Objeto bibliografico 1

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Pedro Pereira Leite Marca DAgua Editores 2012 Objetos Biográficos

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Objeto bibliografico

Transcript of Objeto bibliografico 1

  • Pedro Pereira Leite

    Marca DAgua Editores

    2012

    Objetos Biogrficos

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 1

    Leite, Pedro Pereira, 1960 -

    ISBN- 978-972-8750-13-8

    Ttulo: Olhares Biogrficos: A Potica da Intersubjetividade em museologia

    Autor, Pedro Pereira Leite

    Edio: Marca dAgua: Publicaes e Projetos

    1 edio

    Local de Edio: Lisboa

    Lisboa, 2012

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 2

    Olhares Biogrficos

    A Potica de intersubjetividade em museologia

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 3

    ndice Prefcio ......................................................................................................................................... 4

    Introduo ..................................................................................................................................... 5

    1. Uma nova museologia em face a novos objetos ................................................................... 6

    2. Novos Objetos museolgicos e Intersubjetividade ............................................................. 13

    2.1. Construir uma potica da intersubjetividade ................................................................... 15

    2.1.1. Cartografar .................................................................................................................... 17

    2.1.2. Carporizar ..................................................................................................................... 19

    2.1.3. Problematizar e construir a Utopia como potica ........................................................ 20

    2.2. Os objetos biogrficos como metodologia na construo de narrativas na museologia 21

    2.3. O processo transformador: propostas de abordagem na museologia ............................ 26

    3. O desafio da ao ................................................................................................................. 35

    3.1. O Playback theatre e as propostas do teatro de Libertao na museologia ................ 36

    3.2. Uma museologia envolvida na emancipao social com a apropriao das narrativas

    biograficas. .................................................................................................................................. 44

    3.3. A inovao dos objetos biogrficos .................................................................................. 48

    4. Por uma potica na sociomuseologia .................................................................................. 54

    5. BIBLOGRAFIA ........................................................................................................................ 56

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 4

    Prefcio

    Olhares Biogrficos uma proposta metodolgica para a sociomuseologia

    com base na teoria critica. Esta proposta surge no mbito do nosso ps-

    doutoramento em museologia, efectuado durante o ano de 2011 na

    Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias.

    No poderemos deixar de agradecer os contributos de todos os que

    concorreram para a sua concretizao, nomeadamente os amigos do CES

    Summer Course realizado em Julho de 2011 na Lous, e aos participantes

    no Curso de Museologia, realizado em Novembro de 2011 na Cidade de

    Assomada em Cabo Verde, no mbito da XV Conferencia Internacional do

    MINOM.

    Uma palavra final para Elsa Lechner do CES da Universidade de Coimbra

    que to bem tem trabalhado as questes das Histrias de Vida e os olhares

    biogrficos.

    Pedro Pereira Leite, Lisboa, 2012

    Glenda MeloRealce

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 5

    Introduo

    O nosso objetivo neste livro relacionar o movimento de renovao

    da museologia contempornea com a teoria crtica atravs a anlise dos

    desafios introduzidos na prtica museolgica pela intersubjetividade. Vamos

    argumentar sobre a possibilidade de uma prtica museolgica reflexiva e

    transitiva com base na proposta de incluso da potica como ferramenta da

    intersubjetividade.

    A intersubjetividade medeia a relao do eu como sujeito com os

    outros. Esta relao de mediao evidencia-se dessa forma como objeto de

    investigao. A potica como discurso reflexivo, como ato de mediao,

    permite incluir na investigao biogrfica a pluralidade das dimenses

    pessoais e sociais em processo. Atravs da potica da intersubjetividade

    propomos uma abordagem compreensiva dos objetos biogrficos para os

    processos museolgicos.

    A Investigao Biogrfica assume-se como uma proposta de

    construo duma narrativa museolgica participadada voltada para a

    incluso social e para o empoderamento das comunidades com base no

    resgate dos saberes locais como instrumentos de construo da ao. A

    proposta investigao metodolgica sobre os objetos biogrficos permite

    ampliar o campo de ao e da funo social da museologia reforando a sua

    abertura a campos epistmicos emergentes com base nos Direitos

    Humanos, a Educao para a Paz e para o Desenvolvimento nos Estudos

    sobre a Globalizao, na sua relao com a emancipao social.

    Glenda MeloRealce

    Glenda MeloRealce

    Glenda MeloRealce

    Glenda MeloRealce

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 6

    1. Uma nova museologia em face a

    novos objetos

    O movimento de renovao da museologia, conhecido como Nova

    Museologia 1 Sociomuseologia ou Museologia Social constitui-se como

    um modo de pensar e fazer museologia. Este modo de pensar e agir

    emerge num movimento de reflexo de profissionais de museus e pessoas

    ligadas ao cultural a partir dos anos sessenta do sculo XX. Ao longo de

    vrios anos, Pierre Mayrand foi-nos chamando a ateno para que a

    sociomuseologia um processo que tem vindo a influenciar alguns

    profissionais da museologia sobre as formas de fazer essa museologia ao

    longo dos ltimos cinquenta

    anos (MAYRAND, 2009).

    Tambm Mrio Moutinho

    refora esta abordagem

    processual da sociomuseologia,

    que define como evolutiva,

    quando constata, ao refletir

    sobre os museus, que qualquer

    organizao humana

    processual e contextual

    (MOUTINHO, 2007).

    Estamos perante uma

    museologia que se assume como uma prtica (de pensamento e de ao)

    que busca a qualidade dos fenmenos processuais nos seus contextos. Mas

    qual o motivo que desencadeia a busca das qualidades nos fenmenos

    processuais na museologia, para a partir deles procurar a mudana. No

    existir uma contradio entre a prtica de preservao de objetos e a

    busca dos processos de transformao que esses mesmos objetos

    potencialmente desencadeiam. Existe uma contradio paradoxal entre

    conservar e transformar, ou pelo contrrio, a resoluo dessa tenso

    observada como um processo transformacional, constitui o objeto da

    museologia?2

    1 No conceito a palavra Nova assume simultaneamente uma significao valorativa e diacrnica. A questo do valor assume-se por via da integrao dos

    territrios e das comunidades por via das prticas participativas. 2 Uma resposta a esta questo dada por Mrio Moutinho (1994) em A Construo do Objeto Museolgico in Cadernos de Sociomuseologia,n 4. Que relata a interveno do autor na 26 Conferencia Internacional do ICTOP, realizada em

    Lisboa, no Museu de Histria Natural. Neste artigo o autor comea por afirmar:

    Expor ou deveria ser, trabalhar contra a ignorncia, especialmente contra a forma

    Ilustrao 1 Pierre Maylan (1034-2011) com Isabel Vitor,

    numa visita ao Museu do Trabalho em Setbal

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 7

    Com sabemos a museologia resolve esse paradoxo atravs da

    representao dos objetos na busca da inovao. A museologia no trata

    apenas da representao dos objetos, mas fundamentalmente da sua

    superao no mbito da sua relao com cada um dos membros da

    sociedade3. no mbito dessa superao que a nova museologia tem vindo

    a questionar-se sobre o lugar dos objetos, dos espaos e dos territrios,

    como componente da relao dos sujeitos com o real (com o mundo).

    Sintetizemos como tem

    vindo a ser construdos alguns

    destes caminhos. A nova

    museologia dispe j de uma

    histria longa que tem vinda a

    ser construda com diferentes

    vises e diferentes prticas,

    muito rica em experiencias e

    exemplos, que se espalham

    hoje por vrios continentes.

    Esta forma de fazer e

    pensar a museologia tem vindo

    a ser feita refletida em diversos

    espaos museolgicos e

    acadmicos e encontra-se agregada numa plataforma no mbito do MINOM:

    Movimento Internacional para Uma Nova Museologia4. Esta plataforma

    organizativa constitui-se como um grupo no mbito do ICOM (Comit

    Internacional dos Museus) e organiza diversos ateliers5 ou conferncias

    internacionais onde so debatidos e apresentadas experiencias.

    A reflexo terica produzida por duas vias, uma acadmica,

    centrada em universidades; e uma outra mais prtica, centrada neste

    mais refractria da ignorncia: a ideia pr - concebida, o preconceito, o esteretipo

    cultural. Expor tomar e calcular o risco de desorientar - no sentido etimolgico:

    (perder a orientao), perturbar a harmonia, o evidente, e o consenso, constitutivo

    do lugar comum (do banal) (MOUTINHO, 1994, 7) para concluir . a inverso da tradicional relao entre o objeto artstico e o seu lugar de exibio. No fundo o

    Museu que exibido como objeto artstico. De certa forma poderamos admitir, que

    o museu ideal seria aquele que fosse criado especificamente para cada

    exposio.(MOUTINHO, 1994, 24). O autor defende neste artigo uma abordagem semitica do objeto museolgico. Ou seja ele o que (a materialidade) o que

    visto (a perceo e a conscincia do objeto por parte do sujeitos) e ele o contexto

    (o objeto como processo de transformao)

    3 Uma Mimsis no sentido aristotlico. Arsitreles distingue mimsis de diegesis.

    Enquanto a mimese uma narrativa contada pelo prprio da diegesis uma

    narrativa encenada por atores (Aristoteles, Potica) 4 www.minom-icom.net 5 At ao final de 2012 organizou 14 ateliers internacionais e diversos workshops

    que podem ser consultados na pgina do movimento.

    Ilustrao 2 - Mrio Moutinho no Curso de Formao em

    Museologia em Assomada, Cabo Verde, 2011

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 8

    movimento de profissionais envolvidos com uma museologia de ao ao

    servio da sociedade. As diferentes vias asseguram uma retro alimentao

    entre a investigao e a prtica.

    Nos espaos acadmicos tem vindo a emergir uma investigao e

    uma docncia comprometida com as prticas e as dinmicas sociais. Essa

    uma das caractersticas do ensino da museologia na Universidade Lusfona

    de Humanidades e Tecnologias6 e na Reiwart Academy7 na Europa, e na

    Amrica do Sul, sobretudo no Brasil, em So Paulo, no Rio e na Baa, em

    situaes muito diferenciadas mas em rpida mutao8.

