ISBN 85-7682-146-X

    1. Antropologia Brasil 2. Antropologia Ensino - Brasil I. Grossi, Miriam Pillar II. Tassinari, Antonella III. Rial, Carmen.

  • 3SUMRIO

    ENSINO DE ANTROPOLOGIA: UMA VELHA HISTRIA NA ABAMiriam Pillar Grossi ............................................................................................. 7

    O DEBATE DOS ANOS 90 - O ENSINO DA ANTROPOLOGIANO BRASIL - GESTO 1994/1996

    H DEZ ANOSMariza Peirano .................................................................................................... 15

    FORMAO E ENSINO NA ANTROPOLOGIA SOCIAL: OS DILEMAS DAUNIVERSALIZAO ROMNTICALuis Fernando Dias Duarte ................................................................................ 17

    TENDNCIAS DA PESQUISA ANTROPOLGICA NO BRASILPaula Montero ..................................................................................................... 37

    FORMAO OU EDUCAO: OS DILEMAS DOS ANTROPLOGOSPERANTE A GRADE CURRICULARPeter Fry ................................................................................................................ 59

    UM PONTO DE VISTA SOBRE O ENSINO DA ANTROPOLOGIAMariza Peirano .................................................................................................... 77

    DAMAS & CAVALHEIROS DE FINA ESTAMPA, DRAGES &DINOSSAUROS, HERIS & VILESMariza Corra ................................................................................................... 105

    UMA LEITURA DOS TEXTOS DA MESA REDONDA SOBRE O ENSINO DECINCIAS SOCIAIS EM QUESTO: A ANTROPOLOGIAPierre Sanchis ................................................................................................... 111

    SOCIEDADES TRIBAIS, URBANAS E CAMPONESAS, UMA PROXIMIDADEDESEJVEL: NOTAS PARA UM CURSO DE GRADUAO EMANTROPOLOGIA SOCIALAna Maria de Niemeyer .................................................................................. 127

  • 4TOTENS E XAMS NA PS-GRADUAOClaudia Fonseca ............................................................................................... 147

    BREVE CONTRIBUIO PESSOAL DISCUSSO SOBRE A FORMAODE ANTROPLOGOSKlaas Woortmann ............................................................................................ 165

    O ENSINO DE ANTROPOLOGIA NA GRADUAO DA UFPARaymundo Heraldo Maus ............................................................................. 191

    ENCONTRO DE ENSINO DE ANTROPOLOGIA:DIAGNSTICO, MUDANAS E NOVAS INSERES NOMERCADO DE TRABALHO - PONTA DAS CANAS -DEZEMBRO DE 2002 - GESTO 2002/2004

    O ENCONTRO SOBRE ENSINO DE ANTROPOLOGIAAntonella Tassinari, Carmen Rial e Miriam Grossi ..................................... 199

    ENSINO DE ANTROPOLOGIAEunice Durham ................................................................................................ 207

    O EXERCCIO DA ANTROPOLOGIA: ENFRENTANDO OS DESAFIOS DAATUALIDADEClaudia Fonseca ............................................................................................... 209

    ENSINO DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA: ALGUMASPRIMEIRAS NOTAS COMPARATIVASLilia Moritz Schwarcz ..................................................................................... 231

    PS-GRADUAO, GRADUAO E ESPECIALIZAO: NOVASDEMANDAS DE FORMAO EM ANTROPOLOGIAMiriam Pillar Grossi ........................................................................................ 249

    POR QUE GOSTAMOS TANTO DO CURSO DE CINCIAS SOCIAIS?Yvonne Maggie ................................................................................................. 259

    DIRETRIZES CURRICULARES PARA OS CURSOS DE GRADUAO EMCINCIAS SOCIAIS - ANTROPOLOGIA, CINCIA POLTICA, SOCIOLOGIAQUEBRANDO (AINDA QUE LENTAMENTE) A INRCIA: UMA PROPOSTADE CRIAO DO CURSO DE GRADUAO EM ANTROPOLOGIAWilson Trajano Filho ....................................................................................... 281

  • 5ANTROPOLOGIA E EDUCAO: HISTRIA E TRAJETOS/FACULDADEDE EDUCAO - UNICAMPNeusa Maria Mendes de Gusmo .................................................................. 299

    ENSINO DE ANTROPOLOGIA EM OUTROS CURSOSAlberto Groisman ............................................................................................. 333

    ENSINO DE ANTROPOLOGIA E FORMAO DE ANTROPOLGOS:CURSOS DE ESPECIALIZAO E MESTRADO PROFISSIONALIZANTEElisete Schwade ................................................................................................ 351

    A EXPERINCIA DA UCG/IGPA E O MESTRADO PROFISSIONALIZANTEEM GESTO DO PATRIMNIO CULTURALManuel Ferreira Lima Filho ............................................................................ 357

    COMISSO DE ENSINO DE ANTROPOLOGIA GESTO 2004/2006

    APRESENTAOYvonne Maggie e Fabiano Gontijo ................................................................. 363

    CONSIDERAES SOBRE A AVALIAO DOS CURSOS DE GRADUAOEM CINCIAS SOCIAIS PELO MEC/INEPChristina de Rezende Rubim .......................................................................... 367

    REFLEXES SOBRE O ENSINO DE ANTROPOLOGIA EM CURSOS DEPS-GRADUAO INTERDISCIPLINARESLcia Helena Alves Muller ............................................................................. 379

    ENSINO DE CINCIAS SOCIAIS OU ANTROPOLOGIA? UMA BREVEREFLEXO COMPARADA ENTRE O BRASIL E OS ESTADOS UNIDOSBenedito Rodrigues dos Santos ...................................................................... 385

    ANTROPOLOGIA E ENSINO DE GRADUAO: OBSERVAES A PARTIRDA EXPERINCIA DE CRIAO DO CURSO DE CINCIAS SOCIAIS DAFUNDAO GETLIO VARGASCelso Castro ...................................................................................................... 401

    ENSINO DE ANTROPOLOGIA NA GRADUAO: CINCIAS SOCIAIS OUANTROPOLOGIA?Miriam Goldenberg .......................................................................................... 405

    JORNADA DE REFLEXES SOBRE O ENSINO DA ANTROPOLOGIA SOCIALNO RIO GRANDE DO SULLcia Helena Alves Mller, Jurema Brites, Paula Camboim de Almeida eCeres Victora ..................................................................................................... 415

  • 6AUTO-AJUDA DIDTICO-ADMINSTRATIVA PARA SE PENSAR O ENSINODE ANTROPOLOGIACarmen Slvia Moraes Rial .............................................................................. 425

    PRMIO CLAUDE LVI-STRAUSS PARA PESQUISAS DE GRADUAO:UM BALANOAntonella Maria Imperatriz Tassinari ........................................................... 435

    PRMIO ABA/FORD PARA INOVAO NO ENSINO DE ANTROPOLOGIAEDIO 2006 ................................................................................................... 445

    PRMIO CLAUDE LVI-STRAUSS - EDITAL 2006 .................................... 449

  • 7ENSINO DE ANTROPOLOGIA: UMA VELHAHISTRIA NA ABA

    Miriam Pillar Grossi

    Trazemos, neste livro, as principais reflexes e debatessobre Ensino de Antropologia feitos no Brasil nas duas ltimasdcadas. Esta temtica tem sido tema regular de mesas-redondas, de simpsios temticos e de grupos de trabalho noscinqenta anos da ABA, sendo que j estava presente nasprimeiras reunies brasileiras de Antropologia realizadas apartir de 1953.

    Na criao da ABA, no decorrer dos anos 1950, apreocupao com o Ensino de Antropologia dizia respeito aoscursos de Geografia e de Histria, carreiras nas quais aAntropologia era ensinada at a reforma universitria instauradano incio da dcada de 1970 pelo governo militar1 . A partirdesse momento, instaurou-se um modelo de Ensino deAntropologia nos cursos de graduao em Cincias Sociais modelo j institudo de forma um pouco diferente na USP e naEscola de Sociologia e Poltica em So Paulo, a partir dainfluncia do ensino trazido pela misso francesa quando dacriao da USP nos anos 1930. Com a criao dos cursos deCincias Sociais, a Antropologia passou a ser ofertada, ao ladoda Sociologia e da Cincia Poltica, como uma das trsdisciplinas que compem o trip de formao desta carreiraprofissional. Aps a criao dos cursos de Cincias Sociais, otema da formao em Antropologia em outros cursos mudouradicalmente de foco primeiro porque Geografia e Histriadeixaram de ser os nicos cursos em que se lecionavam

    1 COELHO DOS SANTOS, Silvio (org). Antropologia no Sul. Florianpolis: Editora da UFSC/ABA, 2006.

  • 8disciplinas gerais de Antropologia; segundo porque aAntropologia se tornou uma das disciplinas de CinciasHumanas das mais demandadas por outros cursos em buscada sensibilizao de seus alunos a questes sociais e desteHomem universal e moderno que objeto de estudo dasCincias Humanas2 . Disciplinas de Introduo Antropologiapassaram a ser oferecidas como disciplinas introdutrias paracarreiras nas reas da Sade (Medicina, Odontologia,Enfermagem, Nutrio, Fisioterapia), das Cincias SociaisAplicadas (Servio Social, Direito, Administrao,Contabilidade, Economia, Comunicao, Design, Publicidade),das Humanidades (Histria, Psicologia, Pedagogia), entremuitas outras.

    Com a emergncia e o desenvolvimento da formao emPs-graduao em Antropologia que se d a partir dos anos1970 em nvel de mestrado e a partir dos anos 1980 em nvel dedoutorado , as preocupaes sobre Ensino de Antropologiase ampliam, a partir da dcada de 1990, para este nvel de ensinoem suas inter-relaes com a formao em Antropologia nagraduao.

    marcante a presena do tema Ensino de Antropologia emvrias reunies acadmicas da rea. No sul do Brasil, a questofoi recorrente em todas as reunies da ABA-SUL ou AbinhaSul, como eram denominados os encontros regionais iniciadossob impulso da ABA em 1989 e renomeados, em 1995, comoReunio de Antropologia do Mercosul (RAM). Maria NoemiBrito, professora que marcou vrias geraes de antroplogosformados na UFRGS, foi responsvel por liderar oficinas sobreo tema em algumas reunies, como na IV ABA-SUL, realizadaem novembro de 1993, na Praia do Campeche, em Florianpolis.Esforos similares foram feitos pelos colegas das regies Norte-Nordeste em vrias reunies da ABANNE. Por causa destegrande interesse por parte dos professores da rea em refletirsobre as dificuldades e desafios deste ensino, o tema foi umadas prioridades de reflexo na gesto 1994/1996, sob a liderana

    2 FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris: Ed. Gallimard, 1966.

  • 9de Mariza Peirano, ento vice-presidente de Joo Pacheco deOliveira Filho3 . Nas gestes seguintes, o tema tambm teveinstncias privilegiadas de discusso, como o seminrio sobreo ensino na Ps-graduao, organizado por Guita Debert, vice-presidente de Ruben Oliven na gesto 2000/20024 . Na gestode Gustavo Lins Ribeiro (2002/2004), o tema foi objeto de doisseminrios realizados em dezembro de 2002: um seminrionacional, organizado por Antonella Tassinari e por Carmen Rial,e um seminrio que envolveu as regies Norte e Nordeste,organizado por Maria do Carmo Brando, em Recife5 . Sendoum campo de interesse permanente na ABA, criamos, no inciode nossa gesto, em 2004, a Comisso de Ensino deAntropologia, liderada por Yvonne Maggie, com o objetivo decongregar professores de vrias regies do Brasil na elaboraode diagnstico e de reflexo sobre o Ensino de Antropologia nacontemporaneidade.

