Uma aproximação à Sociologia

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A. Sedas Nunes Uma aproximação à Sociologia Desacreditada por uns, receada por outros, e no entanto cada vez mais procurada, a So- ciologia permanece muito mal conhecida. O seu próprio nome ê equívoco. Aqui se desta- cam alguns aspectos mais salientes da sua evolução. Aqui se tenta dizer, em primeira aproximação, como encara a sociedade e o que nela investiga. Aqui se lhe apontam cer- tos riscos maiores: o da redução à prática e o da absorção na ideologia ou na profecia. SOCIOLOGIA CLÁSSICA E SOCIOLOGIA MODERNA 1. Equívocos e preconceitos 0 termo sociologia foi criado por Auguste COMTE, para «designar com um único nome a parte complementar da filosofia natural que se refere ao estudo positivo do conjunto das leis fundamentais, próprias dos fenómenos sociais» 1 . Como a «filoso- fia natural» se identificava, no pensamento comtiano, com o con- junto e sistema das ciências, claro é que a sua intenção, ao criar e propor o novo termo, era consagrar, nomeando-o, num novo ramo científico, uma nova ciência. Apesar de forjada para este fim declarado e aparentemente unívoco, a palavra sociologia tornou-se equívoca 2 . De facto, num largo público, não uma, mas várias «imagens» da Sociologia se formaram e difundiram: — a de uma Sociologia, estudo técnico e empírico dos «problemas sociais» 8 , orientada pela preocupação 1 Auguste COMTE, Cours de Philosophie Positive, ed. Schleicher, Paris, 1908, tomo IV, p. 132. 2 Em rigor, já era equívoca em A. COMTE, como adiante se verá. 3 No sentido vulgar da expressão: problemas de saúde, habitação, delin- quência, etc.

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A.SedasNunes Uma aproximação

à Sociologia

Desacreditada por uns, receada por outros,e no entanto cada vez mais procurada, a So-ciologia permanece muito mal conhecida. Oseu próprio nome ê equívoco. Aqui se desta-cam alguns aspectos mais salientes da suaevolução. Aqui se tenta dizer, em primeiraaproximação, como encara a sociedade e oque nela investiga. Aqui se lhe apontam cer-tos riscos maiores: o da redução à práticae o da absorção na ideologia ou na profecia.

SOCIOLOGIA CLÁSSICA E SOCIOLOGIA MODERNA

1. Equívocos e preconceitos

0 termo sociologia foi criado por Auguste COMTE, para«designar com um único nome a parte complementar da filosofianatural que se refere ao estudo positivo do conjunto das leisfundamentais, próprias dos fenómenos sociais» 1. Como a «filoso-fia natural» se identificava, no pensamento comtiano, com o con-junto e sistema das ciências, claro é que a sua intenção, ao criar epropor o novo termo, era consagrar, nomeando-o, num novo ramocientífico, uma nova ciência.

Apesar de forjada para este fim declarado e aparentementeunívoco, a palavra sociologia tornou-se equívoca2. De facto, numlargo público, não uma, mas várias «imagens» da Sociologia seformaram e difundiram: — a de uma Sociologia, estudo técnico eempírico dos «problemas sociais»8, orientada pela preocupação

1 Auguste COMTE, Cours de Philosophie Positive, ed. Schleicher, Paris,1908, tomo IV, p. 132.

2 Em rigor, já era equívoca em A. COMTE, como adiante se verá.3 No sentido vulgar da expressão: problemas de saúde, habitação, delin-

quência, etc.

prática de os equacionar e de propor esquemas de acção, aptospara os resolver; — a de uma Sociologia, reflexão e elaboraçãodoutrinal (ou, se quisermos: doutrina social), inspirada emprincípios e valores assumidos, dividida em correntes antagó-nicas4 e formulada em termos de normas ou opções atinentes àorganização e condução das sociedades — ; e a ãe uma Sociologia,teoria e pesquisa científica sobre fenómenos sociais, ou apenastentativa, mais ou menos válida, realizada e aceite, de o ser.

Assim, sob título de Sociologia, ou por Sociologia tomados,se foram escrevendo, publicando e conhecendo, por muito tempo,textos inúmeros que era inadequado atribuir a um mesmo sectorde pensamento. Donde resultou, naturalmente, uma «imagem»muito confusa (incoerente e mista) da Sociologia, seus métodos,sua intenção.

Há, porém, a Sociologia dos sociólogos, a Sociologia tal comoos sociólogos a vêem e pretendem. Essa não é, nem estudo técnicode problemas sociais, nem pensamento normativo e optativosobre a organização e condução das sociedades. Na ideia e no pro-jecto dos que se lhe dedicam, é e deve ser fruto de investigaçãocientífica, conduzida para fins científicos — Ciência portanto, umadas Ciências Sociais. Reservar-lhe-emos aqui, como parece devido,a designação de sociologia, distinguindo-a, pois, tanto dos estudossociais, como das doutrinas sociais. Uma análise da problemáticada habitação em Portugal, ou da situaç&o sanitária no País e dosmeios mais aptos para enfrentar aquela ou melhorar esta—são«estudos sociais», em que sociólogos (como também economistas,demógrafos, médicos, psicólogos, juristas) podem participar comoperitos em certo tipo de análise, mas não são Sociologia. O libe-ralismo, o socialismo, o marxismo, o catolicismo social — são «dou-trinas sociais», para cuja elaboração podem carrear materiais ana-líticos e previsionais os sociólogos (e, a par deles, os economistase outros), mas também não são Sociologia. Destrincemos, pois,bem os estudos sociológicos dos estudos sociais e dos estudos dou-trinais.

Ora, a Sociologia — esta (Sociologia dos sociólogos — foi seria-mente embaraçada no seu desenvolvimento por certos «precon-ceitos», ainda hoje subsistentes em amplos meios intelectuais enoutros círculos da sociedade. Alternativa ou cumulativamente sedisse: — que é puro endclopedismo social, ou seja: ambiciosa visãogenérica ou erudita da vida social, traduzida num amontoadoinconsistente de observações dispersas e divagações gratuitas oubanais, onde faltam a segurança metodológica, a disciplina teórica,o rigor objectivo da pesquisa, a utilidade para o entendimento e

4 Marxismo, liberalismo, catolicismo social, etc

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esclarecimento de situações «práticas» e reais;—que é simplesmáscara de escondidos intuitos ideológicos, um «socialismo disfar-çado», uma doutrina sub-repticiamente demolidora de crença® evalores tradicionais, nomeadamente de crenças e valores políticose religiosos;'—enfim, que é ciência de lápis e papel5, toda feitade sedentária imaginação e reflexão de gabinete.

De facto, não são apenas estas as acusações que se fizeram,e se fazem ainda, à Sociologia. Há,, por exemplo, também as de«descritivismo», d© «quantofrenia», de «profetismo» e outras. Masficar-nos-emos por ora naquelas três, porque são porventura asque mais directa e globalmente põem em causa a validade do em-preendimento sociológico, tal como o querem os sociólogos.

Certamente, o próprio facto de a Sociologia ser ainda umaciência em período de formação (como escreveu RADCLIFFE-BROWN, «a ciência da sociedade humana está ainda na sua primeirainfância») * só por si dá pretexto e matéria para incompreensões efavorece mesmo a eventual emergência nela de sintomas de imatu-ridade, obviamente inevitáveis, mas de que os críticos hostis seaproveitam para os exagerar. Aliás, cria-se deste modo um círculovicioso. Por haver preconceitos contra a Sociologia, esta vê as suaspossibilidades de desenvolvimento cerceadas; mas quanto mais talcerceamento se exerce, mais a Sociologia, mantida em estado desubdesenvolvimento, dá razão e flanco ao preconceito e à opiniãoadversa.

Todavia, num certo número de países, a Sociologia pôde desen-volver-se suficientemente para que os preconceitos de que é alvose revelassem carecentes de fundamento objectivo. Assim, por exem-plo, em 1962, a O.C.D.E.—'organismo cujo desinteresse por divaga-ções enciclopédicas é evidente — publicou um volumoso repertóriode investigações e institutos de Sociologia e Psicologia aplicadas aproblemas do trabalho 7. Aí se encontram referenciadas mais de milinvestigações em curso ou concluídas depois de 1955, em nove paíseseuropeus8. E aí também se pode ver que quem sustenta material-mente, quem paga todo esse esforço de investigação, na grandemaioria dos casos, são governos, administrações públicas, empresas

5 Canta Florestan FERNANDES: «há alguns anos, em conversa com emi-nente professor de química da Universidade de São Paulo, ouvi dele a opiniãode que os cientistas sociais são mais felizes que os cientistas de laboratórios.Vocês dependem apenas do lápis e do papeh. Vd. A Sociologia numa Era deRevolução Social Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1963, p. 24.

6 Citado por T. B. BOTTOMORE, Sociology, A Guide to Problems andLiterature, Prentice-Hall, Englewood Cliffs, N. J., 1963, p. 13.

7 O.C.D.E., Répertoire des Recher^hes et des Instituts dans les SciencesHumaines appliquêes aux problèmes du Travail, 1962, 8.12 p.

8 Alemanha, Bélgica, Dinamarca, França, Noruega, Paises-Baixos,Keino-Unido, Suécia e Suíça.

privadas e associações, patronais. Seria isso possível, se a Sociologianão tivesse qualquer interesse «prático» ou fosse um «socialismodisfarçado»? Por outro lado, as hierarquias católicas têm criado, emnumerosoís países (por exemplo, na América Latina), serviços dedocumentação e investigação sociológica sobre problemas de pasto-ral. Seriam viáveis tais iniciativas, se a Sociologia fosse ou suben-tendesse uma doutrina demolidora das crenças e valores tradicio-nais? Enfim, quanto à acusação de se tratar de uma ciência delápis e papel, bastaria compulsar qualquer moderna revista deSociologia científica9, para poder concluir, à face do enorme volu-me de «trabalho de campo» aí patenteado, que o sociólogo está bemlonge de se limitar à imaginação de gabinete e à reflexão seden-tária. De resto, já hoje é possível fazer a certos sociólogos a crí-tica oposta: que inquirem demais e reflectem de menos...10.

Os preconceitos anti-sociológicos têm raízes no passado — nopassado da própria Sociologia. Mas têm-nas também no presente— no presente da sociedade.

2. Raízes históricas e sociais dos preconceitos anti-sociológicos

A Sociologia provém, historicamente, de três principais cor-rentes de pensamento: a Filosofia Social, o Positivismo e o Socia-lismo n .

Desde a antiguidade até ao século XVIII, a preocupação essen-cial dos pensadores que se debruçaram sobre a realidade social erade índole filosófica e humanística. Reflectindo, meditando, mais doque sistematicamente observando, ele& procuraram apreender a«essência» da sociedade, a sua significação e projecção na vidahumana, o seu lugar numa concepção do mundo unitária e onto-lógica. Ou então, tentaram definir princípios, normas e fins respei-tantes a uma /convivência social mais perfeita ou a uma ordemsocial ideal. Todavia, «em muitos desses autores — nota justamenteMaurice DUVERGER — , o sentido de observação era agudo, e grandeo esforço para o exercer. O quadro normativo e metafísico não im-

9 Como, por exemplo, a American Sociological Review, o British Journalof Sociology, a Revue Française de Sociologie, a Sociologie du Travail, osStudi di Sociologia, etc.

10 Vd. o artigo de Edgar MORIN, «Le droit à Ia réflexion», Revue fran-çaise de sociologie, VI-1, Jan.-Mar. 1965.

11 Também a prática do social survey, iniciada nos fins do século XVIII,em Inglaterra, por certos reformadores sociais (Sir John SINCLAIR, Sir F. M.ÉDEN), com o fim de efectuar levantamentos em primeira mão acerca dascondições de vida das camadas pobres da população, contribuiu para o desen-volvimento de uma atitude positiva na observação e descrição dos factossociais e abriu caminho ao inquérito sociológico.

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pedia, nem a análise precisa das realidades, nem mesmo o desen-volvimento do método comparativo: ARISTÓTELES constitui, nesteaspecto, um modelo»12. E assim foram surgindo—envoltas em filo-sofia, utopia ou moral — observações, descrições e mesmo interpre-tações argutas de factos sociais, que representam uma pré-Sociolo-gia (e aliás também uma pré-Ciência Política, uma pré-Economia)e preparam a emergência ulterior da autêntica Sociologia.

No século que decorreu, aproximadamente, entre 1750 e 1850,foi sobretudo através da Filosofia Política e da Filosofia da Histó-ria, que esta corrente de pensamento contribuiu para o advento daSociologia. Como recorda T. B. BOTTOMORE, «nos começos do séculoXIX, a Filosofia da História exerceu uma importante influênciaintelectual, através dos escritos de HEGEL e SAINT-SIMON. Destesdois pensadores brotaram as obras de MARX e CÔMTE e, com elas,algumas das correntes significativas da Sociologia moderna»1B.Compreende-se bem que, desta sua procedência especulativa, hajaa Sociologia (ainda mal diferenciada então da Filosofia e da ÉticaSocial) recebido, nos seus primórdios, uma orientação no sentidodo enciclopedismo, das grandes sínteses, das visões englobantes eproféticas. E também se compreende que a passagem da reflexãofilosofante, ou moralizante, à análise positiva e científica não podiafazer-se sem dificuldades e de súbito. Auguste COMTE é, ele mesmo,uma boa demonstração de tais dificuldades

COMTE não foi apenas sociólogo, mas também o mais destacadosistematizador da filosofia positivista na Europa continental. Umdos seus postulados fundamentais era o de que «o único conhe-cimento que pode revestir-se de validade universal é o conhecimentodas conexões causais entre os fenómenos». Decerto, em suas ante-riores fases de evolução, a fase teológica e a fase metafísica, ahumanidade tinha-se interessado por mistérios e essências; mas nasua fase actual, a fase positiva, «o espírito humano, reconhecendoa impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar aorigem e o destino do Universo e a conhecer as causas íntimas dosfenómenos, para se dedicar exclusivamente à descoberta (...) dassuas leis efectivas, isto é, das suas relações invariáveis de sucessãoe de semelhança». Ora, notava COMTE, «já, dispomos de uma Físicaceleste, de uma Física terrestre mecânica ou química, de uma Físicavegetal e de uma Física animal; mas falta-nos uma outra: a FísicaSocial, para completar o sistema do nosso conhecimento da Natu-reza». E continuava: «por Física Social, entendo a Ciência que tempor objecto o estudo dos fenómenos sociais considerados com o

12 Maurice DUVERGER, Méthodes des Sciences Sociales, P.U.F., Paris,2.a ed., 1960, p. 4.

13 T. B. BOTTOMORE, Sociology, A Guide to Problems and Literature,Prentice-Hall, Englewood Cliffs, N. J.f 1963, pp. 14-15.

