Ensaio Bibliografico - As Profissões No Brasil e Sua Sociologia

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Sociologia das Profissões

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  • DOUTOR SABE TUDO! Apesar dos envolventes acana-lhativos e dilvio desmoralizador, o Povo instintivamenterespeita o sonoro ttulo de Doutor, douto, aquele-que-sabe,julgando-o onisciente. J funciona observao antimgica.Conta Leonardo Mota que um Sertanejo, desconfiado daSapincia doutoral, perguntava a um deles: O senhor mesmo doutor ou apelido que lhe botaram? volta de1940, nossa cozinheira na Rua da Conceio desabafava ameu respeito, com os familiares: Dizem que o Doutor mui-to preparado mas eu acho engano no palpite! E ante o cari-doso protesto explicou-se: Doutor um homem que sabetudo e Este vive lendo... Evidentemente um Doutor noprecisa consultar livros. J sabe de todas as coisas (Cascu-do, 1998:199).

    PEREIRA NETO, Andr de Faria. (2001), Ser Mdico no Brasil: O Presente no Passado. Riode Janeiro, Editora Fiocruz.

    BONELLI, Maria da Glria. (2002), Profissionalismo e Poltica no Mundo do Direito. SoCarlos/So Paulo, Ed. Sumar/FAPESP.

    WERNECK VIANNA, Luiz, CARVALHO, M. Alice R. de, MELO, Manuel Palcios Cu-nha e BURGOS, Marcelo Baumann. (1999), A Judicializao da Poltica e das RelaesSociais no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Revan.

    COELHO, Edmundo Campos. (1999), As Profisses Imperiais: Medicina, Engenharia eAdvocacia no Rio de Janeiro. 1822-1930. Rio de Janeiro, Record.

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    * Gostaria de agradecer ao professor Roberto Grn a leitura atenta da primeira versodeste texto bem como suas sugestes e indicaes.

    DADOS Revista de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 46, no 3, 2003, pp. 593 a 607.

    Ensaio BibliogrficoAs Profisses no Brasil e sua Sociologia*

    Maria Ligia de Oliveira Barbosa

  • N os ltimos tempos pudemos acompanhar nos jornais uma sriede notcias que poderiam ser lidas como evidncias das dispu-tas em torno do lugar social dos grupos profissionais. Esses indciosaparecem quando advogados discutem as formas e os limites da suaatuao na defesa de criminosos; quando o projeto que define o cam-po mdico gera enfrentamentos com outras categorias de trabalhado-res da rea de sade.

    Tudo se torna mais interessante quando tambm podemos constataruma evoluo importante na sociologia brasileira: a incorporao deum conjunto de abordagens terico-conceituais que tem como objetoespecfico a formao e atuao dos grupos profissionais. Muitos po-dero argumentar que no se trata exatamente de uma novidade, vis-to que socilogos do nosso pas h muito tratam do trabalho de mdi-cos, advogados ou engenheiros. Se isso inegvel, no se pode deixarde perceber um componente distintivo na produo atual, que o usoextensivo de teorias e mtodos de pesquisa, desenvolvidos e sistema-tizados principalmente pela sociologia americana, que instituem umnicho especfico na teoria social para a problemtica das profisses.Isso significa considerar que as trajetrias desses grupos sociais soassociadas a fatores diferenciados daqueles que definem outros gru-pos, que as profisses no podem ser entendidas como meros resulta-dos de foras estruturais que modelam qualquer grupo social. Que possvel perceber, nos processos de profissionalizao, os traos dis-tintivos da configurao de foras sociais que constituem as profis-ses. Assim, se o mercado caracterstica comum qual so submeti-dos todos os grupos sociais, as profisses conseguem estabelecer re-gras diferenciadas para sua presena nessa instncia da vida social.Se a educao escolar base de socializao e hierarquizao nas so-ciedades contemporneas, os certificados acadmicos tornaram-seimportante instrumento de distino dos grupos profissionais.

    Assim, mesmo quando utiliza recursos tericos provenientes de ou-tras reas de pesquisa, como a sociologia da educao ou a sociologiado trabalho, a sociologia das profisses se estabelece como campo le-gtimo, autnomo e claramente delimitado. E, se nos Estados Unidose na Europa (o nmero de publicaes na rea vem crescendo vertigi-nosamente na Frana e na Inglaterra) esse um movimento muito for-te, publicaes recentes no Brasil demonstram que o mesmo vemacontecendo em nosso pas.