    Verifica-se que entre os professores destas academias existe, aquilo

    a que poderamos chamar uma rede de conhecimento e partilha de

    experiencias, que d suporte e consistncia s diferentes propostas de

    abordagens dos fenmenos museolgicos. Se a maioria desta reflexo

    acadmica hoje efetuada no mbito dos cursos de Mestrado e

    Doutoramento, de acordo com as normas de investigao acadmica, a

    permanente ligao entre a reflexo acadmica e a prtica museolgica

    assegura a sua constante renovao de praticas e contedos, permitindo a

    emergncia de novos objetos, a incluso de diferentes atores e uma

    diversidade nas forma-as de abordagens territoriais. Um exemplo dessa

    interao encontra-se nas aes de investigao desenvolvidas na

    Universidade Lusfona que podem ser encontradas na Revista

    Sociomuseologia9 onde so publicados os resultados da investigao e as

    prticas museolgicas em diferentes espaos e contextos.

    Esta nova museologia, enquanto processo participativo que ,

    valoriza um conjunto de momentos marcantes que esto sinalizados por via

    de Declaraes, aprovadas nos Encontros Internacionais. Estas declaraes

    cristalizam as preocupaes diversas nos seus participantes. Como salientou

    Pierre Mayrand na gnese do questionamento da relao social da

    museologia encontra-se o legado das reflexes do movimento construtivista

    reformista que atravessa as cincias sociais no ps-guerra10 em que a ao

    6 www.ulusofona.pt 7 Reinwardt Academy: Amesterdam School of Arts www.ahk.nl 8 Nestas vrias experiencias que tem vindo a ser desenvolvidas, no poderamos

    deixar de citar a experiencia desenvolvida no Brasil, por via da sua Poltica de

    Museus iniciada no ministrio de Gilberto Gil. 9 Sociomuseologia, Revista editada pela Universidade Lusfona de Humanidades e

    Tecnologia, com o n 1 publicado em 1993.com um tema Sobre o Conceito de Museologia Social. At ao final de 2010 foram editados 38 nmeros, alguns dos

    quais em Lngua Inglesa. Atravs da anlise dos seus vrios nmeros podem-se

    verificar a evoluo das principais preocupaes e reflexes que tem vindo a ser

    equacionadas no mbito da sociomuseologia.

    Veja-se www./revistasulusofona.pt/index.php/cadernosdesocimuseologia 10 O Construtivismo reformista resulta de vrios contributos da psicologia da

    aprendizagem, por via de Jean Piaget e Vigotsky e da Filosofia do Conhecimento.

    No campo da psicologia da aprendizagem e na sequencia dos movimentos da Escola

    Nova, procurava-se entender se de que forma de processava o processo de

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 9

    do individuo no grupo vista como um dialogo, como resultado duma

    interao com os outros (MAYRAND, 2009).

    Estas interrogaes emergiram, quando vrios muselogos,

    envolvidos com prticas polticas transformacionistas11, questionam o

    sentido dos objetos que esto nas colees de um dado museu.

    Interrogam-se sobre o que que esses objetos dizem aos visitantes dos

    museus. Qual era a funo social do museu cristaliza-se como questo

    catalisadora do desafio que lanam s organizaes do patrimnio.

    Por exemplo, durante o sculo XIX e princpios do sculo XX nos

    museus de etnologia as colees eram apresentadas como testemunhos

    materiais dos homens ento chamados de primitivos. A estes

    testemunhos contrapunham-se os outros objetos de colees de arte, de

    histria ou arqueologia ou mesmo de cincia que eram testemunhos duma

    civilizao. A distino entre selvagens e primitivos dividia artefactos

    materiais, que consoante o seu valor social eram pertena de diferentes

    organizaes, que representavam o que ento como se entendia o devir

    social12.

    Com o fim da segunda guerra mundial de 1939 a 1945 e com a

    vaga de independncias que se seguiu na sia e em frica a oposio entre

    selvagens e civilizados, como conceito operatrio deixou de ter significado13.

    Tendo sido substitudo pelo conceito de desenvolvimento14 e pela oposio

    desenvolvimento/subdesenvolvimento15.

    aprendizagem, no mbito do processo de relao /adaptao do indivduo ao meio.

    No mbito da filosofia do conhecimento, verificam-se vrias reflexes,

    nomeadamente de Foucault e Bourdieu sobre o modo como o individuo reconstri e

    reconstrudo pela realidade social. Reformista porque procura aplicar-se ao

    como processo transformador. 11 Prtica poltica aqui entendida como envolvimento nos movimentos sociais

    contemporneos. 12 O devir como ideia finalista organizava o pensamento opondo selvagens e

    civilizados, tradio e modernidade, decadncia e progresso. 13 A questo da distino entre selvagens e civilizados um conceito de legitimao

    do colonialismo europeu no mundo. Como tal legitimava no plano cientfico a

    hegemonia e a dominao do europeu (dito civilizado) sobre o outro (dito

    selvagem), como uma misso dita civilizadora. (Veja-se LEITE, 1997) 14 Sobre a relao da ideologia do desenvolvimento sobre o patrimnio e a cultura veja-se (Cardoso, 2010, e 2011) respetivamente. 15 Note-se ainda que esta anlise do devir como um acumular de riqueza (o

    conceito de desenvolvimento resulta da transformao do conceito de riqueza de

    Adam Smith), d origem a uma querela entre desenvolvimentistas e liberais, com os primeiros a defenderem a necessidade dum regulamento do processo por

    via da interveno de sociedades polticas (organizadas), face aos segundo que

    defendem o mercado como processo gerador de riqueza. Ao progresso visto como um o crescimento da riqueza (pelo mercado), contrapem os desenvolvimentistas a

    defesa dum desenvolvimento das foras produtivas, que impulsionam o desenvolvimento social e cultural.

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 10

    Os desafios que os muselogos sentiram necessidade de responder,

    no ps-guerra refletem, esta dualidade processual. A maioria deles defende

    a necessidade das organizaes de cultura se empenharem nesse processo

    coletivo que o desenvolvimento. por via desse empenhamento, com

    base numa ideia de devir, que se defende que o museu se deve configurar

    como um espao de dilogo entre ns e os outros, entre o passado e o

    presente, entre o presente e o futuro.

    A participao da organizao museu nesse processo acaba por

    fazer emergir a necessidade de relacionar a organizao (herdada) com as

    suas (novas) misses. Aos museus como espao sacralizados onde se

    guardavam os objetos raros e preciosos do passado, comeam a ser

    interrogados sobre o seu sentido como espao de ao transformadora da

    sociedade. Da at a formulao do museu como espao de formao de

    conscincia sobre o mundo e como local de formao dos seus

    protagonistas, foi um pequeno passo.

    So essas preocupaes que esto presentes no texto que a Nova

    Museologia considera a sua declarao inicitica a Declarao de

    Santiago, feita em 1972, na cidade capital do Chile. No contexto dos

    intensos movimentos sociais da Amrica do Sul, esta declarao16 vem

    precisamente chamar a ateno para a necessidade dos museus estarem ao

    servio do desenvolvimento da comunidade e dos territrios. Introduz

    igualmente no vocabulrio da museologia as questes do ambiente atravs

    do conceito do ecomuseu e do museu integral, uma preocupao que ento

    estava na ordem do dia, quer na Europa por via dos movimentos

    ambientalistas, e que nas Amricas emergia por via dos sistemas de

    propriedade e explorao do solo. Os efeitos desta declarao vo

    influenciar profundamente o movimento museolgico na Amrica e na

    Europa, e est na origem do desenvolvimento dos novos tipos de museus

    de comunidade, de conscincia, de territrio.

    Passados doze anos, em 1984 no Quebec no Canad uma segunda

    declarao, que ficar conhecida como Declarao do Quebec, vai marcar

    este movimento da nova museologia. Por via do debate de vrios

    muselogos de todo o mundo sobre experiencias em ecomuseus, conclui-se

    a importncia crucial do envolvimento e participao da comunidade nos

    processos museolgicos. a partir da conscincia da necessidade de

    incorporar a participao da comunidade nos processos museolgicos que

    determinar a vontade dos muselogos de se constiturem como um grupo

    dentro do ICOM. Esse grupo dera formalizado no ano seguinte, em Portugal,

    constituindo o MINOM.

    16 Ver em Primo, Judite (1999). Museologia e Patrimnio: Documentos fundamentais, Sociomuseologia, n 15 Lisboa, ULHT (disponvel em http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 11

    O Terceiro momento de relevncia para as nossas questes regista-

    se em 1992 com a Declarao de Caracas, onde se chama a ateno para

    a necessidade dos processos museolgicos integrarem, debaterem e

    trabalharem as questes da globalizao. Ao mesmo tempo emerge a

    conscincia de que os museus so simultaneamente espaos de

    comunicao e de preservao, introduzindo uma dualidade na prtica

    museolgica. A nova museologia, que se continua a desenvolver com

    importantes contributos, ser doravante marcada por esta tenso entre a

    salvaguarda das heranas e a sua comunicao. no mbito desta questo

    se colocam as necessidades de repensar a cadeia operatrias da

    museologia. (BRUNO, 1996). Uma operao que nos obriga a interrogar

    sobre o que se escolhe para preservar, que nos leva a questionar sobre

    quem seleciona, como se preserva e para que se preserva; ao mesmo

    tempo que, estando o processo museolgico ao servio da sociedade, nos

    obriga a interrogar sobre o que se comunica, como se comunica, para quem

    comunicamos e para qu o que comunicamos.

    Duma maneira geral estes princpios tem vindo a ser incorporados

    nas diversas normas profissionais e nas definies de museus no mbito do

    ICOM17. Mas que nos parece relevante salientar neste nosso trabalho a

    necessidade de responder ao desafio que nos foi lanado de olhar para os

    objetos museolgico como algo mais do que colees estticas. De olhar

    para os objetos museolgicos como ferramentas para construir algo. Os

    objetos no so um fim em si mesmo, mas constituem-se como processos

    para alcanar algo. Os objetos museolgicos como proposta de processo de

    conhecimento.