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mesmo espírito que as fenómenos astronómicos, físicos, químicosou fisiológicos, ou seja: sujeitos a leis naturais invariáveis, cujadescoberta constitui o objectivo especial dessa investigação» 14.

COMTE entendia, porém, que o conhecimento das «leis natu-rais invariáveis» — segundo as quais se processam as «relações desucessão ou semelhança» entre os fenómenos sociais — serviria parafundamentar a Ética e a Política em bases racionais. Mais concre-tamente: desse conhecimento, e só dele, se deduziriam as orienta-ções e os métodos que deveriam seguir-se numa «reconstrução daordem social» segundo critérios estrictamente científicos, «positi-vos». Isto é: para COMTE, a Sociologia deveria ser simultânementepositiva e normativa. *

Supondo fundar a Sociologia, Augusto COMTE pretendia, porconseguinte e ao mesmo tempo:—'completar o sistema das Ciên-cias, ao qual faltava o ramo da Física Social (Sociologia); — liber-tar a discussão dos problemas do Homem e da Sociedade de todaa interferência de concepções filosóficas ou religiosas, supostasanacrónicas na «fase positiva» que a evolução da Humanidade atin-gira; — estabelecer as bases de uma Ética e de uma Política pura-mente racionais e científicas.

Por detrás do esforço de elaboração científica ao qual A. COMTEe a maior parte dos sociólogos franceses até aos começos do séculoXX se dedicaram, depara-sç, pois, uma intenção ideológica. Paraesses autores —<como para a generalidade dos pensadores não^cató-licos franceses do século XIX —, o problema fundamental era oda construção de uma nova «síntese de explicação universal, quepudesse ser oposta à síntese cristã e que tivesse a sua amplidão»,como diz Jacques LECLERQ15. A Sociologia deveria ser, precisa-mente, uma das peças basilares dessa nova síntese, que tornariapossível libertar a sociedade da tradição cristã e da influênciaclerial. E assim se fazia da Sociologia um sociologismo.

Por outro lado, foram socialistas alguns dos autores — entreos quais SAINT-SIMO-N, PROUDHON e MARX — que, embora não pre-tendendo fazer Sociologia, mais contribuíram para o avanço dareflexão e da observação sociológicas, nos primeiros passos des-tas ll6. Não é difícil entender porquê.

14 Citado em Salustiano dei CAMPO URBANO, La Sociologia CientificaModerna, Instituto de Estúdios Políticos, Madrid, 1962, pp. 81 e segs.

15 Jacques LECLERCQ, Introduction à Ia Sociologie, Ed. Nauwelaerts,Louvain— Paris, 1999, p. 37.

16 Todavia, contam-se igualmente ideólogos conservadores, e mesmo reac-cionários (na acepção objectiva desta expressão: atitude política voltada parao passado e para um regresso a formas sociais ultrapassadas), entre os pen-sadores que mais contribuíram, pela sua crítica ao individualismo, para odesenvolvimento de uma percepção dos «factos de grupo» e de uma reflexãosobre a sociedade, sua estrutura, sua organização. Leon BRAMSON, em The

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Efectivamente, a atitude desses autores era essencialmentecrítica em relação à ordem económica e política vigente nas socie-dades do Ocidente europeu, onde a indústria moderna e as institui-ções representativas se haviam implantado. Essa ordem achava-sejustificada pelos economistas e pensadores políticos individualistas,cujo pensamento era aí dominante. (Os argumentos utilizados em taljustificação inculcavam, em última análise, que se tratava da«mais perfeita» forma de organização económica e política que sepoderia conceber, por ser a que mais integralmente respeitava esatisfazia as aspirações do Homem, ou, por outras palavras, a quemais profundamente corrrespondia às exigências da «naturezahumana». Criticar a ordem político-económica das sociedades emque viviam implicava, por conseguinte, para os autores socialistas,a necessidade de fazer também a crítica das concepções económicase políticas dos pensadores individualistas. Foi precisamente estanecessidade que os encaminhou no sentido da reflexão e observaçãode índole sociológica.

Por detrás dos mecanismos aparentes da vida política e econó-mica, examinados pelos teóricos do Individualismo, foram essesautores investigar e pôr em relevo realidades sociais por esses teó-ricos esquecidas, desprezadas ou ocultadas — as realidades dos gru-pos, das classes, das forças, das influências, das lutas, das situa-ções soiciais, das mentalidades colectivas, etc. Procurando, assim,mostrar que o funcionamento real da vida económica e política nãocorrespondia, e contradizia msmo em aspectos básicos, os esquemasde funcionamento ideal imaginados e descritos pelos autores indi-vidualistas!, eles fizeram, de facto, verdadeira análise sociológica.De tal modo que, por exemplo,, Karl MARX, sendo o principal escri-tor socialista do séciíHo XIX, foi também um dos mais notáveis so-ciólogos desse tempo, sem que, no entanto, o tenha pretendido sere sem que a sua Sociologia forme uma disciplina autónoma dosrestantes elementos e aspectos do sistema de pensamento que noslegou17.

Vê-sç, por conseguinte, que alguns dos preconceitos que inci-dem sobre a Sociologia se relacionam com certas característicasdesta disciplina nos seus tempos primordiais. Correspondem, afinal,à persistência, nos nossos dias, de uma imagem da Sociologia que.no século XIX, era em larga medida verdadeira.

Mas há ainda a acusação de que se trata de uma «ciênda de

Political Context of Sociology. Princeton University Press, 1961, insiste par-ticularmente nesta fonte conservadora e reaccionária do pensamento socioló-gico e mostra como a sua influência se faz sentir em certas teorias socioló-gicas modernas, nomeadamente no funcionalismo,

17 Vd., por exempla, o estudo sobre a sociologia de MARX, contido em:Georges GURVITCH, La Vocation Actuelle de Ia Sociologie, P.U.F., Paris, 1963,tomo II.

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lápis e papel». Também para esta se pode encontrar uma radicaçãode ordem histórica. Na verdade, os primeiro® sociólogos enaxn, nageneralidade, pensadores de formação humanista, cujo método detrabalho consistia, essencialmente, em reflexão metódica sobre lei-turas, observações e informações «pessoais». Quando, mais tarde,foram criados os primeiros ensinos universitários de Sociologia —em 1876 nos Estados Unidos, em 1889 em França, em 1907 naGrã-Bretanha —, foi naturalmente nas Faculdades de Letras quese introduziram. Tudo isto contribuiu para que se encarasse asociologia como uma das .«humanidades», a par da Filosofia, daHistória, da Literatura, — ou seja: como uma disciplina de tipo«literário». A criação de centros ou laboratórios de investigaçãosociológica (como hoje existem) nem sequer se antevia. Ao soció-logo bastavam — pensava-se — bibliotecas especializadas em certosassuntos e, além disso, o conforto indispensável ao trabalho de me-ditar e escrever. Desta sorte, quando já os sociólogos tinham come-çado a aperceber-se de que leituras, observações, informações emeditações pessoais constituiam um material demasiado subjectivoe frágil para fundamentar uma Ciência que, como tal, deveria serobjectiva, ainda tal ideia se mantinha em plena vigência.

Privados dos meios financeiros e institucionais, cuja necessi-dade já então sentiam, os sociólogos viram-se então forçados aprosseguir o tipo de trabalho anterior ou a lançar mão (para obterum volume apreciável de informação objectiva) de arquivos histó-ricos, civis e criminais, de monografias etnológicas, de relatos e es-tudos sobre povos primitivos, etc. 18. E assim se continuou a ali-mentar a opinião de que a Sociologia era fruto de um esforço de«erudição» e meditação sobre informações «eruditas». A formaçãoe o estilo, predominantemente «literários», que continuavam acaracterizar a maioria dos sociólogos (saídos, frequentemente, dasFaculdades de Letras) vinham reforçar tal opinião,, que ainda hojeamplamente subsiste.

Mas os preconceitos não radicam apenas na história da Socio-logia, no seu passado. Constituem também uma defesa contra umtipo de investigação que suscita reacções de desconfiança e temorem certos meios. Tomemos um exemplo e um depoimento. Seja oexemplo da investigação sociológica aplicada a problemas de orga-nização industrial. E veja-se o depoimento de um sociólogo italiano,o Prof. Camillo PELLIZZI, de Florença. «Na verdade — escreve esteinvestigador —, diversas personalidades de primeiro plano na in-dústria pensam que esse tipo de investigação, não só é inútil, comopode ser mesmo prejudicial. (...) Quando a investigação tem deser efectuada por uma equipa, como geralmente sucede, essas

18 Vd. U.N.E.S.C.O., Les Sciences Sociales dans VEnseignement Supé-rieur: Sodoiogie, Psychologie Sociale et Anthropologie Culturelle, Paris, 1954.

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pessoas não confiam na sua discrição, mesmo quando o chefe daequipa lhes inspira pessoalmente confiança. Nos casos em que oestudo tem de abranger o grupo dirigente de uma indústria (o!que deveria ser de regra neste domínio), frequentemente se tornanecessário que as mais altas autoridades intervenham com firmeza,a fim de impedir esse grupo de provocar o total insucesso da inves-tigação. Às vezes,, concede-se rédea livre aos investigadores, masapenas enquanto os seus trabalhos se confinam ao pessoal e aosdocumentos dos escritórios de direcção; uma recusa terminanteaparece, desde que os investigadores pretendam contactar directa-mente com os trabalhadores, analisar grupos trabalhando nas ofici-nas, etc. A razões invocadas em apoio de tal recusa são, por via deregra, políticas. Insiste-se, por vezes, em que a maior parte dostrabalhadores responderia, às questões que lhes fossem postas, deacordo com a linha ditada pelas células comunistas; mais frequen-temente, alega-se que os questionários, e sobretudo as entrevistas,poderiam perturbar a disciplina da fábrica, mas não se acrescen-tam explicações complementares. E também já ouvi a seguinte de-claração: isso dar-lhes-ia ideias»19.

Assim se vê como a investigação sociológica pode parecerameaçadora, perigosa. Receia-se que desperte «ideias», conduza a«revelações» ou suscite atitudes que possam vir a perturbar situa-ções estabelecidas e concepções dominantes, situações e concepçõesque não se querem ver contestadas ou sequer problematizadas. Talreceio não é senão uma das formas de se manifestar, como notaFlorestan FERNANDES, uma «resistência à mudança social» 20. Eporque o receio existe, o preconceito anti^ociológico mantêm-se,uma vez que permite, desacreditando a Sociologia, anular a ameaçaque nesta se vê ou pressente21.

3* A Sociologia moderna: linhas gerais da sua evolução

Por desfasamento cultural e reacção de defesa, persiste aindahoje, portanto, em certos sectores das camadas cultas, mormenteem sociedades que não ultrapassaram as primeiras fases do seudesenvolvimento moderno, uma imagem da Sociologia que vem

19 O.E.C.E., La Recherche Sociale et FIndustrie en Europe, Problèmeset Perspectives, Paris , 1960, pp. 65-66.

20 Vd. Florestan FERNANDES, A Sociologia numa Era de Revolução So-cial, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1963.

21 Jean TRICART refere, em artigo recente, uma outra fonte de descon-fiança. «Os responsáveis administrativos e políticos do Estado, assim comoos responsáveis económicos da classe dirigente, não querem ser desapossadosdo seu poder de decisão. Ora, conhecendo mal as Ciências Humanas, receiamque o desenvolvimento destas leve a esse resultado». In «Role nouveau dessciences humaines», Prospective, n.° 12, p. 110.

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do século XIX e não corresponda já ao que ao que a Sociologiahoje é.

Na verdade, a Sociologia actual difere muito da Sociologia doséculo passado e das primeiras décadas do século presente. Eesulta,efectivamente, de uma complexa evolução, ao longo da qual, porum lado, se foi transformando na sua estrutura, nos seus métodos,nas suas relações com outras disciplinas e nas suas relações coma prática, e por outro, se foi progressivamente libertando da subor-dinação às concepções do mundo extra-científicas (Positivismo,Socialismo, etc.) a que inicialmente apareceu associada.

Antes do mais, a Sociologia deixou de ser uma disciplinaunitária, desdobrando-se, a pouco e pouco, num feixe de disciplinasconexas, onde é possível distinguir, basicamente, a Sociologia geral,as Sociologias especiais e as Sociologias globais. A Sociologia geralabrange as teorias e os métodos gerais de análise, elaboradospelas diversas escolas e correntes de pensamento sociológico, teoriase métodos que, embora frequentemente opostos entre si na origem,se foram ou vão completando uns aos outros ou integrando em con-cepções e metodologias mais amplas. Corresponde ao capítulo deteoria e metodologia geral que existe em todas as Ciências consti-tuídas e que, & cada uma delas, proporciona o sistema de concepçõesfundamentais em que logicamente repousa. Ora, «não há, de mo-mento, nenhum corpo geral de teoria sociológica que tenha sidocomprovado ou aceite de forma generalizada», observa com razãoBOTTOMORE

22 — e nisso precisamente transparece o que atrás di-zíamos : ser a Sociologia uma Ciência ainda em transe de formação.Mas, a par do movimento de construção teorética e metodológicageral, desenvolvem-se as investigações menos ambiciosas, mas fre-quentemente mais fecundas, das Sociologias especiais e globais.Por um lado, as investigações de Sociologia especial procuramacumular conhecimentos descritivos e interpretativos de elementosou aspectos particulares da realidade social •— e assim se formam,por exemplo, a Sociologia do Direito, a Sociologia da flMoral, aSociologia da Religião, a Sociologia Económica, a Sociologia da Ha-bitação, etc. Por outro, as investigações de Sociologia global em-preendem análogo esforço, não sobre certos elementos ou aspectosda realidade social, mas sobre determinados tipos de sociedadesou grupos —e deste modo aparecem a Sociologia dos pequenos gru-pos, a Sociologia das famílias, a Sociologia dos meios rurais, aSociologia das aglomerações urbanas, a Sociologia das organiza-ções (ou dos grupos organizados), etc.