    Publicamos, neste livro, reflexes sobre Ensino deAntropologia feitas em trs momentos da ABA: textosproduzidos na gesto 1994/1996; artigos resultantes do encontrosobre Ensino de Antropologia realizado na gesto 2002/2004;reflexes feitas durante nossa gesto na ABA em frunsorganizados pela Comisso de Ensino de Antropologia nos anosde 2005/2006.

    Salientamos que, alm dos textos publicados aqui, atemtica de Ensino de Antropologia, que foi um dos temasprioritrios de nossa gesto, contou tambm com o apoio daFundao Ford para a realizao de concurso para projetosinovadores em Ensino de Antropologia na graduao e emprojetos de extenso universitria. Cinco foram os projetospremiados: de Celso Castro para a graduao em Cincias Sociaisda Fundao Getulio Vargas (RJ), de Myriam Lins e Barros paraprofissionais oriundos do curso de Servio Social na UFRJ (RJ),de Luciana Chianca para estudantes de graduao em Cincias

    3 PEIRANO, Mariza. Ensino de Antropologia no Brasil. Rio/Braslia: ABA, 1995.4 DEBERT, Guita; PONTES, Heloisa e PIETRAFESA DE GODOI, Emilia. O ensino de Ps-graduao em Antropologia no Brasil. Campinas: Ed Unicamp, 2002.5 BRANDO, Maria do Carmo e MOTTA, Antonio (org). Aproximaes. Antropologia noNorte e Nordeste. Recife: Edies Bargao, 2003.

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    Sociais da UFRN (RN), de Christina Rubin para estudantes degraduao em Cincias Sociais da UNESP (SP) e de MariaCatarina Chitolini Zanini para estudantes de vrios cursos degraduao da UFSM (RS).

    No ano de 2005, a ABA colaborou tambm na reflexolatino-americana sobre a articulao entre o Ensino deAntropologia e o mercado de trabalho na rea em doisencontros: na Colmbia e no Uruguai. Convidados pelo ativogrupo de jovens antroplog@s da UNIANDINOS, estivemos emsimpsio em Bogot e no IX Congresso Colombiano deAntropologia realizado em Santa F de Antioquia em agostode 2005. Em ambos os encontros, participamos de debates comcolegas colombianos, chilenos e mexicanos sobre os novosdesafios das prticas antropolgicas no continente. Emnovembro do mesmo ano, a ABA liderou a organizao de umamesa-redonda na VI Reunio de Antropologia do Mercosul,com colegas da Argentina, Uruguai e Chile, na qual secompararam as diferentes formaes em Antropologia na regioe os principais problemas encontrados em cada uma dasexperincias nacionais neste momento. Destes dois encontros,manteve-se o compromisso de novas reunies em encontroslatino-americanos para dar-se continuidade reflexo em tornodo tema Formao, tica e Mercado Profissional em Antropologia naAmrica Latina.

    Na primeira parte do livro, sob coordenao editorial deMariza Peirano, publicamos dez textos histricos sobre otema, que haviam sido apresentados e discutidos em doisseminrios organizados pela ABA: uma mesa-redonda naANPOCS de 1994 e o Encontro sobre Ensino de Antropologia,realizado nos prdios da Praia Vermelha da UFRJ em abril de1995. Parte significativa dos textos apresentados nestas duasocasies havia sido publicada em Caderno Especial da ABA Ensino de Antropologia e em dossi no AnurioAntropolgico de 1996. Por serem duas publicaes esgotadase sistematicamente fotocopiadas por novas geraes deprofessores de Antropologia, consideramos importanterepublic-las neste volume.

    Na segunda parte, organizada por Antonella Tassinari,

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    Carmen Rial e Miriam Grossi, foram publicados artigosresultantes do Encontro de Ensino de Antropologia Diagnstico,Mudanas e Novas Inseres no Mercado de Trabalho, realizado emdezembro de 2002, no Hotel Canto da Ilha, na Praia de Pontadas Canas, em Florianpolis. Neste encontro, realizado quaseque uma dcada aps o encontro da UFRJ, velhos temasvoltaram baila, como a questo do lugar do Ensino deAntropologia nos cursos de graduao em Cincias Sociais. Masnovos temas emergiram, como a crescente demanda de Ensinode Antropologia como disciplina humanista para outrascarreiras, a necessidade de formao terico-metodolgica maisdensa na graduao face diminuio do tempo de mestradocomo exigncia das agncias de fomento, a articulao entregraduao e ps-graduao em suas mltiplas dimenses.

    Na terceira parte do livro, sob a coordenao de YvonneMaggie e Fabiano Gontijo, coordenadores da comisso deensino da ABA, publicamos artigos apresentados em atividadessobre Ensino de Antropologia na gesto 2004/2006 no frumde Ensino de Antropologia no Rio Grande do Sul, na 25 RBA,assim como documentos e relatrios de algumas das principaisatividades realizadas sobre o tema neste perodo.

    Por ser um tema que mobiliza toda a comunidadeantropolgica, fortemente engajada em atividades de formaode graduao e de ps-graduao, mas tambm de formaocontinuada e de extenso, este livro teve como objetivo fazerum estado da arte das principais discusses sobre o Ensino deAntropologia no Brasil. Esperamos que venha a fortalecer e acontribuir com o engajamento dos antroplogos brasileiroscom a formao de novas geraes engajadas na excelnciaacadmica e no compromisso com os povos que estuda e com aconstruo de uma sociedade mais justa e igualitria.

  • O DEBATE DOS ANOS 90O ENSINO DA ANTROPOLOGIANO BRASIL - GESTO 1994/1996

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    H DEZ ANOS

    Mariza PeiranoUniversidade de Braslia

    H dez anos, uma srie de questes relativas ao temaabrangente do ensino de antropologia preocupava os docentesenvolvidos nos cursos de graduao e de ps-graduao noBrasil. Essas questes combinavam tanto aspectos substantivose de contedo quanto dimenses pragmticas e instrumentais.Um tema recorrente dizia respeito forma como se produz,como se faz um antroplogo; e, nessa direo, o estilo simplesde transmisso de conhecimento por meio de aulas eracontrastado com a concepo de um processo mais complexode formao, no qual se buscava valorizar a leitura demonografias clssicas, a orientao de um mestre e a prpriapesquisa de campo.

    Outro tema correlato referia-se ao lugar da antropologiano contexto das demais cincias sociais no momento em quesua visibilidade se ampliava nos fruns multidisciplinares, osantroplogos procuravam esclarecer e demarcar ascaractersticas prprias disciplina, assim como a pertinncia(ou no) de haver cursos especficos de antropologia nagraduao. Grades curriculares e propostas de cursos estavam,tanto quanto hoje, entre aquelas preocupaes, mas asespecificidades do ensino da graduao e da ps-graduaorecebiam uma ateno especial. Na ps-graduao, a relaoentre o mestrado e o doutorado foi, tambm, um tema quesuscitou grandes inquietaes, j que, naquele momento, onmero de programas que ofereciam os dois nveis era aindalimitado e, neles, o percurso costumava ser excessivamentelongo para o antroplogo em formao.

    Assim, quando fui convidada para assumir a primeiravice-presidncia da ABA cargo at ento inexistente na gesto

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    de Joo Pacheco de Oliveira, estabelecemos que o ensino daantropologia seria um tema de discusso que eu assumiriacomo atribuio e prioridade. Nesse contexto, os textos aquireunidos foram produzidos e como resultado de dois eventos:o primeiro, uma mesa-redonda intitulada O Ensino das CinciasSociais em Questo: o caso da Antropologia, que aconteceu emoutubro de 1994, no XVIII Encontro Anual da Anpocs, emCaxambu. Cinco antroplogos foram convidados a prepararcomunicaes sobre tpicos de sua escolha, e estes seriam, ento,debatidos por um socilogo e por um cientista poltico. (A idiade que o ensino da sociologia e da cincia poltica seguiria omesmo formato nos anos seguintes no vingou na Anpocs.) Ostextos eram de Eduardo Viveiros de Castro, Luiz Fernando DiasDuarte, Paula Montero, Peter Fry e Mariza Peirano, e foramdebatidos por Juarez Brando Lopes e Fbio Wanderley Reis.Embora a discusso tenha sido acalorada e proveitosa, osdebatedores no produziram textos escritos. Os trabalhos dosantroplogos foram, depois, divulgados no Caderno O Ensinoda Antropologia no Brasil: Temas para uma discusso, acrescidosde comentrios de Mariza Corra e de Pierre Sanchis. O segundoevento ocorreu em abril de 1995, em seminrio realizado noFrum de Cincia e Cultura da UFRJ, com o ttulo de Ensino daAntropologia. Deste encontro, trs artigos foram publicados noAnurio Antropolgico/96, de autoria de Klaas Woortmann,Cludia Fonseca, Ana Maria de Niemeyer.

    Graas iniciativa de Miriam Grossi, dez dos textos queresultaram dessas discusses so aqui reunidos pela primeiravez, neste volume organizado por ela, Carmen Rial e AntonellaTassinari1 . Expresso a elas o meu reconhecimento e a alegriade ver estes artigos lado a lado a outras iniciativas posterioresda ABA, no apenas por seu carter documental ouarqueolgico, mas pelo interesse que vrias dessas reflexesainda hoje despertam o Caderno h muito se esgotou , pelavariedade de pontos de vista e pela permanncia e atualidade se no relevncia de muitos temas ento discutidos.

    1 A exceo o artigo de Eduardo Viveiros de Castro, que o autor optou por no verrepublicado. O texto de Heraldo Maus, apresentado no segundo evento e aqui includo,no havia sido publicado no Anurio Antropolgico/96 por razes editoriais.