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  • Os primeiros estudos sobre profisses brasileiras surgiram em SoPaulo, nos anos 70, destacando-se os trabalhos de Donnangelo (1975),sobre mdicos, e Kawamura (1981), sobre engenheiros. Mas estudossobre a estrutura ocupacional brasileira so bem anteriores, como ocaso de Bertram Hutchinson (1960). Alm disso, no devem ser es-quecidos os trabalhos de Aparecida Joly Gouveia (1980) e de Jos Pas-tore (1979), que, ao estudar as desigualdades associadas estruturaocupacional, mostram importantes evidncias do papel dos gruposprofissionais, do fato de que as profisses poderiam ser considera-das, como quer Larson (1977), uma das principais formas contempo-rneas de organizao da desigualdade social. Em seguida, nos anos80, temos uma srie de dissertaes e teses, nem todas publicadas,mas que, ao contrrio dos trabalhos da dcada de 70, utilizam explici-tamente um referencial terico no qual as profisses aparecem comoobjetos especificados segundo as caractersticas acima e no apenascomo segmentos exemplares de uma ou outra classe social. A partirdos anos 90, temos uma grande diversificao institucional da produ-o nessa rea e, como mostram Bonelli e Donatoni (1996), uma cole-o respeitvel de trabalhos em andamento, o que acabou culminan-do na criao de um grupo de trabalho na ANPOCS sobre as profisses.

    Assim, este ensaio apenas uma apreciao, otimista e positiva, sobreo estado da arte dessas pesquisas no Brasil.

    SER MDICO NO BRASIL: O PRESENTE NO PASSADO

    Neste belo livro, o autor, historiador, usa um evento, o Congresso Na-cional dos Prticos, em 1922, para desvendar os fios entrelaados quepermitem entender a construo da identidade da profisso mdicano Brasil. Fazendo uma distino que poderia ser associada ao con-ceito weberiano de representao (Weber, 1984), Pereira Neto estuda osdiversos embates relacionados definio dos traos dominantes daprtica mdica, do ponto de vista interno, e delimitao das frontei-ras do trabalho mdico, do ponto de vista externo. No primeiro caso,o autor mostra as controvrsias em torno do estabelecimento das con-dutas que pudessem ser consideradas corretas eticamente, com espe-cial ateno para as questes relativas aos casos de doenas de notifi-cao compulsria. Fica clara, desde o incio, a importncia do captu-lo dedicado anlise do papel que o Estado deveria desempenhar, daperspectiva dos mdicos.

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  • Quanto delimitao de fronteiras, so distinguidos dois tipos deinimigos dos mdicos: os demais profissionais da rea de sade (defarmacuticos a parteiras, passando, claro, pelas enfermeiras) e ogrupo que, segundo os mdicos, era avaliado como um conjunto dediversas charlatanices, o que inclui espritas e tambm homeopatas.

    Nos dois casos, o autor examina o processo de construo de estrat-gias para o enfrentamento dos problemas tpicos da formao deidentidades coletivas: a representao interna ao grupo (como diriaLuc Boltanski (1982)1, a definio de quem o mais mdico dos mdi-cos, ou do verdadeiro mdico, ou do bom mdico, no caso) e a repre-sentao externa ao grupo (a definio de quais seriam os trabalhosque a sociedade estaria disposta a reconhecer como sendo de respon-sabilidade dos mdicos (Abbott, 1988; Starr, 1982))2. Ou seja, temosaqui o problema clssico da sociologia das profisses.

    A anlise feita atravs da leitura dos Anais do Congresso que con-tm palavras que sero analisadas como expresso dos interessescorporativos e particulares (:23) e que permitem compreender as vi-ses concorrentes no interior da prpria corporao, tal como expres-sos pelo que considerado pelo autor, a elite da profisso no perodo.

