Carneiro da Cunha, Manuela. Antropologia do Brasil mito, história, etnicidade. São Paulo

7
MANUELA CARNEIRO DA Db""publiclldll em co-edi~iio com 8 EDfTORA DA.UNIVERSIDAI)E DE sAc PAULO Reltor: JDH Goidemberg .Vlc.Reltor: Roberto Le" Lobo 8 SlivaFllho EDITORA DA UNIVERSIDADE. DE sAo PAULO I J ANTROPOLOG DO BRASIL mito, hist6ria, etniclda p'raldente: JOB6 Carneiro ComissaoEditori./: Prealdwite: Jos6 Carneiro. Membroa: Alfredo Bosi, Antonio Brito dB Cunha, Jos6 E. Mndlin e O.waldo Pau lo Fora tt lnl. . ; , " ; ~~()~~~ :;'-0 , . =-:~~~ i ( : ~:: : : 1" : ": J:";- ~. . ~:, : . ~ ~~ : >- Dados de Ca••loppe n. ~ublloaCl.e(CIP) '••••.••olon.' ( Cl ma r •• r •• l le lr . do Line. &p, ar•• II) fit· Cunha, Hauuala caruiro cla. . C979. Ant ropo10s1a d o Bra.il I mito, bi.toria. ataicida- da I ManualaCa1:1l8iroclaCunha.- sio Paulo I Brasi- lia_a I ~itor. da vai_nida. da sio Paulo, 1986. aib1io.rafia. 1. AIluop01oala 2. Aatropo1oli' - Bra.U 3• .ADtro- po1ol1a aoclal - Br••ll 4. Soeiad~.a prledtlva. I.Tltu10. CJ)1)-981 -301 86-1919 -301.72 India•• para aat6lago alti'am••loo: 1. ADtropololi. 301 2. Br••ll I AQtropoloaia 981 3. iraan I .Antropo10gl. cultural 981 4. Br•• U I··AIltropololia.ocial 981 . S. soel.clade. primitivas : socio1oaia 301• . 72 I ! ..... I ~ . . ~i .~ . 1.,86

Transcript of Carneiro da Cunha, Manuela. Antropologia do Brasil mito, história, etnicidade. São Paulo

5/16/2018 Carneiro da Cunha, Manuela. Antropologia do Brasil mito, história, etnicidade. São Paulo - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/carneiro-da-cunha-manuela-antropologia-do-brasil-mito-historia-etnicidade-sao-paulo 1/7

 

MANUELA CARNEIRO DA

Db"" publiclldll

emco-edi~iio com 8

EDfTORA DA.UNIVERSIDAI)E DE sAc PAULO

Reltor: JDH Goidemberg

.Vlc.Reltor: Roberto Le" Lobo 8Sliva Fllho

EDITORA DA UNIVERSIDADE. DE sAo PAULO

I

JANTROPOLOG

DO BRASILmito, hist6ria, etniclda

p'raldente: JOB6 Carneiro

ComissaoEditori./:

Prealdwite: Jos6 Carneiro. Membroa: Alfredo Bosi,

Antonio Brito dBCunha, Jos6 E. Mndlin e O.waldo

Paulo Forattlnl. .

; , " ;

~~()~~~

:;'-0 , . = - : ~ ~ ~ i

(:~::::

1" : ":J:";-

~.

