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84 ARACÊ – Direitos Humanos em Revista | Ano 2 | Número 2 | Maio 2015 A políca pública de Educação em Direitos Humanos e formação de professores The Public Policy of Educaon in Human Rights and Training of Teachers Erlando da Silva Rêses e Danúbia Régia da Costa Erlando da Silva Rêses é doutor em Sociologia da Educação e do Trabalho pela Universidade de Brasília (UnB). Professor Adjunto da Faculdade de Educação da UnB e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE). Coordenador do Centro de Memória Viva- Referência e Documentação em Educação Popular, Educação de Jovens e Adultos e Movimentos Sociais do DF, do Programa FORMANCIPA (Formação Integrada e Emancipadora de Acesso à Educação Superior) e do Programa PÓS-POPULARES – Democrazação do Acesso à Universidade Pública pelo Chão da Pesquisa. E-mail: [email protected] Danúbia Régia da Costa é mestre em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora na área de Educação em Direitos Humanos e polícas públicas, com graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte – UERN e especialização em Psicopedagogia e em Linguagens e Educação, pela Universidade Poguar – UNP. Foi assessora no CONANDA – Conselho Nacional da Criança e do Adolescente, na Coordenação de Educação em Direitos Humanos e na Coordenação de Indicadores na Secretaria de Direitos Humanos. É assessora governamental no GAC- Gabinete Civil do Rio Grande do Norte em Brasília. Email: [email protected] RESUMO O presente argo remete à discussão em torno dos Direitos Humanos e da Políca Pública de Educação em Direitos Humanos. São temas emergentes na Educação? É possível sustentar que nos úlmos doze anos estes temas ganharam mais projeção no âmbito do estado brasileiro. Como se constuiu a políca pública de Educação em Direitos Humanos? Qual a relação dessa políca pública com a formação de professores? Uma primeira forma de tratar este tema é conhecer o vínculo da Educação em Direitos Humanos com pressupostos teórico-metodológicos. Para tanto, busca-se uma aproximação da temáca da violência, a parr de uma abordagem teórica clássica e contemporânea da categoria, com o objevo de estabelecer relações prácas e conceituais e na perspecva da formação de professores.

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A política pública de Educação em Direitos Humanos e formação de professoresThe Public Policy of Education in Human Rights and Training of Teachers

Erlando da Silva Rêses e Danúbia Régia da CostaErlando da Silva Rêses é doutor em Sociologia da Educação e do Trabalho pela Universidade de Brasília (UnB). Professor Adjunto da Faculdade de Educação da UnB e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE). Coordenador do Centro de Memória Viva- Referência e Documentação em Educação Popular, Educação de Jovens e Adultos e Movimentos Sociais do DF, do Programa FORMANCIPA (Formação Integrada e Emancipadora de Acesso à Educação Superior) e do Programa PÓS-POPULARES – Democratização do Acesso à Universidade Pública pelo Chão da Pesquisa.E-mail: [email protected]

Danúbia Régia da Costa é mestre em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora na área de Educação em Direitos Humanos e políticas públicas, com graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte – UERN e especialização em Psicopedagogia e em Linguagens e Educação, pela Universidade Potiguar – UNP. Foi assessora no CONANDA – Conselho Nacional da Criança e do Adolescente, na Coordenação de Educação em Direitos Humanos e na Coordenação de Indicadores na Secretaria de Direitos Humanos. É assessora governamental no GAC- Gabinete Civil do Rio Grande do Norte em Brasília.Email: [email protected]

RESUMOO presente artigo remete à discussão em torno dos Direitos Humanos e da Política Pública de Educação em Direitos Humanos. São temas emergentes na Educação? É possível sustentar que nos últimos doze anos estes temas ganharam mais projeção no âmbito do estado brasileiro. Como se constituiu a política pública de Educação em Direitos Humanos? Qual a relação dessa política pública com a formação de professores? Uma primeira forma de tratar este tema é conhecer o vínculo da Educação em Direitos Humanos com pressupostos teórico-metodológicos. Para tanto, busca-se uma aproximação da temática da violência, a partir de uma abordagem teórica clássica e contemporânea da categoria, com o objetivo de estabelecer relações práticas e conceituais e na perspectiva da formação de professores.

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PALAVRAS CHAVEEducação em Direitos Humanos – Direitos Humanos – Formação de Professores

ABSTRACTThis essay refers to the discussion around the Human Rights and Public Policy of Education in Human Rights. Are these emerging issues in Education? It is possible to sustain that in the last twelve years these issues gained more projection within the Brazilian State. How was the Public Policy of Education in Human Rights formed? What is the relationship of this public policy with the training of teachers? A first way of considering this issue is knowing the bond between Human Rights Education and theoretical-methodological presuppositions. Therefore, it is sought an approximation to the violence thematic, based on a classical and contemporary theoretical approach to the category, in order to establish practical and conceptual relations in the perspective of teacher training.KEy wORDSEducation in Human Rights – ; Human Rights – Teacher Training

1. Prolegômenos

Após o processo de redemocratização da sociedade brasileira várias confe-rências e estatutos demarcaram significativamente a inserção dos direitos humanos na sociedade brasileira. Eles não se manifestam exclusivamente pela legislação ou por processos de judicialização, tal como se apresenta nos sucessivos lançamentos de planos nacionais (1, 2 e 3) e no Plano Na-cional de Educação em Direitos Humanos – PNEDH (2006). Convém res-saltar as lutas no campo da sociedade civil organizada que, sobremaneira, redundam ou não em conquistas no âmbito do Estado.