Evidentemente, há uma linguagem e uma óptica comuns atodas estas Sociologias — geral, especiais e globais. Mas não pode

22 T. B. BOTTOMORE, Sociology, A Guide to Problems and Literature,Prentice-Hall, Englewood Cllffs, N. J., 1963, p. 25.

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dizer-se que o conjunto seja perfeitamente coerente — ou queseja igualmente coerente em todos os países. Se, por exemplo, osinvestigadores norte-americanos, na sua grande maioria, partici-pam de um mesmo quadro teórico e metodológico, dado pelo «fun-cionalismo» ou «estruturo-funcionalismo» (Sociologia geral), jána Europa, e nomeadamente em França e na Alemanha, se deparauma cisão entre certos grandes teóricos e os sociólogos empenha-dos em investigações de Sociologia especial ou global. Tal cisão éjustificada por estes últimos, mediante afirmação do princípio deque a Sociologia, sendo uma Ciência cumulativa e empírica, devedesenvolver-se, não pelo caminho da imediata teorização geral, da«grande teoria», mas pelo da acumulação de resultados teorica-mente válidos, obtidos em campos restritos, sobre base empírica, eprogressivamente integrados em esquemas mais amplos de inter-pretação da realidade social23.

Este modo de conceber o empreendimento sociológico impli-cava, necessariamente, que a Sociologia deixasse de ser elaborada,essencialmente, à base de «reflexão metódica» sobre leituras, obser-vações e informações pessoais ou sobre a mera consulta de arqui-vos e estudos descritivos ocasionais. De facto, a partir do momentoem que os sociólogos puderam dispor de fundos e serviços destina-dos a sustentar a sua investigação — o que sucedeu, em primeirolugar, nos Estados Unidos, depois em países industrializados euro-peus e, mais recentemente, em nações do Terceiro Mundo, nomea-damente na América Latina, e em organismos internacionais — fos seus métodos de trabalho e as bases da sua documentação einformação científica sofreram uma transformação profunda. Detal modo que, nos nossos diasi, <aomo nota Georges BALANDIER, «umaautêntica viragem está em curso: passa-se de uma fase caracteri-zada por uma reflexão metódica alimentada por factos escassos, auma fase em que predomina uma interpretação científica de factosnumerosos e em rápida acumulação» 24. Jean CUISENIER classificaessa viragem de «revolução industrial nas Ciências Sociais» e dis-tingue nela três aspectos: uma rápida expansão da informaçãopublicada, um enorme acréscimo dos materiais coligidos e umatransformação radical nos processos de tratamento da informaçãoe dos dados (mediante recurso aos modernos meios mecânicos eelectrónicos) 25. Assim, a prova pelos factos (pelos factos averi-

23 Veja-se , por exemplo, o modo como Henri M E N D R A S def iniu a Socio-logia, n a introdução ao Seminário de Sociologia Rural que, de 2 a 7 de Marçode 1964, dirigiu no Gabinete de Invest igações Sociais da Univers idade Técnicade Lisboa. Análise Social, n.° 6, Abril de 1964, pp. 341-342.

24 Georges BALANDIER, «Reflexões prospect ivas sobre a s Ciências do H o -mem», Análise Social, n.° 3, Julho de 1963, p . 36P7.

25 J e a n C U I S E N I E R , «Révolution industriel le dans les Sciences Sociales»,Esprit, n.° special, Mai-Juin 1964, pp. 1113 e segs.

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guados através das várias técnicas de inquérito, de entrevista, desondagem, de teste, de estudo de casos, de observaçao-participante,de análise estatística e matemática, de experimentação laborato-rial e no campo, de exploração e interpretação de documentos, declassificação, selecção e concentração dos dados recolhidos) tendea substituir-se, rapidamente, à prova pela reflexão, à demonstra-ção meramente formal.

Esta revolução metodológica tem uma consequência impor-tante, que é a progressiva atenuação do carácter «literário» daSociologia. Efectivamente, manipulando uma grande massa df?daidos sobre factos sociais, trabalhando sobre resultados de inqué-ritos, de entrevistas,, de sondagens, de testes, recorrendo a con-ceitos, tipologias e modelos refinados,, lançando mão dos símbolose raciocínios matemáticos 26, fazendo mesmo, em certos domínios,experimentação, e em tudo e sempre tendo de suspender conclu-sões até à prova pelos factos—a Sociologia abandona o aspecto eo estilo próprios das disciplinas humanísticas, formaliza-se, tendea adoptai, como diz iRaymond BOUDON, «uma linguagem complexa,cada vez mais afastada da experiência imediata dos factos so-ciais» 27. Assim, o que perde em eventual elegância estilística e so-bretudo em facilidade de acesso para o leitor não especializado, vai-oganhando em objectividade e rigor. Sem dúvida, continua a haverlugar para a «reflexão pessoal» e para o «ensaísmo», fecundasvias marginais para o ««questionamento da realidade social», con-forme vigorosamente fez notar, há pouco ainda, Edgar MORIN

28.Mas até a reflexão pessoal e o ensaio, outrora vertidos em lingua-gem comum, tendem hoje a parecer esotéricos ao não-iniciado —salvas ailgumas notáveis excepções,, como por exemplo A MultidãoSolitária de David RIESMAN, besi-seller na América e na Europa.

Outro aspecto relevante da evolução havida na Sociologia é aprogressiva quebra do isolamento de que no passado sofreu. Domesmo passo que se começou a estabelecer contacto e colaboraçãointer-disciplinar com outras Ciências, tem-se igualmente desen-volvido a sua participação — através dos estudos aplicados e dasinvestigações aplicadas ou orientadas— na procura e determinaçãode soluções para problemas práticos. Lógico é, na verdade, que ocontacto e a colaboração inter-disciplinares se estabeleçam comoutras Ciências da Sociedade. A Ciência Política, a Demografia,a Economia, a Geografia Humana, a História, ao mesmo tempoque vão pondo problemas novos à Sociologia e provocando, por

26 Sobre a Sociologia Matemática: James S. COLEMAN, Introduction toMathematical Sociology. The Free Press of Glencoe, 1964.

27 Raymond BOUDON, «Quelques fonctions de Ia formal isa t ion en socio-logie», ArchivesÉuropêennes de Sociologie, IV (1963), p. 217.

28 Edgar MORIN, art. citado.

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«essa solicitação, o aparecimento de novas Sociologias especiais,são também influenciada^ numa escala que se afigura crescente,pelas concepções, informações, métodos e óptica da Sociologia, detal modo que hoje se fala de uma tendência para a «sociologização»das Ciências Sociais em geral. Destas, parece ser a Economia Polí-tica, mais segura que qualquer outra dos seus métodos e resultados,a que mais resiste a essa tendência. Mas não é só com as outrasCiências da Sociedade que a Sociologia entra em contacto e cola-boração. Também, por exemplo, com a MJedicina e a Psicologia vãoocorrendo acções inter^disciplinares, fazendo-se hoje muita inves-tigação sociológica relacionada com certas doenças, com problemashospitalares, com perturbações psicológicas, com estruturas e mé-todos de educação, etc. A Sociologia Médica, a Sociologia Educa-cional, a Sociologia da Infância e da Juventude são, presentemente,ramos importantes da Sociologia norte-americana e começam adesenvolvesse também na Europa. Quanto à participação da So-ciologia na resolução de problemas práticos, os campos em que seexerce são muito variados. Podem eitar^se, a título de exemplo, osproblemas de organização e administração de empresas, os pro-blemas de habitação e urbanismo, os problemas do trabalho e dapolítica social, os problemas da criminalidade e, dum modo ge-ral, toda a problemática do desenvolvimento económico e social,nomeadamente nos países ou regiões de economia retardada29.E tem interesse notar que, por vezes, os mais confiantes e in-sistentes apelos à Sociologia provêm, não de especialistas deoutras Ciências Sociais (como os economistas), mas de engenhei-ros, arquitectos, urbanistas, médicos, educadores e outros pro-fissionais, cujas actividades requerem, no condicionalismo es-pecífico das sociedades contemporâneas de evolução rápida, umacompreensão do meio social (e das estruturas, relações, compor-tamentos, atitudes, aspirações, influências e transformações, nelepresentes e actuantes) muito mais profunda que a vulgar30.

4. Sociologia e ideologias

a) Investigação e «esquemas de percepção» ideologicamentecondicionados

Dissemos antes que a Sociologia se tem vindo a libertar pro-gressivamente da subordinação às concepções do mundo extra-cien-tíficas a que inicialmente, apareceu ligada. Por outras palavras:tem vindo a autonomizar-se com disciplina científica. Tal auto-

29 Vd., por exemplo, Industrialisation et Société, Symposium publié sousIa direction de Bert H. HOSELITZ et Wilbert E. MOORE, U.N.E.S.C.O. —Mouton, 1963.

80 A Economia Política, indiscutivelmente a mais elaborada das Ciên-cias Sociais, por isso mesmo sofre certa tentação de suficiência...

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nomização, sinal de maturação em processo, é o natural resultadodo próprio esforço de objectivação e rigorização analítica, levadoa cabo pelos sociólogos nas últimas décadas. Sob este respeito, doisaspectos fundamentais importa destacar.

Em primeiro lugar, o «sociólogo-investigador-de-factos», o so-ciólogo cujo projecto consiste em ir ao encontro dos factos na suaobjectividade e em nada definitivamente concluir que se não baseieem factos averiguados, não pode deixar de tomar clara consciênciada diferença que separa uma atitude objectiva, positiva, analítica,de uma atitude normativa, optativa, doutrinal. Melhor: não podenão se aperceber de que os factos, só por si, tais como objectiva-mente se oferecem à pesquisa empírica e à análise interpretativa,não ditam princípios, fins, ideais, não justificam nenhuma dou-trina, ideologia ou política. Na verdade, os factos, em si, são neu-tros. As filosofias, éticas, doutrinas sociais e ideologias políticasé que os apreciam e julgam—e apreciam-nos e julgam-nos dife-rentemente, de acordo com os diferentes princípios, valores e opçõesextra-científicos donde partem. Por exemplo: o moralista, o dou-trinário, o ideólogo poderão dizer que os trabalhadores são «ex-plorados» (pronunciando assim um juízo valorativo), quando aparte destes no rendimento da empresa ou da nação é tal ou tal,ou quando o mecanismo da repartição dos rendimentos é este ouaquele; mas para o investigador social, há apenas factos a averi-guar e explicar: qual a estrutura efectiva da repartição dos rendi-mentos, como se explica que a estrutura seja essa e não outra,quais as condições e os mecanismos que a determinam; enquantoinvestigador, ele não dispõe de critérios que lhe permitam afirmarse o que averigua e explica é justo ou injusto, se há ou não há «ex-ploração» 31.

Doutra parte, as filosofias e doutrinas sociais e as ideologiaspolíticas não se limitam, de facto, a enunciar critérios de valor eprincípios, ou a optar por finalidades que devam realizar-se atra-vés de um determinado tipo de acção. Contêm ademais uma certavisão das realidades sociais, uma qualquer interpretação, supostaverídica, das situações e dos eventos que se constatam na vidae evolução das sociedades. Em regra, trata-se de uma visão ou in-terpretarão mais intuitiva que científica, mais adoptada que pro-vada. No Liberalismo clássico, a teoria da «mão invisível» (meca-nismo do mercado automaticamente ajustador de todos os interes-ses e incessante promotor do desenvolvimento); no Marxismo, a

31 Clássico ficou o malogro da tentativa, levada a cabo pelos econo-mistas marginalistas austríacos, de, através de uma teoria científica da impu-tação do produto aos respectivos factores da produção, fixar um critériopuramente objectivo de justiça na repartição dos rendimentos. Para uma visãocompleta das várias tentativas de equacionação «científica» do problema daexploração do trabalho, vd.: Pierre MAURICE, Les Théories Modernes de VEx-ploitation du Travail, Dalloz, Paris, 1960.

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teoria da «luta das classes» (processo normal e fundamental detoda a evolução das sociedades) — eis dois bons exemplos dessasvisões ou interpretações da realidade, aceites como objectivamenteválidas, das quais as doutrinas e ideologias são portadoras. Ora,para o «sociólogoJnvestigador^de^factos» — mais precisamente:para o investigador que procura efectuar verdadeiro trabalhocientífico —, a «visão» das realidades sociais, contida em cada dou-trina ou ideologia, só pode ter o significado, no melhor dos casos,de uma simples hipótese sujeita à crítica e à verificação científicas.Nenhum investigador pode aceitar, muito menos desejar, uma surjeição consciente, no seu trabalho de pesquisa e análise de factos,a interpretações predeterminadas, fornecidas por uma doutrinaou ideologia, qualquer que seja.

Aliás, tocamos aqui numa fonte de desconfianças em relaçãoà Sociologia, a que acima não fizemos referência. A honestidade€ o método científico exigem ao sociólogo que problematize esujeite a revisão crítica as interpretações sociológicas em que sem-pre as doutrinas, ideologias e políticas se baseiam. Mas é evidenteque tal não é cómodo nem conveniente para o comum dos ideólogos1

e políticos. Estes provavelmente sentirão que o sociólogo faz «tra-balho de sapa», trabalho que reduz a solidez ou agrava a insegu-rança das suas posições. E assim se vêem os sociólogos acusados,ou de subversivos, ou de reaccionários, conforme o quadrante ideo-lógico donde lhes vem a acusação.

A autonomização progressiva da Sociologia em relação a filo-sofias, doutrinas e ideologias não implica, porém, que estas nãoexerçam doravante qualquer influência relevante sobre a investi-gação sociológica. Pelo contrário: exercem-na, de facto, e hão-decontinuar a exercê-la32 por duas vias: 1.°) sendo um dos factoresdeterminantes da escolha dos temas sobre os quais essa investiga-ção se vai exercendo; 2.°) fornecendo «esquemas de percepção» ini-ciais à elaboração de teorias e interpretações sociológicas.

Destas duas vias, a primeira não levanta — supomos—^difi-culdades de entendimento. É manifesto que a formação filosóficado sociólogo, as suas preocupações ético-sociais, as suas convicçõesideológicas e políticas não podem deixar de o solicitar mais paracertos temas e problemas do que para outros. E assim, as filosofiassociais, as doutrinas^ as ideologias inevitavelmente comandam, emparte, através da consciência do sociólogo, o sentido em que a in-vestigação sociológica progride, os terrenos de pesquisa que pro-cura desbravar, os factos e situações que se esforça por abrangerno seu empreendimento analítico 33.