    MARIZA PEIRANO

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    FORMAO E ENSINO NA ANTROPOLOGIASOCIAL: OS DILEMAS DA

    UNIVERSALIZAO ROMNTICA

    Luis Fernando Dias DuarteUniversidade Federal do Rio de Janeiro/MN

    [ preciso] reconhecer a [na Antropologia] a tenso entre oiluminismo no qual a disciplina foi fundada e o romantismo

    alemo, onde foi se inspirar

    (PEIRANO, 1991: 45).

    1. A formidvel empresa do conhecimento cientfico noOcidente moderno um de seus mais intrnsecos componentes.A organizao de uma mquina altamente racionalizada (emseus meios e mtodos) de produo de verdade sobre ouniverso, de extenso aos mais recnditos desvos da realidadedo pressuposto de ordem e razo que subjaz a sua ideologiacentral uma das garantias institucionais permanentes dasustentao de sua cosmologia.

    Como se sabe, porm, desde o incio, ela conviveu comgraves resistncias e contraposies, associadas regularmente,apenas, ao efeito de permanncia das antigas ideologiastotalizantes. Quer se tratasse de antemas pontuais em nomeda sacralidade ou da tica, quer se tratasse de refutaessistemticas e filosoficamente argumentadas, bastava associ-las nostalgia religiosa e supersticiosa para desqualificar seupotencial desafiador.

    A primeira organizao sistemtica de oposio no-religiosa levantada contra o que ento se resumia sob a pechade materialismo (acrescentado ou no de qualificativos comolinear, mecnico, etc.) foi a Naturphilosophie alem da

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    passagem dos sculos XVIII e XIX1 . O exemplo das teorias dascores e da morfognese botnica propostas por Goethe emoposio fsica newtoniana e fisiologia iluminista vinhamquestionar fundamentalmente a perda das propriedadessensveis dos objetos submetidos reduo materialista e aincapacidade de apreend-los em sua totalidade significativa,ou seja, em sua estrutura (Urform, Gestalt, etc.).

    O que se chamou de vitalismo nesse perodo no eraseno a dimenso mais abrangente desse protesto: a afirmaoda irredutibilidade dos fenmenos da vida explicaomecnica pela matria. As unidades vitais dotadas de umimpulso imanente para a auto-realizao (Trieb) eram a baseontolgica desse sistema. A oposio entre Forma e Vidareduplicava, assim, essa outra, quase to explcita entre Parte eTodo, formando, ambas, a espinha dorsal da longa e influentecarreira do Romantismo (em sua mais lata e filosfica acepo).

    A cincia romntica no aspirava, porm, a um meroretorno ao Todo tradicional, religioso; aspirava, isto sim, acontribuir para o melhor avano da cincia, temperando ouniversalismo com a nfase metdica e sistemtica nasingularidade/totalidade ontolgica e na inseparabilidadeentre determinao do objeto e considerao do sujeito(enquanto relao fundante). O movimento assiminicialmente configurado foi, sobretudo, um fenmeno alemo,embora sua influncia para c do Reno viesse a ser permanentee fundamental. Foi ainda na Alemanha, nos meios quedesenvolviam a mais avanada cincia biolgica experimental,cada vez mais materialista em seus mtodos e sempre algovitalista em seus horizontes de inquietao, que se props bem a meados do sculo XIX a distino entreNaturwissenschaften (cincias da natureza) e asGeisteswissenschaften (cincias do esprito, morais ou mentais),que to importante viria a ser para o destino das cinciashumanas2 . Essa distino representava, at um certo ponto, a

    1 Ver, sobretudo, Gusdorf (1974) e Gusdorf (1982).2 Ver Gadamer (1975: 15), sobre o papel de Helmholtz, precedendo Dilthey nessa definio.

    LUIS FERNANDO DIAS DUARTE

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    renncia das expectativas romnticas em relao s cinciasnaturais e o seu refgio nas cincias morais, a que se passava aatribuir descontinuidade gnoseolgica face s primeiras, apesarde sua postulada continuidade ontolgica3 .

    Concomitantemente com a afirmao dessa representaoholista ou entranhada (embedded) dos saberes modernos,desenvolvia-se tambm uma teoria da construo dos sujeitosque, embora inseparvel dos horizontes maiores doindividualismo, infletia ou qualificava fortemente arepresentao dos sujeitos livres e iguais. A ideologia da Bildung(formao) enfatizava a capacidade de auto-desenvolvimentodos sujeitos, com a ampliao de seus horizontes interiores e ocumprimento de uma espcie de finalismo endgeno, ou auto-teleologia4 , inseparvel das frmulas vitalistas. A representaodo artista produtor de obras de arte singulares que revelamprogressivamente a singularidade do prprio produtor... Comoobra de arte, acrescenta velha teoria do gnio criador umaautonomia radical, que se estender completamente identidade dos filsofos e pensadores e em parte representao dos cientistas, naturais ou sociais5 .

    O mesmo processo de afirmao da singularidadeexpresso no ideal da cincia romntica (e sucessivamente nasGeisteswissenschaften) e no modelo do sujeito gebildete ensejou atransposio para o universo dos entes morais ou sociais daqualificao de singularidade auto-significativa que se referiaoriginalmente Natureza ou ao Cosmos. A determinao deentes coletivos dotados de autonomia ontolgica, como asNaes, Sociedades e Culturas, o elemento final de um projetode conhecimento abrangente que se ops termo a termo linhacentral do universalismo racionalista que associamos hoje,sobretudo, ao iluminismo, mas que recua, na verdade,longamente s sucessivas reapropriaes ocidentais dacosmoviso aristotlica.

    3 Essa diviso no foi sempre perfeitamente estanque no campo alemo. A psicologia de W.Wundt, por exemplo, procurava se construir a cavaleiro dos dois domnios, antesproblematizando-os do que obedecendo-lhes. Ver Duarte & Venancio (1994).4 Ver Dumont (1991a).5 O prprio Max Weber endossa, na Cincia como Vocao, essa representao, ao evocara embriaguez e paixo entranhadas na tica de convico do cientista (WEBER, 1972).

    FORMAO E ENSINO NA ANTROPOLOGIA SOCIAL: OS DILEMAS DA UNIVERSALIZAO ROMNTICA

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    Ao privilgio da lgica analtica (e da compreenso dotodo pela justaposio das partes) e da dissociao entre oprocesso de conhecimento e as caractersticas do sujeito daoperao, que foram as bases da empresa cientfica centraldo Ocidente, antepuseram-se, assim, ao longo do sculo XIX,os contrapontos sintticos (ou holistas) do que se pode resumircomo a tradio romntica. O que chamamos hoje de cinciassociais nasce exclusivamente da tenso e da interlocuo entreessas duas linhas de busca.

    Seja um Karl Marx engendrado pela imbricao entreempirismo econmico e dialtica hegeliana, seja um mileDurkheim egresso da integrao entre mtodo positivista eorganicismo romntico (via Claude Bernard e Wilhelm Wundt),seja um Max Weber individualista na micro-interpretao dapraxis econmica e holista na percepo verstehende das grandesunidades culturais de racionalidade j o testemunho dos paisfundadores reitera a inarredabilidade do mandamento: no possvel fugir manuteno da tenso entre as duas linhas, semque se perca a qualidade de cincia social.

    A Antropologia Social, talvez mais explicitamente que suasirms, espelha claramente em sua histria tal ditame. Ainfluncia romntica ou neo-romntica tanto sobre os grandestericos ingleses da evoluo humana no sculo XIX quantosobre Bronislaw Malinowski6 ou E. E. Evans-Pritchard notria,bem como sobre o conjunto das sucessivas escolasantropolgicas americanas7 . O prprio Claude Lvi-Strauss,considerado o ltimo e mais inquebrantvel baluarte douniversalismo racionalista, quanto no deve a uma vasta gamade influncias romnticas, que ele personifica parcial eexplicitamente na herana de Jean-Jacques Rousseau8 ?

    Provavelmente devido ao prprio rigor com que se impeaos produtores eruditos a duplicidade do caminho, no meparece ser regular, porm, o reconhecimento do seu carter

    6 Ver, por exemplo, Stocking Jr. (1986).7 Stocking analisa com nitidez o caso de Boas (STOCKING JR., 1968), de quem se podelembrar a significativa evocao de um muito lembrado poema de Goethe, que quase ummanifesto da epistemologia romntica, no prefcio do Patterns of Culture, de Ruth Benedict8 Carlo Severi explora, de maneira sumamente esclarecedora, alguns dos paralelos entre oestruturalismo de Lvi-Strauss e a cincia romntica de Goethe em Severi (1998).

    LUIS FERNANDO DIAS DUARTE

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    inarredvel9 . Na verdade, entre tal ou qual autor, ou entre talou qual das fases de uma mesma obra, ou entre tal e qualinvestimento analtico especfico, sucedem-se, na melhor dashipteses, manifestaes retricas de afastamento em relao aum dos plos, de tal maneira que se produza uma figura decomprometimento linear que dificilmente corresponde realidade do que est sendo produzido. Na verdade, creio queprevalece uma generalizada inocncia (ou ingenuidade,preferiro alguns) em relao s condies em que cadasucessivo construto das cincias sociais obedece sdeterminaes das duas velhas linhas ou tradies. Seria precisodizer mesmo que vem tendendo cada vez mais a prevalecer, namedida em que se vo avolumando as camadas intermediriasda produo e em que se vai fazendo a economia dafreqentao direta e crtica dos estgios mais antigos dosdebates que levaram evoluo desses saberes.

    Sempre que emerge alguma percepo explcita da tenso,ela tende a ser vasada nos termos em que j se a podia perceberpelo final do sculo XVIII: universalistas acoimando osromnticos de supersticiosos restauradores de ilusestranscendentes, romnticos denunciando os universalistas comoidlatras de uma materialidade desvitalizada e inexpressiva. Anica teoria corrente a dar uma interpretao antropolgica sobrea aqui defendida inarredvel tenso a de Louis Dumont: o projetouniversalista racionalista a expresso gnoseolgica da ideologiacentral da cultura ocidental moderna o individualismo , e ocontraponto romntico no seno a retraduo da percepohierrquica do mundo vasada nos termos de uma resposta aoindividualismo (e, nesse sentido, literalmente um contraponto).