.~:,: .

~~~ :>-

Dados de Ca••loppe n. ~ublloaCl.e(CIP) '••••.••olon.'

(Clmar •• r•• llelr. do Line. &p, ar•• II)

f i t ·

Cunha,Hauuala caruiro cla. .C979. Antropo10s1ado Bra.il Imito, bi.toria. ataicida-

da I ManualaCa1:1l8iroclaCunha. - sio Paulo IBrasi-

lia_a I ~itor. da vai_nida. da sio Paulo, 1986.

aib1io.rafia.

1. AIluop01oala 2. Aatropo1oli' - Bra.U 3•.ADtro-

po1ol1a aoclal - Br••ll 4. Soeiad~.a prledtlva.

I.Tltu10.

CJ)1)-981

-301

86-1919 -301.72

India•• para aat6lago alti'am••loo:

1. ADtropololi. 301

2. Br••ll I AQtropoloaia 981

3. iraan I .Antropo10gl. cultural 9814. Br••U I··AIltropololia.ocial 981

. S. soel.clade. primitivas : socio1oaia 301•.72

I!

..... I~. .~i.~ .

1.,86

5/16/2018 Carneiro da Cunha, Manuela. Antropologia do Brasil mito, história, etnicidade. São Paulo - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/carneiro-da-cunha-manuela-antropologia-do-brasil-mito-historia-etnicidade-sao-paulo 2/7

 

S2 MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

Turne r, Vic to r W.1969 Th~ r/tutzl proces8: SlructUIY tmd Qnti-.rtructun. Londres, Routfeel.e 01 :

Kcaan Paul.Vanzollni , Paulo EmlUo

19' 6-1 958 "No ta s obr e a z oo l~ a dOl Indios Canda", R~vlstll do MuseuPaulisla. n .s ., X: 1S5 ·17! . sa o ",ulo.

Vernant, Jean·Plerre.1965 "Aspects mythlques de 1. memoir." (1959), InMyth. ~I pens« eMz I,.

GIYCS.Pari., M••pero: 51·78.V id al, L ux B . '

'1972 M~rlrf-ml. Umtz~rlm~n;tz dos Indlo& Xlkrln. Tele do ~eatrado apre-sent.cIa • Unlversidade de Sio Paulo, mi.

Wonley.. Peter . . .1968 n. trumpet shall sound: tzstudy of 'cargo' culls In m.lllnflSitz. Londres,

McOlOOn &: Kee (l~ eel. 1957).

~

t

I

I

•••

i)

,~. , ..~

De amigos lormaise.pessoarde companheirespelhos e identidades*

A sessao de hoje leva0titulo "A Construcaonas Sociedadeslndigenas do Brasil". Titulo que seqgente, mas que,pode causar certa perplexidade, polsde tomar os tennos em uma ace~lo lata. ele coloca

ce, eom0a!~o-r!lell!~~tend.a..dLU~a ca='0' n IOClgdcis hilS. .' .se, por certo s :uclade nlo se pode pensar sem seu acervo de papeis.nae, se eladispOe tambem de urn ideirio sobre oqueaindividualidade de um homem, nlo. e claro quenecessariamente uma caleaoria ou simplesmente ude pessoa. Esta, como esereveu hi .uns tantos anMeyerson, Hnio e urn estado simples e,uno, um Jatvo, um dadoimediato: a pessoa e mediata, construi

• Bxtraldo do Bokltm do MUSftI NtlCiontli, n.l. n!' 32. 1979. Apreaentmente no. Simp61lo "A Pesquila BtnoI6aica no Brasil;'. realizadNadonal e na Academia BruUelra de Ciencl&, Rio de Janeiro, de 2

5/16/2018 Carneiro da Cunha, Manuela. Antropologia do Brasil mito, história, etnicidade. São Paulo - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/carneiro-da-cunha-manuela-antropologia-do-brasil-mito-historia-etnicidade-sao-paulo 3/7

 

54 MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

plexa. Nlo ~ uma categorla imutavel, co-eterna ao homem, ~uma fun~Aoque se elabora diversamente atraves da hist6rla eque continua a se elaborardiante de n6s" ,(Meyerson, 1973:8). Catcgoria hist6rica e cultural, portanto. Coisas que Maussja havia, aliAs, mostrado, quando, retra~ava a emergencia dapessoa, ligando-a a condi~cs de tempo, e de espaco, e inse-'rmdo-e em modos de organiza~lo, de a~lo e .depensamento. )