    Assim, se numa perspetiva duma museografia tradicional o objeto

    o centro da atividade do profissional, que se concretiza num espao

    chamado museu que visitado por determinado tipo de pblicos; numa

    perspetiva da nova museologia, emergem novos objetos museolgicos, os

    museus alargam-se para os territrios, podendo assumir diferentes

    configuraes e formas de organizao ao servio das comunidades.

    Ao mesmo tempo a conscincia de que a salvaguarda dos objetos

    igualmente um processo de comunicao, entende-se mais claramente que

    os desafios s instituies de memria se constituem como desafios onde as

    heranas e os patrimnios so trabalhados como objetos de construo do

    futuro. Assim emergem novos objetos na museologia, integrando o

    imaterial e o perecvel. Como se conserva ento o evento e a festa. Como

    se conserva a oralidade. So desafios que fizerem os muselogos entender

    que a museologia trabalha com a memria e com o esquecimento e que a

    memria uma expresso do poder. A afirmao duma memria na

    17 Veja-se nomeadamente Les Concepts Cls de Museolgie (DESVALLES & MAIRESSE, 2010) onde por exemplo na anlise do termo Museologia se aborda a problemtica da polissemia do conceito de museologia

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 12

    comunidade constitui uma relao processual que simultaneamente

    reflexiva e transitiva. A memria enquanto fenmeno uma relao entre o

    sujeito e o real, constituindo a sua expresso uma representao que

    reflete esse mesmo sujeito, na sua multidimensionalidade como sujeito

    biosociocultural em transitividade.

    Em suma, esta nova museologia, ao mesmo tempo que inclui na

    museologia novos objetos, novos protagonistas e se dissemina por vrios

    espaos sociais em relao com outros processos, transforma-se num

    servio18 prestado comunidade. Assim tal como surgem novos tipos de

    museus, tais como ecomuseus, museus de territrio, museus de

    comunidade, museus de identidade, museus de conscincia, museus sem

    objetos ou as redes de museus; surgem novos objetos, tais como as

    narrativas biogrficas, os patrimnios imateriais, ou objetos construdos no

    processo de conhecimento/fruio; e surgem novos processos

    museolgicos, sejam espao de cultura ou configuraes onde os processos

    museolgicos se entrelaam com outros processos sociais, no campo da

    sade, da educao dos servios, etc.

    18 A cincia dos Servios tem vindo a ser desenvolvida em diversos espaos tem

    por base a evoluo tecnolgica e cientfica. A cincia dos servios focaliza-se na

    satisfao das necessidades dos seres humanos e nas configuraes

    organizacionais que do suporte s suas atividades.

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 13

    2. Novos Objetos museolgicos e

    Intersubjetividade

    Com verificamos um dos fatores distintivos desta nova museologia

    uma reflexo e uma proposta sobre a Funo social do Museus, no mbito

    da qual tem vindo a ser propostos novos objetos museolgicos. Por outro

    lado, a teoria crtica das cincias sociais tem vindo a procurar afirmar a

    reflexo das problemticas das cincias sociais em torno das problemticas

    do reconhecimento e da emancipao (SANTOS, 2000). no mbito dessa

    reflexo que emerge a relevncia da intersubjetividade.

    A questo da intersubjetividade tem vindo a ser abordada na teoria

    do conhecimento com uma proposta de superao da relao do sujeito

    (aquele que formula os problemas) com o seu objeto de conhecimento

    (formulao de problemas sobre os quais so aplicados os mtodos de

    observao e medio). Esta crtica ao paradigma racional, que tem vindo a

    ser feito entre outros pela escola de Frankfurt, de onde salientam os

    trabalhos de Jrgen Habermas (1990) Axel Honneth (2011) e ente ns

    pelos trabalhos de Boaventura Sousa Santos (1987) e pelo Centro de

    Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Entre outras questes a teoria

    crtica fundamenta uma proposta de reformulao dos modos de

    objetivao do real a partir da intersubjetividade. Propomo-nos neste

    trabalho a efetuar uma anlise sobre a intersubjetividade na museologia a

    partir duma postura de investigao-ao atravs do recurso das narrativas

    biogrficas.

    No paradigma da cincia social moderna as categorias de espao e

    tempo surgem como formulaes absolutas (SANTOS, 1987). Invariveis a

    partir das quais se efetuam a construo de narrativas lineares sobre os

    espaos e as comunidades. A crtica de construo destas categorias como

    fenmenos processuais, inter-relacionais e reflexivos (HABERMAS, 1990)

    tem vindo a concluir que uma narrativa no pode aspirar a constituir-se

    mais do que uma entre outras narrativas possveis. A possibilidade de

    narrativa emerge assim no pelo seu carter universal e nico, mas pela

    sua relao com as foras sociais que em determinadas conjunturas a

    tornam dominantes. A crtica destas narrativas implica equacionar a sua

    expresso como possibilidade narrativa. A viso critica sobre as narrativas

    como fenmenos que resultam dum processo social inter-relacional

    evidencia, na museologia, a necessidade de equacionar o sujeito que produz

    o discurso. Ora, neste ponto de vista, uma narrativa museolgica, como

    processo de conhecimento construdo a partir do sujeito muselogo, um

    processo que resulta mais prprio do conhecimento prvio do sujeito como

    que construindo um efeito de imagem refletida num espelho. A narrativa

    museolgica moderna no seria mais do que um alinhamento de objetos

    Glenda MeloRealce

    Glenda MeloRealce

    Glenda MeloRealce

    Glenda MeloRealce

    Glenda MeloRealce

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 14

    que representam um conhecimento que se reflete a si mesmo atravs

    desses mesmos objetos.

    Ora a construo deste conhecimento reflexivo, a partir do qual se

    reconstroem as narrativas, tambm criticado a partir do seu efeito

    processual. Isto , ao projetarmos no mundo uma interrogao que nos

    devolvida como resposta19, tambm estamos ao mesmo tempo a

    predeterminar a essa narrativa construindo os seus prprios limites de

    possibilidade, a partir da sua formulao. Como sabemos a comunicao

    no neutra e no existe sem desencadear uma multiplicidade de efeitos a

    partir da qual se geram novos campos de tenso. O reconhecimento deste

    princpio da incerteza nas narrativas (do sujeito sobre o objeto),pelo efeito

    de reflexo e pelo efeito processual, induz uma conscincia sobre as

    narrativas museolgicas como campos de possibilidades contnuas.

    Assim, sendo a narrativa museolgica uma varivel contnua20

    construda por um sujeito, a construo desse processo, para efeitos de

    validade e consistncia, deveria partir do prprio sujeito social como

    protagonista da construo das suas prprias narrativas. O deslocamento

    da construo do discurso do individuo para o social adiciona narrativa

    museolgica uma caracterstica pragmtica. O objeto museolgico torna-se

    numa possibilidade que ocorre num processo num espao-tempo em

    permanente transformao. Esta canibalizao do objeto museolgico

    permite a emergncia duma conscincia dum fato museolgico centrado nas

    comunidades e nos territrios. Essa antropofagia do objeto permite a

    emergncia da intersubjetividade do conhecimento museolgico.

    A introduo da intersubjetividade na epistemologia museolgica

    possvel por esse descentramento da produo do conhecimento do sujeito

    para os objetos. Na intersubjetividade o conhecimento depende no do

    sujeito racional, nem das suas emoes e sentimento, mas ele produzido

    pelos outros. A ideia no dada pela mente em reflexo centrada no

    espao e no tempo, mas pelo uso da palavra, numa determinada

    comunidade e em prticas coletivas. O conhecimento museolgico deixa de

    estar centrado nos objetos nos museus para se centrar na produo de

    objetos nas comunidade e territrios como processos de conhecimento.

    Processos de conhecimento que tem um funo pragmtica de construo

    da vontade de futuro. Um processo transitivo (onde a cincia se assume

    como um processo de conhecimento e como tcnica de analise da

    probabilidade e da imprevisibilidade) que se exprime como um processo de

    comunicao (como uma relao entre a forma de comunicao (uma

    19 Quando construmos um problema j construmos, intuitivamente, a resposta

    para esses problemas (JESUINO, 2000) 20 O conceito de variavel contnua relaciona-se com a densificao dum fenmeno

    no espao e no tempo, que permite a sua classificao ou ordenao. Trata-se

    portando duma expresso duma relao dos sujeitos com o real.

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 15

    linguagem) e o consenso que se cria como resoluo dos conflitos das

    partes (uma dialtica).

    2.1. Construir uma potica da

    intersubjetividade

    Verificamos atrs que a nova museologia partiu da interrogao

    sobre o que so e para que servem os museus. A busca de resposta sobre a

    sua funo social conduziu museologia formao dum campo de

    conhecimento prtico que mobiliza contributos tericos de diferentes

    disciplinas das cincias sociais, das humanidades e das cincias naturais.

    Por exemplo os trabalhos sobre a memria social, que mobiliza os estudos

    da cognio, da interao social, das representaes e das narrativas abre

    um campo para uma reflexo e prtica transdisciplinar (FREITAS et alea,

    1994), que permite museologia ampliar os seus objetos de anlise,

    incorporar novos sujeitos e induzir dimenses narrativas de diferentes

    espaos e territrios.

    Este alargamento do tringulo epistmico21 da museologia permite a

    prtica duma museologia crtica e solidria22. Esta prtica museolgica

    recoloca o desafio de pensar as prticas e os objetos museolgicos como

    aes que se inscrevem nos seus produtores. Este artigo apresenta uma

    proposta metodolgica para este desafio, com base na incluso das

    narrativas museolgicas dos objetos biogrficos e scio biogrficos.

    Ao assumirmos a busca duma resposta para esse desafio de

    construir uma museologia centrada nos outros, vamos procurar apresentar

    uma proposta na construo duma potica da intersubjetividade. Como

    vimos a intersubjetividade emerge na teoria do conhecimento como um

    modo de superar a subjetividade na relao entre o sujeito com o objeto de

    conhecimento. Esta uma questo crucial na epistemologia, que tem sido

    pouco referenciada na museologia e que mais frente defenderemos mais

    detalhadamente.