A Educação em Direitos Humanos ganhou projeção nesse debate e al-guns projetos se destacam neste campo, tais como, a publicação da obra “Educação em Direitos Humanos. Fundamentos Teórico-Metodológicos”, elaborada por um grupo de professores da Universidade Federal da Pa-raíba (UFPB) e publicado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), em 2010. Outro desdobramento desta discussão foi a publicação da obra “Direitos Humanos na Educação Superior” (2010) com a distribui-ção em três volumes que elencam subsídios para a Educação em Direitos Humanos nas Ciências Sociais, na Filosofia e na Pedagogia. Em 2012, o Ministério da Educação homologou as Diretrizes Nacionais para a Educa-

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ção em Direitos Humanos, aprovadas pelo Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação (CNE).

Embora a política de Educação em Direitos Humanos tenha sido pensada e implementada tardiamente em nosso país, pode-se afirmar que no âmbito normativo ela apresenta avanços que se iniciaram com o PNEDH. Essa po-lítica vem cada vez mais conquistando espaços na agenda governamental, ao mesmo tempo em que é preciso reconhecer o elevado índice de viola-ções dos direitos humanos que afetam dramaticamente nossa sociedade. Dessa forma, os direitos humanos se constituem num campo de contradi-ções e lutas históricas.

Na perspectiva de promover uma contribuição para o debate na direção da Educação em Direitos Humanos apresenta-se a relação com a violên-cia, com o objetivo de desenvolver uma reflexão acerca da especificidade e prática para este campo do conhecimento, conforme preconiza o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3 (BRASIL, 2010).

2. Educação em Direitos Humanos

Segundo CANDAU e SACAVINO (2010), a expressão Educação em Di-reitos Humanos é uma categoria polissêmica com dimensões e enfoques diferenciados,

especialmente nas dimensões político-ideológica e pedagógica, convi-vem diferentes concepções, que vão do enfoque neoliberal, centraliza-do nos direitos individuais, civis e políticos, até os enfoques históricos-críticos de caráter contra-hegemônico, nos quais os direitos humanos são uma referência no processo de construção de uma sociedade diferente, justa, solidária e democrática, em que a redistribuição e o reconhecimento se articulam, tendo como centro a indivisibilidade e interdependência das diferentes gerações de direitos. Essa diversida-de de enfoques exige um contínuo discernimento, imprescindível para manter a coerência entre os marcos assumidos e práticas. (CANDAU e SACAVINO, 2010, p. 113).

Na perspectiva histórico-crítica assumida por este texto, a diversidade é entendida como uma construção histórica, cultural e social das diferenças e a prerrogativa do “outro” ou do diferente leva ao reconhecimento da con-

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dição de vulnerabilidade. Nessa situação, encontram-se crianças e adoles-centes, mulheres, afrodescendentes, pessoas com deficiência, de orientação sexual e religiosa distintas, dentre outras.

Nessa linha de pensamento CARBONARI (2007) afirma que

o sujeito de direitos não é uma abstração formal. É uma construção relacional; é intersubjetividade que se constrói na presença do outro e tendo a alteridade como presença (...) Nascem do chão duro das intera-ções conflituosas que marcam a convivência. Mais do que para regular, servem para gerar possibilidades emancipatórias (CARBONARI, 2007, p. 177).

A pauta da educação surge como um fator indispensável para a reconstru-ção da paz e após a guerra fria despontou nas primeiras ações da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Órgão instituído em 1946, com o intuito de elaborar recomendações que promovessem o respeito e a observância dos direitos humanos, partindo do pressuposto que direitos humanos não guerreiam com outros regimes que os respeitem.

A temática da Educação em Direitos Humanos no continente latino-ame-ricano ainda não está consolidada. Ela emergiu na década de 1980 articula-da com os processos de diferentes contextos da luta pela democracia. Neste período, os movimentos populares protagonizaram os processos educati-vos que deram início à afirmação da Educação em Direitos Humanos, jun-tamente com algumas instituições não governamentais.

Segundo VIOLA (2013), foi no conflito entre sociedade civil e o Estado ditatorial que o tema dos direitos humanos se instaurou como viés para a construção do Estado democrático de direito. O tema em vigor nunca foi central em nossa sociedade brasileira, podemos constatar situações que evidenciam a ausência e descaso com os direitos humanos, basta voltarmos na história da nossa sociedade e observarmos a realidade social cotidiana. Até a década dos anos de 1990, os direitos humanos eram sinalizados espo-radicamente e de forma difusa em reivindicações advindas dos movimen-tos sociais ou de alguns setores marginalizados socialmente, ou ainda em discursos oficiais construídos a partir das exigências e convênios interna-cionais, o que não garantia a sua exequibilidade na agenda política interna.

A Declaração de Viena, no ano de 1993, reafirmou a importância da EDH,

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ser desenvolvida na educação formal e não formal, de modo a garantir o respeito mútuo e a cultura de paz.