Contrariamente, porem, ao que se poderia. esperar ap6seste pr610go (que me parece no entanto necessario), creio, quc, sim, se pode falar em pessoa entre os Krah6, uma vez \.r

que me parece existir entre eles a no~lo de um principio de i0 :autonomia, de dinAmica propria. Mas esse principio pcssoal {,'

deve ser, creio, -procurado e nlo post.ulado. Escrevi, ha uns « ~anos ja, umas coisas,sobre isso,liaandoa nocao de pessoa As ":institui~Oes de amizade formal e de companbelrismo. Como ' < :Dlo tive, no entanto, ocasilo de discUtir 0 que havia entl~C'"escrito, pensei aproveitat este foro para um debat~;Nopro- \cesso de condensar drasticamente em oito as vinte P~8S < ; :

originais, deu-se porem uma revisAo e uma c1arifica~o do ~que cntlo sustentava, e quem vier a comparar os tlois textopercebera nitidas difereneas. .

Naquele trabalho, tentei fundamentar alguns pontesque, por falta de tempo,apenas resumirei aqui. Afirmava

mais ou menos 0 seguinte: .

..'i> . . '. "~:. ',

~

1) a amizade formal entre os Krah6 devia ser entendida comoconsistindo essencialmente em uma r'ela~o deevi~ e

solidariedade entre duas pessoas, conjugada com tela~es 'prazenteiras assim~triCasde cada qual com os pais deseusparceiros; insistia, cntlo, que essas dt1asrele.~cs erampensadas como um todote nao Isoladamente, e como taldeviam ser analisadas em conjunto; e implieavil, alemdlsso, que a liga~Aoda institui~o deamizade formalcomOsnomee pr6prios era secundiria, ou seja•.eta a mOdali-dade krah6 do tema je mals amplo da amizade formal;

2) analisando os contextos em que intervem os ~os for-mais, distinguia dois tipos de situa~Oes:0primelro tipo dizrespeito a danos fisicos, como queimaduras, picadasdemarimbondos ou de formigOes, em que 0 aniigo fonnal 6

chamado para softer na pele preeisamente a mtsma agres-,..slo Hsica de que foi vitima seu parcelro; enquantc 0 outro

< ~

.nI

~I;..

<

.1 '<~:

,.,,

<1 '1

: '; -:

',i,I,

~J

"~

••

\)

ANTROPOLOOIA DO BRASIL

tipo se refere aos ritos de inicia~o e fim de rassassino, quando os amigos· formais permitegr~Ao de um Krah6 segregado do convivio sotualmente, sua instaur~o em uma nova cond

QUtf~a aqui retomar, a parti,r dos pontos leWscussllo dessas praticas e institui~Oes. Situemo-n

al6m das vadas explica~Oes funcionais: amizadrel~ prazeiteiras, modos de seconjugare conjqueria Radcliffe-Brown (1952 (1940): 103). umade interesse inscrita na estrutura social; ou pelainstaura entre grupos separados, provedora de sMundo inccrto de pequenos grupos antaaOnicos cTonga da ZAmbia, e permitindo sancees moraido castigat mores - quenllo poderiam ser exmembros do ciA, demasiado pr6ximos (na versAo1962: 82).

Teoria dessas rela~Oesde' arilizade ou, comomuitos anos Mary Douglas, mera classifica~o dmanter a amizade entre grupos ou pessoas eslruseparadas? (Tew, 1951: 122). ,

Discussllo pouco proflcuar os beneflcios snlo falar em fuil~Oes. da amizade formal e da

joking-relationships slo suficientemente 6bvios .ciedades j@,mais talvez do' que quaisquer outra