    A objetividade do conhecimento, na sequncia da afirmao do

    mtodo cientfico emerge da observao. Da observao de fenmenos. Na

    observao dos fenmenos procura-se que o sujeito no interfira no

    processo de forma a no afetar o resultado. A no-ocorrncia dessas

    condies de observao implica a no-produo de conhecimento

    21 Consideramos aqui como tringulo epistmico a conjugao da racionalidade do

    discurso, a vontade de conhecer e a ao. Este tringulo tem origem na Paideia

    grega que estrutura o pensamento moderno. 22 A museologia Crtica e Solidria resulta do empenhamento do muselogo num

    mundo em transformao.

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 16

    cientfico. Assim, numa viso simplista desta questo poder-se-ia dizer que

    a um conhecimento cientfico, objetivo, ope-se um senso-comum,

    subjetivo.

    No entanto a experiencia social, individual e cientfica de cada

    membro da comunidade permite a construo dum mtodo subjetivo de

    produo de conhecimento. As experiencias individuais e sociais esto

    presentes em toda a sua dimenso em todos os atos de conhecimento. Em

    diversos domnios, na Psicologia, por exemplo, o recurso anlise da

    subjetividade dos processos psquicos uma constante. A questo da

    interferncia do observador no processo uma questo relevante. Que

    conhecimento esse que emerge na relao do sujeito com o seu objeto.

    Melhor que conhecimento social esse que emerge na relao social

    estabelecida entre um sujeito produtor e um objeto social, tambm ele

    produtor de relaes.

    Nas narrativas museolgicas tradicionais, a construo do

    conhecimento est centrada no muselogo, que legitima a produo do

    discurso nos objetos socialmente significativos que ilustram e interagem

    com essa a narrativa legitimando-a. Uma museologia critica procur romper

    com esta relao viciada entre um sujeito (muselogo) ungido por um saber

    legitimado (no exterior) e o objeto significativo (revelado pelas relaes

    sociais). Procura romper com as relaes centradas na produo de

    narrativas hegemnicas que se reproduzem a si mesmas, reinventando-se

    incessantemente a si mesma.

    Procura romper esta relao por via da busca do conhecimento do

    outro, atravs dele mesmo. Na proposta da intersubjetividade a narrativa

    museolgica construda pelo outro. Da a importncia da sua palavra e da

    sua ao na construo do processo museolgico. No a construo duma

    ideia criada no seio duma comunidade hegemnica que prevalece, mas sim

    o processo de construo dessa hegemonia como ao que se constitui

    como narrativa.

    Naturalmente que qualquer narrativa hegemnica e qualquer

    tradio incessantemente reinventada (HOBSBAWN, 1988). A relevncia

    da construo da narrativa pela intersubjetividade no deriva do valor da

    materialidade dos discursos e dos objetos, mas das prprias experiencias

    vivenciadas. A intersubjetividade emerge na troca de ideias como

    experiencia para produo de narrativas em que os diversos sujeitos esto

    implicados, como produtores dessa mesma narrativa e partindo dessa

    produo para a contruo de como aes comunicativas.

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 17

    Nesta dimenso emerge a dimenso potica23 da intersubjetividade.

    Potico no sentido em que se transcende na produo de significados.

    Potica no sentido que atravs do ato comunicativo que se produz e se

    cria inovao. Potica no sentido da busca da pluralidade dos significados.

    Potica porque a narrativa simultaneamente exegtica e terica. No

    primeiro caso porque liberta os significados contidos nas formas, atravs da

    sua verbalizao e ritualizao; e terica porque ao mesmo tempo que situa

    um discurso num espao e num tempo contextual a recria atravs da

    releitura da experiencia social significativa.

    A potica da intersubjetividade traduz-se numa experiencia sensvel

    que permite uma viagem na construo dos processos museolgicos. Uma

    viagem atravs do qual os diversos sujeitos se deslocam no tempo e no

    espao em torno de objetos socialmente significativo, de herana comum,

    para, em conjunto os reconstrurem.

    A nossa proposta para a utilizao da potica da intersubjetividade

    na museologia parte das narrativas biogrficas. As scio biografias esto

    implcitas na construo da sociomnese24 As narrativas biogrficas partem

    duma problemtica transitiva e reflexiva dos objetos sociais. Se as relaes

    ente o sujeito que observa e o objeto que observado so transitivas (a

    cincia como tcnica de analise da probabilidade e da imprevisibilidade) a

    sua expresso, como processo uma relao entre a forma de comunicao

    (uma linguagem) e o compromisso que se cria como resoluo dos conflitos

    das partes (uma dialtica). O compromisso no anula o conflito, apenas o

    procura superar.

    2.1.1. Cartografar

    Para a construo desse roteiro de trabalho museolgico propomos

    um conjunto de quatro momentos: A constituio dum grupo

    museolgico25 um passo essencial para desencadear o processo. A partir

    23 A Potica como gnero literrio, na sua aceo contempornea constitui uma arte

    ou uma gramtica do verso, a poesia que se diferencias da narrativa. Todavia a

    Potica de Aristteles (ARISTTELES, 1986) constitui o texto fundador dessa

    arte, tem como objeto um elemento narrativo material (um texto ou um artefato) e ao mesmo tempo os seus significados. neste ltimo sentido de potica como

    produo de interpretao (TODOROV, 1973, 9) que nos propomos conceituar a

    nossa abordagem A potica como elemento de transitoriedade, revelador de

    discursos que inscrevem um enunciado num tempo sem retorno ocupando um

    determinado espao. 24 Sociomnese um neologismo que propusemos no mbito da nossa tese em

    Museologia, como instrumento de trabalho para processos museolgicos com base

    na fenomenologia da memria social 25 A proposta de utilizao de crculos museolgicos na museologia, tem como base

    os trabalhos de Paulo Freire. Ela remente-nos para a tradio nos crculos

    hermenuticos de Heidegger. O Circulo Hermeneutico tem origem numa figura da

    Glenda MeloRealce

    Glenda MeloRealce

    Glenda MeloRealce

    Glenda MeloRealce

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 18

    da constituio do grupo, lanado um primeiro desafio, de cartografar o

    mundo exterior. A cartografia pode ser feita por imagens que apoiam a

    construo de narrativas pessoais que traduzam a experiencia do mundo

    por cada um dos elementos do grupo. O exerccio pode implicar o

    movimento de descoberta do espao exterior ou a utilizao de elementos

    previamente preparados, tais como imagens, sons, materiais diversos,

    eventos etc. Para esse efeito o muselogo pode recorrer s diversas formas

    de animao de grupos, que podem passar pelo caf do mundo, a visita

    de estudo, o espao aberto, o mtodo cardico, etc. neste processo

    de tcnicas de animao de grupo que temos vindo a trabalhar as propostas

    de narrao por cada um dos membros do grupo o relato da suas histrias

    de vida. sobre a reflexo terria sobre essa prtica que temos vindo a

    evidenciar a emergncia da potica da intersubjetividade. Na proposta da

    intersubjetividade o importante desencadear uma experiencia sensorial e

    cognitiva entre cada um dos sujeitos. Essa experiencia socialmente

    partilhada pela imerso no cculo. Ela permite igualmente criar uma bateria

    de informao socialmente partilhada como ponto de partida para uma ao

    conjunta. Mais adiante detalharemos esta questo. Para j olhemos para a

    proposta do processo de trabalho, para verificar o que em cada momento

    emerge de inovao.

    A constituio do crculo o momento inicial do dialogo que prope

    uma verbalizao a partir da experiencia vivida por cada um dos seus

    membros. Esta uma ao que prope uma reflexo sobre a experiencia do

    passado e por isso lhe chamamos cartografia por analogia sntese que

    feita sobre um papel duma descrio do real fsico.

    retrica clssica e remete para a lgica interna da compreenso de um texto. A

    regra da crtica hermenutica um dispositivo de nalise segundo a qual

    necessrio analisar um documento (ou um texto) no seu todo a partir das suas

    partes constituintes, e as suas partes constituintes como um todo. O princpio de

    que a compreenso dum objeto no se encontra explicita nesse objeto, mas resulta

    dum processo de dilogo entre o sujeito que conhece e esse objeto. Um dilogo que

    feito por aproximaes sucessivas. Por isso a ideia de crculo, como um

    movimento repetitivos.

    No entanto a imagem em vez de crculo de veria ser a de espiral eliptica, pois esta

    imagem mais mais intuitiva. A forma de espiral elipptica ilustra melhora a

    dialtica do dilogo do sujeito com o real. O dilogo como desvelar sucessivo de

    sentidos por aproximao e aprofundamento. A influncia desta imagem de crculo

    ter chegado a Paulo Freire por via do trabalho de Martim Heidegger sobre os

    trabalhos de Georg Simmel. O mundo como vontade e representao herdados de

    Schopenhauer, onde a conscincia um processo dinmico de transformao do

    real. O crculo hermenutico o processo onde se pr-reconhece (uma intuio)

    uma forma, a partir da qual de d mais ateno ao detalhe (a conscincia de). A

    revelao dum sentido, constitui uma janela a partir da qual de reconstri uma

    ordem. A vantagem da metfora do crculos, que expressa simultaneamente o

    dialogo do pensamento do individuo e a sua interao com o grupo, justamente o

    de se acrescentar ao eu aos outros, para em ao, ao verbalizar uma ideia assumir

    a conscincia dessa ideia e ao mesmo tempo de a partilhar com os outros,

    dispondo-nos a aceitar outras leituras e gerando interaes. Estamos portanto no

    domnio da intersubjetividade.