A Educação em Direitos Humanos deve incluir a paz, a democracia, o desenvolvimento e a justiça social, tal como previsto nos instrumentos internacionais e regionais de direitos humanos, para que seja possível conscientizar todas as pessoas em relação à necessidade de fortalecer a aplicação universal dos direitos humanos (ONU, 1993).

Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), estava em pauta a questão da dignidade humana e a convocação dos governos a se comprometerem com a defesa dos direitos civis, políticos, econômicos, so-ciais e culturais, cabendo à sociedade civil seguir lutando para que os acor-dos fossem cumpridos em nível nacional (ONU, 1948).

A Conferência de Viena (1993) ratificou o debate construído sobre os di-reitos humanos e apontou no sentido da ampliação e aprofundamento do tema na sociedade, chamando a atenção para a responsabilidade do Estado na proteção, garantia e promoção dos direitos humanos. Nesse sentido a Conferência afirmou a indissociabilidade, indivisibilidade e integração dos direitos humanos, recomendando aos países a adoção da Educação em Di-reitos Humanos, com vistas à produção de mudanças culturais.

A chamada “Constituição Cidadã” afirma e garante direitos e liberdade fundamentais, além dos econômicos, sociais e culturais. Contudo, no cam-po educacional, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a responsabili-dade do Estado e da família na sua promoção:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL,1988).

Nessa formulação da Carta Magna, educação e cidadania aparecem inter-ligadas de modo a constituir uma orientação geral para o campo da políti-ca educacional brasileira. Essa norma originária abriu caminho para outros desdobramentos históricos das áreas da educação e dos direitos humanos. Nesse sentido a EDH é um direito humano como parte do direito à educação e condição necessária para o exercício efetivo de todos os direitos humanos.

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A política pública de EDH está situada no contexto de um Estado capitalis-ta influenciado pelo grau de participação popular, relacionada a uma polí-tica mais ampla: a política educacional. Ambas são consideradas políticas sociais que ganharam maior visibilidade nos países em desenvolvimento nas últimas décadas e pertencem ao campo multidisciplinar (Sociologia, Ciência Política e Economia) e direcionado para a natureza e o processo das políticas públicas.

No campo dos direitos humanos, o Brasil apresenta um leque de leis e po-líticas públicas centradas na proteção, promoção e defesa desses direitos. Porém convivemos com índices consideráveis de violação e múltiplas for-mas de violência e negação desses direitos. Segundo o Relatório da Anistia Internacional de 2013, no Brasil

a incidência de crimes violentos permaneceu alta. Muitas vezes, a res-posta das autoridades envolveu força excessiva e torturas. Jovens ne-gros ainda constituíam uma parte desproporcional das vítimas de homi-cídio. Houve denúncias de torturas e maus-tratos no sistema carcerário, que se caracterizou por condições cruéis, desumanas e degradantes. Trabalhadores rurais, povos indígenas e comunidades quilombolas (descendentes de escravos fugitivos) sofreram intimidações e ataques. Remoções forçadas em áreas rurais e urbanas continuaram sendo moti-vo de grave preocupação. (ANISTIA INTERNACIONAL, 2013, p. 51).

A política pública de direitos humanos no Brasil teve início com o Progra-ma Nacional de Direitos Humanos I (1996), cujo conteúdo estava referido aos direitos civis e políticos e incorporou as demandas de diferentes grupos sociais vulneráveis.¹ A partir de pressões da sociedade civil efetivadas na II Conferência Nacional de Direitos Humanos (1997) acerca da inclusão dos direitos econômicos e sociais e culturais foram realizados seminários regionais coordenados pelo NEV – Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP). A partir dessa iniciativa, foi elaborado o PNDH II, lançado em 2002, contendo direitos civis e políticos, e definindo multas a serem aplicadas em caso de violações de direitos de grupos em situação de vulnerabilidade social.

1. Mulheres afrodescendentes, crianças e adolescentes, população LGBTT, população em condições de vulnerabilidade entre outros.

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Ainda no ano de 1996 foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Edu-cação Nacional, tendo como uma de suas referências a relação entre edu-cação e cidadania no processo de aprendizagem do sistema educacional brasileiro, apontando para um horizonte de formação de cidadãos a partir das instituições de ensino em suas diferentes instâncias.

Pela sua história e origem a política de Educação em Direitos Humanos tem um caráter participativo impulsionado pela pressão social de movi-mentos sociais, pelos acordos entre os organismos multilaterais e marcos constitucionais e pelos compromissos assumidos em acordos internacio-nais. No contexto brasileiro, essa política é tardia, pois só ganhou impulso a partir da redemocratização. Na consolidação do processo democrático surgem novos atores e um novo processo participativo se instaura; esses ga-nham força a partir da criação da Secretaria Especial de Direitos Humanos, atual Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), em 2003 (COSTA, 2014).