32 Al iás , não apenas sobre os sociólogos, m a s sobre os invest igadoresdas Ciências Sociais em geral.

33 É evidente, porém, que esse sentido não depende apenas do própriosociólogo. Se ele se encontra ao serviço de administrações públicas ou priva-das , t em naturalmente de ocupar-se dos problemas que essas administrações

A segunda via é menos clara, mas porventura mais impor-tante. Dissemos que nenhum sociólogo pode aceitar uma submissãoconsciente (sublinhe-se: consciente) a interpretações predeter-minadas de realidades sociais. Todavia, pode ocorrer uma submis-são inconsciente. Foi Joseph SCHUMPETER — um dos três ou qua-tro maiores economistas deste século — quem insistiu no facto de otrabalho científico ter de passar por um momento pré-científico,mas já analítico, que é o da,'visão, intuição ou primeira percepçãodo investigador. Como ele disse, «a percepção de um conjunto defenómenos ínter-relacionados é um acto pré-científico. Para queo nosso espírito tenha algo sobre que exerça o seu trabalho cien-tífico, tem de realizar essa percepção — indicando, por exemplo,qual é o objecto da investigação — ; mas tal percepção não ócientífica em si mesma. Todavia, apesar de pré-científica, não épré-analítica, pois não consiste apenas em ter a percepção dosfactos através de um ou mais dos nossos sentidos. Implica, na ver-dade, perceber que esses factos possuem uma significação ou sen-tido que justifica o nosso interesse por eles, e compreender, ade-mais, a sua inter-relação (que precisamente permite destacá-losdos outros), exigindo tudo isso certa análise efectuada pela nossaimaginação ou pelo nosso senso-comum. A tal mescla de percepçõese análises pré-científicas chamaremos visão ou intuição do inves-tigador» 34. Parte, pois, o investigador de um esquema de percep-ção inicial que não é científico — e é precisamente aí, no ponto departida do seu trabalho, que ele será (pode dizer-se: inevitavel-mente) influenciado, de modo inconsciente, pela visão das realidadessociais, da qual, como homem, é portador. Stanislaw OSSOWSKI,sociólogo polliaco, publioou, não há muito, um livro, A Estruturadas Classes na Consciência Social, que é precioso deste ponto devista35. Aí estão sistematizadas as múltiplas concepções da estru-tura das classes que, desde a Antiguidade, se formaram e impuse-ram na Cultura europeia, muitas das quais foram utilizadas naelaboração teórica e na pesquisa empírica. E aí se vê também comotais concepções promanam de «esquemas de percepção» da estru-tura social que foram e são condicionados por diferentes filosofiasda vida, por distintas convicções ideológicas, ou muito simples-mente por diversas posições dos intuidores dentro da própria es-trutura das classes.

lhe apresentam; mas até quando faz investigação fundamental, desinteres-sada, tem de atender às relutândas na concessão de fundos destinados a fi-nanciar investigações que «não interessem» ou «não agradem» a quem dispõedesses fundos. Vd. Lewis S. COSER, The Functions of Social Conflict, The FreePress of Glencoe, HL, 1956, Introduction.

34 Jo seph S C H U M P E T E R , «Ciência y Ideologia», Trimestre Económico,XVII, n.° 1, Jan.-Mar. 1950, p. 8.

35 Stanislaw OSSOWSKI, Class Structure in the Social Consciousness,Routledge and Kegan Paul, Londres, 1963.

A investigaçião processa-se a partir de uma percepç&o e é porela condicionada, como quadro de referência inicial. Ora, a per-cepção não é nunca uma cópia ou imagem passiva e fiel do objectoapercebido. Je&u PlAGET, psicólogo especialmente qualificadoneste campo, claramente o diz: «no domínio das percepções, nãosomente o sujeito não consegue quase nunca dissociar das suas per-cepções aproximativamente exactas os seus erros sistemáticos,como também e sobretudo nos podemos perguntar se a presençade deformações não será inerente à natureza específica dos meca-nismos perceptivos, que procedam por amostragem probabilista,em lugar de fornecer uma cópia exacta do objecto. Pode mesmosustentar-se que todo o conhecimento (representativo ou percep-tivo) é deformante nos seus começos, por causa de centrações devária espécie, e que somente descentrações conduzem à objectivi-dade» 36. A percepção é selectiva, polarizada, esquematizadora, es-truturante dos elementos apercebidos no objecto. E são muitosos factores, intelectuais e afectivos, que no sujeito modelam osseus actos perceptivos37. O que, por exemplo, o livro de OSSOWSKIdemonstra é que, no atinente às percepções originais donde a in-vestigação social arranca, entre esses factores se contam as filoso-fias sociais, as doutrinas, as ideologias, as atitudes políticas dosinvestigadores. Joseph SCHUMPETER já dissera o mesmo, no con-cernente à análise económica38.

b) A correcção dos desvios ideológicos pelos conflitos meto-dológicos

Tomemos um exemplo hipotético. Suponhamos dois sociólogosempenhados em elaborar a teoria da evolução social, a teoria dastransformações fundamentais que a estrutura, a cultura, a orga-nização e a vida das sociedades vão sofrendo no decurso do tempo.Um deles é de formação ideológica marxista e formula umateoria que atribui decisiva importância, no processo de tal evolu-ção, às «forças produtivas» e às «lutas das classes». São estes osfactores que a sua perceção, ideologicamente centrada e selectiva,destacou; são eles, portanto, os que, na sua investigação, elegecomo factores privilegiados para a análise. O outro investigadoré uma dessas pessoas que «acreditam» acima de tudo na Ciênciae na Técnica, como eficazes motores de todo o progresso humano,e constrói uma outra teoria segundo a qual é no movimento da

3 6 J e a n PIAGET, Traité de Psychologie Expérimentale, Tome VI . LaPerception, P.U.F., Paris, 1963, p. 3.

37 Vd., para iniciação, Robert FRANCÊS, La Perception, P.U.F., Paris,19*63, «Que sais-je?», n.° 1076.

38 Joseph SCHUMPETER, History of Economic Analysis, Oxford Univer-sity Press, New York, 1954, Parte 1, Cap. 4.

Ciência e da Técnica que toda a evolução social encontra explica-ção. De novo, uma percepção inicial, ideologicamente centrada,operou selectivamente; mas outros são os factores que a análiseagora privilegia e sobre os quais a investigação se exerce. Assim,de dois esquemas de percepção diferentes, ambos ideologicamentecondicionados, duas teorias diferentes irrompem. Mas, que sucedeentão?

Provavelmente, ambas as teorias contêm uma parte de ver-dade; ambas, porém, começam por se apresentar como exclusivas,até por causa das suas implicações ideológicas. Contradizem-se,pois, frontalmente. Cada um dos sociólogos em conflito terá, porconseguinte, de se esforçar por descobrir os erros do outro, teráde fazer o exame e a crítica da teoria que à sua se opõe. Destemodo, cada um é simultaneamente obrigado a conhecer bem a teo-ria do outro e a examinar atentamente as críticas que o outro dirigeà sua. Talvez isso os possa levar a descobrir que, afinal, uma con-ciliação é possível no quadro de uma teoria mais ampla, mais com-preensiva, que leve em conta, tanto as «forças produtivas» e as«lutas das classes», como Q movimento da Ciência e da Técnica. Outalvez surja um terceiro investigador que realize tal síntese. Outalvez nada disso suceda, continuando então as duas teorias a opor--se. Mas tal oposição não poderá manter-se indefinidamente. Comefeito, cada um dos dois sociólogos em conflito (ou outros que lhessucedam) fará a crítica dos métodos e raciocínios sobre osquais está baseada a teoria a que se opõe — contestando e avul-tando o que neles depare contestávelD sob o prisma da objectividadecientífica. Ora, neste aspecto, a crítica será inevitavelmente fe-cunda, portanto cada um deles só pode ter a esperança de con-*vencer os investigadores para quem escreve (os quais formam oseu público principal), se os métodos e raciocínios que utiliza seprovarem inatacáveis a essa luz. Sob pena de lhe não ser reconhe-cido, por aqueles que deseja seus pares, o estatuto de verdadeiroinvestigador, a sua metodologia e démarche têm de merecer a apro-vação dos «meios científicos». Desta sorte, o que houver, de ume outro lado, de deficiente ou incorrecto nos métodos e raciocíniosutilizados irá sendo sucessivamente posto a claro e corrigido. Ever-se-á, então, por exemplo, que os dados donde parte cada umadas teorias são parciais, estão incompletamente utilizados ou im-propriamente interpretados; ou que os raciocínios assentam emhipóteses contestáveis, ferem a lógica em certos pontos, contêmaspectos mal dilucidados ou avançam em deduções apressadas. Ora,apurando-se tudo isto, a um tempo se apura, afinal, o que é válidoe o que o não é em cada uma das teorias confrontadas. E abre-secaminho a uma nova teoria, mais completa e objectiva, que inte-grará das anteriores o que nelas resistiu à crítica metodológica eque mais independente será dos contraditórios esquemas de per-cepção iniciais. Em termos de PIAGET, diremos, que uma descen-

tração do conhecimento se terá assim efectuado e que tal descen-tração terá permitido avançar da parcialidade ideológica para aimparcialidade científica.

Raymond BARRE, depois de afirmar que o investigador socialpode, ou partir de uma doutrina, confrontar as suas concepções coma realidade e sujeitá-las à prova do método científico, ou pelo con-trário abster-se de todo o compromisso ideológico prévio e pra-ticar a investigação desinteressada, escreve o seguinte: «nos doiscasos, a validade dos ensinamentos da Economia Política, comode qualquer outra Ciência Social, não sofrerá de motivações pes-soais e de ideologias particulares, pois depende da observância dasregras do método científico. Todos aqueles que aceitam submeter-sea estas regras não podem chegar senão às mesmas conclusões. Overedicto final tem, segundo a expressão de Oskar LANGE, uma va-lidade interpessoal, porque os factos são interpessoais» 39. Estaformulação do problema das interferências e deformações ideo-lógicas na investigação social (compreendendo a investigação feitapelos economistas) tem de considerar-se simplista ou, se quisermos,idealista na acepção marxiana do termo. Na verdade, supõe que,por haver um instrumento mental de correcção de tais deformações— instrumento que é o próprio método científico, ou seja: um dadoconjunto de critérios inter-subjectivos de evidência e validaçãocognitiva —, a correcção desejada necessariamente se fará. Ora,o que o exemplo anterior haverá mostrado é que tal correcção nãoconsiste num processo meramente intelectual, mas num processosocial de conflito, sujeito às regras de um dado grupo. O grupoé o dos investigadores sociais perante quem o conflito se desenrola;as regras são as da metodologia e da polémica científicas; e estasregras não só impõem aos actores, conforme faz notar Lewis COSER,um ponto comum de referência (a busca da verdade), como lhesdefinem a via para a sua meta institucional (o certificado de ca-pacitação) é0. Mas, sendo assim, o fulcro do problema desloca-separa um outro ponto: consiste agora em averiguar as condiçõesque facilitam ou determinam o desencadeamento do conflito cor-rector.

«Os cientistas sociais — observa David BRAYBROOKE — podemmutuamente corrigir-se em questões de preconceito individual,acerca das quais cada um difere dos seus colegas; mas como po-derão corrigir-se uns aos outros de desvios que em todos eles estãoprofundamente enraizados, por todos pertencerem à mesma socie-dade e desfrutaram de privilégio® similares dentro dela?»41. De

3 9 Raymond BARRE, Economie Politique, P .U .F . , P a r i s , 1063, TomePremier , 5.a ed., pp . 53-54.

4 0 Vd. Lewis A. COSER, LOS Funciones dei Conflicto Social, trad., Fondode Cultura Económica, México, 1%1, p. 135.

41 David BRAYBROOKE, Philosophical Problema of the Social Sciences,MacMillan, New York, 1965, pp. 15-16.

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facto, o nosso hipotético exemplo já sugeria que a heterogenei-dade doutrinária e ideológica deve contar-se entre as condições apartir das quais o processo de correcção por conflitos mais prova-velmente se desencadeará. Num meio homogéneo, o desvio ideoló-gico, infiltrado no âmago da teoria e da pesquisa, pode longamenteperdurar, pois a perfeita unanimidade de opiniões e convicçõesfavorece a persistência das centrações ideologicamente deter-minadas e entrava por conseguinte o indispensável movimentode descentração pelo qual se avança para a objectividade. Comodiz Leon BRAMSON, «OS estudos de Ciência Social, efectuados doponto de vista de certos valores, certamente serão influenciadospor esses valores. Estes terão proporcionado os estudos e as des-cobertas em questão. Põe-se, contudo, o problema da validade cien-tífica de tais estudos. Se as suas conclusões forem confirmadas poroutros investigadores, o facto de haverem sido informados por cer-tos valores é de somenos importância. Naturalmente, porém, istoserá menos verdadeiro, se a confirmação provier de estudiosos cujosvalores sejam os mesmos»42.

Evidentemente, o pluralismo axiológico dos investigadoresnão determina, só por si, o processo conflitual corrector. É tam-bém necessário que os investigadores, sem embargo de permanece-rem divididos no campo das opções doutrinais e ideológicas, for-mem em conjunto um mesmo público científico, isto é: um públicosem hiatos de comunicação, sem grupos ou sectores mutuamenteopacos. Pois se cada investigador dirigisse a sua comunicação ape-nas ao seu «in group» ideológico e só dele acolhesse resposta, nãohaveria lugar para a fecunda polémica correctiva e amplificadora,por sobre as fronteiras doutrinais. Na esteira de Max WEBER, têmmuitos investigadores insistido — não obstante as claras adver-tências de Joseph SCHUMPETER e as penetrantes análises de Gun-nar MYRDAL43 — na rigorosa «neutralidade» das Ciências Sociais.Tal neutralidade é, sem dúvida, um fim, um objectivo, uma inten-ção legítima e imprescindível. Mas é também «um mito», comodiz Alvin GOULDNER

44, porquanto falta ainda percorrer muito ca-minho para plenamente a atingir — mesmo na Economia Política,que mais facilmente de si mesma diz tê-la já alcançado e que, noentanto, bem presa está, geralmente, à preferência por um deter-minado regime socio-económico45. It is an interesting phenomenon

42 Leon BRAMSON, The Political Context of Sodology, Princeton Univer-sity Press, N. Y. 1961, p. 162.

43 Vd. Gunnar MYRDAL, Value in Social Theory. A Selection of Essayson Methodologj/j Harper & Bros, New York, 1968.

44 Vd. Alvin W . GOULDNER, « A n t i - m i n o t a u r : t h e m y t h of a va lue- f reeSodology», no volume colectivo. Maurice STEIN and Arthur VIDICH, eds.,Sodology on Trial, Prentice-Hall, Englewood Cliffs, N. J., 1953, pp. 35-52.

45 Muito da obra gigantesca de François PERROUX é denúncia, protestoe tentativa—sob formas explícitas ou implícitas — de superar tal situação.

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that the more «objective» the economist the more he is an apolo-gist of capitalism — esta irónica observação de Lewis COREY46 nãoperdeu ainda toda a sua actualidade. O percurso a vencer terá depassar pela comunicação de teses contraditórias, pelos conflitosregulados e criadores, pelos subsequentes diálogos fecundos. E nãopoderá ser vencido senão por meio da livre expressão, da livre in-formação, do livre debate.