pl~t6ncasinstitui~.Oes rituais, suscitam outros nivca~o que nlo os da razl.o funcional. Ou seja, a pse coloca 6:dado que as mesrll.s fun~s poderiamchidas pot uma variedade de formas, praticas e inque outras determin~s respoade a escolha deespecificas?Ou, 'outra maneira de colocar a mesmBe ,6verdade, como nAocusta conceder 0 que cssasde amizade desempenham os pap6is que foramaclma, quais saoasatribulrlJes semlJn/icasque apara tanto? _

Tomemos 0 caso krah6. Poderfamos comecade cria~lo, mas comecemos por outra ponta, pelao amigo formal ~, por defini~p e por excelencianho, um nlo-parente, ikhuanare. A relacao imp

rcspeito extremo e de evitacac. Nos casos que ptecer - ja que aamizade formal e Iigada ao nom

5/16/2018 Carneiro da Cunha, Manuela. Antropologia do Brasil mito, história, etnicidade. São Paulo - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/carneiro-da-cunha-manuela-antropologia-do-brasil-mito-historia-etnicidade-sao-paulo 4/7

 

"MANUELA CARNEIRO DACUNHA

rentes serem tambem amiaos formais, SO se considera estarela~o mantida se semantiver a etiqueta social correspon-dente. Na verdade, como ja tive ocasiao de salientar, a sim-ples inobservAncia, por involuntarfa que seia, da distinciarequerida rompe de modo abrupto a relacao, sem que esta: possa jamais ser reparada. Assim, uma mulher mudou-se deuma aldeia para outra e iniciou uma rela~lo descontraldacom uma mulher da nova aldeia. Veio depois a saber que osnomes de ambas. eram liaados por amizade formal, mas nlofoi possivelreatar a rel~ de distincia que havia sidoinfrin-a1da.Ji seconfigura, mepareee, que a distincia nlo e apenasur n atributo do amigo formal mas, de certa maneira, sua pro-pria essencia. -Retoniaremos isto mais adiante.

Com os parentes do amigo formal, graceja-se. E estes010 se podem ,formalizlU;com as injurias e xingamentos deque silo alvo. Agressao simb6lica fundamentada novamentena condi~ao de estranho. E isso em mais de um sentido: namedida, primeiro, emque um estranho pode, como afirmouGluckman (196S: 99-103). ridicularizar sem ferir la~ossociaise reaflrmar, assim, valarcs;pode operar comoarbnro emum .jogo do, qual ele nAoe parte. E Gluckman chama a aten~opara 0status de estranaeiro, que costumava ser0do bobo dacorte. que exercia controlemoral sobre a autorldade do rei.Deixa de ver, porem, que nao eram apenas alheios, nesse sen-tido nacional, os bobos da corte. Eram tambem frequente-mente seres disformes, isto e , negavam as .proporcoes do. corpo humano, 0que. em outro c6digo,vem a ser amesmacoisa: estranhos a sociedade em um caso, a "humanidade"no outrQ,negando,em seu proprio corpo a articula~ao har-moniosa das partes, eJes eram sempre "os de fora", "osoutros", os que negavam por sua propria existenciaa sobe-rania de uma ordem. Sua disformidade expressava portanto,ainda, que, profissionais da: pilheria, eram eles propriospilherias, seesta e realmente, como argumenta Douglas (1~:366), urn desafio a ' configur~o dommante de rela~es....exprimindo as possibilidades latentes dentro deuma ordemimperarite que e assimmomentaneamente subvertida.

'.,.-:.:0amigo formal pode, assim, gracejar e insultar suas.viti-,:~;'namedidaem que ele e umestranho, e isto emmais deumadimenslo. E ao insuh8r, ele ao mesmo tempo reaflrmasua~tianheza e a inverslo que.seu gracejo implica,;.

'\''i) ';:

\~