    Formula-se, assim, o notrio paradoxo: a cincia social,para ser cincia do social (no sentido lato do termo), necessitade uma relativa relativizao do sistema ideolgico quesustenta o seu prprio projeto de ser cincia e deve, nessesentido, aproximar-se (sempre tendencialmente) do modo pelo

    9 Roberto Cardoso de Oliveira uma exceo no campo brasileiro, juntamente com a citadaMariza Peirano. Em Oliveira (1994), temos essa tenso qualificada de dinamizadora (16),saudvel (22) e permanente (24). Chamo a ateno para a passagem desse mesmo texto(ibidem, 15) em que o autor reduz seu anterior modelo dos quatro paradigmas ao binmioiluminismo X reao ao iluminismo (ou seja, o romantismo).

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    qual o homem se realiza no mundo (mesmo que no seja aindaou jamais absolutamente claro o estatuto ou nvel ontolgicoda qualidade holista dessa experincia que se pode, aindaassim, tentativamente reconhecer).

    A aproximao tendencial no pode ser complementar,porm, sob pena de fazer ruir o prprio projeto deconhecimento. A repetio, parfrase ou modulao do sensocomum so os atributos dos mltiplos discursos regulares dequalquer cultura, e em muitos casos, como o das cosmologiasreligiosas, faz-se acompanhar das mais refinadas formas deelaborao cognitiva. A especificidade do projeto cientficoocidental no est na sofisticao dos recursos formais utilizados,mas na maneira pela qual os faz operar, na recusa da totalizaogarantida a priori pela significao, na manuteno de uma atitudede suspeita metdica face s totalizaes re-emergentes e napreservao do horizonte de expectativas ligado ao progressivodesvendamento das condies de organizao da realidade.

    sem dvida um dos mais notveis exemplos dainarredvel tenso o fato de que a prpria percepo de umarealidade externa estruturada e cognoscvel a que est jungidoo projeto universalista tenha sido enriquecida e espessada naconstituio das cincias humanas graas a inspiraes de cunhoromntico. J o trabalho de Wundt se sustentava sobre opostulado de existncia de uma realidade sui generis domundo psicolgico, inassimilvel ao conceito materialistamecanicista, e sobre a qual se deveria construir um aparelho deconhecimento em nada menos cientifico que os que antes sededicavam a formas mais bvias de materialidade. A mesmareferncia a realidades sui generis ocorre explicitamente emdiversas argumentaes de Durkheim e de Sigmund Freud notocante possibilidade de conceptualizao e compreenso dosfenmenos sociais e psquicos, a servio, do mesmo modo,de uma redobrada disposio de iluminao. Embora a expressono se encontre dessa forma em Boas, como no reconhecer emidntico propsito a sua interveno sobre os fatos culturais?

    2. O que quer que possa se propor uma Antropologia Socialhoje deve, assim, passar por uma reproduo institucional

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    comprometida com o reconhecimento da inarredvel tenso. Somuitos os nveis em que se pode garanti-la.

    Trata-se, em primeiro lugar, de garantir a reproduo deuma instituio em que o ensino e a formao estejamcomprometidos com a pesquisa cientfica. Isso significagarantir que a especulao intelectual, o livre uso de recursosformais de cognio, a complexa trama de intuio, imaginaoe inteleco que garante o vo do pensamento, mantenham adisposio de projetar-se sobre a realidade para dela retornardialeticamente enriquecidas no s de supostos frutosimediatos, mas, sobretudo, de um insopitvel desejo de, maisadiante, revisit-la e reinquiri-la.

    Trata-se, em segundo lugar, de propiciar e exigir deestudantes e estagirios a freqentao mais intensa possveldo conjunto dos instrumentos acumulados na histria dessesaber, habilitando-os ao mximo afastamento da ingenuidadeoriginria, por todos os recursos regulares de absorocomentada e criticada de uma tradio intelectual.

    Trata-se, ainda e finalmente, de reconhecer e de pr emprtica o reconhecimento de que, nesse tipo de reproduocientfica mais do que em qualquer outro , o pleno acesso condio de produtor intelectual independente s se poderdar atravs de um programa de formao, muito maisambicioso do que um mero programa de ensino.

    Essas trs abrangentes condies devem se integrar numprocesso disciplinar intenso que visa a produzir um estadoparadoxal de disposio humildade metodolgica da ateno parte e da organizao impessoal dos dados, combinado comuma constante submisso e conscincia das totalizaes, a quese poderia chamar de uma universalizao romntica10 .

    10 Convm esclarecer que entendo como antagnicos os processos de universalizao etotalizao. O primeiro o que se compromete com o horizonte aberto e infinito dasrepresentaes modernas, individualistas e racionalistas, e sua atualizao se d peloprojeto de conhecimento das cincias positivas. O segundo corresponde ao horizonte fechadodas unidades de significao, imediatamente reconhecvel nas representaes holistas/hierrquicas, cuja atualizao paradigmtica se d nos sistemas cosmolgicos. De toda acultura ocidental moderna mais do que de sua Antropologia , pode-se dizer que tem umcarter paradoxal, se reconhecermos que o projeto universalista em um outro nvel teria deser considerado como uma cosmologia e, portanto, tambm como um sistema de totalizao(cf. DUARTE, 1986).

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    assim que se pode compreender como o ensino daAntropologia, no seu sentido mais literal, deve-se fundar sobrequatro estratgias mediadoras: a pluralidade das influncias, omtodo da apreenso monogrfica, a pesquisa de campo e aintensidade da orientao.

    Em todos esses casos, o objetivo de conhecimento se vcercado por seu contexto ou situao (o que freqentementeum modo de aproximar-se da totalizao), tanto no que concerne exterioridade para que se dirige, quanto interioridade deque parte. A pluralidade das influncias no busca produzirapenas uma maior taxa de conhecimento objetivo eexteriorizado. Busca, mais do que isso, produzir, pelo confrontodos diferentes modos de conhecer, a relativa relatividade doprocesso em questo e a suspenso das estreitas observncias(em proveito da percepo das grandes divises etransformaes).

    O mtodo da apreenso da experincia antropolgica pelafreqentao das monografias etnogrficas visaexplicitamente produzir a percepo do modo pelo qual odado sui generis de nossa cincia s pode ser considerado umdado enquanto estiver iluminado pelo contexto designificao de que emerge e que esse contexto inclui opesquisador. como que o negativo (ou modo passivo) docrucial papel didtico que detm para a Antropologia aexperincia da pesquisa de campo. A, mais do que nunca,se corporifica (no sentido literal de incorporao de PierreBourdieu11 ) essa imbricao entre sujeito e objeto, contexto destee condio daquele, que parece o essencial do mtodocorrespondente universalizao romntica12 .

    11 Para Bourdieu, o processo de incorporao tem caractersticas de universalidade, que eleexplorou sob diferentes aspectos e no tocante a diferentes campos sociais; V., sobretudo,Bourdieu (1982).12 Evans-Pritchard diz, por exemplo, que, para que o antroplogo compreenda a sociedadenativa, esta deve estar nele, e no apenas em seu caderno de notas (EVANS-PRITCHARD,1973: 97). Ou ainda no mesmo texto: O que resulta do estudo de uma populao primitivano deriva apenas das impresses recebidas pelo intelecto, mas tambm do impacto sobrea personalidade inteira, ou seja, sobre o observador como ser humano total (97). MarizaPeirano cita, por outro lado, Clifford Geertz a esse respeito: Fieldwork has been, for me,intellectually (and not only intellectually) formative, the source not just of discrete hypothesesbut of whole patterns of social and cultural interpretation ([Islam observed], apud PEIRANO,1994: 242).

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    Se h certa generalizada conscincia dessas trs estratgiaspara a formao de uma antropologia, no me parece que sejato ntido o reconhecimento da igual importncia que detmnesse processo o quarto item: o da intensidade da orientao.Com efeito, a relao de intensa orientao tende a serconfundida com a instituio formal homloga (sob cuja formaexterior no mais das vezes efetivamente se produz) e com suafuno instrumental imediata de levar tese o trabalho dosalunos de ps-graduao. Ela , no entanto, muito mais do queisso: atravs do seu regular exerccio que o senso de contextoproduzido pela pluralidade de influncias e pela apreensomonogrfica ou a incorporao contida na experincia docampo exercem sua integrada influncia sobre a totalidade doaprendiz, mediada pelo descortino treinado e empatia engajadado orientador. Essa relao poder no se consubstanciar emuma nica figura concreta de mestre, mas compor-se de partesde sucessivas experincias, que guardam entre si a continuidadede serem caminhos personalizados, incarnados, mediados pelapalavra e o sentimento, de acesso ao modo antropolgico doconhecimento. A relao de intensa orientao em seu maispleno sentido sempre o primeiro elo da formao mediataou imediata dessas linhagens em que se estrutura aidentidade do antroplogo e sem as quais o antroplogo notem lugar na comunidade de especialistas (PEIRANO, 1991: 46).

    A compreenso de que o ensino da Antropologia indissocivel do englobamento da informao objetiva portodas essas estratgias de totalizao implica o reconhecimentode um processo de verdadeira formao do antroplogo,aproximvel do que a tradio romntica construiu sob a rubricada Bildung, ou construo de si. O que eu antes chamara detotalizao pelo processo consistia justamente na disposioem fazer a experincia humana culminar na elaborao eatualizao de sujeitos cultivados, interiormente expandidos,capazes de levar s ltimas conseqncias o potencial derealizao contido in nuce em todo ser humano13 . Considera-se

    13 Ver, sobretudo, Bruford (1975), Goldman (1988) e Dumont (1991b), sendo particularmenteinteressante para nossa discusso a verso da Bildung construda por Wilhelm Von Humboldte aplicada por ele concepo da Universidade de Berlim.

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    hoje em dia, regularmente, que esse modelo emergiu eleprprio de uma combinao do modelo do sujeito interiorizadoe tico da Reforma luterana com o desafio da produo dosujeito universalizado e crtico do Iluminismo. O fundoreformado desse modelo consistia, sobretudo, numa nfase norenascimento do sujeito exposto a uma converso. Hegelconferiu um estatuto abstrato revelador a esse processo: aalienao ou estranhamento hegelianos compreendemfundamentalmente uma sada de si (negao ou ruptura) e umretorno a (de) si num patamar superior, universalizado(sntese e continuidade), que o prprio Aufhebung14 .

    J em Goethe via-se muito claro o comprometimento donascente modelo da Bildung com a busca da legitimidade,afirmao e hegemonia do desenvolvimento da pessoaburguesa, por oposio ao monoplio de plenitude da pessoaaristocrtica15 . Essa nova pessoa se caracterizava justamente porser construda, adquirida, culturalmente renascida, contra omodo atribudo, j dado, da pessoa aristocrtica. No deadmirar, portanto, que o modelo da Bildung, apesar de suaprecisa origem romntica, tenha atravessado todo o Ocidentemuito rapidamente, deixando-se adaptar aqui e ali a tantasmltiplas situaes nacionais e temporais16. Seusdesenvolvimentos posteriores substituram o antigo aristocratapelo prprio consolidado burgus (o filisteu das imagens dosculo XIX), no-renascido, em contraposio aos sujeitoscultivados, gebildete, artistas e intelectuais que mais plenamentepassam a incarnar o novo ideal17 .