Este o ponto sobre o qual o investigador — sociólogo, econo-mista ou outro — mais tem de insistir, por imperativo da suamesma condição e consciência de investigador. Isto é: por fideli-dade, não a quaisquer opções filosóficas, doutrinais ou ideológicas,mas aos valores de verdade, objectividade e neutralidade daCiência.

II

O PONTO DE VISTA SOCIOLÓGICOSOBRE A SOCIEDADE

1. A Sociologia entre as Ciências Sociais

Até aqui, ocupámo-nos da Sociologia, sem dizer o que ela é— ou melhor: o que ela faz, o que fazem os sociólogos. Apenas dis-semos que se trata de uma das Ciências da Sociedade. Mas, se hávárias Ciências da Sociedade, como se distinguem entre si, comose distingue a [Sociologia das demais?

Deixemos de lado a História e a Antropologia Cultural (ouSocial), não obstante serem também Ciências Sociais e tão rele-vantes como as outras. Voltada aquefa para a reconstrução racionaldo passado, empenhada esta na análise das pequenas sociedades im-propriamente ditas «simples»—• desde logo se entende que a So-ciologia, interessada no presente e nas sociedades «complexas»onde vivemos, com elas se não pode confundir (o que, aliás, nãoimpede que as fronteiras com uma e a outra sejam muito menosprecisas do que pode parecer). Restam-nos, pelo menos, a Econo-mia, a Ciência Política, a Demografia, a Ecologia (ou Geografia)Humana, a Psicologia (Social — e a Sociologia. «Ciências Sociaisparticulares, ramos especiais da Sociologia, Sociologia geral elamesma — eis o conteúdo, ou os sectores diferenciados, da Ciênciado Homem», diz Georges GURVITCH74. Não digamos, como ele,Ciência do Homem, mas Ciência do Homem Social, ou da Socie-dade, pois que a Psicologia não consta do elenco mencionado. Re-

46 Ci tado p o r L. A. COSTA P I N T O , Sociologia e Desenvolvimento, E d i t o r aCivilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1963, p. 28.

47 Georges GURVITCH, La Vocation Actuelle de Ia Sociologie, Tome Pre-mier, 3ème ed., P.U.F., Paris, 1963, p. 21.

tenhamos, porém, a ideia de uma unidade na diversidade (ou di-ferenciação) das disciplinas. Tal unidade responde à da própriarealidade. «A Ciência do Homem — ou as Ciências Sociais no seuconjunto —, escreve o mesmo autor, é o estudo dos esforços colec-tivos e individuais mediante os quais a sociedade e os homensque a compõem se criam ou produzem eles mesmos. (...) O quecaracteriza todas as Ciências do Homem (...) é que a realidadepor elas estudada é uma só: é a condição humana, considerada auma certa luz e tornada objecto de um método específico» 48.

Desde Mareei MAUSS e dos seus estudos famosos, Essai surle Don e Rapports rééls et pratiques de Ia Psychologie et de IaSooiologie*9, esta unidade dfc objecto (ou de campo) entre asCiências Sociais tem vindo a ser reconhecida e afirmada a partirda noção de fenómeno social total. Não cabe aqui o esclareci-mento aprofundado, para o qual se pode recorrer à obra do citadoGURVITCH, deste importante conceito. Notemos apenas que ele foiintroduzido em reacção contra a ideia, anteriormente aceite, deque a cada uma das Ciências Sociais caberia em objecto um distintocampo do real, um conjunto de fenómenos perfeitamente separadosou separáveis de quaisquer outros. Deste modo, a Economiaocupar-se-ia da realidade económica (ou dos fenómenos econó-micos), a Demografia, da realidade demográfica (ou dos fenó-menos demográficos), a Ciência Política, da realidade política(ou dos fenómenos políticos); e assim por diante. A tal concepçãoopõe-se agora a de que não existem campos de realidade e fenó-menos que assim se distingam uns dos outros — que o campo darealidade, sobre o qual as Ciências Sociais se debruçam, é um só(o da realidade social) e que todos os fenómenos desse campo sãofenómenos sociais totais, fenómenos que se desenvolvem simulta-neamente em vários níveis e em múltiplos aspectos.

Não é, portanto, pelo distinto conteúdo real dos seus camposde investigação que as diversas Ciências Sociais umas das outrasse distinguem. De facto, o campo de investigação é a todos comum;o seu conteúdo é o mesmo. A distinção provém das próprias Ciên-cias Sociais, não da realidade por elas abordada. É uma distinçãode ponto de vista, de prisma, de óptica. «Ponto de vista» queraqui dizer: uma finalidade analítica dominante, uma definiçãode problemas (condicionada por essa finalidade), um critério deselecção de variáveis (relevantes para o estudo de tais proble-mas) , enfim uma metodologia de pesquisa empírica e de interpreta-ção teórica (adequada à natureza dos fins, dos problemas e das var-riáveis que se elegeram). Sem minorar a importância das dispa-

is Ibidem, pp. 16-17.49 Incluídas no volume: Mareei MAUSS, Sociologie et Anthropologie,

P.U.F., Paris, 1950.

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ridades metodológicas — que são grandes, por exemplo, entre aEconomia e a Sociologia —, tem de dizer-se que é sobretudo por-que elegem distintas finalidades analíticas, definem e privilegiamdistintos problemas e adoptam distintos critérios, explícitos ouimplícitos, de selecção ide variáveis relevantes, que as Ciências So-ciais são efectivamente distintas umas das outras. A diferençaiessencial — logicamente condicionante ou determinante das demais— concerne, porém, como é óbvio, a finalidade analítica domi-nante ou, para usar linguagem mais simples, o centro de interesseda investigação. Como observa Robert MCIVER, «é sempre o centrode interesse que distingue, de qualquer outra, uma Ciência Social.Não se deve imaginar que as diversas Ciêmcias Sociais têm domí-nios materialmente distintos. O que caracteriza cada uma delasé a sua maneira de seleccionar os factos» 50.

Ora, nesta perspectiva de escolha de um dado «centro deinteresse» para cada uma das Ciências Sociais—perspectiva ver-dadeiramente crucial —, a Sociologia coloca-se numa posição que,a um tempo, a separa e aproxima de todas as outras Ciências daSociedade, conjuntamente tomadas. De facto, quando, por exemplo,Raymond BARRE diz: «a ciência económica é a ciência da admi-nistração dos recursos raros; estuda as formas que assume ocomportamento humano no ordenamento desses recursos; analisae explica as modalidades segundo as quais um indivíduo ou umasociedade afecta meios limitados à satisfação de necessidades múl-tiplas e ilimitadas» 51, ele atribui à Economia unu centro de inte-resse, que decerto tem que ver com a sociedade no seu conjunto(pois, em toda a extensão e a todos os níveis, a vida social é con-dicionada pela limitação dos meios, face à multiplicidade e ilimi-tação dos fins—e, portanto, pelas formas e decisões de utiliza-ção desses meios), mas que é particular, limitado, unilateral (umavez que, por si mesmo, não se ordena à compreensão do fenómenosocial total). Outro tanto se poderá observar a propósito da se~guinte afirmação de William A. ROBSON; «o centro de interesseda Ciência Política é manifesto e fácil de definir: ela interessa-sepelo poder, pelos modos de o conquistar, de o conservar, de o exer-cer, de lhe resistir» 52. De novo se nos define assim um ponto devista abarcante de toda a sociedade e todavia particular, dado que,por si mesmo, não visa o entendimento analítico da totalidadereal em movimento que a sociedade é e que cada um dos grupos,sectores ou fenómenos, nela identificáveis, é também. Ora, o in-

5 0 R. M. MACIVEK and Charles H. PAGE, Society. An IntroductoryAnalysis, Rinehart, New York, 1955, p. V.

51 Raymond BARRE, Economie Politique, tome premier, 5ème ed., P.U.F.,Paris, 1963, p. 12.

5 2 William A. ROBSON, Les Sciences Sodales áans VÉnseignement Supé-rieur; Science Politique, U.N.E.S.C.O., 1955, p. 18.

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ter esse focado na totalidade real de cada sociedade, de cada grupo,sector ou fenómeno social, é o que, precisamente, distingue a So-ciologia. Como refere T. B. BOTTOMORE, «a Sociologia (com a An-tropologia Social) foi a primeira ciência a ocupar-se da vidasocial como um todo, com a totalidade do sistema complexo deinstituições e grupos sociais que formam uma sociedade» 53. Essacontinua a ser a sua vocação, o seu centro de interesse, a suafinalidade analítica dominante.

Ciência que se quer, por conseguinte, integradora, por esteseu carácter se separa a Sociologia das Ciências Sociais particula-res. Em face dela, com efeito», estas figuram como analiticamentedesintegradoras, uma vez que, para fins de sistematização parcial1e unilateral, isolam do todo real certos dos seus elementos — aque-les que, para os seus fins analíticos particulares, lhes aparecemrelevantes e que, pelos seus métodos próprios, logram captar. Mas,por esse mesmo aspecto, a Sociologia aproxima-se também dasoutras Ciências Sociais.

Por um lado, é através dela que os elementos isolados e de-sintegrados do todo real virão analiticamente reintegrar-se numavisão totalizadora. E assim reintegrados, poderão desvelar, a umtempo, a sua inter-relação e mútua dependência — ou a eventualrelatividade (a um dado quadro sociológico) das hipóteses e dosesquemas analíticos, separadamente elaborados para os interpre-tar. Na análise sociológica, os elementos do real — abstraídos esistematizados pelas análises económicas, políticas, demográficas,geográficas, psicológicas — são restituídos à sua interacção, aoseu jogo real e complexo de interdependências. E é também noâmbito dessa análise que podem revelar-se os limites socioló-gicos de validade das hipóteses e esquemas interpretativos, for-jados pelas Ciências Sociais particulares (assim, por exemplo, asinvestigações de Sociologia rural mostram que os teoremas daEconomia, atinentes ao comportamento dos produtores, pressu-põem um tipo de racionalidade que não ooincide com o do camponêstradicional) 54.

Por outro lado, o empreendimento sociológico, visando a to-talidade real, é demasiado ambicioso para que a (Sociologia possaalimentar (ou continuar a alimentar, posto que, neste aspecto,a Sociologia pecou no passado) a ilusão da suficiência. Ela carece,na verdade, para compor os seus esquemas de análise integradora,de recorrer aos materiais e às interpretações parcelares das outrasCiências Sociais. Pelos seus próprios métodos de pesquisa empí-rica e de construção teórica, ela vai tentar a religação (ou inte-

s3 T. B. BOTTOMORE, Sociology, cit., p. 20.54 *Henri MENDRAS, Les Paysans devant Ia Modernisation de VAgricul-

ture, C.N.R.S., Paris, 1968.-

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gração num sistema analítico unitário) desses vários materiais,dessas várias interpretações dispersas, religação entre si e comos materiais e interpretações por ela mesma fornecidos. Con-forme justamente observa George GURVITCH, «é colocando a So-ciologia e as Ciências Sociais particulares, ora em relação de com-plementaridade dialéctica, ora em relação de implicação mútua,ora em relação de ambiguidade dialéctica (quando tanto se de-sejam que cada uma quereria absorver a outra), quer em relaçãode polarização (quando se fazem concorrência), que é possíveldar conta da situação real» 55.

Empreendimento ambicioso e difícil — mais difícil que o dasCiências Sociais particulares, se tomado na sua correcta dimensãoe aspiração, e não como simples «técnica de inquéritos» —, a So-ciologia não pode caminhar em rapidez. Um dos erros metodoló-gicos dos sociólogos clássicos foi mesmo ode querer precipitar oseu avanço — intuito que, embora explicável por motivações ideo-lógicas, não tem justificação possível em plano científico. O ritmodo seu progredir depende, aliás, dos desenvolvimentos operadosnas outras Ciências Sociais. Ora, quanto a estas, só a Economiase pode dizer francamente mais desenvolvida do que ela—o quese deve, sobretudo, ao favor público e privado e aos recursos ma-teriais e institucionais de que, mais do que outra qualquer ciên-cia social, tem podido a Economia usufruir.

Mas em Sociologia o progredir é tão manifestamente aprofun-dar—-isto é: passar da superfície (o que não quer dizer: da su*perficialidade) ao interior da realidade social —, que logo se vênão ser possível sem especialização. Eis o que justifica — emboraoutras circunstâncias, algumas das quais puramente administra-tivas, concorram para o mesmo efeito—que a Sociologia hojenos surja como um feixe de disciplinas conexas. A par da reflexãoe pesquisa sobre as características gerais das sociedades e dos gru-pos considerados enquanto totalidades reais (Sociologia geral), im-porta, efectivamente, que mais de perto e mais a fundo se inves-tigue sobre campos limitados, circunscritos, da realidade social,a fim de extrair, dessas investigações, teorias restritas, mas em-piricamente validadas;, que sucessivamente se acumulem, seacrescentem e contribuam para a elaboração de teorias mais am-plamente compreensivas. De tais investigações sobre campos reaislimitados, nascem as Sociologias especiais e globais, de que falá-mos acima. E por algumas destas (Sociologia económica, Sociologiapolítica, etc.) se estabelece a ponte entre a Sociologia e as CiênciasSociais particulares.

55 Georges GURVITCH, Traitê de Sociologie, Tome Prender, P.U.F.,Paris, p. 26.

si

Enfim, se quisermos definir o que a Sociologia faz, diremos,como COSTA PINTO, que é o estudo cientifico da formação, da or-ganização e da transformação da sociedade humana 5e.

2. Um esquema de percepção sociológica da realidade social

O centro de interesse do estudo sociológico é, pois, a totali-dade social real — «o social» não desmembrado, mas íntegro nasua unidade.

Pois bem: encarado assim o domínio real da sua investiga-ção (ou seja: a sociedade), o sociólogo distingue nele um certonúmero de ingredientes fundamentais. iSumariando-os, disporemosde um primeiro (e elementar) esquema de percepção sociológicada realidade social; teremos um ponto de partida, uma base, paraentender o esforço analítico que a Sociologia e os sociólogos em-preendem. Eis por que a seguir os enumeramos, acompanhados deum certo número de explicações, exemplificações e comentários.Compreenda-se bem, no entanto, que se trata, não de uma súmulapretensamente científica, mas de um esquema deliberadamente pré--científico— de uma visão já analítica, mas ainda não científica.