    Glenda MeloRealce

    Glenda MeloRealce

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 19

    2.1.2. Corporizar

    reconstruo do mapa mnemnico individual sucede-se a

    corporizao da experiencia. Agora solicita-se a mobilizao da informao

    para a construo de uma ao. Uma ao em que cada um dos membros

    partilha os sentidos das suas experincias com os restantes membros do

    grupo, j no como emissor de sentidos, mas tambm como produtor e

    recetor de significados. A Histria de Vida, relatada aos outros j uma

    corporizao da experiencia individual. Mas a sua partilha com o grupo e o

    efeito de receo gerada que permite adicionar e introduzir as vrias

    dinmicas de construo de sociabilidades.

    Como tem sido defendido por Cristina Bruno, (BRUNO, 2007) as

    viagens constituram no passado dos mais importantes mtodos de recolha

    de objetos museolgicos. Muitas das colees reunidas nos museus de

    cincia, de etnologia, de arqueologia e de histria foram constitudas

    atravs de viagens. Foram as viagens e a recoleo de objetos que permitiu

    cincia europeia cartografar o real e construir o seu mapa do

    conhecimento. A teoria da Evoluo das espcies de Charles Darwin e o

    Mtodo de Classificao de Lineu decorrem das grandes viagens dos sculos

    XVI a XIX. No sculo XX, o Estudo dos Museus olham para estas colees

    segundo trs perspetivas: numa perspetiva processual da

    preservao/conservao dos objetos segundo a cadeia operatria da

    museologia; numa perspetiva reflexiva, onde para alm dos procedimentos

    da cadeia operatria so adicionados conceitos estruturantes (teoria da

    evoluo, razes da coleo, histria da coleo etc.,); e na relao entre as

    instituies e a suas colees. Nesta ltima perspetiva procura-se relacionar

    os processos de constituio dos acervos com os processos organizacionais

    que os determinaram. O recentramento das colees arcaicas no tempo em

    que foram produzidos, reconstruindo o sentido das viagens que as

    originaram tem vindo a introduzir novos desafios aos discursos

    expogrficos.

    O que nos interessa salentar nesta proposta de Cristina Bruno o

    desafio que nos lanado de olhar para os processos museolgicos como

    uma viagem contempornea. No sculo XXI a viagem uma experiencia de

    transitoriedade onde o conhecimento trabalhado a partir da experiencia

    dos sentidos. Um proposta de vivincia experiencial, no permite mais as

    propostas de narrativas museolgicas como construo de monlogos. As

    narrativas museolgicas devem ser abertas e constituir-se como um espao

    e um tempo de construo de conhecimento. O conhecimento no hoje

    mais visto como algo esttico. O conhecimento hoje uma experiencia de

    descoberta de sentidos que dependem do sitio onde se est e para onde se

    observa. A narrativa museolgica, ao constituir-se como uma narrativa

    aberta permite a criao desse trnsito do olhar entre espaos e tempos

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 20

    diferenciados. Como umaviagem ou uma busca para resolver a inquietao

    sobre a condio humana.

    a partir da experiencia de corporizao da condio humana que

    propomos uma experiencia de busca e construo de dilogos entre os

    membros do grupo. Cada um dos membros do grupo incorpora o

    conhecimento do outro e devolve-o ao outro e comunidade como

    experiencia comunicativa.

    A experiencia da Histria de Vida ou da narrativa biogrfica neste

    sentido exemplar como proposta de corporizao da experiencia que parte

    dum individuo como partilha com os restantes elementos do grupo. Atravs

    da verbalizao das experiencias individuais, no s emerge uma

    reconstruo dos sentidos dessa expereincia, como igualmente emerge a

    partilha com o grupo. importante sentir a emergncia da partilha como

    algo que igualmente incorpora sentidos. importante sentir o espao e o

    momento do envolvimento. importante sentir a troca e interrogar sobre o

    que h de comum no envolvimento dos vrios membros do grupo nesse

    tempo e nesse espao. Sentir os sons, os aromas, os cheiros, e as cores.

    Procurar identificar as formas e os movimentos, estar alerta para o espao

    para que os sentidos possam captar o contexto e o momento. Esses so

    eleentos de memria e a partilha desse momento, vivido interiormente,

    como um todo que permite captar a essncia do momento vivido e

    socialmente partilhado. esse momento que pode dar sentido

    reconstruo do novas conexes sociais.

    2.1.3. Problematizar e construir a

    Utopia como potica

    A partir da corporizao importa problematizar os sentidos

    comuns. Interrogar aquilo que une e aquilo que diferencia os elementos do

    grupo. O desafio agora de reconhecer o que h de comum, aquilo que

    pode ser utilizado como elementos comuns do grupo para construir uma

    ao. Mas para ter conscincia do que comum preciso interrogar,

    inquietar. necessrio debater a diferena, enfrentar o que desune.

    Ao terceiro momento da problematizao sucede a construo da

    Utopia. Enfrentando o que une e o que desune a proposta desafiar

    construo duma narrativa partilhada que contenha a imagem do grupo.

    Nos quatro momentos de construo duma narrativa intersubjetiva

    na museologia, em tese temos vrios produtos museolgios, tantoa quantos

    o grupo considerar necessrios produzir. Se tomarmos como exemplo a

    metodologia das histrias de vida temos, num primeiro momento, um

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 21

    conjunto de narrativas, dos diversos membros do grupo. Narrativas

    pessoais. O grupo pega nessas narrativas, debate os seus significados e

    reconstri uma narrativa comum. O grupo negoceia os elementos comuns e

    os elementos de divergncia. Discute o que deve ser includo e o que no

    merece a pena ser recordado. No final a narrativa socialmente construda

    ou reconstruda apresenta-se como uma produo que resulta duma

    vontade comum socialmente construda.

    Mas recordemos, o importante neste mtodo no o seu resultado

    final, mas sim a experiencia vivida por cada um dos membros no processo

    que conduz a esse resultado. No excluindo a possibilidade do resultado

    poder ser socialmente partilhado, o importante que cada um dos

    membros tenha tido a oportunidades de viver um momento transformador,

    de pressentir o que essencial. Nesse sentido a narrativa museolgica no

    se afirma pelos objetos mas pelos processos que catalisa na relao do

    sujeito com o social e com o real. Por essa razo temos. nessa relao

    processual que defendemos a emergncia da potica.

    2.2. Os objetos biogrficos como

    metodologia na construo de

    narrativas na museologia

    O nosso propsito neste ponto refletir sobre os desafios

    metodolgicos para a museologia de integrar estes objetos biogrficos como

    uma prtica de investigao-ao para a transformao social com base

    numa cultura de paz e solidariedade de emancipao social.

    Partimos da premissa terica da sociomuseologia que traduz uma

    parte considervel do esforo de adequao das estruturas museolgicas

    aos condicionalismos da sociedade contempornea. A abertura do museu ao

    meio e a sua relao orgnica com o contexto social que lhe d vida, tm

    provocado a necessidade de elaborar e esclarecer relaes, noes e

    conceitos que podem dar conta deste processo. (MOUTINHO, 2007)

    O processo de investigao sobre objetos biogrficos tem vindo a

    implicar uma reflexo sobre o sujeito implicado nas narrativas; seja do

    investigador sobre o seu objeto de investigao ou seja do narrador de si

    mesmo como implicado na construo duma memria de si, que se constitui

    como um processo de formao da conscincia de si e das suas aes.

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 22

    Esta problemtica tem vindo a ganhar espao de reflexo na

    academia26, e herda um patrimnio que tem vindo a ser trabalho por vrias

    abordagens das cincias humanas. A sociologia na escola de Chicago iniciou

    a utilizao deste objeto por volta da dcada de vinte do sculo passado, no

    entanto a emergncia do quantitativo e da crena no domnio da natureza

    pelos modelos objetivos, veio submergir a questo das abordagens

    biogrficas para um plano de menoridade cientfica. As metodologias

    qualitativas e os fenmenos subjetivos so alvo de pouca reflexo fora de

    crculos muito restritos das academias.

    Nos anos sessenta a historiografia inglesa influenciada pela escola

    dos Analles, atravs da Histria Oral, inicia nesta cincia uma abordagem

    metodolgica a resgate de memrias e eventos do movimento operrio por

    via de entrevistas a indivduos que testemunharam os acontecimentos.

    Paralelamente, durante essa decadas, a emergncia das independncias

    africanas, conduzir a um desenvolvimento das metodologias sobre Histria

    Oral aplicadas s comunidades sem histria. Recorde-se que na poca a

    base da Histria era sinnimo de domnio da escrita, pelo que a

    associao da cincia ao smbolo grfico que expressa o pensamento era

    considerada uma das distines entre selvagens e civilizados. Quem no

    dominava os instrumentos simblicos da notao escrita era considerado

    primitivo, e atravs dessa operao mental legitimava-se os processos de

    hegemonias colonial que o conceito de civilizao transportava. Em nome

    da civilizao geraram inmeros de processos de violncia e e destruiram-

    se formas de saberes formas de estar e tcnicas.

    Por outro lado no mbito das polticas culturais defendidas pela

    UNESCO, para resgate de tradies, nos anos setenta, procede-se em

    vastos territrios africanos e amaericanos recolha e registo de tradies

    orais, sejam por via dos contos tradicionais, seja por via da msica, da

    dana ou do trabalho. Esta tradio entroncava na velha tradio europeia

    nacionalista que havia, durante o sculo XIX, fixado atravs da escrita a

    tradio distintiva das naes, como resgate da modernidade universal

    iluminada. Nos anos setenta do sculo passado, a antropologia e a

    educao apropriam-se desta metodologia qualitativa para abordagem de

    relao de subjetividade construda pela histria de vida como processo

    formador.

    Interessa-nos portanto argumentar que forma as narrativas

    biogrficas, enquanto metodologia, encontram a sua atualidade numa

    26 Uma sntese deste debates encontra-se publicado na obre coordenada por Elsa

    Lechner, que resultou dum encontro internacional em 2007. Tambm em fevereiro

    de 2009, em Lisboa o CIES do ISCTE promoveu um seminrio sobre Abordagens Biogrficas, Memria e Histrias de Vida (www.memriamedia.net). Mais

    recentemente, Elsa Lechner atravs do CES da Universidade de Coimbra promoveu

    um CES Summer Course sobre Lives and history: a comprehensive course on biographies and societyLous 2011.