    Cabe aqui uma rpida observao sobre a metodologia utilizada, queexplica a trajetria profissional e os interesses em jogo pela palavrados prprios profissionais. Trata-se de um mtodo atraente, e queusamos muito comumente, mas no se pode deixar de lado os avan-os da teoria social que alertam para os riscos desse tipo de empresa,dado o carter reflexivo dos atores sociais (Bourdieu, 1989) e sua ten-dncia a reconstruir a sua prpria conduta em discursos racionaliza-dos (Giddens, 1989). Certamente essa observao no diminui o valordo trabalho, apenas chama a ateno para as dificuldades que pode-mos encontrar na anlise de projetos coletivos. Bonelli (2002) tambmcritica a adoo da perspectiva dos prprios mdicos na definio doconceito de profisso, fato que levaria Pereira Neto a atribuir eliteprofissional daquele perodo uma intencionalidade na construo datrajetria do grupo.

    Nas consideraes finais, Andr Pereira Neto demonstra a atualida-de daquelas disputas dos anos 1920, ainda presentes na virada do s-culo XXI. Os atores so diferentes mas as questes centrais so muitosemelhantes, o que refora a importncia do trabalho do historiador.

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  • Mas um socilogo poderia reclamar que, talvez, o uso mais intensodos conceitos sociolgicos tais como o de representao, de profisso(nas suas diversas vertentes) e, mais fortemente associado aos doisanteriores, o conceito de dominao permitiria que o autor extrassemais do seu excelente material emprico. Seria possvel desvendar, deforma mais completa e explcita, as teias de poder dos mdicos sobreoutros profissionais e sobre a sociedade como um todo, bem como opoder de um certo tipo de mdico o que seria o portador/agente daautoridade profissional sobre os outros tipos que foram descarta-dos. A compreenso, mais terica, das formas de dominao associa-das profisso mdica permitiria inclusive analisar, no apenas comoanalogias sugeridas, as diferenas e semelhanas entre os dois mo-mentos da relao entre os mdicos e a sociedade brasileira.

    PROFISSIONALISMO E POLTICA NO MUNDO DO DIREITO

    Neste livro, a autora, que um dos principais responsveis pelo forta-lecimento e institucionalizao da pesquisa sobre profisses no Brasilnos ltimos anos, faz um quadro primoroso das trajetrias dos gru-pos profissionais to diversificados que compem o assim chamadomundo do direito. O ponto alto do texto, pelo menos segundo aperspectiva aqui adotada, o tratamento dado s informaes apre-sentadas: no lugar das tradicionais anlises que incluem os profissio-nais da rea do direito na elite ou no conjunto das classes dominantes,a autora apresenta um estudo tpico da boa sociologia das profisses.Os fatores a serem considerados so aqueles especficos dos estudosclssicos sobre as profisses: as carreiras, a construo das identida-des segundo os diferentes nichos de trabalho, a constituio do ethosprofissional e as lutas pela instituio do profissionalismo. Dessa for-ma, destaca-se um ator coletivo como a Ordem dos Advogados doBrasil OAB.

    Dessa perspectiva, o primeiro captulo analisa a profissionalizaoda advocacia a partir da trajetria do Instituto dos Advogados do Bra-sil IAB/OAB, procurando destacar o papel que o domnio de um co-nhecimento especfico pode ter na consolidao da imagem pblicado grupo e da integrao interna, compondo interesses e perspectivasdistintas. Em seguida, a autora retoma o profissionalismo (associan-do expertise, mrito, servio comunidade) como a base que permi-tiu aos desembargadores do Tribunal de Justia de So Paulo separarpoltica e profisso.

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  • O captulo trs introduz a questo das divises e diferenas no interi-or do grupo, que puderam ser mais bem analisadas no caso do Minis-trio Pblico Paulista MPP. Como instituio mais recente (criadah pouco mais de 60 anos) e tendo recebido novas atribuies a partirda Constituio de 1988, os procuradores do MPP viram-se na contin-gncia de desenhar novos contornos para a relao entre a profisso ea poltica.

    Finalmente, um excelente estudo sobre os 160 anos da carreira de de-legado de polcia em So Paulo. Nesse caso, a relao distinta com oprojeto profissionalizante, a proximidade com a poltica convencio-nal e a situao especial de ser uma carreira armada (isto , sob per-manente vigilncia e ateno dos grupos dirigentes) fazem dos dele-gados um subgrupo particularmente instigante como objeto de anli-se.

    Apesar de reunir ensaios originados de pesquisas sobre diferentesgrupos e perodos, a autora soube dar coeso ao estudo com grandemaestria, usando um instrumental terico que permite ver que as dis-tines e diferenas entre os subgrupos so dimenses de um mesmoprocesso de instituio de um tipo particular de identidade profissio-nal.