<)

, , .

..':

ANTROPOLOOIA DOBRASIL

I

I

Em seu duplo aspecto de evita.~o e parceriaamigo formal teria, portanto, essecariter que mepn}-lo, 0 de negar, 0 de inverter, 0 de contradizer, 0antonimo, ,

Retomemos 0 fio da meada e perguntemo-noscussao acima traz alguma Juz sobre os fatos krahono in1cio: por que se pede ao amigo formal qumesmo dano fisico da vitima original (queimadura,marimbondo ou de formiglO) senlo porque infling. ao antOnimo c duplicar, reiterar a ncga~o e 0recobrar assim a integrldade inieial, que fora atinoutro lade, por que 0amigo formal es~ presentecipio, em ritos de passagem? Por que ele se interpOiniciandos e seus atacantes, membros da aldeia,aliavalente nessa bat8lha 80S uestrangeiros" de outraSe 0 amigo formal e 0 outro, a antttese, entl.o suatesta a dlssolu~lJo do personalidad,e, a voltaao crenclado que caractcriza os estados chamados.Mas, ao mesmo tempo, 0confronto tese-antiteant6nimo, conduz a slntese almejada no ritual, onovo status.

Principio de restaur~o, sim, mas tambem,principio de instaura~, portador de dinAmica, feMassaque encerra possibilidade reca1cadas., ~o plano cosmolOgica, essa rela~ao aparececo

nitide£ Sol e Lua slo amigos formals e ao mesburlam-se mutuamente ao .longo do mito dacrsuma, reunem, talvez por falta depersonagens emainda deserto, as duas facetas da amizade formal. Ese da. Isto e importante,atraves de um processoRituais fundamentals slo assim institu1dos; se, pocorridas de toras sAoCria~lo de Sol, ritos fupebresdo departe seiUemas prefetenclas de Lua. Ja protral' em um artigo sobre 0mcssianismo eanela (CCunha, 1973:27, n. 2). a lig~o entre ascorridas dn~o de tempo e de periodicidade, Pare.ce poisaque seja0Sol, que, como diz DaMatta (197S: 242penha. 0 papel de um personagem cego pela regUpela certeza" (isto talvez fosse mais matizado entredo que entre osApinaye), 0 criador dos ritosdereguQuanto· a Lua, cabe-Ihe a origem do trabalho ag

5/16/2018 Carneiro da Cunha, Manuela. Antropologia do Brasil mito, história, etnicidade. São Paulo - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/carneiro-da-cunha-manuela-antropologia-do-brasil-mito-historia-etnicidade-sao-paulo 5/7

 

S8 MANUELA CAR~IRO DACUNHA

sua culpa. as ferramentas de Sol nao operam mais sozinhas eexigem 0concurso humano. E, como se queixa da aus!nciade movimento, Lua provoca a cria~lo de mosquitos e cobrasque atormentam os homens. Lua e portanto causa de diversosmales e inconvenientes, instigador de vluias desordens, poreerto, mas e tambem, e preeisamente por issomesmo, 0 prin-cipio dinIJmico na cria~lo. e flnalmente 0fundador de dois

ritos fundamentals. Esses dois ritos sao, como vimos, 0res-guardo de parto e os funerais, e tornar-se-a (espero) claromais adiante que isso n~ parece ser fortuito: slo estes osritos de 8epara~0 de individuos do seio de sua! parentelasque tem a vet com ~.cri&~ e a destrui~o de um espa~o pro-priamente. pesosal. Cabia a Lua instaurar esses ritos.

Dizlamos acima que a evita~lo. ·a distlncia, seriam apropria ess8ncia da amizade formal. Expl1cita nesse sentido ea pratica canela descrita por Niinuendaju (1946: 101). Osinidandos, ao cabo do ritual de pepyl, podem, se 0 desaja-rem, estabelecer rela~s de amizade formal, mediante 0