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 23

    tradio qualitativa das cincias do humano. Como metodologia de trabalho

    entroncam por sua vez nas problemticas de intersubjetividade, na medida

    em que o que analisado transcende a relao tradicional entre o sujeito-

    objeto que funda a cincia moderna, para se situar no campo da interao

    entre os sujeitos produtores de conhecimento perante a conscincia do seu

    prprio conhecimento como relao dialtica de superao. Uma dialtica

    em que a conscincia de s prprio como ser social e experiencial

    simultaneamente catalisadora de conscincia de si atravs da ao, e

    atravs da ao, gerar conscincia de si como ser individual e ser social.

    Trata-se portanto duma ao comunicativa que se traduz na narrativa de

    representao que contem, para alm de o ser individual o ser social. Mas

    que trascende ainda esta relao entre o individuo e o todo pela incluso do

    sentido esttico e tico. por isso que o temos vindo a defender como

    potica. Trata-se portanto duma meta narrativa que contem uma

    pluralidade de histrias individuais que se constituem como fragmentos

    discursivos duma narrativa comum, de sentido emencipatrio porque

    incorpora o reconhecimento (HONNET, 2011).

    Uma narrativa constitui-se como um enunciado comunicacional,

    onde o emissor produz um discurso em funo do destinatrio. Ainda que

    essa narrativa seja feita no foro privado, ela constitui-se como um discurso

    reflexivo, onde o resultado alcanado depende da conscincia do social

    desse sentido. Uma reflexividade que tanto mais evidente quanto

    sabemos que no domnio da investigao, seja por parte do investigador

    que utiliza a metodologia, seja por parte do objeto de investigao, que no

    h uma neutralidade na representao. Os discursos, como ao implicam

    uma vontade. Desse modo a produo do sentido na narrativa biogrfica

    constitui como uma epistemologia27 e como um fenomenologia28 que se

    verifica no domnio da intersubjetividade29.

    Os objetos biogrficos transportam a densidade de significados que

    compem as diferentes experiencias dos sujeitos, as suas expectativas de

    ao e a natureza relacional onde a interao se processualiza. Esta riqueza

    pode ser apropriada pelo olhar museolgico para construir uma prtica de

    relacionamento entre o individual e o social ou vice-versa, na medida em

    que para alm da sua natureza reflexiva, como forma de conscincia do real

    a interao biogrfica assume-se como uma prtica de integrao de dados

    e com uma prtica transformacional.

    neste domnio: o da utilizao das prticas biogrficas nos

    processos museolgicos, que queremos salientar a sua pertinncia como um

    27 Aqui entendido como uma filosofia do conhecimento, como o mtodo de avaliar e

    validar a produo do conhecimento. 28 No sentido Husserliano do termo como estudo da conscincia e dos objetos da

    conscincia 29 Aqui entendido como um campo da ao dos indivduos em contexto social. Uma

    ao processual pode consciente, percetiva ou intuitiva.

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 24

    elemento catalisador de processos de prtica de transformao social. O

    olhar biogrfico transporta um ato de narrao. Uma ao de relatar a

    experiencia vivida como construo do seu sentido. Esta potica da palavra

    ou dos gesto emerge como um reflexo do mundo experienciado e traduz o

    questionamento sobre a adequao da experiencia a cada situao do

    presente. Uma inquietao que gerada em funo das vontades de

    reconhecimento como vontades de futuro

    A experiencia biogrfica pode constituir-se assim mais do que uma

    mera arte do conto e afirmar-se como uma Posis. Ao colocar o sujeito

    como construtor da suas prprias narrativas biogrficas, ao criar um olhar

    biogrfico sobre si mesmo, ao aceitar expor-se e revelar-se como sujeito

    da histria, a prtica da narrativa biogrfica na museologia permite a

    abertura duma janela para a incluso de narrativas sociais. O sujeito no

    s se media a s prprio atravs da representao do real, como

    igualmente por via a experiencia cria uma ao comunicativa que

    simultaneamente poltica e tica.

    A construo da narrativa social processa-se portanto numa dupla

    dimenso processual. No plano do individuo comunicante que processualiza

    a experiencia individual em funo do recetor da mensagem; e no plano do

    individuo como ser social, que igualmente se concretiza atravs do processo

    comunicacional, que transporta a conscincia social do mundo. nesse ato

    de comunicao que se processualiza a adequao dos saberes das

    comunidades, enquanto herana social, para a reconstruo dos sentidos e

    das orientaes do social. Uma luta pelo reconhecimento e pela

    amencipao

    Para a museologia, mais importante do que a narrao do indivduos

    e da sua experiencia individual essa possibilidade de explorar atravs

    duma biografia de indivduos as narrativas sociais Ou seja a possibilidade de

    atravs do conjunto de narrativas individuais reconstruir scio-narrativas. A

    introduo da potica da intersubjetividade como proposta na

    sociomuseologia permite inovar na construo de processos museolgicos.

    Assumir a sociomnese como potica da intersubjetividade implica

    incrementar a explorao do potencial da memria de vida para gerar

    conscincia do social no individuo e de atravs dessa conscincia social

    permitir gerar aes solidrias e a construo dos saberes mestios. No

    nos interessa propriamente a construo de narrativas sobre objetos

    socialmente significativos, sobre monumentos ou patrimnios, mas

    interessa-nos essencialmente o que a experiencia processual implica na

    construo dos sentidos. Implica essa postura a adio funo social dos

    museus, a de um espao de experimental, o de um laboratrio que

    concentra as tenses scias para libertar as suas energias criadoras.

    Independentemente do lugar e da configurao organizacional. Um

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 25

    processo museolgico com base na potica da intersubjetividade um

    processo de criao e de inovao social para emancipao social solidria.

    esse movimento de reconecimento e reconstruo dos sentidos

    que se constitui como um movimento libertador, um momento que ao ser

    socialmente partilhado se constitui com criador de solidariedades pela

    emergncia da conscincia da alteridade. Um processo intersubjetivo por se

    recentra no processo gerador. Atravs do processo museolgico centrado

    nas narrativas scio biogrficas a museologia centra-se na captura do

    essencial da transformao, do movimento. Um desafio para a museologia

    de captar o movimento no interior da permanncia o movimento

    transformador pela prpria experincia de participao.

    O utilizao das metodologias scio biogrficas permitem recentrar a

    produo dos saberes nos indivduos como produtores das suas prprias

    experiencias e permitir o exerccio de construo dos sentidos do social

    solidrio. Se o exerccio de biografizao, a produo individual de sentidos

    um momento experiencial, potencialmente libertador pela verbalizao ou

    pelo ato performativo; o desafio essencial das metodologias biogrficas

    decorre no processo da formao da conscincia do individual como parte

    do social. nesse dilogo entre o eu (na sua mltipla dimenso

    consciente e inconsciente) e os outros (tambm nas suas mltiplas

    dimenses), entre as linguagens da alteridade, que emerge o saber

    mestio. Um saber que se alicera na partilha das experiencias como

    vontade de futuro.

    Como mtodo de conhecimento a biografia e a narrativa biografia

    simultaneamente um modo de conhecimento onde os autores se assumem

    como produtores conscientes dos caminhos das suas vidas. Desse modo, o

    processo de conhecimento obtido no apenas referencial (construdo pelos

    currculos predeterminados) mas um saber que decorre da experincia

    pratica intercultural (do ato de narrar, do ato de pensar, do ato de partilhar,

    do ato de transformar, do ato de sentir, do ato de imaginar) integral. esta

    capacidade transformadora que constitui a riqueza epistemolgica dessa

    proposta na museologia e que a permite alicerar no interior dum

    paradigma emergente da transio no interior duma ecologia de saberes

    para uma emancipao social.

    Ora, como afirma Elsa Lechner Independentemente do olhar

    disciplinar de onde se parte, as histrias de vida e relatos de experiencia

    tm ainda o poder de emancipar. Desde logo porque levam a tomadas de

    conscincia, porque depois ultrapassas a fronteira dos esteretipos e

    permitem ao sujeito ressituar-se face sua histria e papis sociais. Assim

    conceber a pesquisa biogrfica tambm nos seus efeitos significa

    reconhecer a carga poltica que comporta, quer como mtodo, quer como

    forma de apreender as realidades humanas (LECHNER, 2009, 9). Importa

    reconhecer s narrativas biogrficas, quando assumidas como narrativas

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 26

    scio biogrficas, como temos vindo a defender, o seu valor epistemolgico

    como processo de partilha solidria de experiencias significativas para a

    construo dum mudana participada onde o local se funde no global.

    No se trata j de reconhecer a apenas a esta metodologia como

    um processo intersubjetivo entre o sujeito narrador e o objeto de

    investigao. Implica tambm reconhecer o seu potencial transformador

    pela ao.

    2.3. O processo transformador:

    propostas de abordagem na museologia Abordaremos agora de forma sucinta algumas propostas

    metodolgicas de integrao das narrativas scio biogrfica nos processos

    museolgicos. No mbito da nossa tese de Doutoramento (LEITE, 2011)

    explicitamos a metodologia da sociomnese aplicada num contexto territorial

    delimitado. Como ento verificamos, a delimitao do espao-tempo uma

    das categorias de orientao que mais facilmente permitem a

    contextualizao dos sujeitos. uma contextualizao que permite uma

    observao da realidade vivida ao mesmo tempo que a explicitao dessa

    observao gera uma ao comunicativa de descrio desse objeto. Esse

    processo gera-se como uma experiencia de mediao do individuo entre o

    mundo real e a conscincia de pertena e no pertena a esse mesmo

    mundo. A emergncia da conscincia da pertena a um determinado

    conjunto social pode constituir-se como um dosp processos da formao da

    conscincia da agregao em comunidade.A conscincia duma identidade

    partilhada.