    A abordagem terica organiza-se a partir do trabalho de Eliot Freid-son (1970), acrescido de umas pinceladas de Interacionismo Simbli-co3. E, infelizmente, o texto brasileiro incorpora alguns dos proble-mas da obra do socilogo americano, como a fraca discusso sobre asrelaes entre profisso, mercado e burocracia, que so apresentadoscomo formas contraditrias de organizar o trabalho nas sociedadescontemporneas. Teoricamente, a questo foi enfrentada, por exem-plo, por Magali S. Larson (1977), que mostra como a burocracia umdos recursos sociais mais relevantes para as profisses modernas as-segurarem seus nichos no mercado de trabalho e seu poder social.Empiricamente, o prprio trabalho de pesquisa feito por Bonelli per-mite apontar a fraqueza dessas oposies: ser possvel pensar a ma-gistratura, ou o ministrio pblico, ou, ainda, os delegados de polcia,existindo fora das organizaes burocrticas que conferem a eles seupoder e suas possibilidades de atuao? Talvez o problema desse tipode perspectiva seja seu carter menos conceitual e mais substantivoou emprico. Se essa caracterstica do seu trabalho tornou Freidsonum autor decisivo na mudana dos rumos da sociologia das profis-

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  • ses (Chapoulie, 1973; Barbosa, 1999), pois com sua fundamental pes-quisa sobre a profisso mdica (Freidson, 1970) ajudou a questionar omodelo parsoniano excessivamente abstrato de pesquisa sobre asprofisses, os limites do seu prprio modelo no podem deixar de serreconhecidos. E estes aparecem na incapacidade de atingir a dimen-so estrutural, os traos permanentes e mais profundos das relaessociais, que, para alm dos discursos dos atores, configuram relaesde dominao conceito central da sociologia weberiana e funda-mental para o estudo das profisses. Nesse caso, seria o conceito quenos daria margem para compreender o mundo do direito, no maiscomo um ente amorfo e vagamente definido na fala dos agentes ouem suas trajetrias individuais, mas como uma estrutura configuradapelas prticas e representaes desses agentes na sua luta pelo estabe-lecimento de seu domnio sobre as regras do mundo social. A leiturado texto de Bonelli permite vislumbrar essa luta, mesmo que no sejaesta a perspectiva da autora, o que apenas demonstra a qualidade doseu trabalho de pesquisa.

    Um trao comum aos diversos subgrupos do mundo do direito aidentificao com o profissionalismo, o que, entre outras coisas, sig-nifica que eles apiam a bandeira da judicializao da poltica comoavano da ideologia profissional sobre um terreno regido pela lgicados interesses polticos (:26). Esse o gancho para trazer para essadiscusso um livro que no pode ser facilmente classificado na reada sociologia das profisses, que o magnfico trabalho de WerneckVianna et alii (1999).

    A JUDICIALIZAO DA POLTICA E DAS RELAES SOCIAIS NO BRASIL

    O livro a seqncia de dois trabalhos anteriores (Werneck Vianna etalii (1996 e 1997), nos quais foi desenhado o perfil da magistraturabrasileira, todos eles resultados de longo trabalho de pesquisa feitoem parceria com a Associao dos Magistrados Brasileiros. No con-junto da obra foi construdo o mais completo e detalhado mapeamen-to de um grupo profissional no Brasil e, mesmo com a recusa explcitados autores, s esse fato j abriria possibilidades de inseri-la no cam-po da sociologia das profisses.

    A apresentao dos autores resume melhor o ltimo estudo:

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  • [...] pretende-se rever, sob uma nova luz, o sistema poltico brasileiroe as condies de afirmao de uma sociedade organizada autonoma-mente, demonstrando-se a existncia de uma nova arena para as con-trovrsias entre os princpios e valores, de cujas decises podem re-sultar limites vontade da maioria na forma, alis, do que a sociedadevem praticando h algum tempo, sem extrair disso maiores conse-qncias tericas e de mudanas no seu agir. Pretende-se, ainda, suge-rir que essa indita realidade, longe de implicar perda para o ideal re-publicano, pode apontar para o seu fortalecimento, dependendo, nes-se caso, do papel desempenhado pelos diferentes atores sociais nosentido de divisar novas articulaes entre os sistemas da representa-o e da participao (:11-12).