Nesse ano foi lançada a primeira versão do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), o qual foi debatido em seminários com participação de representantes dos órgãos públicos e da sociedade civil or-ganizada dos 26 estados e do DF, entre 2004 e 2005, alcançando um total de mais de 5.000 participantes. Em 2006 o PNEDH foi lançado em ver-são definitiva contendo uma definição de Educação em Direitos Humanos como processo sistemático que orienta a formação dos sujeitos de direitos, articulado em diversas dimensões. Sua inserção no sistema educacional parte da ideia que a EDH deve ser transversalizada em todas as esferas institucionais, tendo em vista contribuir para a construção de uma cultura em direitos humanos capaz de formar sujeitos para intervir na realidade, modificá-la e de permitir serem modificados social e culturalmente.

Com o objetivo de assegurar a implementação da Educação em Direitos Humanos (EDH) em todo o sistema educacional, o Conselho Nacional de Educação, por meio do parecer 08/2012, aprovado em 6 de março de 2012, e homologado pelo Ministro da Educação, instituiu as Diretrizes Nacionais da Educação em Direitos Humanos (DNEDH). Foi adotada a concepção de EDH definida no PNEDH e assumida integralmente no texto das DNE-DH. A implementação dessas diretrizes poderão influenciar na construção e na consolidação da democracia e garantir o empoderamento de comuni-

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dades e grupos tradicionalmente excluídos dos seus direitos. Eis uma in-vestigação em aberto!

Um ponto central das DNEDH é a proposta de implementação da EDH na educação básica e superior de forma transversal ao currículo, como disci-plina ou combinação de ambas. As Diretrizes Nacionais da Educação em Direitos Humanos é um instrumento de construção e implementação de uma nova concepção de educação voltada para a inclusão, a afirmação da igualdade de direitos e a construção da cidadania.

Além dessas conquistas movidas pelos movimentos sociais, a ação de seto-res específicos da sociedade civil pressionou a inclusão na agenda pública do tema da Educação em Direitos Humanos, contando com a receptivida-de governamental neste campo de disputa de interesses da sociedade, a po-lítica de EDH ganhou visibilidade e efetividade por intermédio do PNEDH (Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos).

Ainda com referência à elaboração de orientações e diretrizes para a EDH, vale destacar que a SECADI/MEC, com apoio da SDH e do Comitê Na-cional de Educação em Direitos Humanos – CNEDH, apoiou a elaboração de orientações e subsídios para os cursos de Ciências Sociais, Filosofia e Pedagogia, em parceria com a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), com a publicação de três livros, em 2010. Outra ação estratégica do CNE-DH foi a articulação com a SESU/MEC, a CAPES e o CNPq para fomento e incorporação da área de Educação em Direitos Humanos em estudos e pesquisas, no âmbito da graduação e da pós-graduação. Nesse sentido, as articulações tiveram êxito e foram aprovados em 2011 cursos em nível de mestrado acadêmico em três universidades federais (UnB, UFG e UFPB), ampliados para quatro em 2012 (UFPE).

A compreensão da educação como um direito humano e social, consa-grado pela Constituição de 1988 em seu art. 6º, ainda tem obstáculos a vencer. O processo social de aprendizagem se realiza no plano institucio-nal na perspectiva da educação como um bem público da sociedade, na medida em que possibilita o acesso aos demais direitos. Especificamente no que se refere a educação, duas leis se destacam: 1) Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (lei 9.394/1996), que organiza os as-pectos gerais do ensino no Brasil, e; 2) Plano Nacional de Educação (PL

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8035/2010), aprovado em 03 de junho de 2014 pelo Congresso Nacional e sancionado sem vetos pela presidenta Dilma, após mais de três anos de tra-mitação e discussão no Congresso Nacional. O PNE estabelece diretrizes e metas a serem alcançadas no prazo de dez anos e prevê investimento de 10% (dez por cento) do PIB (Produto Interno Bruto) na educação. Há também previsão de utilização de royalties do petróleo para a garantia da execução do Plano Nacional de Educação. A lei aprovada pelo Congresso Nacional prevê a destinação de 75% dos recursos obtidos por meio da extração do petróleo e 50% do excedente em óleo para a educação e 25% para a saúde.

A Década Internacional da Educação em Direitos Humanos (1994-2005), declarada pela ONU, convocou os países membros das Nações Unidas a organizarem processos educacionais que promovessem a compreensão dos direitos fundamentais centrados no desenvolvimento sustentável em nível local, regional, nacional e internacional. Essa década constituiu sem dúvi-das, um desafio aos Estados-membros da ONU, uma vez que todos foram convocados a assumir um papel na organização de programas formais e não formais de educação em matéria de direitos humanos, e de incentivar à participação de todos os níveis da sociedade.

É importante lembrar que durante a Década para Educação em Direitos Hu-manos as ações previstas na agenda da UNESCO para o período não haviam sido executadas no âmbito do governo federal. Dentre elas, destacava-se a criação de um Comitê Nacional composto pela sociedade civil e o Estado, que seria o polo de discussões das políticas de Educação em Direitos Hu-manos e do acompanhamento de sua implementação. A ausência de ações governamentais nesta esfera revela o entendimento e/ou a percepção que os governos federais tinham acerca da Educação em Direitos Humanos.