1.° Um conjunto de indivíduos agindo, cujos comportamentossão observáveis e interpretáveis (porque dotados designificação)

Este «ingrediente» é o mais óbvio. Numa aula, em casa, narua, num cinema, num estádio, numa empresa ou administraçãopública — a sociedade aparece-nos como «gente», pessoas que semovem, trabalham, vivem, produzindo assim um fluxo incessantede actos com os mais diversos conteúdos e significações.

Indivíduos agindo significativamente: eis a primeira imagemda sociedade. Poderemos dizer, de outra maneira ? indivíduos com-portando-se de variados modos, isto é, praticando diferentes actose séries de actos, que podem ser observados e interpretados doexterior. Na aula, por exemplo, o professor, voltando-se para osalunos, falando-lhes, fazendo certos gestos, está-se comportandode um modo que os alunos podem observar e cuja significaçãopodem interpretar; e os alunos, sentando-se de frente para o pro-fessor, permanecendo calados, tomando notas, acompanhando aexposição com determinadas expressões do rosto, estão, por suavez, a comportar-se também de um modo que o professor pode

56 L. A. COSTA PINTO, Sociologia e Desenvolvimento, cit., p. 22.

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observar e interpretar — por exemplo: no sentido de não se estara fazer entender...

2.° Um incessante fluxo de contactos, comunicações e influên-cias entre os indivíduos; uma rede de relações interin-dividuais

Na verdade, os indivíduos não se limitam a agir, a produziractos (e séries de actos) físicos e mentais: contactam também unscom os outros, comunicam entre si e influenciam-se reciproca-mente. De modo que a vida, o trabalho, o movimento vital e socialdos indivíduos não se traduzem apenas em actos isolados, mastambém em contactos, comunicações, interacções — numa palavra:em relações interindividuais.

Todas essas relações — que incessantemente surgem e desa-parecem, se renovam e modificam — são outras tantas formas deintercâmbio material e mental entre os indivíduos; são, outros-sim, veículos de influências recíprocas ou unilaterais de uns indi-víduos sobre outros. Tais influências, ou consistem em os actosde uns indivíduos provocarem os de outros — como, na aula, oacto de o professor falar provoca o acto do silêncio dos alunos,e reciprocamente o acto de os alunos estarem presentes, sentadose calados provoca o de o professor fazer a sua lição —, ou se ma-nifestam em transformações mentais ou culturais suscitadaspor uns indivíduos noutros indivíduos — como sucede no ensino,na propaganda, na convivência prolongada ou no diálogo pro-fundo e repetido entre as pessoas.

3.° Um macrocosmos e uma simbiose de grupos sociais

Este terceiro «ingrediente», porventura não parecerá tãoóbvio como os anteriores. Efectivamente, os «grupos sociais» nãoconstituem, na sua grande maioria, entidades tão claramente dis-tintas e, por conseguinte, tão directamente observáveis como osindivíduos. Contudo, a mais elementar atenção a factos extrema-mente vulgares leva a compreender que a vida social se processaatravés de uma complexa trama de grupos interpenetrados, queconstantemente influenciam os comportamentos e as relações dosindivíduos.

(Muitos desses grupos são ocasionais — o auditório que ouveuma conferência, a multidão que enche um estádio, os participan-tes numa cerimónia religiosa, um ajuntamento de rua. Duram mi-nutos ou horas — e logo se desfazem. Outros são incomparavel-mente mais duráveis — e por toda a parte se deparam sinais da

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sua existência. Se caminhamos na rua e olhamos à nossa volta,vemos, por exemplo, em muitas lapelas, êmblêttias dê dllbêS Ô6S-portivos, de grandes empresas, de associações culturais, de orga-nismos político®. Cada emblema chama a nossa atenção — e é issoo que se pretende — para o facto de o indivíduo que o ostentaestar integrado em certo grupo, seja o grupo dos associados ousimpatizantes de um dado clube, seja o dos empregados ou ope-rários de uma dada empresa, seja o dos membros de uma dadaassociação cultural, seja o dos partidários de certa corrente polí-tica. Idêntico significado têm as fardas militares e civis e oshábitos eclesiásticos — são sinais de pertença a determinados gru-pos institucionalizados.

Por diferenças típicas de aspecto e de (comportamento, reve-lam-se-nos, outrossim, ainda que com certa margem de erro, osestratos ou camadas sociais (grupos também) em que os indiví-duos se situam — por exemplo, dificilmente uma senhora da «altasociedade» se confunde com uma senhora de «classe média» oucom uma «mulher do povo», uma operária, uma camponesa. Alian-ças de ouro no dedo anular da mão esquerda indicam-nos queaqueles que as usam formam com alguém um grupo conjugal, umafamília. Tabuletas em prédios, referenciando sedes ou delegações deempresas, serviços públicos, organismos profissionais, associaçõesrecreativas, desportivas, culturais, assistenciais, regionalistas, reli-giosas e outras, são indicativos de grupos que exercem determi-nadas actividades.

As lojas de comércio e de artesanato, os escritórios comerciais,os prédios, andares ou apartamentos onde estão instalados ser-»viços de empresas privadas ou do Estado, os edifícios de bancose de companhias de seguros, os edifícios fabris, são locais ondegrupos mais ou menos numerosos trabalham. Se lá entrarmos,veremos que esses grupos se desdobram em subgrupos (repar-tições, divisões, secções, etc). E se a algum deles pertencermos,saberemos ainda que, mesmo num subgrupo aparentemente indi-viso (por exemplo, uma secção onde não há subsecções), há defacto «diques», «camarilhas», pessoas que se relacionam maisentre si do que com as restantes, formando assim «grupos infor-mais». Poderemos mesmo constatar que estes «grupos infor-mais» se não confinam nos limites de qualquer subgrupo «formal»(como uma repartição, uma secção ou «os administradores»),ligando na verdade entre si indivíduos colocados em diversos ní-veis ou sectores da organização.

Pegamos num jornal e lemos que o conselho de ministros sereuniu, que uma delegação da lavoura foi recebida por um dosmembros do Governo, que se realizou ou vai realizar-se a assem-bleia geral de certo Banco, que os operários de uma dada indús-tria vão beneficiar de um novo contrato colectivo de trabalho. Um

artigo chama a atenção de quem de direito para um aspecto malcuidado dos interesses ào funcionalismo. Nas notícias da cidade»descrevem-se proezas de uma quadrilha de gatunos. No noticiáriointernacional vêm relatos de debates na O.N.Us informaçõessobre a luta eleitoral entre o Partido Conservador e o PartidoTrabalhista na Grã-Bretanha, comentários acerca da situação dasdiversas facções políticas que operam no Vietnam. Nas páginas deanúncios, inúmeras firmas fasem publicidade dos seus artigosou dos serviços que prestam. Em tudo isso, são grupos e activi-dades de grupos que transparecem.

Inútil prosseguir: é extrema a multiplicidade e variedadedos grupos sociais. E também é grande a sua interpenetração,pois que os mesmos indivíduos nos aparecem como membros, si*multâneamente, de vários grupos. A sociedade mostra-se-nos,agora, não já como um simples conjunto de indivíduos agindoe interagindo, mas igualmente como um macrocosmos e uma sim-biose de grupos, extremamente numerosos e diversos.

De facto, o conceito de «grupo social» é uma das noções bási-cas da Sociologia. Mas não tem sido fácil fixá-lo, por causa daienorme diversidade dos grupos conhecidos. Aqui, porém, a definnição não interessa. O que importa é uma tomada de consciência!global e genérica da enorme proliferaçãx> dos grupos sociais — e,por conseguinte, das relações de grupos e das acções de grupo — nasociedade. Por isso, implicitamente recorremos a uma noção vagae muito geral, que, em nível científica, nião poderia aceitar-se.

4.° Contactos, comunicações e influências de grupo a grupo;uma rede de relagpes entre grupos sociais

Como os indivíduos, os grupos sociais contactam uns com osoutros, comunicam entre si e influenciam-se reciprocamente: háuma interacção dos grupos. E assim, a vida social é tecida tambémde relações entre grupos — relações que são outras tantas formasde se processar, entre eles, intercâmbio material e mental e de seproduzirem, entre eles também, influências recíprocas ou unila-terais.

Os grupos transmitem uns aos outros, e portanto recebem unsdos outros, bens, serviços, ideias, aspirações, estados emocionais,modelos de conduta, informações, imagens de si mesmos, da suasituação, dos seus problemas, das suas atitudes, dos seus compor-tamentos, dos seus projectos; e porque ao mesmo tempo transmiteme recebem, falamos de «intercâmbio». Intercâmbio que, aliás, sómuito parcialmente é intencional, deliberado. É intencional, porexemplo, o intercâmbio de bens ou serviços entre empresas, comoo é o intercâmbio de propostas e ameaças nas negociações entre

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um sindicato operário e um organismo patronal; mas já não o éa propagação de aspirações ao bem-estar das classes ricas para asmedianas e as pobres, que resulta da imagem de conforto e de pres-tígio que as primeiras projectam sobre as outras; tal como não o éa confissão de fraqueza que um grupo político faz aos seus compe-tidores pelo simples facto de não obter, em pleito eleitoral, umnúmero significativo de votos. Há, de facto, na sociedade, umaincessante circulação de elementos materiais e mentais, de uns paraoutros grupos, como de uns para outros indivíduos; mas, na suamaior parte, essa circulação é não-intencional, não-deliberada.

Por outro lado, os grupos sociais interinfluenciam-se. Fazem--no, ou só pela sua presencia, ou pela sua interpenetração1 ou pelo queuns aos outros transmitem, ou ainda por sua força e seu poder.Mas exemplifiquemos. Pela sua presença — vemo-lo no caso sim-ples da existência de um grupo sindical organizado em qualquerramo de -actividade: só porque esse grupo existe, o comportamentopatronal não pode ignorá-lo, sendo assim influenciado por ele. Pelasua interpenetração — vêmo-la na relação entre «vida familiar»e «actividade profissional»: a natureza, as condições, os horários,a remuneração do trabalho profundamente se repercutem na vidada família, no grupo familiar; mas, inversamente, as condições davida de família também se repercutem no rendimento profissionaldo indivíduo no seu grupo de trabalho. Pelo que os grupos uns aosoutros transmitem— vemo-lo em qualquer das formas já citadasde intercâmbio intencional ou não-intencional entre grupos: a prá-tica das negociações entre sindicatos operários e organismos patro-nais ocasiona, a longo prazo, modificações de atitudes e de com-portamentos em ambas as partes; e a propagação de aspirações deumas classes a outras, não só produz imediatas, embora graduais,alterações na conduta das classes contagiadas, como provoca, subse-quentemente, reacções, nas classes contagiadoras, a essas alterações.Finalmente, pela sua força e seu poder —• vemo-lo em tudo o quena sociedade são formas de dominação de um grupo sobre outro ouformas de competição ou conflito entre grupos, as quais são igual-mente formas de os comportamentos de uns grupos influenciarem— unilateral ou bilateralmente — os de outros.

5.° Um complexo de sistemas de actividades, exercendo fun-ções integradoras e (ou) transformadoras do sistemasocial

Uma parte da acção dos indivíduos e grupos é descontínua,ocasional, assistemática. Por exemplo: um indivíduo pode eventual-mente entrar em pugilato com outro; mas não se dedicará habi-tualmente a esse género de acção. Outra parte, a mais importanteem tempo consumido, é, pelo contrário, continuada, ou pelo menos

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repetida, tem uma significação que perdura e reveste-se de formasmais ou menos complexamente ordenadas. Um tipo de acção comtais características — eis o que é uma actividade.

Assim entendida a expressão, as actividades constituem, comoé evidente, um dos componentes essenciais da vida social. Não seconcebe uma sociedade sem actividades definidas, formando siste-mas estruturais e funcionais. Através delas, os indivíduos e osgrupos procuram dar satisfação às suas aspirações e necessidades,realizar ou defender os seus valores, cumprir tos seus projectos— e lograr tudo isso através de uma compartimentação do tempoe do esforço e de uma especialização das próprias actividades.Simultaneamente, é através delas que se exercem as grandes e pe-quenas funções sociais (produção, governo, educação, culto, reivin-dicação, etc.) que operam no sistema social global, contribuindo,ora para o manter, ora para o alterar.

6.° Uma cultura diferenciada em subculturas

Na linguagem corrente, o termo «cultura» é utilizado, quandose refere ao indivíduo, como sinónimo de formação intelectual«superior», e quando se refere à produção espiritual colectiva deuma dada sociedade, como designação do que, em tal produção, seconsidera também «superior»: as Ciências, as Artes, a Filosofia* aLiteratura, o Pensamento em geral. Por isso vulgarmente se dizque há pessoas inculta^, e se pode também dizer dum meio social,duma classe ou mesmo duma sociedade que é inculta. O sociólogoutiliza o mesmo termo numa outra acepção. Para ele, como dizEalph LINTON, «não existem sociedades, nem indivíduos, desprovidosde cultura. Toda a sociedade possui uma cultura, por muito sim-ples que seja, e todo o ser humano é culto, no sentido de ser porta-dor de uma determinada cultura» 57.

Nesta acepção, uma Cultura é uma totalidade de elementosmateriais e não-materiais, formada por tudo o que, ao longo dotempo,, os indivíduos e os grupos criaram, em todos os domíniosonde se manifesta a acção criadora (e transformadora) do Homem,desde que esses elementos se conservem numa sociedade, aí sejammais ou menos amplamente partilhados e aí assumam algum signi-ficado de verdade, valor ou utilidade. Mais sucintamente: umaCultura é tudo o que o Homem acrescentou à Natureza física,biológica e humana e do qual uma swiedade é portadora.

Exemplificando, formam a Cultura de uma sociedade elemen-tos como os seguintes: o idioma e os dialectos; os usos, costumes,

57 Ralph LINTON, Cultura y Personalidad, trad., Fondo de Cultura Eco-íiómica, México, 1959, p. 44.

in...31

convenções e preconceitos sociais; as crenças colectivas, e as atitu-des e opiniões socialmente difundidas; as filosofias, as artes, asciências, as doutrinas sociais e ideologias políticas; o saber e o pen-samento em geral, na medida em que os seus métodos e resultadosse acham difundidos e conservados em círculos sociais mais oumenos latos; os tipos e técnicas de pensamento; os processos detrabalho, as tecnologias, os instrumentos de produção e os métodosde organização que nessa comunidade se conhecem e utilizam; osobjectos de uso pessoal, os utensílios domésticos, as obras de arte,desde que reconhecidos como tais; os edifícios, os monumentos etodas as construções materiais a que na sociedade se atribui qual-quer utilidade ou valor; as modificações introduzidas pela acçãohumana no mundo físico e biológico e mantidas pela sociedade; ossistemas jurídicos, as leis e as instituições em vigor; todos osorganismos sociais existentes; as escalas de prestígio das diversasocupações e posições sociais; etc.