    As duas partes do livro (a judicializao da poltica; a judicializaodas relaes sociais) apresentam vastssimo material emprico sobreo processo de regulamentao da vida poltica e social no Brasil a par-tir da atuao do Poder Judicirio. No primeiro caso, a partir dasaes que levariam esse poder a exercer controle sobre a vontade dosoberano em especial, pelo uso no novo instituto da ao direta deinconstitucionalidade, largamente utilizada no Brasil dos anos 90. Nosegundo caso, atravs do incremento da capacidade normativa do di-reito, que atualmente permite ao Judicirio brasileiro intervir em di-menses da vida social anteriormente vistas como estritamente pri-vadas (ou inexistentes), o que inclui desde as relaes de gnero na fa-mlia at as mais recentes questes como consumo de drogas e prote-o ambiental.

    O tratamento que os autores do aos dados ilumina vrios traos dademocracia que vem sendo construda no Brasil e oferece-nos umquadro sistemtico dos processos sociais amplos pelos quais passa anossa sociedade. Com base em slida argumentao terica, o Judi-cirio definido como portador das transformaes que levam de-mocratizao das sociedades, na medida em que esse poder se tornouuma agncia de controle da vontade do soberano, controle este que feito pela invocao do justo contra a lei. A articulao das informa-es empricas e da perspectiva terica constri um quadro no qualfica claramente desenhado o poder de instituir determinados pa-dres de relaes sociais, to bem sintetizado no ttulo da obra.Sob um outro prisma, o livro organizado por Maria Tereza Sadek(1995) apresenta dados que pem em relevo uma nova perspectiva

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  • que se vai formando entre os membros do Judicirio, que passam a to-mar decises baseados em uma concepo de justia social muitomais que na letra da lei. Temas como a judicializao ou a me-dicalizao das relaes sociais tornaram-se componentes funda-mentais dos estudos em diversas vertentes da sociologia das profis-ses de marca weberiana, pois permitem incorporar importantes ele-mentos da configurao dos padres de sociabilidade dominantesem uma sociedade.

    Um bom exemplo o texto de Glendon (1994), uma crtica aguda aotrabalho de instituio e regulao das regras sociais, em especial, aocaso dos advogados americanos, que passaram a ser, nos anos 80 e 90,os responsveis por mudanas importantes nas relaes de poder nosEstados Unidos, semelhantemente ao que ocorreu no Brasil. E se emvrios planos essas mudanas podem ser vistas como democratizan-tes, a autora do texto americano enfatiza o significado desses proces-sos em termos da conquista de espaos sociais sob controle da profis-so legal, relativamente capacidade de esse grupo garantir e ampli-ar seu mercado de trabalho, mas principalmente em termos das possi-bilidades de estabelecer um tipo especfico de controle sobre as rela-es sociais, modelando normas diferenciadas para a vida cotidianado cidado comum.

    A abordagem da sociologia das profisses permitiria perguntar se otrabalho de instituio de regras sociais feito pelos magistrados brasi-leiros, como em outros pases, no incluiu tambm a imposio de umcerto padro de autoridade cultural que daria poderes importantes aesse grupo.

    O tema da judicializao tambm nos permite passar ao ltimo textoem anlise.

    AS PROFISSES IMPERIAIS: MEDICINA, ENGENHARIA E ADVOCACIA NORIO DE JANEIRO. 1822-1930

    Neste estudo Edmundo Campos Coelho se prope a expor a sua pr-pria verso do processo de constituio das profisses tradicionais(medicina, advocacia e engenharia) ao longo do sculo XIX e das pri-meiras dcadas do seguinte (:34). A nfase do autor recai sobre a di-menso institucional do processo no sentido amplo, isto , procuran-do esclarecer as teias de relaes sociais que fornecem as bases insti-

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  • tucionais para a definio da posio dos grupos profissionais. Ashistrias da Academia Imperial de Medicina, do Instituto dos Advo-gados Brasileiros e do Instituto Polytechnico Brazileiro, dos consen-sos e conflitos em torno destas instituies e de suas sucessoras, com-pem uma trama complexa dentro da qual o Estado tem papel desta-cado o fio que unifica a trama e lhe d alguma unidade (idem) sem ser o responsvel exclusivo pelo desenrolar da mesma.