Aproveitando as bases estabelecidas durante a Década das Nações Unidas para a Educação em Direitos Humanos, o Programa Mundial para Educa-ção em Direitos Humanos (2005) estruturado em duas fases, foi pensado para impulsionar o desenvolvimento de estratégias e de programas sus-tentáveis na área de Educação em Direitos Humanos. Esse programa está voltado para promover consenso por meio de instrumentos internacionais, princípios e metodologias; apoiar a inclusão da EDH em planos nacionais, regionais e estaduais; além de incentivar práticas satisfatórias e novas prá-ticas, tendo em vista construir uma cultura de direitos humanos.

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Essa iniciativa da UNESCO evidencia a existência de uma orientação quanto à necessidade global em promover a Educação em Direitos Huma-nos, abordando não somente as políticas, os processos e os instrumentos educativos, mas também o contexto e o ambiente em que essa educação é proporcionada.

Dessa forma, o lançamento da edição brasileira do Programa Mundial para Educação em Direitos Humanos (PMEDH), em 2012, representa mais uma importante conquista para milhares de educadores e militantes dos direitos humanos no país.

Essa nova iniciativa reflete o reconhecimento cada vez maior, por parte da comunidade internacional e do Brasil, de que a Educação em Direitos Humanos tende a produzir resultados de grande alcance. Ao promover o respeito à dignidade humana e a igualdade, bem como a participação na tomada democrática de decisões, a Educação em Direitos Humanos con-tribui para a prevenção, em longo prazo, de abusos e de conflitos violentos (UNESCO, 2012).

Neste contexto, a Educação em Direitos Humanos emerge como uma políti-ca pública capaz de redirecionar os compromissos nacionais com a formação de professores e estudantes e também influenciar na construção e consoli-dação da democracia, por meio do processo de conscientização de pessoas, grupos ou comunidades tradicionalmente excluídos dos seus direitos.

Uma das características da Educação em Direitos Humanos é sua orientação para a transformação social e a formação de sujeitos de direitos e, nesse sen-tido pode ser considerada na perspectiva de uma educação libertadora do educador Paulo Freire (1968), voltada para o empoderamento dos sujeitos e grupos sociais desfavorecidos, promovendo uma cidadania ativa capaz de re-conhecer e reivindicar direitos e contribuir para a construção da democracia (CANDAU et al., 2013).

Nesse cenário a Educação em Direitos Humanos possibilita um processo de humanização pessoal e das relações com os outros e consigo mesmo, num movimento de dentro para fora e vice-versa. Nesse processo a EDH, vem sendo compreendida em suas inúmeras funções, como mediadora e emanci-patória, fundamentalmente necessária para o acesso ao legado histórico dos direitos humanos e do próprio direito à educação.

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3. Análise da categoria violência: uma contribuição da Educação em Direitos Humanos para a formação de professores

A violência escolar é um tema vinculado a Educação em Direitos Huma-nos. A escola convive com situações dramáticas que merecem análise e in-tervenção social: alunos agredidos, livros roubados, desrespeito às normas instituídas, agressões físicas e verbais, assassinatos etc. A separatividade da violência escolar do contexto geral da violência generalizada não contribui para a efetividade de intervenções nesse campo. É preciso enfatizar que a escola constitui um locus de ação da violência generalizada na sociedade. A banalização e naturalização da violência no cotidiano constituem o que se denomina de “cultura da violência” e se estabelece como a forma radical de violação dos direitos humanos (PEREIRA e SILVA, 2010).

Ainda persiste a justificativa atribuída às condições de vida da maioria da população, ou seja, decorrente das desigualdades econômicas, da exclusão social, da criminalidade, da crise do Estado e das políticas públicas. Contu-do, ela perpassa a todos os segmentos sociais e tem diferentes causas: cultura moderna, violências na mídia, facilidade de acesso às armas de fogo, discri-minações, miserabilidade etc. (PEREIRA e SILVA, 2010).

As análises desenvolvidas pelos diversos teóricos da categoria violência permitem concluir que houve um deslocamento em sua manifestação. A violência contemporânea se distingue de suas formas tradicionais e revela uma aproximação com as novas configurações do social. Conforme sinaliza Wieviorka “não é mais a luta contra a exploração, a sublevação contra um adversário que mantém com os atores uma relação de dominação, e sim a não relação social, a ausência de relação conflitual e a exclusão social, que alimentam hoje em toda parte do mundo uma violência social mais difusa, fruto das raivas e das frustrações” (WIEVIORKA,1997, p.07).

Nessa linha de raciocínio, a violência não surge diretamente da mo-bilidade social descendente ou da crise, sobretudo, de sentimentos fortes de injustiça, de não reconhecimento, de discriminação cultural e racial. Nesse caso, o desemprego e a pobreza não se traduzem imediatamente ou direta-mente em violências sociais, mas antes alimentam frustrações.

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As ciências sociais também sofreram significativa mutação em sua aborda-gem teórica da violência. Tradicionalmente seus dois eixos teóricos consis-tiam em conflito e anomia. A violência, em seu caráter instrumental, foi vista como a virtualidade dos conflitos contemporâneos, ela era concebida como um elemento fundamental no funcionamento e transformação dos sistemas societais, conforme visão de Georg Simmel.

assim como o universo precisa de “amor e ódio”, isto é, de forças de atração e de forças de repulsão, para que tenha uma forma qualquer, assim também a sociedade, para alcançar uma determinada configura-ção, precisa de quantidades proporcionais de harmonia e desarmonia, de associação e competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis(...) Sociedades definidas, verdadeiras, não resultam apenas das forças so-ciais positivas e apenas na medida em que aqueles fatores negativos não atrapalhem (...) A sociedade, tal como a conhecemos, é o resultado de ambas as categorias de interação, que se manifestam desse modo como inteiramente positivas (Simmel apud MORAIS FILHO, 1983, p.36 ).