seauinte rito: de costas urn para 0 outro, mergulham no ~bci-rilo em di~iJes opostQtl. em seauida emergem e se encaram.Significativamente, um rito muito semelhante, mas comumainversAo crucial, serivira, entre os mesmos Canela, para esta-..belecer a re~lo que chamarei de companheirismo (0 termo

Krah6 ~ ikhuonfJ, meu companbefro): os candidatos mergu-lham juntos. QbraPldos e na meem« direrlJo (Nimuendaju,1946: 10S). . .

Nossos dados, como os de Meiatti, indicam que BAoucompanheiras" entre os Krah6 as criancas nascldas nomesmo dia (mas aparentemente nlo os gemeos verdadeiros),rapazes que foram krtlrigat~. lsto e , chefes de' metades deiniciandos, durante 0 mesmo ritual de in,icia:~o, seja noPempkahok ou no Ke~, asmoeasque foram associadas aummesmo grupo na mesma celebra~o de um destes rituais,os homens Q,ueforam prefeitos 40 patio, oficio sempre.inves-.tido emdois incumbentes, na mesma esta~io do mesmo ano,e assimpor diante.

O S IkhuonlJ, ao contrario dos amigos formais, 510com-panheiros detodas as horas e todas as atividades, pelo menos .atesetomaresn pais de numerosa prole. Reina entre elestQtal

liberdade de'diScurso euma camaradagem descontraida. No.ritual que encerra a esta~lo chuvosa e DO que encerra Itesta-

, ' "

~.

.i .

~

' I ,

; ,

lJI

' \

ANTROPOLOGIA 00 BRASIL

:~ao seca, ha troca cerimonial de mulheres entreWakmeye .e ~atamye. Nessa ocasilo, os l/c.huopreferencialmente demulhers entre sit a nao ser qupertencam a metade alterna requerida.

'Um estudo lexicolOlico sumluio permite desraiz comum nas palavras que designam0companhenfJ (no feminino ikhuore), e, a placenta, ikhuoti,

Kra:h6 se relerem alias em portugue&como "0 coda crian~ai . Todos esses dados corroboram, mliga~o dB'nocao de' semethanc«, ou melhor, dedade com a institui~lo do "companheirlsmo'", ealemdisso, 0 contraste entre nadar na mesma dir~em dire~Oesopostas nos ritos que fundam, entreasrelacoes de companheirismo e de arnizade formavamente. Tal como 0amigo formal correspondemente oposto, 1\ alteridade por excel@ncia,0 cocorresponde 1\ semelhanea, a simultaneidade, 1\ se

Diante deuma semelhanca tlo claramentede uma 'alterldade posta e nlo dada, em ummeiomente homogeneo, 0que pensar? Reduzi-Ias acoeslo social, quando mais nao fosse, suporia quaserem coesos fosse realmente estranhos de antema1gofica patente e que essa estranheza e arbitraria,fieada para se colocar a nocao de alteridade, e qlhanea parece ser codificada muito al~m da camqtiemmifesta.

A minha hip6tese ~ que a amizade formalnheirismo tem a ver com a nocao de pessoa entre oo que mostra e,npassant que esse longo prologoalgo a ver com 0assunto deste seminario, Vejamque a identidade social e associada, entre. os Kraho~io e a .identidade individual. biol6gica, a ccnsa.(Melatti.1970). Haveria, entre esses dois p610s, eumanocao de pessoa? Creio que sim, e mais: ainstltuicees de amizade formal e. de companheiristam justamente nessa dire~lo.

Que seria, nesse sentido, 0companheiro? E10. a imagem especular nao da, forma do corpo,sua acao: e "quem,faz 0que eu faeoao mesmo

eu, quemnasce no diaem que nasco, quem govequando eu tambemgoverno, mais genericamente