    O modelo da vocao (justamente o Beruf luteranolaicizado) do cientista weberiano no enfatiza a dimenso deconverso que lhe subjaz. Weber prefere sublinhar

    14 Ver Gadamer (1975: 13).15 Ver Goethe (1986).16 Bourdieu apresenta informao sociolgica preciosa sobre processos de Bildung na Franacontempornea (cf. BOURDIEU, 1966; BOURDIEU, 1979; BOURDIEU, 1981). Entre ns,alguns dos trabalhos de Gilberto Velho tambm se dedicam etnografia de processos deBildung (cf. VELHO, 1980; VELHO, 1988; VELHO, 1998).17 Mariza Peirano lembra a interessante reelaborao de Srinivas sobre esse tema: como orenascimento (a condio dos twice-born) se associa, na ndia, identidade bramnica, elenos fala do antroplogo como thrice-born (PEIRANO, 1994: 218).

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    separadamente a dimenso de renncia dessa inslitadisposio, por um lado, e a necessria possesso e paixocom que se h de aplicar, por outro. Na verdade, o objetivismouniversalista raramente permitiu maior considerao dadimenso pessoal, engajada e entranhada, do desempenho dascarreiras cientficas em geral. Se essa uma questo que poderiaser levantada em relao ao conjunto das carreiras, ela adquireum colorido e intensidade todo especiais no tocante a algumasdas cincias humanas, entre as quais avulta seguramente oestatuto da Antropologia e da Psicanlise. Nossa mitologiaabunda em histrias de converses originrias, estradas deDamasco onde a plenitude do caminho primeiro se venriquecida, sublimada por uma plenitude de sentido e misso,capaz de vitalizar indefinidamente com seu carisma oconcomitante institution building a que esto eventualmenteassociados. Freud particularmente expressivo desse padro,mas podemos encontr-lo mais ou menos enfatizado sobbiografias intelectuais como as de Boas, Malinowski, Durkheim,Weber, Lvi-Strauss ou Edmund Leach.

    Embora seja mais ou menos regular que se oponha ainiciao carismtica dos pais fundadores iniciaoburocratizada dos nefitos e aprendizes posteriores, no menos verdade que as tradies religiosas procuram celebrarritualmente as grandes converses primeiras em cada ato deinstituio subseqente. No outro o sentido de umsacramente como o da ordem na Igreja Catlica. A Psicanliseenfrentou a fora simblica da fundante auto-anlise de Freudpela instituio de uma complexa atividade de acesso plenacategoria sacerdotal a que o prprio Freud chamousignificativamente de formao. Sua caracterstica maismarcante a adoo do modo incorporado, entranhado, dapassagem do aprendiz pelo prprio processo da psicoterapia eno apenas pela transmisso objetivada do corpus de saberconsolidado. As caractersticas de reeducao ou deconverso desse procedimento so explcitas desde a obrafreudiana, sobretudo no que toca delicada questo da

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    desnecessidade defendida por Freud da informao mdicaprvia18 .

    A Antropologia, com muito mais razo, deveria ter maisprxima de sua auto-imagem essa dimenso formativa deseu aprendizado. Afinal de contas, as prprias converses dasreligies de civilizao no obscurecem o pano de fundo dessaoutra e mais elementar instituio humana que oxamanismo, com toda a sua complexa nfase na produo deuma condio aufgehoben pela incarnao sacrificial e pelasEntfremdungen rituais no mundo do Alm. Se todo o Bildungpode ser considerado como o xamanismo possvel no mundomoderno, onde no h mais lugar para o mito seno no interiordo prprio homem (LVI-STRAUSS, 1970: 224), a produoda formao desses cientistas da totalizao que so osantroplogos no pode esquecer to prxima e desafiadoraimagem. A imagem da arte e do artista, evocada por Evans-Pritchard na qualificao da Antropologia contra o cientificismoestrito de Radcliffe-Brown, bem reitera a oportunidade dessavia de reflexo, o que se aplica de qualquer modo tambm sexpectativas recorrentes de aproximao e recurso psicanlise(justamente a propsito de cuja relao com o xamanismo Lvi-Strauss cunhava a frmula recm-citada). A homologia darelao mantida entre o antroplogo e seus informantes com aque se desenvolve entre analista e analisando sugere, comalguma freqncia, a evocao das elaboraes psicanalticassobre a transferncia e a contratransferncia19 . Consideromais iluminador, no presente contexto, considerar, porm, ahomologia entre os processos de formao nas duasdisciplinas, com a forte nfase comum na incorporao pelaconverso.

    18 Peirano evoca, por vrias vezes, a relao da Antropologia com a converso: seja sob aforma indireta das notrias converses religiosas que se produzem dentro de algumascarreiras antropolgicas (a antropologia favorece, em determinados contextos, umareestruturao da viso de mundo destes pesquisadores (PEIRANO, 1994: 217)); seja soba forma direta das converses entre diferentes linhagens antropolgicas (PEIRANO, 1991:46). Seria til, mas excessivo neste texto, explorar a passagem entre ordens mais ou menosrelativas de totalizao no caso da converso para dentro da antropologia e dessas outrasduas formas a posteriori, por assim dizer.19 Ver um exemplo recente em Peirano (1994: 217); outros foram por mim expostos emDuarte (1989).

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    Se a referncia ao xamanismo como primordial e intensaforma de produo de um sujeito diferenciado por um saberde experincia feito tem alguma relevncia, ela s se afirma,porm, no contexto deslocado de um processo universalista deconhecimento em que j as discusses sobre sua relao com apsicanlise a haviam colocado. Como na anlise de Dumontsobre o nazismo, o holismo (como negao ou renncia aoindividualismo, e no como elemento do quadro de tenso oucombinao) s pode ser restaurado no mundo moderno comoperverso autoritria, culturalmente suicida; dada ainarredabilidade daquela ideologia para a prpria identidadedo projeto moderno. Por outro lado, qualquer projeto de umconhecimento do social exige o reconhecimento ou aconsiderao da dimenso holista da experincia social (sejaqual for o estatuto ontolgico ou metodolgico que se lheatribua), sob pena de repetirem, como um ventrloquo, asrepresentaes do senso comum, a ideologia linearmentedominante em nossa cultura.

    Se estas ponderaes tm algum sentido, deveria serpossvel avaliarem-se, sua luz, os sistemas de formaoatualmente disponveis e produzir-se uma grade de avaliaoque lhe fosse correspondente.

    Com efeito, creio que se possa avaliar o caminho das nossasescolas de Antropologia por qualidades expressivas de umdeterminado grau de ateno inarredvel tenso.

    Seria preciso, em primeiro lugar, avaliar a amplitude esofisticao dos recursos gerais e especficos colocados disposio e tornados ativos pelos aprendizes: qualidade dasbibliotecas e sistemas de acesso, recuperao e organizao dainformao; amplitude da temtica e bibliografia dos cursos;disponibilidade de exposio s reas mais formalizadas do saberprprio ou supletivo (parentesco, lingstica, cognio, estatstica,etc.); capacidade de integrao dos aprendizes em um regimeintenso de trabalho, em que se inclui como indcio adisponibilidade de atividades coletivas de reforo da interavaliaopelos prprios pares (tanto entre os docentes quanto entre osdiscentes). Enfim, algo como um espessamento qualitativo doshabituais roteiros e formulrios da CAPES ou do CNPq, sem as

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    tambm habituais iluses de transposio quantificada.A esses critrios objetivados, pode-se acrescentar a avaliao

    da presena nos trabalhos produzidos de trs qualidades, cujarecorrncia indica a boa conduo dos processos de formao.

    A primeira seria a intensidade irnica do engajamento napesquisa, ou seja, a capacidade de abandono de si experinciade campo, de imerso radical na vivncia do universoinvestigado, acompanhada do permanente olhar recuado,instrumento da suspeita e do estranhamento. A tenso aqui explicitamente encenada sob as formas da manuteno do olharcrtico e do acesso experincia de auto-entrega (tofundamental para todas as formas de converso20 ). O modomais linear de objetivao da intensidade irnica o da explicitaodas implicaes da relao entre o pesquisador e seus observadossobre o trabalho realizado e dentro dele uma das magnas formasda totalizao essencial ao conhecimento antropolgico.

    A segunda seria a da permanncia ativa da perspectivacontextual e comparada, que corresponde no nvel do objeto totalizao estratgica operada na qualidade anterior apropsito das relaes subjetivas na pesquisa de campo.Trata-se de uma qualidade mais habitualmente reconhecidadentro de nossa tradio e que s mais recentemente se temvisto ameaada. Corresponde, em princpio, localizaosociolgica e simblica de cada unidade de significao, tantodentro do universo pesquisado, como dentro das seqnciasanalticas supra-culturais acumuladas pela tradio. Comoqualidade mais objetivada, a que mais se aproxima no interiorda Antropologia dos critrios da cientificidade universalistasimples. Poder-se-ia talvez mesmo postular que a unidademnima de conhecimento nesse saber corresponde exatamenteao estabelecimento de um ndulo de conexes significativas,capaz de ser utilizado como elementos de comparaes econtextualizaes posteriores.

    A avaliao dos bons resultados do trabalho antropolgicono pode finalmente prescindir da adequao dos recursos de

    20 W. James foi provavelmente quem melhor explorou analiticamente as implicaespsicolgicas de um processo a que ele chamava de self-surrender (cf. JAMES, 1958: 1902).

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    expresso escrita ao modo com que opera. Como ltimotestemunho dessa condio holista e entranhada de seu processode conhecimento, notria a vinculao entre o destino deanlises e de teorias e o grau de sofisticao e de criatividadede seus porta-vozes. Embora esta seja uma dimenso tocrucial, a que menos se tem prestado a qualquer tentativa deobjetivao, por envolver to diretamente o pesquisador comototalidade expressiva21 . Embora seja a que menos nos podeservir linearmente avaliao do estado do ensino ministradonas escolas de Antropologia, seria descabido desprezar o quantouma verdadeira e intensa formao pode e deve interferir nocontrole e ampliao dos recursos expressivos da escrita aindaque esses efeitos devam evolar do conjunto do aprendizadomuito mais do que de qualquer interveno linear e diretiva.