    A primeira parte do livro trata, em dois captulos, da histria da regu-lao dos grupos profissionais no Brasil (o estabelecimento de legisla-o que garantisse o monoplio do mercado de servios e todos osprivilgios associados a esse monoplio) e da literatura sobre as rela-es entre Estado, mercado e as profisses.

    Nos captulos seguintes temos um conjunto de informaes histri-cas, organizadas de maneira a proporcionar uma leitura agradvel einstigante da vida dos mdicos, engenheiros e advogados na socieda-de de corte brasileira, das suas trajetrias, das disputas internas aosgrupos e tambm entre grupos. Um captulo importante (o stimo) oque trata do debate em torno da liberdade profissional, que ops gru-pos fortemente favorveis s estratgias mais fechadas de credencia-mento profissional com destaque para os mdicos a aqueles que ti-nham postura contrria regulao atravs de credenciais, entre osquais os positivistas compem a maioria. A vitria dos primeiros co-locou em questo as pretenses meritocrticas da Repblica nascen-te, pois fez com que permanecessem privilgios atravs da instituiodo credencialismo acadmico como princpio distintivo dos gruposprofissionais. Tambm o oitavo captulo trata de conflitos no interiordo campo profissional, por exemplo, estatistas versus privatistas oudefensores do segredo profissional versus defensores do regulamentosanitrio.

    O que mais se destaca neste trabalho a importncia atribuda peloautor ao Estado: no s o aparato estatal aparece como essencial paragarantir os monoplios profissionais, como acontece em vrios pa-ses, como tambm, e aqui temos o ponto inovador da anlise deEdmundo Coelho, fica claro que as profisses so elementos impor-tantes na prpria formao do Estado brasileiro. No s negada,atravs de exemplos histricos, a antinomia entre autonomia profissi-onal (relativa ao mercado) e regulao estatal, como tambm se de-monstra que

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  • a forma adequada de entender as relaes entre Estado e profissesseria em termos de um processo histrico no qual as profisses emer-gem como uma condio de formao do Estado e a formao do Esta-do como uma condio maior da autonomia profissional onde estaltima exista (:54).

    Este ponto crucial: no caso de pases com Estado fraco no h pro-blemas. Mas, na Frana, na Alemanha e no Brasil, deixar de lado asprofisses pode constituir em um erro grave, pois

    difcil compreender o funcionamento do estado brasileiro sem es-tar atento ao trabalho de instituio realizado, ao longo do sculo XX,pelos engenheiros (na criao de conselhos e empresas estatais emreas consideradas estratgicas) e economistas (que, na esteira abertapelos engenheiros, deixam sua marca profunda no Estado atravs dosplanos e polticas econmicas) (Barbosa, 2000:211).

    Engenheiros e economistas (Reis, 1998; Gomes, Dias e Motta, 1994;Barbosa, 1993; Loureiro, 1992a; 1992b) procuraram definir, atravs deinmeras negociaes, quais seriam as formas institucionais que pu-dessem configurar a ao do Estado em diversas reas. Como bemmostra Edmundo Coelho,

    [...] a percia , de fato, nas sociedades contemporneas, um poderosofator de governabilidade. No h como fazer restries a Johnsonquando afirma que os governos dependem da neutralidade da per-cia para tornar governveis realidades sociais ou quando observaque a tecnologia dos peritos, as atividades prticas das profisses e aautoridade social vinculada ao profissionalismo esto implicadas noprocesso de tornar as complexidades da moderna vida social e econ-mica cognoscveis, praticveis e suscetveis de governo (:56).

    Deve-se destacar que a autoridade social vinculada ao profissionalis-mo tem implicaes mais profundas do que Johnson ou EdmundoCoelho parecem admitir particularmente no caso do Estado, que,nas sociedades contemporneas, tem papel determinante na criaode representaes coletivas da realidade social, ou de sistemas classi-ficatrios quase universais como o caso das categorias ocupacionaiscensitrias ou das definies de sanidade e aptido fsica e mental.