5/16/2018 Carneiro da Cunha, Manuela. Antropologia do Brasil mito, história, etnicidade. São Paulo - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/carneiro-da-cunha-manuela-antropologia-do-brasil-mito-historia-etnicidade-sao-paulo 6/7

 

60 MANUELA CARNEIRO DACUNHA

acompanha em minhas acees cotidianas". Tratam-se deikhuonlJ os dois cunhados que, na epopeia de Haltant, par-tern juntos para 0,pe do ceu, umduplicando 0 outro ate que amorte os separe; tamban no mito deKatxere, a mulher-estre-la;0 par de rapaz~ que juntos vlo buscar urn Machado setratam por "comp~heiro". Um come a carne proibida dernucura e envelhece instantaneamente, enquanto ooutro con-

tinua 0seu camlnho. ,N.osdois mitos, a "constru~lo" e amesma: ,0 par de companheiros 56 parece existir em fun~lodo incidente que os fara divergir: uma trajet6ria serve. porassim dizer,de referencia's outra, que se alterou. Mas paratanto. e necessario que as trajet6rias sejam inicialmente para-lelas, 0que e expresso pelo artitlcio estilistico de faze-los cha-marem-se mutuamente de ikhuon(J. '

Os IkiauonlJ se espelbam portanto, cada qual refletindoo que 0outro tem de singular, no plano biologico, ritual etambem nesse dominio intermediario que e para os Krabl>0politico, Bis por que a placenta, ikhuotl,oseria 0companheiromaior, 0 companheiro por excelencia, pois nascida com 0

homem ela 6 sua primeira imago. 0 companheiro e a a~o oua fun~o simultanea, aquele que me espelha-em minhas obrase no qual eu me reconheco e me assumo enquanto homemagindo. Mas se 0companheirismo permite assim pensar a

assun~o de uma imagem, uma identifica~ilo, nao autorizaainda a colocar como existente a nocao de pessoa.. Esta meparece ser precisamente a atribui~o da amizadeformal que, jogando com a alteridade, instaura uma diale-tica, urn principio din8mico·que funda a pessoa como ser deautonomia. Nesse sentido, a amizade formal, em seu duploaspecto de evita~o e derelaeees prazentelras, e umamodali-dade de urn processo de construcao ~ pessoa. Instaura dis-.tAnciae subverte a ordem. Vimos que 0amigo formal e con-ceitualmente 0estranho, 0outro e. enquanto tal. ele pode sero mediador, 0restaurador da integridade fisica e da posi~loso.cial. ara~ a jogos de dupla nega~lo em que os J@ siloadestrados, Ja mencionei emoutro trabalho que e urn proce-dimento usual entre os Krah6 0de representar um grupo pota1gu6mque Ihe e exterior. Assim, por exemplo, uma menina eassociadaaos homens, ummenino as mulheres, duas meninas

:a,9,$'Jmciandos...Como se cada urn desses grupos 86 se reco-'ii1i-~;~~etraves de urn Jeso de espelbos que lhe devolve 0 seu .

\;~

I

iI

t

t

,

-9I!

,\

, I

!

lt

ANTROPOLOGIA DOBRASIL

contrario. £Christopher Croker apontou mecanistamente paralelos a estes entre os Bororo, mostanto a identidade social quanto a identidade flsicatraves de processos especulares que as constroemvque fazem com que umBoroso nunca seja tanto sque quando urn totalmente outro 0CCteptesenta1977). Creio que este processo sereencontra na con

identidade pessoal, e nao apenu biol6gica ou socda amizade formal.