    A coeso social30 como medida de agregao das comunidades um

    princo orientador das politicais publicas e uma medida do processo de

    incluso social. O desenvolvimento de processos participativos neste

    domnio um instrumento til. Normalmente estes processos implicam a

    gerao de aes comunicativas. Estas aes tem como objetivo criar

    adeso ou implicao nos processos sociais Os processos comunicativos

    30 Coeso Social um conceito Durkheiniano que expressa o consenso e a unio

    entre os membros duma comunidade (Durkheim, 1984). A coeso social constitui

    uma medida de agregao que expressa em valores socialmente qualificados que

    podero ser expressos em objetos menemnicos e patrimoniais. Estando as

    comunidades polticas em processo, o desafio das polticas pblicas ser portanto o

    absorver a mudana (pelo progresso matrerial) e conservar e agregao social

    (pelo progresso moral). As teorias emancipatrias assumem no entanto que no h

    uma transformao material das foras produtivas da sociedade, sem uma

    correspondente transformao das estuturas sociais. Na era da globalizao a

    questo da coeso social um campo de tenso na anlis poltica.No querendo

    deixar de referir esta problemtica, esta questo transcende este nosso trabalho

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 27

    podem ser, como sabemos, rituais quando implicam a rememorao, ou

    espontneos, quando implicam reaes a situaes novas. Por sua vez no

    processo comunicativo esto tambm implicadas relaes de coao que

    podem ser autoritrios ou democrticos, em funo da organizao e

    estrutura do poder (HABERMAS, 2003)31.

    Nesse contexto poderemos ainda mobilizar o conceito de

    comunidades abertas32, como comunidades onde as suas heranas so

    processuais, vividas em rede; por contraponto s comunidades fechadas, se

    constituem como espaos sociais hierrquicos, que procuram fixar os seus

    rituais, cristalizando os patrimnios e as heranas e que se constituem

    como espaos pouco dinmicos inovao.

    Analisar comunidades e as organizaes sociais em funo dos seus

    contextos de agregao em busca das dinmicas processuais implica

    reconhecer que as mudanas e as permanncias so processos de tempos

    diferentes. Por exemplo, nas cincias sociais, usualmente usamos a questo

    do confronto entre a tradio e a modernidade, para exemplificar esta

    oposio entre as permanncias e as transformaes. Como j notou

    Hobsbawn (1988) a perceo do passado e da tradio constitui-se como

    um inveno que se reajusta permanentemente no presente, tal como a

    modernidade acentua a perceo de mudana. Analisar essa tenso fora

    das dinmicas e dos contextos de transformao constitui-se muitas vezes

    como falsos problemas. A mudana uma evidncia. A questo que

    interessa compreender porque que as sociedades mudam e entender o

    papel da ao dos sujeitos nas possibilidades de mudana. a capacidade

    dos sujeitos orientar a mudano que determina a natureza do processo

    emancipatria.

    por essa razo que a categoria de espao-tempo nos til para a

    gerao de aes museolgicas, na medida em que uma anlise de um

    qualquer objeto no seu contexto espao-temporal permite a reconstruo

    do sentido do real no interior duma comunidade. Um sentido que no

    necessariamente aquele que ela tinha no momento da sua execuo, mas

    aquele que hojo, os sujeitos produtores de conhecimento entendem como

    sendo o mais prvvel em funo do conhecimento mobilizado. Estamos

    portanto face a real intersubjetivo que tem por base um conhecimento

    socialmente partilhado e legitimado. Um qualquer objeto participa no que

    poderemos chamar modos de vida da comunidade atravs dos diferentes

    olhares dos sujeitos que o observam. Nesse sentido cada olhar sobre os

    objetos constitui-se como vimos simultaneamente como um olhar biogrfico

    31 Poder aqui no sentido de capacidade de influenciar o comportamento do outro 32 O conceito de comunidades abertas introduzido nas cincias sociais a partir dos

    estudos das cincias naturais ao procurar responder forma como diferentes

    espcies ocupam os mesmos espaos e que condizir noo de ecologia. O termo

    tende hoje a ser substitudo pelo de redes sociais, tendo como elemento

    estruturante os fluxos interelacionais. (CASTELLS, 2006)

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 28

    e como um olhar scio-biogrfico. atravs dessa relao reflexiva que

    conhecemos o mundo, que criamos implicaes sociais, e atravs desse

    conhecimento podemos atuar, como indivduos ou como membros duma

    comunidade ou rede.

    Um qualquer objeto, ao ser socialmente reconhecido, implica a

    gerao dos processos de pertena (discriminao, conjuno e agregao),

    atravs dos quais se reconstroem os sentidos do mundo ou a sua

    inteligibilidade. Em tese, qualquer reflexo do mundo permite a reconstruo

    e a representao desse mundo, no na sua dimenso real, mas como

    representao dos seus sentidos, de forma intersubjetiva. Atravs dos

    objetos um sujeito, participante numa comunidade, reconhece mais ou

    menos intensamente os tempos e os espaos sociais, pratica determinados

    modos de relacionamento com esse espao e adere a certas formas de

    organizao social. O mundo como vantade de representao uma

    expresso da liberdade do individuo, da sua capacidade de emancipao.

    Um objeto transporta sempre um significado que atribudo pelo sujeito

    que o observa como um reflexo da conscincia do mundo desse mesmo

    sujeito. Um objeto sempre um estmulo que gera um pensamento, um

    sentimento, uma sensao ou uma intuio que vindo do mundo exterior ao

    indivduo gera ao. Por essa razo que a intersubjetividade, ao centrar-se

    nos processos inter-relacionais que ocorrem no campo da fenomenologia do

    social procura ultrapassar os limites do paradigma da racionalidade da

    cincia positiva, onde um objeto isolado do sujeito que o observa. Ao

    assumir que a observao influencia o resultado do que se v a

    fenomenologia do social dsloca as relaes processuais dos indivduos no

    espao e no tempo para o campo da probabilidade ao mesmo tempo que

    abre um espao de autonomia, para os indivduos tomarem conscincia de

    si como ao. Um espao de autonomia que se constitui como uma

    liberdade. Uma liberdade que pode ser usada para a emancipao ou para a

    regulao.

    Regressando questo do fator de catalisador da transformao

    num processo museolgico emancipador e solidrio j apresentamos a

    proposta museolgica de fundar um crculo museolgico33 constitudo por

    um qualquer grupo de participantes. (Leite 2011). Um crculo que tem por

    base a proposta de Paulo Freire. Na nossa tese de doutoramento utilizamos

    a imagem, como elemento gerador. Agora propomos as narrativas

    biogrficas como elemento gerador.

    Propomos partir das prprias histrias dos indivduos e da sua

    partilha em grupo, reconstruir a conscincia desse mesmo grupo e dos

    membros individuais desse mesmo grupo por via das aes museolgicas

    como aes comunicativas.

    33Veja-se nota atrs.

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 29

    A utilizao das narrativas biogrficas em contexto das cincias do

    homem, como j acima referimos, no uma novidade. Elas tm sido

    usadas em diversos contextos, quer pelas disciplinas tericas quer pelas

    disciplinas prticas. No primeiro caso j falamos da sociologia, da histria,

    da antropologia; no segundo caso temos a psicologia que as usa como

    processo teraputico individual, ou de grupo, pela educao, sobretudo de

    adultos. Poderamos igualmente falar da literatura, onde a biografia se

    constitui como um gnero; na comunicao social, onde a histria narrada

    pelos prprios ilustra um problema abordado; ou em inmeras aplicaes,

    por exemplo nos estudos de gnero e com minorias para empoderamento

    social, etc.

    Tambm na museologia as histrias de vida tem vindo a ser

    utilizadas, pala ilustrar objetos instalados, ou para testemunho de tempos

    vividos. Temos por exemplo o caso dos museus etnogrficos, onde um

    objeto exposto acompanhado por registos narrativos de artesos que o

    utilizaram como objeto de trabalho ou de vivncias quotidiana (Museu da

    Luz, Museu de Portimo). Nos museus do trabalho onde se recolhem

    registos de antigos operrios sobre processos e vivncias. Em alguns casos

    mesmo, as histrias de vida so contadas ao vivo por antigos operrios

    (Museu da Chapelaria e Museu Mineiro do Louzal). Mais recentemente

    visitamos o Museu do Trajo de So Brs de Alportel, no Algarve onde os

    encontros sobre a memria constituem pontos de partida para discusses e

    aes museolgicas. Os exemplos poderiam contemplar outros processos,

    mais ou menos relacionados com a museologia, como por exemplo as

    horas de conto nas livrarias e bibliotecas; ou os eventos onde se utiliza a

    oralidade a msica e a dana como proposta de trabalho. So tcnicas que

    implicam simultaneamente uma recolha, salvaguarda e comunicao de

    tradies (veja-se por exemplo o evento do Pinhal das Artes de Leiria, que

    se realiza em Junho por iniciativa do Conservatrio de Leiria). Em suma,

    seja no mbito duma museologia mais tradicional ou mais social, ou mesmo

    de outros processos museolgicos (materiais ou imateriais) podemos

    considerar que a questo das narrativas biogrficas um elemento

    constante, assumindo maior ou menor protagonismos em funo das

    propostas comunicativas.

    Convm esclarecer que do ponto de vista metodolgico a utilizao

    das histrias de vida, das narrativas biogrficas ou das autobiografias

    merc alguma reflexo. Consoante as finalidades que se pretendem atingir,

    os mtodos enformam a informao recolhida. O mtodo biogrfico um

    mtodo impregnado pela reflexividade que obriga a critrios de validade

    cientfica e tica bastante rigorosos. A narrativa biogrfica no mais do

    que uma narrativa entre tantas outras. A estrutura da prova, para casos

    individuais muito frgil e subjetiva. Como j verificamos um processo

    onde a relao entre o observante e o observado permanente e

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 30

    constante34. Esta questo da validade do conhecimento obtido por via das

    narrativas exige um especial cuidado por parte do investigador. Em primeiro

    lugar deve-se ter conscincia que um testemunho biogrfico sempre

    relativo a si e h expectativas do enunciante. Trata-se dum processo de

    comunicao. Por essa razo vulgar distinguir metodologicamente trs

    processos de recolha de informao biogrfica: As biografias, as histrias de

    vida e as narrativas biogrficas

    Num primeiro caso as Biografias onde os objetos biogrficos

    produzido so constitudos por narrativas que so muitas vezes trabalhados

    pelo prprios sujeitos. Estes objetos so executados com filtros impostos

    pels vises dos narradores. Eles podem apoiar-se materialmente em

    narrativas orais recolhidas por terceiros, que so reproduzidade sem uma

    viso critica, ou por outro tipo de objetos biogrficos (cartas, dirios,

    fotografias, filmes) que se constituem como objetos mnemnicos que

    ilustram um percurso de vida e um entendimento pessoal sobre esse

    percurso como vontade de memria. O lbum de recordaes, os dirios e a

    autobiografia constituem exemplos deste processo, dependendo a sua

    qualidade como objeto de cincia da vontade de agregao de sentido a

    maior o menor afastamento em relao ao grupo seguinte.