Do lado daqueles que a abordavam sob a perspectiva da anomia, a violência somente poderia ser concebida como produto disfuncional, como um de-sencaixe entre atores e instituições ou em virtude de déficits na comunicação entre atores.

Recentemente, estes eixos foram abandonados e substituídos por imagens e considerações sociológicas, associadas ao caos, à fragmentação e à de-composição. A violência é fim em si mesma, lúdica, destruidora e auto-destruidora, e não pode ser reduzida à desregulamentação dos sistemas sociais. Ela, enfim, adquiriu o estatuto de uma categoria explicativa do mundo contemporâneo que atravessa e articula as relações sociais, desde o âmbito das relações internacionais até o âmbito privado das relações do-mésticas (RÊSES e GUIMARÃES, 2010).

Se cada período histórico instaura seus modos específicos de sociabilidade, seu leque de formas de ação e de relação entre os homens e destes com a natureza, podemos verificar que assistimos a uma profunda mudança nas formas de manifestação, de representação social e de abordagem intelectual da violência. Wieviorka (1997) afirma que “mudanças tão profundas estão em jogo que é legítimo acentuar as inflexões e rupturas da violência, mais do que as continuidades” (WIEVIORKA, 1997, p. 05).

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Na análise deste autor, a violência transforma-se em objeto de percepções e representações, que funciona por excesso ou por carência. A alteridade, a di-ferença cultural, religiosa ou de outro tipo, são objeto de fantasmas e medos. Os atores são suscetíveis de serem diabolizados, é imputada uma “violência virtual”, que seria quase natural, essencial, mas na verdade eles mantêm gran-de distância, se é que de fato existe. São os imigrantes, quando tratado como “raças perigosas” ou o caso do Islamismo associado a violências extremas.

Vicenç Fisas (1988) associou esta representação à mitologia belicista, enfa-tizando que ela só sobrevive graças a um mecanismo patológico chamado “superpercepção das ameaças”. Segundo este autor, determinadas pessoas ou grupos de interesses atuam, não em função da realidade, mas sim, em fun-ção de distorcidas percepções da realidade ou, inclusive, pela crença de ver no exterior aquilo que, de fato, mais não é senão a projeção, para fora de si mesmo. Ele referiu-se a este problema assinalando a dificuldade que o “pen-samento paranoide” tem para diferenciar “possibilidade” de “probabilidade”. O exemplo mais evidente na contemporaneidade foram os acontecimentos do dia 11 de setembro de 2001 que, ao completar 10 anos, reafirmaram a tendência da superpercepção das ameaças e o vínculo com a probabilidade.

Fisas (1988) referiu-se também à excessiva capacidade humana para a de-voção fanática ao assinalar que os contínuos desastres da história humana devem-se, antes de tudo, a facilidade de propensão excessiva a identificar-se com uma tribo, nação, igreja ou causa, e abraçar seu credo sem a menor crítica e entusiasmo cego. Ele faz relação desta idolatria com a linguagem, enquanto instrumento de agitação das paixões populares e de erguimento das barreiras étnicas: “a linguagem é a arma mais mortífera de que o homem dispõe. O ser humano mostra-se tão acessível ao hipnotismo das palavras de ordem quanto ao contágio das doenças infecciosas. Quando uma pessoa se identifica com um grupo, seu raciocínio enfraquece, ao passo que suas pai-xões se avivam” (FISAS, 1988, p. 47). Um exemplo explícito dessa análise é o histórico conflito entre israelitas e palestinos, que envolvidos em fanatismos religiosos e conduzidos por líderes ou grupos, disputam espaço e poder atra-vés da violência física.

A violência é negada ou banalizada quando se inscreve no prolongamento de problemas sociais clássicos ou quando não questiona as modalidades mais fundamentais da dominação. Os EUA dificilmente reconhecem sua violência

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interna contemporânea, do mesmo modo que a França não aceita a ideia de uma ligação entre o sentimento de insegurança e a violência objetivamente crescente da criminalidade, da delinquência e das pequenas incivilidades.

As percepções e representações da violência podem mudar consideravel-mente, como se vê, por exemplo, em países onde ela é tolerada ou suportada, percebida quase como inscrita no funcionamento normal da sociedade.