Todo este conjunto de elementos mentais e materiais e depadrões de comportamento constitui uma «herança social», ou seja:algo que, através da sociedade, se recebe do passado. Herança que,ao longo do tempo, vai, no entanto, sofrendo transformações, querpor abandono ou penda de alguns dos seus elementos, quer porabsorção de elementos novos; e estes elementos novos provêm, oude uma criação original (isto é: de inovações), ou da assimilaçãode elementos recebidos de outras Culturas. De qualquer modo,tanto o que é «herdado»^ como o que é «inovado» ou «assimilado»,teve a sua origem em acções criadoras humanas. E por isiso cadaCultura — embora, como totalidade e «herança social», se conte-sivas acções criadoras humanas — seleccionados, conservados,transmitidos e difundidos no tempo e no espaço, por uma dadasociedade.

Assim se entende a afirmação de LINTON de não haver socie-dades desprovidas de Cultura — entendendo-se ao mesmo tempoo que ele acrescenta: «nem sociedades, nem indivíduos». Porque aCultura — embora, como totalidade e «herança social», se conte-nha na sociedade e por ela se conserve, transmita e dif unda —, nãoé (sob o aspecto de vigência e forma de pensar, de sentir, de agire de se relacionar) algo de exterior ao indivíduo. Na verdade,também o indivíduo, e não só a sociedade, é um portador de cultura— tudo nos seus modos de ser, de parecer e de existir surge carre-gado» de elementos culturais e é por estes «modelado». Sejam pala-vras,, conceitos, conhecimentos, sentimentos, atitudes, aspirações,motivações; sejam padrões de comportamento, formas de relação,processos de trabalho, aptidões técnicas; sejam ainda métodos depensamento, noções morais e jurídicas, conceitos de valor e utili-dade, interpretações da realidade, concepções do mundo e da vida,

ou crenças e vivências religiosas — em tudo isso a carga dos ele-mentos culturais, transmitidos pelo meio social ao indivíduo, quan-do não é exclusiva ou dominante, revela-se ao menos muito forte.Consciente ou inconscientemente (sobretudo inconscientemente), oindivíduo vive, sente e actua como participante da Cultura e deter-minado por ela. Decerto, não totalmente determinado; no entanto,muito mais do que vulgarmente supõe. Comparem-se modos deviver, de pensar, de sentir e de agir de indivíduos portadores deCulturas muito díspares, veja-se até que ponto parecem incom-preensíveis, aberrantes ou «exóticos» a uns os modos dos outros,,e poderá sentir-se a enorme força das determinações culturais namente e na vida dos indivíduos. O contraste torna então visívelo que o hábito nos não deixa aperceber.

Mas sendo assim, a Cultura não deve ser concebida apemascomo um conjunto de resultados da acção criadora dos homens.Deve encarar-se também como uma poderosa força modeladorada vida humana individual e social. (Mais precisamente: como umvigoroso sistema de elementos actuantes sobre todos os aspectosda personalidade e da acção dos indivíduos, assim como sobre todosos aspectos da estrutura, da organização e da vida social.

Simplesmente: se é certo que cada indivíduo é um portadorde Cultura, nenhum o é de toda a Cultura: a participação nestafaz-se a diferentes níveis. Um camponês analfabeto e um diplo-mado por qualquer escola superior participam, de facto, na mesmaCultura; mas em níveis muito diferentes. Por outro lado, o próprioconteúdo da Cultura, comum à generalidade dos indivíduos, variacom o «meio social», com a classe, com a geração, com o sector deactividade, com a região, com a etnia, até com o sexo. Por exemplo:uma é a cultura urbana, outra a rural; uma a operária, outra aburguesa; uma a industral, outra a militar; uma a feminina, ou-tra a masculina. De modo que — por contrastes de nível e (ou) deconteúdo — a Cultura global aparece, na verdade, diferenciada emsuboulturas. O que significa que a sociedade nos surge assim di-vidida em sectores — justapostos ou entrecruzados — onde os com-portamentos individuais e colectivos, as atitudes, as motivações)*as ideias e as normas sociais, sendo modelados por diferentes sub-sistemas culturais, são por isso mesmo diferentes de sector parasector, embora dentro de um esquema fundamental comum, quea Cultura global a todos propõe e impõe.

O sociólogo — mais ainda o psicólogo social — sabe que estacomunidade de esquema fundamental, esta personalidade culturalbásica e comum, se por um lado facilita a comunicabilidade super-ficial entre indivíduos portadores de subculturas distintas, poroutro dificulta a percepção profunda das disparidades intersub-culturais. Por exemplo: o urbano, em face do rural, tem dificul-dade em entender «como se pode ser rural»., como se pode ser, ao

mesmo tempo, tão semelhante e tão díspar. E não vai facilmenteà raiz cultural da diferença. Também na distinção entre o mas-culino e o feminino, ou entre o homem e a mulher, muito do quevulgarmente se atribui ao próprio sexo, ou à natureza, não é maisdo que diferenciaçjão subcultural, ou seja: imagem e norma cria-das na sociedade, e nela e por ela mantidas.

7.° Uma organização global, composta de organizações par~ciais e parcialmente contraditórias

É do senso comum a ideia de que, em condições de normali-dade, as sociedades se apresentam organizadas, havendo no entantoperíodos ou sectores em que a vida social se pode desorganizar emescala mais ou menos profunda e lata. Mas, em que se pensa,quando se fala de organização ou desorganização das sociedades?Por via de regra, apenas se tem em vista a organização política,a legislação, a ordem pública.

Para o sociólogo, o conceito de organização social é muitomais compreensivo, abrange muitos outros elementos. Antes domais, ele constata que, em todas <as sociedades e em todos os gru-pos, existem, a todos os níveis controles sociais — ou seja: proces*sos mediante os quais se assegura ou tende a criar conformidadea determinar padrões de comportamento. E nota que alguns de taiscontroles são internos aos próprios indivíduos, actuando na suamente ou consciência como «directrizes de conduta pessoal», a-opasso que outros são externos aos indivíduos, o p e r a n d o comainfluências coactivas ou persuasivas emanadas de grupos ou «cen-tros de poder».

Na verdade, os indivíduos impõem a si mesmos, ou cum-prem desprevenidamente, inúmeras regras de comportamento, rece-bidas— por tradição, educação e experiência (isto é: por «apren-dizagem», no sentido mais amplo desta expressão)—das socie-dades, dos grupos, das classes sociais, dos meios a que pertencemou querem pertencer, adaptando assim, internamente, o seu com-portamento a «directrizes de conduta» que são normas sociais«interiorizadas». Também são, porém, forçados ou persuadidos —pelo temor de sanções ou pela esperança de recompensas — a con-formar-se a outras normas que lhes aparecem como totalmenteexógenas; e então é só exteriormente que os indivíduos se adap-tam, quer para evitar reacções repressivas (que poderão ir desdeo «ser mal visto» até ao ser preso e condenado), quer para conse-guir algo que só cumprindo a norma se pode obter. Finalmente, osindivíduos são ainda conduzidos pela propaganda, pelos métodos deformação maciça de opiniões, por técnicas de produção colectivade atitudes e estados emocionais. Neste caso, a adaptação do indi-

víduo a directrizes exteriores é interna, mas resulta de manipu-lações deliberadas e externas dos seus mecanismos psíquicos, (inte-riores». Sejam, porém, internos ou externos, sempre os controlessociais se traduzem em sujeição — mais ou menos completa—doscomportamentos individuais e colectivos a normas produzidas nasociedade ou em algum dos seus grupos ou sectores.

São, de facto, inúmeros — e por vezes contraditórios — os sis-temas normativos que regulam a vida social. Os mais evidentes sãoos «códigos de prescrições»: códigos morais, religiosos^ legais, con-suetudinários; códigos de honra, de dignidade, de honestidade; có-digos ide classe, de casta, de raça; códigos de solidariedade e deluta; regras de jogo político ou económico; etc. Não menos evi-dentes são as «instituições»^ das quais umas são grupos formal-mente constituídos, como o Estado, a Igreja, um Sindicato, aopasso que outras são meros sistemas de normas—> orgânicos, du-radouros e polarizados por uma ideia-finalidade— como o casa-mento, a propriedade privada, a contratação colectiva, o doutora-mento. Conforme observa Maurice DUVERGER, dois traços parecemfundamentais na sua caracterização: a organicidade («todos oselementos da instituição se encontram, não meramente adicionadosuns aos outros, mas integrados num conjunto cujas diversas partessão solidárias e hierarquizadas») e a durabilidade («a instituiçãodura mais do que cada um dos seus membros, sobrevive-lhes, es-tendesse sobre várias gerações») 58. As instituições são, na verdade,as formas mais estáveis de explícita ordenação da vida social. Mashá ainda as «ideias e crenças normativas» que, mesmo quando nãose traduzem em prescrições declaradas» modelam atitudes e com-portamentos individuais ou colectivos, influenciam a formação eevolução das normas e instituições sociais. Com efeito, as con-cepções do mundo e da vida, as crenças religiosas, os mitos, asdoutrinas sociais, as ideologias políticas regem a vida social, atra-vés, por exemplo, de noções tão fundamentais como as de liberdade,justiça, igualdade, direitos do homem, luta pela vida, reivindicação,competição, fatalismo, progresso — noções que exercem sobre ascondutas pessoais e sociais uma forte pressão. Finalmente, há os«valores sociais», as preocupações (ou finalidades) dominantes docomportamento humano numa dada sociedade. O bem-estar, a se-gurança, a fortuna, o prestígio, o poderio, a distinção de classe, oêxito nos negócios, a eficácia, o «gozar a vida», o «casar-se e terfilhos» —»eis alguns exemplos desses valores, dessas preocupaçõesdominantes, que não só motivam e dirigem os comportamentosindividuais, como também informam toda a acção social, toda a

58 Vd. Maurice DUVERGER, Méihodes des Sciences Sociales, P.U.F., Pa-ris, 2.a ed., 1961, p. 3i3i2.

dinâmica da sociedade. Variam^ é certo, no tempo e no espaço; etambém em função do meio social, da classe, da subcultura. Maspolarizam toda a acção e organização social, quer em sentidos con-vergentes, quer segundo linhas divergentes. Os conflitos sociaissão, com frequência^ conflitos de valores diferentes, assumidos pordiferentes sectores da sociedade.

Mas, como se tornam eficazes todos estes «sistemas normati-vos» — códigos, instituições,, ideias e crenças, valores sociais?Como se processam, por outras palavras, os controles sociais? Emprimeiro lugar, pela «educação», sob todas as formas e em todosos níveis, na medida em que é «socialização», ou seja: transmissãoe inculcação ao indivíduo das formas socialmente «normais» deviver, de pensar, de sentir, de comunicar, de agir, de fazer; — for-mas normais na sociedade em geral ou em algum dos meios sociais,classes e sectores que a constituem. Depois, pela «pressão socialdifusa», indistintamente emanada da sociedade, do grupo, da classe,do meio social, sob a forma, quer de «expectativas de comporta-mento» a que se aguarda que o indivíduo corresponda, quer dereacções de «desaprovação», mais ou menos benigna, mais ou menosforte, quandio o [indivíduo não se conforma a tais expectativas.Depois ainda, por todos os processos de «repressão formal» dasacções contrárias às normas da sociedade ou do grupo, ou deestimulação «por gratificação» dos actos conformes a essas normas.Assim, por exemplq, se as leis, os tribunais, a polícia e as prisõesexercem controle por via repressiva, já as políticas seguidas naatribuição de cargos públicos, ou os critérios adoptados para apromoção do pessoal nas empresas, o exercem, em grande parte,por via de estímulos e gratificações, desencorajando decerto asatitudes e os comportamentos desviados de certas normas, mas aomesmo tempo encorajando e premiando as atitudes e os compor-tamentos obedientes a essais mesmas normas. Por fim, certos con-troles sociais efectuam-se também por todos os já mencionadosprocessos da propaganda, da formação de opiniões, da produçãoorientada e deliberada de estados mentais e emocionais colectivos.Assim uma empresa controla o seu mercado (isto é: os comporta-mentos dos consumidores), um partido controla o seu eleitorado(isto é: os comportamentos dos seus eleitores) e um governo con-trola a população (isto é: os comportamentos dos seus súbditos).

Quem mantém, portanto;, em vigor os «sistemas normativos»?Quem são, de outro modo, os agentes de controle social? Em rigor,cada indivíduo é um agente de controle social, pois que reage aoscomportamentos alheios, segundo normas sociais nele interiorizadasou às quais conscientemente se submete. E também cada grupo,classe, meio social ou sociedade global o é, uma vez que incessan-temente o actua através da pressão social difusa. Mais claramente

ainda o são todos os grupos formais e informais, institucionali-zados ou não, onde <a «socialização» do indivídua, a aprendizageme assimilação das normas sociais fundamentais, se efectua (assim,por exemplo, as famílias são importantíssimos agentes de controlesocial). É evidente que o são também todos os «organismos sociais».E são-no, enfim, todos os «centros de poder» (políticQ, económico,religioso, intelectual, etc.) operantes na sociedade.

Pois bem: é lógico se diga que a vida social está organizada,na medida em que está efectivamente regulada por sistemas nor-mativos socialmente operantes, ou seja: na medida em que nela seexercem controles sociais. Que todos estes controles convirjamnuma totalidade coerente, ou que, pelo contrário, entre eles exis-tam contradições, é na verdade secundário sob o ponto de vista dopróprio conceito de organização social — embora seja difícil con-ceber essa harmoniosa sociedade onde não haveria contradições.Nas sociedades reais, complexas e diferenciadas), onde nos é dadoviver, a organização social global é, simultaneamente, um jogo, umequilíbrio e um compromisso de organizações sociais parciais, emparte compatíveis, em parte incompatíveis. Assim, por exemplo,as organizações capitalistas e as organizações sindicais em parteconvergem, em parte contradizem-se, no interior da organizaçãoglobal das sociedades ocidentais.

Em suma: estamos perante uma concepção muito ampla deorganização social, em que se compreendem: 1.°) todos os sistemasnormativos, concordantes ou discordantes, com vigência efectivana sociedade; 2.°) todos os controles sociais, mediante os quaisaqueles sistemas se mantêm vigentes e dominam, ao menos parcial-mente, comportamentos individuais e colectivos; 3.°) todos os agen-tes (ou agências sociais) desses controles. Concebida deste modae com toda esta amplidão, a organização social aparece-nos, nãocomo algo sobreposto à vida social, mas, ao invés, como algumacoisa de profundamente radical e interior à sociedade, ao fenómenosocial — e mesmo ao indivíduo, à estrutura do comportamentopessoal.