    3. Essa concepo do sentido do que a Antropologia e do quedeve ser em conseqncia a sua estratgia de formaoesbarra em duas fontes de crticas e de contraposies.

    A primeira se arma a partir das concepes universalistasmais lineares que tendem a prevalecer nas cincias duras emesmo em alguns setores das cincias humanas (talvez,sobretudo, na Sociologia). Sob esse prisma, todocomprometimento sistemtico com as totalizaes visto comoanti-cientfico, transformando a Antropologia em uma espciede ramo menor da literatura de fico. Dentro da prpriaAntropologia, h tanto exemplos histricos de defesa de umaposio mais cientificista, como inmeros modelos de aceitaoparcial ou estratgica das totalizaes, subordinados a umhorizonte mais amplo de suspeita e de denncia doromantismo22 . Acredito que, para esses modelos, a defesa aqui

    21 A produo dessa crtica literria (sobre os textos antropolgicos) que to largo curso vemtendo na Antropologia norte-americana desde Geertz no pode ser considerada, a meu ver,na maior parte das vezes como uma verdadeira tentativa de objetivao, uma vez quedespreza regularmente o horizonte universalista comparado.22 Eduardo Viveiros de Castro, por exemplo apesar de sua ento rigorosa defesa daposio universalista , falava, em um texto de 1992 a propsito da prtica antropolgica,sobre a aproximao qualitativa e vivida do objeto (171) e sobre a importncia da intuio(178), lembrando finalmente que etnografia tanto vocao como erudio (179) (VIVEIROSDE CASTRO, 1993).

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    pretendida de uma formao totalizante reminiscente dosideais da Bildung possa ser excessiva. De minha parte, consideroinescapvel refletir sobre essa dimenso englobante, sobretudoquando se tem em mente o aprendiz mdio que se aproximada Antropologia, ansioso por uma converso de cujosinstrumentos ele prprio mal pode se fazer uma idia. No hdvida de que ainda possvel conceber um acessoaristocrtico disciplina, ou seja, atravs da atualizao dedisposies e habitus atribudos em alguma especialssimaformao primria (por oposio aquisio latente naconverso). A tendncia geral , no entanto,generalizadamente oposta a este padro.

    A oposio mais acirrada ao modelo da inarredveltenso provm hoje em dia, porm, de um outro ponto de vistacrtico. Trata-se de um amplo conjunto de iniciativas intelectuaisque atravessa todas as cincias humanas e encontra espaocrescente dentro da prpria Antropologia, armado sobre o queme parece possvel diagnosticar como um empirismoromntico. No seu sentido mais amplo, consiste na nfaseempirista ou nominalista na induo a partir da observao defatos individuais concretos e na desconfiana de todos osgrandes quadros ou sistemas de pensamento que ensejem oexerccio da razo dedutiva, acrescida do privilgio romntico singularidade (a unidade auto-centrada, irredutvel classificao generalizante). A experincia humana deve sobesse prisma ser observada em ndulos expressivos(institucionais, comportamentais, vivenciais, etc.) cujacompreenso se esgota em si mesma, avessa tanto ambiouniversalista de projet-la no quadro de macro-sistemasespeculativos, quanto s mltiplas possibilidades detotalizaes culturais. A denncia contempornea dasgrandes narrativas que qualifica o que se chama todespropositadamente de ps-modernismo23 e a recusa, no quetoca s cincias sociais, da Grande Diviso (entre nossa cultura

    23 Seria, sob todos os aspectos, mais adequado chamar-lhe neo-romantismo, a no serpara os prprios defensores, ansiosos por negar sua ancoragem histrica, sua localizaosimblica.

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    e as demais)24 uma das manifestaes mais prximas dessaposio intelectual. Na antropologia, todo o interpretativismonorte-americano ps-geertziano se apia em verses dessatendncia, sobretudo ao fazer prevalecer uma concepomondica da experincia antropolgica, que acaba por seresumir em tensas ego-trips auto-justificveis (ou, maisfreqentemente, em busca de justificao).

    O empirismo romntico ope-se, assim, em todos osnveis ao universalismo romntico: enquanto mtodo deconhecimento, enquanto concepo do processo doconhecimento e enquanto ontologia. As verses ativas naAntropologia, na medida em que exconjuram a expectativa deuniversalizao e concentram seus esforos na apreenso oucompreenso das unidades discretas da experinciahumana, fazem desaparecer igualmente de seu horizonte aimportncia do ensino e da formao dos pesquisadores, quepassam a ser muito mais dependentes de qualidadesintrnsecas de sensibilidade e expressividade do que dequalquer critrio de capacidade de informao ou desistematizao analtica. Toda a dimenso holista, entranhada,da incorporao ou incarnao aqui discutida passa a serimediata e j dada, despojada da tenso com a racionalizaoque tem qualificado essa experincia dentro da Antropologia.Seria possvel dizer a meu ver, nesse sentido, que o maiorproblema do ensino da Antropologia hoje no reside emquestes operacionais e organizacionais, mas em questesconceituais fundamentais para o desenvolvimento dadisciplina, o que justifica o tom um tanto grandiloqente destetexto.

    H pouca ou nenhuma novidade bsica nestaapresentao. O seu propsito e interesse se concentram numaenfatizao estratgica da qualidade complexa e paradoxal denossa cincia, tanto na atualizao de seu processo deconhecimento quanto na produo de seus praticantes. O

    24 A influente sociologia de Bruno Latour (com a sistemtica denncia do grand partage) uma das mais refinadas expresses desse empirismo romntico, em uma verso que enfatiza,sobretudo, a retrica empirista (LATOUR, 1990; LATOUR, 1991).

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    reconhecimento das fronteiras do problema est hoje bemgeneralizado, mas nos faltam ainda formalizaes coerentes desua necessidade. Creio que Mariza Peirano, por exemplo, jtinha em mente o projeto aqui nomeado como universalismoromntico ao comentar que, embora a temtica da disciplinaseja basicamente durkheimiana, a inspirao metodolgica vemde Weber (PEIRANO, 1991: 45). Com efeito, entre umadisposio objetivante que se pode associar ao bsicouniversalismo de Durkheim e o reconhecimento do caminhopelas totalizaes a que o mtodo do Verstehen weberiano (comsuas imediatas razes romnticas) serve habitualmente deexemplo, parece poder-se distender o caminho mais frutferode nossas ambies.

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    LUIS FERNANDO DIAS DUARTE

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    TENDNCIAS DA PESQUISAANTROPOLGICA NO BRASIL

    Paula MonteroUniversidade de So Paulo

    No cabe dvida de que, neste final de sculo, seria precisorealizar um amplo balano do estado atual da antropologiabrasileira, que, se tomarmos como referncia a obra de NinaRodrigues, O animismo fetichista dos negros da Bahia, editada em1900, completar dentro em breve seu primeiro centenrio.Sabemos bem o poder que pode ter esse tipo de diagnsticoque, quando bem realizado, capaz de revolucionar parmetrose direcionamentos de investigao que pareciam consolidadospor uma tradio de vrias dcadas. Mas no surpreendereimeu leitor se lhe disser que, apesar do ttulo que lhe foi dado,no ser esta a ambio deste ensaio. Um balano dessa naturezaexigiria um levantamento sistemtico das obras produzidas nocampo das humanidades nestas ltimas dcadas, de modo aque fosse possvel estabelecer com seriedade o estado da artedas questes e dos problemas que organizaram atualmente estecampo. Tal empreendimento requereria um esforo de reflexoe de pesquisa que est, no momento, fora do meu alcance eperspectivas. Seria preciso dedicar horas a fio na leitura demonografias e no levantamento de dissertaes e de tesesproduzidas nos ltimos anos, visto que desconheo a existnciade balanos abrangentes e sistemticos j realizados que mepossibilitassem a economia desse penoso percurso e mepermitissem o esforo mais confortvel de ir direto a reflexesmais gerais. Seria preciso, talvez, algo mais ainda. Qualquertentativa de se compreenderem as tendncias atuais dapesquisa em humanidades, isto , de se compreenderem asteorias e os problemas que ocupam a maior parte dos

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    pesquisadores contemporneos, no pode limitar-se a umasimples histria das idias, ou seja, supor que as idias seengendram a si mesmas, independentemente do contextoinstitucional em que so produzidas e dos agentes histricosque as criam. Na verdade, se quisssemos alcanar aqui osinstrumentos mais profundos que silenciosamente ajustamesses andaimes invisveis de nossa reflexo, verdadeirasestruturas inconscientes e historicamente determinadas que nospermitem pensar, seria preciso ir alm de uma anlise dostrabalhos em andamento e levar em conta a histria institucionalque define os parmetros de sua produtividade ou, dito deoutro modo, levar em conta o modo como o mundo da cultura(neste caso, da produo acadmica) se articula com o mundosocial e poltico. Tal tarefa est longe de minhas possibilidadesneste momento. Mas, se mantive, ainda assim, a ambio nottulo, correndo o risco de frustar o leitor, foi porque, por umlado, me parece oportuno sublinhar a urgncia deempreendimento, e por outro, ao obrigar-me a um arriscadodiagnstico, constrange-me a explicitar os termos, ainda vagos,com os quais os pesquisadores contemporneos tm expressadoseu mal-estar com a disciplina antropolgica.

    Entre o que seria preciso fazer para responder enormeincumbncia que me foi atribuda e as modestas reflexes quesubmeterei ateno do leitor, neste momento, h, pois, comose pode ver, uma distncia abissal. Em minha defesa, pesa ofato de que meu ponto de partida sero os anos de experinciadedicados a uma vida acadmica que se desenvolveu em vriasinstituies pelo pas. Desde esse mirante, parece-me factvel,apesar das dificuldades da tarefa, definir um leme seguro para,pelo menos, enfrentar a questo.

    Como no possvel fazer qualquer afirmao sobre astendncias da pesquisa sobretudo quando se trata de pesquisaem humanidades sem minimamente situar o contexto dentrodo qual ela se desenvolve, vou tentar desenhar aqui, de maneirabastante impressionista, as grandes linhas de transformao dotrabalho de pesquisa, tal como posso v-las desde minhaperspectiva e experincia.

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    Se Lvi-Strauss tem razo ao afirmar que qualquer ordem melhor do que nenhuma, proponho-lhes um modo selvagemde datao da vida institucional brasileira, em particular da vidauniversitria, que enfatiza sumariamente as dcadas de sessenta,setenta e oitenta, para definir grandes marcos nas transformaesda pesquisa antropolgica tal como ela vem desenvolvendo-seno pas. Essas referncias temporais remetem, no meu entender,a configuraes institucionais distintas cujas particularidadesesclarecem, ainda que de forma indireta, o modo como aantropologia foi elegendo e elaborando para si seus temas eproblemas.