Ainda segundo Wieviorka (1997), outros fatores produzem elementos novos e novas significações para a violência. A chamada “globalização da econo-mia”, que não é um fenômeno novo, pois poderíamos encontrar em numero-sos autores do século XIX, como, por exemplo, Karl Marx, que em suas aná-lises remetia a ideia de uma mundialização da economia. Podemos afirmar que a noção de globalização significa que as economias nacionais são cada vez mais interdependentes, que o crescimento de suas trocas é superior ao de sua produção e ameaçam o trabalho, que os investimentos e os fluxos finan-ceiros se mundializam sob o efeito conjugado da liberalização dos mercados e dos avanços tecnológicos. O autor assegura que a violência se alimenta das desigualdades e da exclusão que se reforçam com o mercado generalizado, a livre iniciativa e o livre comércio. Além disso, a violência pode se inscrever no prolongamento da fragmentação cultural que a mundialização da econo-mia encoraja. Ela não contribui somente para homogeneizar o planeta, mas também estimula processos reativos de retraimento identitário, do comuni-tarismo, do nacionalismo retraído voltado para a defesa da nação, contra a cultura cosmopolita ou transnacional.

Assim, não é difícil de compreender como a violência vem traduzir em atos a vontade defensiva, e mesmo contraofensiva, de grupos desejosos de afirmar sua identidade cultural. Nesse sentido, pode-se considerar que a mundializa-ção da economia e suas ligações diretas com a fragmentação cultural e social, contribui para a “mundialização da violência”.

O Estado está no centro da análise da violência e a sociologia clássica associa correntemente os dois temas. Max Weber, por exemplo, escreveu em 1919, que o Estado

só pode ser definido sociologicamente por meio específico que lhe é próprio, a saber, a violência física (...) Em nossos dias as relação entre Estado e violência é particularmente íntima (...) É preciso conceber o Es-

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tado contemporâneo como uma comunidade humana que, nos limites de um território determinado, reivindica com sucesso para seu próprio benefício o monopólio da violência física legítima. O que é com efeito próprio de nossa época é que ela só concede a todos os outros grupos, ou aos indivíduos, o direito de apelar para a violência à medida que o Estado o tolera: este passa a ser, então a única fonte do ‘direito’ à vio-lência (WEBER, 1963, p. 38).

É cada vez mais difícil para os Estados assumirem suas funções clássicas. O monopólio legítimo da violência física parece atomizada e, na prática, a célebre fórmula weberiana parece cada vez menos adaptada às realidades contemporâneas.

Cada vez menos o Estado parece controlar a economia, ela se privatiza, a violência se privatiza. Nesse sentido, segundo Paulo Sérgio Pinheiro (1997), o Estado pode praticar ou encobrir uma violência ilegítima, contrária ao seu discurso oficial, como acontece em países democráticos onde existe a tortu-ra, os abusos policiais ou militares de todo gênero, ou ainda a delegação do uso da força a atores privados que a exercem em proveito de seus próprios interesses. A fragmentação cultural também contribui para essa tendência geral. Ela torna mais delicada a fórmula Estado-nação. A nação não pode como antes reclamar para si o monopólio ou o primado absoluto da iden-tidade cultural das pessoas reunidas no seio da “Comunidade Imaginária”, segundo expressão do cientista político estadunidense, Benedict Anderson. Portanto, a concepção contemporânea da violência é perseguida pela ideia de um declínio-superação do Estado. Este é cada vez menos descrito como causa, fonte ou justificativas da violência, que surge e se desenvolve em meio às suas carências. Ele é novamente, como na tradição da filosofia política a partir de Hobbes, a fórmula política que deveria poder inibir a violência físi-ca fora de seu campo de ação e de controle.

Nos anos 1950 e 1960, o pensamento evolucionista, sob a liderança norte-americana, acreditou que o desenvolvimento e a democratização associa-dos seriam responsáveis pela regressão da violência. Há muitos modelos de desenvolvimento e sabemos que os progressos econômicos e políticos não significam necessariamente a regressão da violência, que as sociedades avan-çadas combinam muito bem dificuldades sociais e pós-industrialização. Não cabe deduzir a ideia de uma violência social e política diretamente ligada

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ao esgotamento das relações sociais próprias à indústria clássica. Se há cer-tamente uma ligação entre a violência e essas mudanças sociais, tal ligação não é automática e imediata, a violência deve ser concebida a partir de me-diações. Ela não surge diretamente da mobilidade social descendente ou da crise. Corresponde mais a sentimentos fortes de injustiça e de não reconheci-mento, de discriminação cultural e racial. Portanto, há ligações a referências nacionalistas, mais do que propriamente sociais.

O individualismo no mundo contemporâneo apresenta duas faces comple-mentares e opostas: o indivíduo moderno quer participar da modernidade, consumindo e o indivíduo quer ser reconhecido como sujeito, construir sua própria existência, quer produzir-se, e não somente reproduzir-se. Durkheim a elas já se referia quando distingue o indivíduo, ligado ao modo profano, e a pessoa, que a seus olhos se referia ao sagrado.

Cada uma dessas referências mantém, hoje, uma relação muito forte com a violência, mesmo sendo coletiva. O ator de violências instrumentais engaja-se com finalidades econômicas, ele quer dinheiro para consumir e comprar. É um apelo à subjetividade impossível ou infeliz, expressão de recusa pela pessoa em dar prosseguimento a uma existência em que ela se sente ne-gada. O racismo, em particular e em expansão em inúmeras sociedades, é uma experiência amplamente vivida pelos que dele são vítimas como uma profunda negação de sua individualidade, o que pode transformar-se em raiva e daí em violência. Isso não é novo, mas os progressos da mundiali-zação dão maior intensidade a tudo que remete ao individualismo, bem como às fragilidades pessoais.