    O que fica claro neste estudo que a construo do Estado brasileiropoderia ser vista como obra de boa engenharia poltica e social para a

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  • compreenso do que se exige melhores e mais profundas formas deobservao dos fatos e processos, e que o estudo do trabalho de insti-tuio realizado pelos grupos profissionais poderia contribuir decisi-vamente:

    Em se tratando de problemas pblicos (criminalidade, alcoolismo,prostituio e sade pblica), possvel traduzir o conflito por juris-dio em termos de competio pela propriedade do problema e pelaresponsabilidade por sua soluo. Como observou Gusfield, ambos po-dem convergir numa mesma agncia, mas este no necessariamenteo caso, pois quem reclama a propriedade do problema (a autoridadepara definir sua natureza e formular teorias sobre sua causalidade)nem sempre deseja a responsabilidade pela soluo. Inversamente, hquem dispute a responsabilidade sem desejar a propriedade do pro-blema. No raro que a resoluo da disputa pelas responsabilidadesvenha do Estado atravs da formulao de polticas pblicas, quandono assume ele prprio ambos os termos da equao. De qualquer for-ma, a competio envolve uma dimenso cognitiva ou, se quiserem,uma dimenso cultural: quem legisla sobre a essncia do problema eformula sobre ele a teoria causal prevalecente se que alguma teo-ria prevalece num determinado momento e lugar. (:65)

    Na verdade, com o trabalho de Edmundo Coelho podemos ver commais clareza a questo que foi o fio condutor deste ensaio: a busca dademonstrao de que os grupos profissionais, no processo da cons-truo da sua identidade e do seu lugar social, so elementos essenci-ais na configurao do padro de relaes sociais dominante no Bra-sil. Os trabalhos aqui analisados, em uma forma mais rpida e super-ficial do que sua qualidade mereceria, trazem no s as evidnciashistrico-factuais dos processos como tambm indicaes teri-co-metodolgicas que permitem agregar dimenses e instrumentosanalticos fundamentais para o entendimento e explicao da nossasociedade.

    (Recebido para publicao em outubro de 2003)

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  • NOTAS

    1. Na verdade, a obra desse autor permitiria um avano mais significativo do que oque nos foi apresentado no livro em pauta, pois Boltanski (1982) destaca as lutasque, no interior de cada grupo social, configuram sua identidade coletiva.

    2. Da mesma forma, pode-se encontrar, especialmente no trabalho de Abbott (1988),um conceito fundamental para compreender os processos de negociao em tornodas fronteiras dos grupos profissionais: o de jurisdio (ver a respeito, Barbosa,1993).

    3. Se o Interacionismo Simblico como base para a construo do mundo do direitofunciona perfeitamente bem como auxiliar para a perspectiva freidsoniana, total-mente incompatvel com os conceitos de campo e configurao, de PierreBourdieu e Norbert Elias, respectivamente, que a autora introduz, de forma frouxa,nas notas tericas.

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  • ABSTRACTProfessions and the Sociology of Professions in Brazil

    This essay analyzes the recent Brazilian literature on the sociology ofprofessions to demonstrate that professional groups, in the process ofconstructing their identity and social place, are essential elements in shapingthe dominant pattern of social relations in the country. From the point of viewof both the historical background of professions and their social practice,physicians, engineers, and attorneys can be viewed in their struggle todemarcate and control specific areas in the social division of labor over whichthey detain cultural authority. The novelty in this set of studies is their use ofthe conceptual and methodological tools from the sociology of professions,which thus becomes a key area in the Brazilian social sciences.

    Key words: sociology of professions; professional groups; constructing ofidentity

    RSUMLes Professions au Brsil et leur Sociologie

    Dans cet article, on cherche analyser la littrature sociologique brsiliennercente sur les professions afin de montrer que les groupes professionnels,dans le processus de construction de leur identit et de leur statut social, sontdes lments essentiels la formation d'un modle de rapports sociauxdominant dans le pays. Autant sous l'angle de la trajectoire historique desprofessions que de leur pratique sociale, mdecins, ingnieurs et avocatspeuvent tre perus comme luttant pour la dlimitation et le contrle dezones particulires dans la division sociale du travail, sur lesquelles ilsdtiennent une autorit culturelle. La nouveaut que prsente cet ensembled'tudes c'est l'usage de l'outil conceptuel et mthodologique issu de lasociologie des professions, qui occupe une place de plus en plus importantedans les sciences sociales brsiliennes.

    Mots-cl: sociologie des profession; groups professionnels; construction delidentit

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