    A dcada de sessenta no a dcada de minha experinciauniversitria. Terei, portanto, a lucidez de no me estender sobreela. H toda uma gerao intelectual que poderia, animada poruma vivncia que no tive, aventurar-se com mais generosidadedo que eu em uma anlise da conjuntura de ento. Para os finsdo mapeamento que proponho aqui, gostaria apenas deressaltar algumas das principais caractersticas que, a meu ver,caracterizam a vida acadmica daquele momento: se tomarmoscomo parmetro as dimenses da universidade brasileira dehoje, pelo menos das grandes universidades, pode-se afirmarque o mundo acadmico dos anos sessenta era relativamentepequeno. Era o tempo da ctedra, dos mestres cercados de seusdiscpulos e quando todos se conheciam. Alm disso, foitambm, um pouco mais adiante, o momento de um expressivoengajamento poltico da Universidade. Por outro lado, do pontode vista mais institucional, preciso lembrar que praticamenteinexistiam no pas programas de ps-graduao. Como essesfatos poltico-institucionais repercutiram na produoacadmica, mereceria uma anlise mais demorada que algunsautores j empreenderam. Mas, se tivssemos de eleger uma,dentre as muitas questes que o contexto poltico da pocacolocou para pesquisa, sem hesitao diramos que o debateem torno da educao popular foi um marco importante nareflexo que se fez desde ento sobre a cultura no Brasil.

    Nos anos setenta, houve uma certa mutao na vidaacadmica que me parece necessrio nomear. Para alm das

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    conseqncias mais evidentes que a consolidao do regimemilitar acarretou para o exerccio da vida cultural, no se podedeixar de notar que esse mesmo regime promoveu umaexpressiva expanso do ensino universitrio, em particularapoiou a criao de sistemas de ps-graduao por todo o pas.Pode-se dizer, talvez, que, pela primeira vez, o ensino deterceiro grau se torna, no Brasil, um ensino de massa. Algunsdados mostram que, entre 1960 e 1982, por exemplo, aumentaem catorze vezes o nmero de alunos matriculados no sistemauniversitrio, dando um salto de 100 mil para 1,4 milho. Essecrescimento acelerado do ensino superior na dcada de setentatrouxe, evidentemente, conseqncias para a formao doaluno, que se torna mais impessoal e menos exigente. Mastambm repercute no campo da produo cientfica. Algumasdas resultantes desse processo seria interessante lembrar aqui.A pesquisa, que era, ento, funo do catedrtico e de seusassistentes, desloca-se cada vez mais para os cursos de ps-graduao; os docentes substituem os mestres, os artigos setornam papers, e a formao se escolariza. A poltica do tempointegral torna todo professor um pesquisador por contrato.

    Comeam a multiplicar-se as dissertaes de mestrado portodo o pas; os departamentos crescem. Nesse contexto deexpanso, torna-se cada vez mais difcil acompanhar a produoacadmica, que pulveriza em inumerveis trabalhos depesquisa espalhados pelas bibliotecas de vrios Estados. Arelao entre os pesquisadores se torna impessoal, a reflexose fragmenta e se distancia regionalmente. Mas, de maneiraaparentemente paradoxal, exatamente nesse contexto que segestam as condies necessrias para que a pesquisa seprofissionalize. Isso porque a expanso das redes de pesquisa,aliadas a uma luta da academia contra o regime militar, permitiuque se consolidasse, em muitos centros universitrios do pas,o que Pierre Bourdieu chama de autonomia relativa do campoacadmico. claro que, na Universidade de So Paulo, ainstitucionalizao de padres acadmicos de formao e depesquisa datam de sua fundao com a vinda da missofrancesa. Mas, avaliando o campo universitrio em termos mais

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    globais, pode-se com certeza afirmar que, pelaprofissionalizao e pelo distanciamento relativo da academiacom relao ao regime militar, criaram-se condies mais geraispara que a autonomia da pesquisa, isto , a reflexo que se realizaa partir de parmetros e interesses internos prpriauniversidade, se consolidasse em muitos centros do pas.

    Nos anos oitenta, as conseqncias das mudanasinstitucionais ocorridas no perodo anterior se tornam cada vezmais visveis. Em continuidade com o processo que se iniciarana dcada de setenta, assistimos a uma fragmentao e a umaespecializao, agora excessivas, do processo cognitivo nocampo das cincias humanas. Alm da perda de uma formaohumanstica mais geral, torna-se cada vez mais difcil, senoimpossvel, manter-se em dia com o que produzido na nossaprpria rea. No campo dos resultados, o panorama tampouco alentador. Escreve-se talvez muito mais, mas se proliferam,no entanto, pesquisas diferentes sobre as mesmas coisas,apequenecem-se os universos de observao, abandona-se aambio de explicaes mais gerais. tambm interessanteobservar que nesse perodo se d uma repolitizao do campoacadmico, mas em outros termos. Por um lado, com a criaodas entidades de classe dos professores universitrios nos anossetenta e, sobretudo, com sua posterior sindicalizao, omovimento docente se reorganiza dentro dos parmetros deum certo corporativismo. Por outro, o processo de engajamentodos intelectuais nos movimentos sociais se intensifica, e tambmse amplia sua participao nos quadros dos rgosgovernamentais.

    Apesar deste mapeamento, to sumrio, das relaes entrea instituio universitria e a conjuntura scio-poltica,esperamos ter salientado a necessidade da anlise dessasrelaes para que se possam compreender os destinos dapesquisa e da reflexo. No temos condies de empreenderaqui to vasta reflexo. Mas no h dvida de que, para quepossamos compreender as tendncias da pesquisa no Brasil,seria preciso recuperar o contexto institucional e poltico a partirdo qual ela se realiza saber, por exemplo, quais os grandes

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    temas que preocupam a nao e como eles se refratam no campointelectual. Evidentemente, quanto maior a autonomia destecampo, mais complicado ser compreender as relaes entre ocampo da poltica e o domnio da pesquisa, j que seria precisolevar em conta um conjunto mais complexo de mediaes entreos dois. Ao lado do contexto poltico, um dos principaisdeterminantes da atividade de pesquisa a estrutura docontexto institucional que a torna possvel. Fazer ummapeamento dessas instituies, saber como nasceram e sedesenvolveram cientificamente, em que momento foramfinanciadas e por quem, quais os objetivos que as orientaram,so temas fundamentais para o desenho da pesquisa. Afundao, por exemplo, de instituies como o CEBBRAP nosanos setenta, isto , num momento de endurecimento polticoem que as grandes universidades sofreram pesadas baixas emseus quadros docentes, acabou por constituir-se como umaimportante alternativa para a continuidade da atividade depesquisa. A universidade naquele momento definhava, e apesquisa enfrentava entraves polticos, econmicos eburocrticos. A produo acadmica tendeu a fluir, ento, parafundaes muitas vezes financiadas por capital vindo de fora.Talvez por causa disso, somado ao momento poltico em que ainformao estava absolutamente cerceada, poderamos dizerque as dcadas de setenta e de oitenta se caracterizaram porum tipo de pesquisa que eu chamaria de diagnstico. Tratava-se de realizar uma leitura sistemtica e quantificada dos maisimportantes indicadores sociais de modo a sustentarcientificamente uma ao poltica de oposio ao modeloeconmico imposto pelo regime militar. Um dos resultadosmais expressivos dessa tendncia foi o livro So Paulo: crescimentoe pobreza, cujo impacto poltico na poca foi notvel. Alis, nofoi por acaso que esse trabalho fora encomendado ao CEBRAPpela arquidiocese de So Paulo. Em trabalho anterior1 , observeique, a partir dos anos setenta, se inicia no Brasil um amploprocesso de profissionalizao dos quadros clericais e leigosda Igreja. Assim, seu engajamento progressivo na organizao

    1 Paula Monteiro & Ralph Della Cava. E o verbo se faz imagem, 1991. Petrpolis, Vozes 1.

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    dos movimentos sociais fora precedido pelo desenvolvimentoe pela incorporao cada vez mais ampla, por parte de seusquadros intelectuais, de uma viso sociolgica da sociedade,cunhada progressivamente nas dcadas anteriores, sob ainfluncia da Universidade de Louvain, na Blgica. Esse esforode descrio da realidade social dependeu cada vez mais daatuao de institutos de pesquisa profissionalizados que foramsendo criados ao longo das dcadas de sessenta, tais como Cerise Ibrades no Rio de Janeiro.

    Vemos, pois, como essas relaes de apropriao dapesquisa pelas instituies sociais podem definirqualitativamente sua direo e seus instrumentos. Mas h aindauma ltima questo que preciso apontar: os grandes temastratados pelas cincias humanas, ou pelo menos aqueles queacabam por ter um maior impacto, so, em grande parte,determinados pela posio social que os intelectuais ocupamnuma certa conjuntura histrica. Muitos dos que se propuserama um balano de nossa disciplina j observaram como a relaodos intelectuais com o poder direciona a construo dainterpretao sobre a vida social. Desde o sculo XIX quandoos bacharis defendiam os interesses dos senhores rurais nascidades , passando pelo perodo Vargas quando se procuravaconstruir um trabalhador-cidado e pelo perodo Isebiano quando se tratava de desenvolver o pas , a cada momento, omodo como os intelectuais postulam as grandes questesnacionais s pode ser compreendido quando se leva em contaa natureza de sua insero social. Eu lembraria, por exemplo, odebate sobre o nacional-popular ou sobre odesenvolvimentismo; so debates datados que s faziam sentidoem funo dos projetos de nao que os intelectuais que nelese engajaram haviam incorporado.

    Este, talvez excessivamente longo, dtour a respeito doque deveria ser feito num trabalho desta natureza tem apenasuma inteno eu diria pedaggica de mostrar a amplitudee a complexidade da temtica a que esta mesa se prope. Masele no ter sido de todo intil se estiver estimulado, ao mapeargrandes perodos e pontuar tendncias, futuras pesquisas.Minha contribuio mais especfica para essa reflexo ser agora,

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    deixando entre parnteses essa histria institucional, procuraranalisar como essas questes sociais e polticas foramincorporadas e trabalhadas pela antropologia brasileira em suahistria recente e como elas definiram seus problemas e seusmtodos de investigao. Outra vez, s poderei falar de umponto de vista situado a partir de minha experincia emdocncia e na pesquisa , j que no me dediquei ao estudosistemtico em questo.