A reflexão sobre a violência tem que levar em consideração sistemas cla-ramente delimitados – internacional, estatal etc. –, e também pensar a complementaridade entre eles, sua articulação, ou ao contrário sua dis-sociação.

A compreensão em torno da dimensão macrossocial da violência e a atuação para o combate de suas variações no ambiente escolar constitui um desafio para a formação de professores. Paulo Freire na obra Pedagogia da Indigna-ção (FREIRE, 2000) convoca a todos (as) a ampliar as trincheiras contra a resignação, a acomodação e a aceitação frente às situações de violência, como expressão de violação dos direitos humanos.

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Considerações finais

Os direitos humanos avançaram, sobretudo no aspecto normativo, e isso se faz presente de forma evidente na área da Educação em Direitos Humanos, cujos passos dados são significativos. No entanto, é perceptível a distância entre o âmbito jurídico e a efetivação dos direitos humanos e da Educação em Direitos Humanos, o que se constitui em desafio fundamental para o desenvolvimento e a inserção da educação em/para direitos humanos nas políticas educacionais brasileiras.

A escola se situa na articulação entre o macro e o microssocial. Ela não é apenas o local onde se produz e reproduz o conhecimento. Ela é um espa-ço social privilegiado onde se definem a ação institucional pedagógica e a prática e vivência dos direitos humanos. Nas sociedades contemporâneas, a escola é local de estruturação de concepções de mundo e de consciência social, de circulação e de consolidação de valores, de promoção da diversi-dade cultural, de constituição de sujeitos sociais e de desenvolvimento de prática pedagógicas (BRASIL, 2009b).

Para que os direitos humanos ocupem lugar central no Ensino e na Educação é preciso instituí-los como eixo e não como tema. Eixo é estruturante e tema é conjuntural, ou seja, como eixo há possibilidade de desenvolvê-lo com maior abrangência nas áreas do conhecimento e de forma mais duradoura.

Como tema ele aparece como conteúdo em algumas disciplinas e áreas curriculares, como atividades esporádicas sem articulação entre elas, com realização de campanhas sobre temas específicos e com mera aquisição de algumas noções da Declaração Universal dos Direitos Humanos e outros documentos correlatos.

Então, um desafio é como a abordar os direitos humanos nas disciplinas es-colares e/ou acadêmicas. Um equívoco é considerá-los como tema somente apropriado para as Ciências Humanas, parte diversificada do currículo ou para a Sociologia e a Filosofia. Convém questionar se os aspectos humanos, sociais e culturais devem ser preocupações somente da área de Ciências Humanas.

Cabe ressaltar que as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos estabelece em seu artigo 9º que a Educação em Direitos Huma-

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nos deverá estar presente na formação inicial e continuada de todos(as) os(as) profissionais das diferentes áreas do conhecimento (BRASIL, 2012b). É neste sentido, que uma abordagem efetiva de temas como a violência e sua interlocução com a comunidade no entorno da escola contribui para a disseminação da Educação em e para os Direitos Humanos.

A consecução da Educação em Direitos Humanos na escola só será possí-vel mediante esforço entre sistemas de ensino, gestores, professores, alunos e comunidade, em torno de uma ação integradora que vise efetivar/conso-lidar mecanismos de promoção e proteção dos direitos humanos.

Campos tradicionais do conhecimento na área de Direito, Sociologia, Fi-losofia e História podem contribuir com todo o seu legado teórico-con-ceitual para a construção e avanço da Educação em Direitos Humanos no âmbito dos sistemas de educação. Violência foi somente um exemplo dessa articulação possível, tantos outros temas poderiam ser lembrados.

Para a consecução destas ações, que contemplam o público do processo de aprendizagem, será necessária a comunicação entre as políticas públicas voltadas para tal fim, de modo a fortalecer as redes públicas estaduais e municipais para a constituição do Sistema Nacional de Educação e com foco na intersetorialidade.

A EDH precisa ser consolidada com uma ampla cooperação e variedade de sujeitos e instituições com proposição de sustentá-la em ações pragmáticas. Reconhecida como um dos eixos fundamentais do direito à educação exige uma concepção já refletida na própria noção de educação normatizada na Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96).

A perspectiva da EDH sofre ainda muitas resistências no campo educativo e torna-se um desafio, enquanto atividade crítica e política. Ela implica ain-da em uma nova proposta curricular na Educação Básica e Superior. É evi-dente que a EDH no Brasil avançou progressivamente nos últimos doze anos, evidenciando a importância de ações que tinham como eixo a disseminação do PNEDH, a articulação da sociedade civil com setores públicos, órgãos nacionais e organismos internacionais, a produção de materiais instrucionais sobre a Educação em Direitos Humanos, a formação de profissionais na área e a parceria na elaboração de estudos sobre políticas públicas educacionais e

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documentos orientadores da organização do sistema educacional brasileiro nesta temática (COSTA, 2014).

É possível afirmar que houve mudança de sensibilidade social, cultural e po-lítico em torno da articulação entre igualdade e diferença por parte da gestão governamental. Um grande desafio atual é como articular as questões rela-cionadas aos direitos humanos, atendendo às demandas sociais por meio das políticas públicas.

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