POt outro lado, 0amigo formal e tambemao brincar com os parentes de seu parceiro, naomarca 0 lugar do amigo, mas agride e subverte 0 gliar emque este seinsere e the talha urn espaco pesmando limites, Vejam que isto esclarece algoseja, a nlo-reciprocidade do comportamento jocqual e alvo das pilherias dos amigos formals' de snao lhes pode retrucar, Nesse sentido, talvez se pocionar, nas diversas tribos je, 0 grupo dentro doresguardo (ou seja, aquele que pode obscurecer abio16gicasde cada um) e0grupo com0qual sepod

Assim, por excelencia, 0 amigo formal seria 0tradiz", nega, evita e inverte seu parceiro, e quassim, urn campo pessoal, nAo, sem duvida, co

dotado de razao, vontade e liberdade - esses atdentais da pessoa - mas como ser de certa mandiferenciado e. sobretudo, provide de uma dinAmem suma, como um sujeito.

BIBLJOORAFIA

Colson, Elizabeth1962 Tile Plateau Ton,a 0/ Northern R/toduiQ (ZombiQ) soc

studia: Manc:hater. University Press.

Crocker, Christopher1977 "i.Cs r~nexions du 801", in.CI. U:v1-StrauSl (ed.) - L'/d

Parii, Bernard Grasxt.Carneiro da Cunha, Manuela •

1973 "Loaique du mythe et de ('action. Lemouvement messi

1963. L'homme, XIII, 4: 5-37. (Neste vol. pp. 13-52.)1978 Os monos e o. r outros, An41Jse do 8ist~ /unertJrio en

entre os Indio.s KnzM. SAt>Paulo, HUClTEC.

5/16/2018 Carneiro da Cunha, Manuela. Antropologia do Brasil mito, história, etnicidade. São Paulo - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/carneiro-da-cunha-manuela-antropologia-do-brasil-mito-historia-etnicidade-sao-paulo 7/7

 

62MANUELA CARNBIRO DA CUNHA

Da Matta. Roberlo1976 Ummundo dll lidido. A nlrututrl soc.1 dos Indios Aplna~. Petr6polls.

Vo~. '

DouaIu. Mary1968 "The social control of coanition: some factors Injoke perception" •MIIl,

vol . 3 , n l' 3 : 36\ -376 .Oluckman, M ax '

1965. PoIllta. 'IIWand rllulll in.lrlbllllOCiety. (bford, Basil Blackwell .

Melatd, Julio Cesar1970 0 $l$tema.$ocltllK,.1t6. Teae de doutoramento apreICntada' USP. SID

. Paulo, mimeo.

Meyerson, Ipace .1973 "f!rcface", in Probllme$ de III ~nonM: 7-10, Paris, Mouton.

Nimuenda.iu, Curt ' " '1946 TIw •• tun n m b " . , ,; UniveRity of Californta Publications in AmeriCan

" Atcbacolo,y imd BtbDOlolY, vol. 41.

Radcliffe-BroWn, A. k. "'1952 (19itO) "On jokiDl rdationshipa", In Siructun and,/unction Inprimitive

. $oc/ll),: 00-104, Londres,RMF. '

Tew, Mary1951 "A further note on funeral frlcndship", AfriCG, 21: 122-124. '

~

I

.Escatologia entreos Krah6: rerlexao,fabula~io*

, Este artigo surgiu de urna insatisfa~lo e qusobre ela. Hi alguns anos, publiquei uma anMise dgia de.urn groupoindigena do tronco lingtiistico, je,que se localizam',ao norte do Estado de Ooiis (CCunha, 1978). Interpretei, entl~, a escatoloaiakrahuma especula~o sobre a sodedade, .urn QuestionSUBS premissas b'isicas. Os Krah6 descrevem umade' mortos harmoniosa, notive! pela ausencia dasconflito ou de cisAoque, entre os Vivos, se atributudo as retacees 'comparentes por aUan~a.Mas essa

·0 orqinal ~tc uti, o lipareceu em Sally Humpreya e Helen KIna CccIInd Immortlllity, n~II'ChIM1IOIJI~1Idtllttluopoio,y 0/mth; LondrPfCS$, 1981. lob 0 titulo "ElcbatoloaY UIIDIII'd ie kt '8h6: rel*tloo,upfree rlCld ot tabulation", Aarade90 a Mal iro B , de Almeida, cia Ucritk:as e supatOea. ,

A tradu9lO e m portul\lll fol publiCllda emMartini (ora.), A mort~.socJetkltk br(U;/~/TQ,810 Paulo, HUCITBC. 1983.