    Pode-se dizer, de um modo bem geral, que a histria dascincias sociais no Brasil e a histria da Antropologia emparticular estiveram, desde seus primeiros passos no sculoXIX, ligadas ao problema da construo da nao. Muitosautores j observaram que equacionar o problema dadiversidade racial era a chave para os que pensavam a nao:para construir e definir a noo de povo, era precisocompreender a natureza da cultura popular. As relaes entreraa, povo e cultura tm, pois, uma histria relativamente longana reflexo antropolgica. Ela vem desde Nina Rodrigues, navirada do sculo, passando por Gilberto Freyre nos anos trinta,pela crtica ao imperialismo nos anos cinqenta e, nos anossessenta, pela descoberta e exaltao da cultura popular.

    A cultura popular, tal como foi apreendida nos anossetenta, partia de um marco terico marxista, trabalhando demaneira muito simplificadora e rgida. Como muitos autores jdemonstraram, a problemtica que estava subjacente aointeresse que ento despertava o conhecimento da culturapopular era a de libert-la de sua alienao e torn-lainstrumento de conscincia e, conseqentemente, da lutapoltica: pela apropriao culta da cultura popular, estamaneira familiar ao povo de falar e de compreender o mundo,os intelectuais esperavam fecund-la de verdades referentes natureza da opresso de classes no pas. Esta instrumentalizaoda cultura popular para a ao poltica significou, naquelemomento, desconhecer as tradies populares existentes em sualgica prpria e extirpar desse universo popular alguns de seuselementos mais importantes, tais como a magia e a religio.Tratava-se, pois, de purificar a cultura popular subtraindo-lhe sua dimenso alienante e utilizar o que nela havia de bom

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    senso que pudesse promover a conscincia de classe. Pode-seperceber o quanto esse tratamento dado cultura a reduzia sua funo puramente expressiva e subordinada ao discursopropriamente poltico.

    interessante notar, alm disso, que, no contexto dos anossessenta, a disciplina antropologia seus mtodos, temas einterpretaes tinha pouca importncia ou legitimidadeinstitucional e quase nenhuma visibilidade fora daUniversidade. As populaes que estudava (ndios, negros, etc.)a colocava margem das grandes correntes polticas e das forassociais mais dinmicas. Era, pois, sobretudo a sociologia, aocolocar as classes e as instituies polticas e econmicas nocentro de sua preocupao, quem propunha uma interpretaoconvincente e mobilizadora do mundo social. Acho que se podeat ir um pouco mais longe: a antropologia era vista, ento, commuita reserva pelos que se engajavam nos movimentos polticosda dcada de sessenta. Talvez pelo valor que atribuam tradio e ao tempo fixo das sociedades que estudavam, osantroplogos eram vistos como conservadores e despolitizados.Quem freqenta os corredores da atual Faculdade de Filosofia,ouve referncias quele tempo como um perodo bastantetraumtico: enquanto professores de outras disciplinas iam paraexlio, os antroplogos tinham dificuldades de chegar at o finalde seus cursos, sendo criticados pelo que ento era percebidocomo conservadorismo ideolgico ou falta de engajamentopoltico. Nada como o distanciamento histrico para captar oesprito de uma poca. Menos de dez anos depois, a emergnciados movimentos sociais exigiu que se buscassem naantropologia os elementos de compreenso de um modo deao que parecia fugir aos cnones institucionais at toconsagrados pela poltica, a ponto de terem sido considerados,num primeiro momento, como pr-polticos. Nesse contexto, aantropologia vai assumindo um lugar institucional cada vezmais legtimo a ponto de se tornar, nos anos oitenta e noventa,um dos referentes mais importantes da atuao das minorias edas instituies que dela se ocupam (cursos de antropologiapassam a ser ministradas em seminrios, sindicatos, escolas, etc).

    Do ponto de vista terico, foi a obra de Antnio Gramsci

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    que ajudou na passagem para uma viso mais positivada eflexvel das culturas populares. Gramsci foi incorporadoprogressivamente pelos pesquisadores preocupados emcompreender o universo cultural das classes populares; suasnoes de bom senso e, particularmente, de hegemoniapermitiram um deslocamento da anlise que podia liberar-se,ento, de um reducionismo marxista que operava em torno doconceito de alienao e era marcado pela busca das essncias.Atravs do conceito de hegemonia, era possvel pensar a culturapopular, ainda que fragmentada e alienada, como portadoranela mesma de conscincia e capaz, portanto, de resistnciapoltica pela resistncia imposio dos valores dominantes.

    Foram, pois, os movimentos sociais que deram relevnciaterica e metodolgica antropologia: eles colocaram no centrodo debate poltico no mais os partidos e os sindicatos, mas asvivncias privadas. Ora, a tradio antropolgica acumularainstrumentos e modelos interpretativos que, desde Malinowski,haviam colocado o cotidiano e seus valores como o centro daobservao da vida social. Atribuir prerrogativas abordagemantropolgica significava, ento, criticar a clivagem que osestudos da cincia poltica e a prpria sociologia operavam nanoo de cultura. Estas interpretaes tendiam a privilegiar oque se pode chamar de representaes plenas da vida sociale poltica, ou seja, aquelas ligadas esfera do privado, do nodito, do fragmentado e por que no? do ilegtimo: aantropologia buscava dar sentido s sombras da vida social.

    No contexto desse novo debate, a antropologia procuravademonstrar que no havia um terreno especfico para o exercciodas relaes de poder: coerente com a tradio de estudos que,desde os anos quarenta, acumularia conhecimento sobre ossistemas polticos de sociedades no ocidentais, a antropologiatornara-se forte o bastante para demonstrar que as relaes depoder e de autoridade no estavam apenas onde se esperavaencontr-las, isto , no campo partidrio e sindical, mas sedesenvolviam tambm, de maneira menos evidente e mais sutil,na rede mais ampla das relaes sociais. A abordagemantropolgica pretendia, portanto, tomar patente de que acompreenso da experincia vivida era fundamental para o

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    entendimento do mecanismo de mobilizao das vontades,fonte ltima de todo poder. Sem este entendimento daexperincia vivida, e sem a viso de mundo a ela associada,no seria possvel compreender como e por que os homens seengajavam nas atividades propriamente polticas. Assim, nofinal da dcada de setenta e, sobretudo, na dcada de oitenta,multiplicaram-se os estudos antropolgicos sobre a vidaconcreta das classes populares, seu lazer, seu modo de comer,sua organizao familiar, etc. Foram tambm muito ricos ostrabalhos que se voltaram para as expresses simblicas dessasclasses: o carnaval, o futebol, a religiosidade popular, etc.

    Cabe aqui uma pausa para que se possa dimensionarcorretamente o relato bastante impressionista que desenhei ataqui. Salta aos olhos que enfatizei, sobretudo, os estudosantropolgicos que se interessavam pelos fenmenos culturaisdas grandes metrpoles. Esse vis da leitura revela que souum intrprete absolutamente situado (e no poderia ser de outrojeito) na minha gerao intelectual e na minha formao: esse o prisma que me permite ver, mas tambm que me faz quaseque identificar a antropologia quilo que parte de minhagerao e nossos mestres realizaram. hora, pois, de tentarreparar, pelo menos parcialmente, essa grande injustia quedeixa fora da anlise muitos dos temas e problemas quepreocuparam a antropologia brasileira nestes ltimos trintaanos. Como no posso tratar desse enorme conjunto,privilegiarei uma das especialidades que mais contriburampara a formao dos conceitos e dos problemas da nossadisciplina, especialidade esta que alguns consideram averdadeira antropologia ou, pelo menos, o ptio do colgiode onde teriam emergido as outras: a etnologia indgena. Nosendo especialista da rea, chamarei em meu auxlio umexcelente balano da etnologia feito por Eduardo Viveiros deCastro e publicado em 1993 na Revista do CEBRAP2 .

    Segundo Eduardo Viveiros de Castro, na dcada de setentapode-se perceber uma mudana importante nestas reas deestudo, posto que o conhecimento acumulado dos ndios

    2 E. Viveiros de Castro, Histrias Amerndias. Novos Estudos Cebrap. n 36, julho, 1993.

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    brasileiros atingiria um grau de sofisticao e de profundidadetal, que, pela primeira vez, a etnologia das sociedadesamericanas podia colocar-se altura da etnologia que se faziasobre as outras sociedades no mundo da sia e da frica.Segundo sua interpretao, isso se teria dado graas a trsrevolues fundamentais: a primeira est relacionada com o fatode que os etnlogos deixaram de usar fontes documentaistercirias ou de segunda mo e se voltaram diretamente paraos documentos primrios.

    A segunda grande transformao diz respeito importncia que os etnlogos passaram progressivamente a darao aprendizado das lnguas indgenas e aquisio de umacompetncia lingstica que, at ento, no tinham. Oconhecimento da lngua colocou a histria oral no centro dadescoberta e da compreenso dessas culturas: a tradio contadapassa a ser, ento, um documento de pesquisa fundamental.

    Como terceiro momento desta transformao, o autorressalta a maneira nova como a etnologia se abriu a um dilogo,h muito interrompido, com a arqueologia, com a lingstica e,sobretudo, com a histria. claro que a histria sempre forauma preocupao da antropologia pela histria. J bemconhecido o movimento atravs do qual a histria passa, poucoa pouco, a assimilar, em suas anlises, os mtodos, temas eproblemas da antropologia. Esse procedimento resultou numanova histria que alcanava condio de objetos legtimos edignos de compreenso, dimenses das sociedades ocidentaisat ento tidas como imveis (fora da histria) ou insignificantes,tais como a cultura popular, a vida privada, etc. O que nosparece importante ressaltar aqui que esse movimento dahistria acabou tendo, para a prpria antropologia,conseqncias muito importantes.

    A primeira delas seria o fato de que, pela primeira vez,teramos um campo de estudos que poderamos chamar deamericanismo, isto , voltado para o estudo aprofundado dassociedades americanas. At ento, havia-se consolidado naantropologia, sobretudo pela atividade dos estudiosos francesese ingleses, o africanismo. Mas o americanismo, como fonte deproblemas para a antropologia, observa Viveiros, um

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    fenmeno relativamente novo. E no apenas isso. Na verdade,o americanismo nunca teve lugar central na constituio dosconceitos e dos problemas da cincia antropolgica. Os modelosexplicativos de B. Malinowski, E. Durkheim e F. Boas forambasicamente construdos a partir de experincias de pesquisana frica, na sia e na Oceania. certo que Boas pesquisouentre os ndios da Amrica do Norte, mas s muito recentementeas culturas sul-americanas comeam a colocar problemastericos para a construo da antropologia.

    Segundo Viveiros de Castro, se este salto terico pde serrealizado, foi porque o uso de fontes primrias e o conhecimentoaprofundado das lnguas indgenas teriam permitido uma novasntese da histria americana, ou, dito de outro modo, ela