    Um segundo caso mais complexo so constitudas pelas Histrias

    de Vida. So narrativas ou discursos, feitos pelo prprio ou por outrem

    sobre as trajetrias de vida a partir duma interpretao dos atos. Distingue-

    se portanto aqui a inteno de narrar e interpretar sentidos da simples

    recoleo de objetos mnemnicos, que caracteriza o modo anterior. Este

    processo distingue-se pela construo ou reconstruo de quadro de

    significao das aes. Se a autobiografia se pode ou no incluir neste

    34 Em investigao social distinguem geralmente dois processos de recolha de

    informao: o quantitativo, com base em quantidades (universais ou por

    amostragem) e o qualitativo, com base na observao de determinadas qualidades

    da informao. As narrativas biogrficas inserem-se neste ltimo processo de

    recolha de dados. A observao do objeto feita atravs do respetivo registo

    (escrito ou gravado em som ou som& imagem). Enquanto o registo pode ser

    executado no momento do evento ou posteriormente e ele, a gravao exige

    simultaneidades com o acontecimento. Em qualquer das situaes de registo a

    posio do observador, os sujeitos, determina a quantidade e a qualidade dos

    dados recolhidos. Para alm disso, a informao processual tende por sua vez a ser

    nica e exclusiva. Cada evento observado nico e no reproduzido no espao e no

    tempo, ainda que entre vrios processos funcionalmente e estruturalmente

    semelhantes possam ocorrer tendncias semelhantes. O que interessa aqui

    salientar que o observador considerado participante se assume uma posio de

    interveno no evento, ou no participante se procura afastar-se do objeto de

    anlise, procurando no o influencias. Como sabemos pela experiencia, esta uma

    falsa questo terica na medida em que a observao de qualquer objeto influencia

    esse mesmo objeto. Qualquer observao participada, variando em grau, mesmo

    quando observa posteriormente registos recolhidos por outros. Dessa forma a

    questo da observao em investigao qualitativa obriga a mobilizar a tica de

    investigao e a descrever as condies de investigao e seus resultados numa

    perspetiva do objetivo investigador e dos seus efeitos na comunidade.

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 31

    grupo em funo do tempo e da forma do seu contedo da sua produo, as

    biografias feitas por terceiros, com a participao ou no da vontade dos

    biografados corresponde a um material informativo que se diferencia

    claramente pela produo ou pela conscincia da produo de significados

    sobre a vida vivida a partir dum elemento exterior ao indivduo narrado.

    Finalmente, um no terceiro modo de trabalho constitudo pelas

    narrativas biogrficas, que se podem distinguir das histrias de vida por

    conterem, para alm dos significados sobre a vida vivida, a busca da sua

    relao com o mundo. Ou seja, para alm da construo dum quadro de

    significao da trajetria social do ator, ela dever ainda incluir a sua

    dimenso como protagonista do tempo vivido. A distino mais uma vez

    no fcil nem porventura ser til procurmos distines claras

    processuais. O que nos interessa salientar que na narrativa biogrfica,

    para alm da dimenso individual se inclui uma dimenso coletiva. Uma

    dimenso da conscincia da participao do individuo no devir comum.

    sobretudo nesta dimenso que encontramos a riqueza processual deste

    mtodo, a partir do qual nos propomos constrir a base para gerar uma ao

    transformadora na museologia.

    Qualquer um dos processos pode-se constituir-se como uma boa

    base de trabalho para iniciar processos museolgicos. O critrio de escolha

    depende da natureza e da funo dos objetivos pretendidos. Os objetos

    biogrficos podem, por exemplo construir uma base para espaos de

    memria (Veja-se por exemplo a Casa de Chico Mendes citado por Mrio

    Chagas35), ao passo que as histrias de vida se podem constituir como um

    processo de consciencializao dum indivduos em relao sua

    participao no devir comum, e dessa forma contribuir para a reconstruo

    dos quadros de significao. O que nos parece pertinente salientar em

    relao a estes trs modos de recolher e trabalhar objetos biogrficos o

    potencial que eles tm para reconstruir scio-narrativas. Esta umas das

    riquezas que a postura da intersubjetividade permite. Ou seja, a narrativa

    no construda como um processo de afirmao duma memria

    hegemnica, mas a narrativa ela prpria construda como um processo

    participado, onde cada um dos membros do grupo de reconstri os seus

    quadros de significao. Uma participao em que cada um ator da sua

    prpria emancipao. Uma funo social que acrescenta aos espaos

    museolgicos uma dimenso libertadora, solidria e produtora de inovao

    social

    As utilizaes das narrativas biogrficas em processos participativos

    interdisciplinares com base na intersubjetividade critica, sejam eles

    museolgicos ou no podem-se constituir como processos de investigao

    ao aplicados na sociomuseologia. Tal como ramos do conhecimento a

    35 http://www.cultura.gov.br/site/2008/05/19/casa-de-chico-mendes-agora-e-

    patrimonio-historico-nacional

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 32

    validao dos interlocutores assume uma funo crucial no processo de

    investigao. No entanto, num processo participativo de incluso social a

    palavra de todos valida. atravs da palavra e do gesto que cada

    membro do grupo adquire a conscincia da sua emancipao. O limite do

    conhecimento retirado duma histria ou dum conjunto de histrias de vida

    condicionado pelo posicionamento dos indivduos ou indivduos na formao

    social, pela sua posio social, palas suas condies de trabalho, onde

    entram diversos tipos de categorizao, tais como classe, idade, gnero,

    raa, condio social, posio face ao trabalho, estrutura social etc. Ao

    contrrios de outros mtodos a categorizao no uma base da analise,

    mas apenas uma condicionante dessa mesma anlise que fornece

    indicaes sobre o posicionamento social dos indivduos no conjunto social,

    ou seja a intensidade e a frequncia da sua capacidade de emisso e

    receo de informao. O processo de investigao ao procurar identificar

    as regularidades implcitas nos objetos observados dever refletir sobre a

    sua representatividade e a significncia das amostras recolhidas, o grau de

    saturao da informao ou da amostra, como elemento potencial de

    emamcipao social.

    A perspetiva da intersubjetividade crtica recoloca a questo da

    investigao social nos processos de interao dos interlocutores, no como

    meros objetos de conhecimento, mas como seres ontolgicos com liberdade

    e com saberes, para criar aes libertadoras e emancipatrias. A perspetiva

    da transcalar da pertena de cada indivduo a diversas e diferentes redes

    sociais, ao invs de prejudicar a validade da amostra, um fator de

    enriquecimento do grupo. A partilha das experiencia e dos saberes mestios

    ajusta-se melhor ao trabalho multidisciplinar rizomtico que busca as

    essncias do movimento transitivo.

    Esta questo remete igualmente para uma alterao das funes

    tradicionais do muselogo. Do tradicional conservador, especialista num

    determinado domnio das artes, o muselogo transforma-se,

    profissionalmente, num lder participativo. A intersubjetividade crtica exige

    competncias profissionais que o definem como um ser consciente,

    inteligente e sensvel. Um conjunto de competncias que exigem qualidades

    anmicas (capaz de agir, de ter emoes e intuies), qualidades

    intelectuais (capaz de mobilizar saberes e misturar conhecimentos) e

    qualidades dinmicas (capaz de trabalhar as sensaes e os mostrar os

    afetos). Estas caractersticas, de ser, de estar e de fazer traduzem a

    emergncia dos novos perfiz profissionais que no cabe aqui detalhar. Tal

    como um maestro numa orquestra, um muselogo dever ser capaz de

    extrair entre cada membro do grupo os elementos socialmente significativos

    das histrias individuais, para com todo o grupo colocar em ao uma

    histria comum.

  • Leite, Pedro Pereira: Olhares Biogrficos 33

    Considerando que a museologia de diferencia mais pelos processos

    que utiliza do que pelo seu objeto de estudo, a utilizao das narrativas

    biogrficas, como temos vindo a defender, constituem uma importante

    ferramenta de trabalho para a construo dos processos museolgicos.

    Como verificamos, o que essencial nos processos e na ao museolgica

    a participao dos indivduos nos processos de transformao social. Uma

    participao que tem por base os seus saberes e que se constitua como

    potenciadora da sua emancipao. Uma emancipao que tem por base a

    liberdade e a sua pertena ao grupo como componente do seu processo de

    emancipao.

    Este potencial pode ser desenvolvido pela museologia participativa e

    solidria por via das narrativas biogrficas. Retomando a nossa metodologia

    da sociomnese, a partir da constituio do crculo museolgico, a proposta

    de trabalhar as histrias de vida de cada um, pode constitui o elemento

    catalisador. As histrias de vida podem ser narradas ou representadas em

    atos cnicos, ou de dana, por msica, por outras artes grficas ou

    expresses estticas. Recordemos que no nosso trabalho, utilizamos a

    figura da construo livro, o que no fundo representa a construo da

    histria de vida de cada um. Estas histrias de vida podem ser recolhidas e

    com elas criar um acervo de histrias36. A histria oral contada pelo prprio

    constitui apenas o primeiro desafio. Um desafio onde cada um se expe ao

    grupo, narrando a sua identidade, com os meios que considere mais

    expressivos