Num extensíssimo aspecto — quer dizer: em tudo o que nãoé comportamento inteiramente não-regulado ou movimento estric-tamente inovador —, a acção social, a acção dos indivíduos e dosgrupos na sociedade, é ininteligível, sem referência, sem travação,às normas de organização social.

3. Estrutura, cultura, organização e vida social

Os diversos elementos sumariados na exposição precedente —aos quais chamámos «ingredientes da realidade social» — não sãoindependentes uns dos outros, não se encontram meramente justa»

postos. Pelo contrário,, é tal a sua imbricação que, em cada Ulttdeles, todos os mais se deparam^

Seja<, por exemplo, aquele que primeiro mencionámos: indi-víduos agindo. Desde logo, não há indivíduos em estado de natu-reza: todos se encontram «aculturados» e «socializados», todos sãoportadores de Cultura e de normas sociais interiorizadas (ou intro-jectadas, como dizem alguns autores). Assim, o agir dos indivíduosé sempre poderosamente conformado por modelos culturais e nor-mas sociais de conduta. Mas o agir é, necessariamente, inter-agir;a acção do indivíduo é sempre, na sociedade, causa e efeito de umainteração com outros indivíduos. Além disso, os indivíduos vivemem grupos, trabalham em grupos, agem em grupos: a sua acçãoe inter-acção não é, pois independente desses grupos, nem das rela-ções que entre os grupos decorrem, nem tão-pouco das actividadesque neles se exercem. Finalmente, já notámos como as normas deorganização social modelam, por via interna e externa, a própriaestrutura dos comportamentos individuais.

Desta sorte, em um dos «ingredientes» apontados, reencontra-mos, na verdade, todos os outros: relações interindividuais, grupos,relações entre grupos, actividades, cultura, organização social.Outro tanto poderia ser verificado, partindo de qualquer destes.Foi para sublinhar essa íntima combinação, na realidade social,dos vários elementos analiticamente dissociados, que recorremos àexpressão, claramente imprópria, de «ingredientes», É outra veza percepção do fenómeno social total, na sua profunda unidade, queassim nos aparece.

Mantendo-nos sempre no mesmo nível pré-científico, um novopasso em frente é ainda possível dar, reduzindo a quatro pontos oesquema anterior. Estes quatro pontos são: estrutura social,cultura, organização social e vida social. Não retomaremos, noentanto, o segundo e o terceiro, uma vez que já dfcles nos ocupámos.

Na sua excelente Sodology, A Guide to Problems and Lite-rature, confessa T. B. BOTTOMORE: «estrutura social é um dos con-ceitos centrais da Sociologia, mas não é utilizado de uma formainteiramente coerente ou desprovida de ambiguidade» 59. De facto,o conceito de estrutura é muito controverso, não apenas entre ossociólogos e demais investigadores das Ciências Sociais60, comotambém entre os especialistas de vários ramos do conhecimento61.No Vocabulário de André LALANDE, vêm referidos dois significadosprincipais do termo estrutura; 1.°) disposição das partes que for-

59 T. B . BOTTOMORE, Sociology, cit., p . 109.60 Veja-se u m resumo de t a l controvérs ia em: Emi le LÉVY, Analyse

Structurele et Méthodologie Economique, Editions Génin, Paris, 1960, l.a parte.61 Vd. XXe Semaine de Synthèse, La Notion de Structure et Ia Structure

de Ia Connaissance, Ed. Albin Michel, Paris, 1967.

u

mam um todo, por oposição às suas funções; 2.°) por oposição auma simples combinação de elementos, um todo formado de fenó-menos solidários, tais que cada um depende dos outros e não podeser o que é senão na e pela sua relação com eles. Em qualquer des-tas acepções, a análise da estrutura de uma totalidade real implicaa possibilidade de nela encontrar elementos individualizáveis, istoé: susceptíveis de serem considerados distintos uns dos outros,embora componentes do todo. MaS), enquanto na primeira acepção,o simples arranjo (ou disposição desses elementos no todo) já nosdá a estrutura, na segunda, pelo contrário, a estrutura só nos édada pela interdependência dos diversos elementos, no seio da to-talidade que os engloba.

Ora, o simples empreendimento de decompor uma sociedade(ou mesmo um grupo, uma organização, uma instituição) nos seusinumeráveis elementos integrantes, é praticamente irrealizável comos instrumentos de observação e os recursos de que actualmentedispõem as Ciências Sociais.; Apenas alguns elementos podem seridentificados e analisados com razoável aproximação. A partir de-les, podem traçar-se diversas imagens arquitecturais da sociedade,que são como ref racções da realidade através de diferentes prismas— ou talvez melhor: filtrações do real operadas mediante distintosfiltras de observação. Essas diversas imagens podem ir-se suces-sivamente acrescentando, sobrepondo, justapondo — e assim se teráum (Conhecimento cada vez mais rico (ou antes: menos pobre) das«partes» que compõem a sociedade e do seu arranjo global, ou seja:da estrutura (social) na primeira acepção de LALANDE.

Mas, se para além da identificação e disposição das várias«partes» no todo, se quer ir até à interdependência, a ousadia e adificuldade do empreendimento analítico são incomparavelmentemaiores e as insuficiências dos instrumentos e recursos, mobili-záveis para a análise, revelam-se muito mais limitativas. E então,ou se privilegiam determinados tipos de interdependências maisvisíveis ou mais facilmente captáveis (como, por exemplo, as inter-dependências entre os «papéis sociais» que os indivíduos desem-penham na sociedade, no grupo, na organização ou na instituiçãoconsiderada), ou se escolhem pequenos conjuntos de variáveis cujainter-relação se determina e procura interpretar (por exemplo, ní-vel de desenvolvimento económico e tipo de regime político; estru-tura de classes e sistema educacional; etc.). E de novo teremosdiversas filtrações do real, ou seja: diferentes imagens selectivasque podem ir enriquecendo o conhecimento adquirido acerca de umadada estrutura, mas que sempre muito longe ficam de o esgotar.

É tal impossibilidade prática de captar com grande aproxi-mação a estrutura social, em toda a sua complexidade, que seencontra na origem das incoerências e ambiguidades acentuadaspor BOTTOMORE. Ela abre a porta, com efeito, a uma certa arbitra-

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riedade, posto que força os investigadores a escolher, entre osmúltiplos elementos, arranjos e interdependências (que não podêttlter a esperança de abarcar em toda a sua extensão), os que se lheafiguram mais importantes, mais fortemente caracterizadoras dasestruturas. Ora, diferentes quadros teóricos ou diferentes objecti-vos de investigação irão determinar, forçosamente, que os mesmoselementos, arranjos e interdependências assumam, para diferentesinvestigadores, diferentes importâncias. E assim se terão múltiplasconcepções da estrutura social.

Grave é que tais concepções, necessariamente limitadas, sejamtomadas por exclusivas — únicas cientificamente pertinentes. Masa variedade das definições de estrutura social não será, em si mes-ma, de lamentar, se cada uma delas for proposta como uma dasvias possíveis para a abordagem analítica dessa estrutura e seforem explicitadas as razões que levaram a adoptá-la. Assim pro-cede o próprio BOTTOMORE, quando escreve: «Das várias concep-ções que discutimos, a mais útil parece-nos ser a que encara aestrutura social como o complexo das principais instituições e gru-pos da sociedade. Não há grande dificuldade para identificar essasinstituições e grupos. Podense mostrar que a existência da socie-dade humana requer determinado® arranjos e processos, ou,como já foi dito, que há certo® «prerrequisitos funcionais da socie-dade». Os prerrequisitos mínimos parecem ser: 1) um sistema decomunicação; 2) um sistema económico, respeitante à produção eatribuição dos bens; 3) disposições; (que incluem «a família e a edu-cação) destinadas à socialização das novas gerações; 4) um sistemade autoridade e distribuição do poder; e talvez 5) um sistema deritual, servindo para manter ou incrementar a coesão social e paraatribuir reconhecimento social a acontecimentos pessoais signifi-cativos, tais como o nascimento, a puberdade, o namoro, o casa-mento e a morte. Os principais grupos e instituições são os concer-nentes a estes requisitos básicos (à excepção do primeiro, que ésatisfeito desde que existe uma linguagem. A partir deles,, outrospodem surgir, como por exemplo a estratificação social, que entãoos influenciam por sua vez. É escasso o desacordo entre os soció-logos acerca de quais são as instituições principais (...)»82.

Pois bem: partamos do facto simples e evidente que é a divisãodas sociedades, grupos e subgrupos em indivíduos diferindo unsdos outros por múltiplos atributos, posições sociais, actividades,papéis sociais e localizações espaciais. Se considerarmos, por umlado, os múltiplos grupos e subgrupos duradouros (quer dizer:cuja existência não é puramente ocasional ou episódica) — nosquais os indivíduos efectivamente participam ou aos quais referem

62 T. B. BOTTOMORB, Sociology, cit., p. 111-112.

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o seu comportamento — com as suas respectivas dimensões, carac-terísticas, actividades, organizações e instituições e os seus meios deacção na sociedade (por exemplo: estatuto legal, riqueza, poderio,prestígio social, etc.); se considerarmos, por outro lado, a compo-sição da população em classes estatísticas diferenciadas segundoatributos socialmente relevantes (como idade, sexo, instrução, pro-fissão, sector de actividade, fortuna, rendimento, nível de vida,comportamento de consumo, atitude política, opinião, crença reli-giosa, etc.); se considerarmos, ainda, a estratificação dessa mesmapopulação em camadas e subcamadas constituídas por indivíduoscujas posições na sociedade são reputadas superiores, iguais ou infe-riores às cie outros indivíduos e entre as quais existe,, portanto,uma escala de «distâncias» sociais; se considerarmos, também, asmúltiplas actividades colectivas (e sistemas de actividades — comoo das que se exercem na produção e distribuição de bens, serviçose rendimentos) e os inúmeros papéis sociais (e sistemas de papéissociais — por exemplo, o papel do homem e o da mulher, na famí-lia) ; se considerarmos,, enfim, a implantação espacial de todosesses elementos (grupos e subgrupos, população e suas classesestatísticas, estratos e subestratos, actividades e sistemas de acti-vidades, papéis sociais e respectivos sistemas) em áreas ecologica-mente distintas (aglomerações de diversa dimensão e composição,regiões, zonas de povoamento desigual, etc.); e se admitirmos que,mediante adequados instrumentos de observação e interpretação(já disponíveis ou ainda a criar) é possível ir inventariando,acumulando, conjugando, inter-relacionando os vários fragmentosde análise que, nos cinco ou seis campos apontados, se vão suces-sivamente reunindo—então poderemos dizer que, através de todoesse esforço, o que é visado e se está elaborando é uma dada ima-gem da estrutura social — ou melhor: várias imagens (entre outraspossíveis) parciais, complementares, cruzadas e interdependentes,dentro de um certo esquema em desenvolvimento e em progressivadefinição.

Trabalho enorme este, ao qual, sozinha, a Sociologia não pode-ria evidentemente abalançar-se. Ela pode trazer-lhe a perspectivaunificadora, digamos: a intenção holística. Pode trazer-lhe tambémcerto® materiais que, melhor que as outras Ciências da Sociedade,sabe recolher, ordenar, interpretar: por exemplo a identificaçãodos grupos e subgrupos, sua estrutura, organização e relações; aidentificação dos estratos e subestratos,, sua composição, suasmanifestações organizadas e institucionais, suas mútuas relações,sua influência na sociedade; etc. Mas da Economia, da Demogra-fia, da Ciência Política, da Psicologia Social, da Geografia Humana,muitos outros materiais hão-de vir. E só o trabalho inter-disciplinarpermitirá que os fragmentos assim carreados multilateralmente, seapresentem em termos de se tornar possível uma coordenação e uma

visão englobante. iSerá necessário acrescentar — depois do que atrásse disse a respeito da profunda imbricação dos diversos «ingredien-tes» da realidade social — que a estrutura assim progressivamenterevelada e desenhada seria ininteligível fora do quadro da respec-tiva cultura e organização social? Aliás, forçosamente integra emsi mesma importantes elementos de ambas: — as instituições-gru-pos, por exemplo, são simultaneamente partes da estrutura, dacultura e da organização social.

Estrutura, cultura, organização — eis as três faces de umsistema social. No interior do sistema decorre a vida social, oincessante fluxo e circuito das acções e interacções individuais ecolectivas, ao qual o sistema sobrepõe um quadro1, uma forma, sig-nificações, normas, orientações. A vida social não é, porém, total-mente modelada pelo sistema — e pode transformá-lo. Ora, atransformação dos sistemas pela vida social é particularmente sen-sível nas sociedades contemporâneas, devido à poderosa irrupçãode acções adaptadoras, operantes sobre o sistema*, isto é: sobre asua estrutura, cultura e (ou) organização. Na verdade, a acçãoindividual ou colectiva pode guiar-se, ou por projectos adaptativos,ou por projectos adaptadores. No primeiro caso, o1 sujeito da acçãoadapta-se ao sistema, opta, decide e actua dentro das condições,concepções e regras que o sistema lhe propõe; no segundo, o sujeitoda acção adapta o sistema, isto é: opta, decide e actua tentandoalterar alguma ou algumas de tais condições, concepções e regras.Assim, um trabalhador que procura apenas empregar-se em qual-quer empresa limita-se a uma acção de adaptação ao sistema; masum trabalhador que se reúne a outros para formar um sindicato,ou para exigir uma elevação de salários, procura adaptar o sistemaaos seus próprios projectos, tenta modificar certas condições dosistema pela sua mesma acção.

Compreende-se, decerto, que a análise sociológica destes doistipos de acção tem de seguir distintos caminhos e utilizar instru-mentos conceptuais e teóricos diferentes. Assim, a teoria funciona-lista (escola de Talcott PARSONS) está, na verdade, basicamenteconcebida para interpretar a acção adaptativa (aliás, define-se a simesma como uma teoria geral da acção); mas só recentemente, emFrança, Alain TOURAINE pôs abertamente o problema e certas ba-ses de uma teoria accionalista, que parece efectivamente concer-nente à acção adaptadora 63.

63 Alain TOURAINE, «Pour une sociologie actionnaliste», Archives Euro-péennes de Sociologie, I (1964), pp. 1-26. Não será, aliás, por centração ideoló-gica conservadora, interessada na manutenção de um dado sistema, que ateoria funcionalista tão pouco apta se revela para apreender e interpretara acção adaptadora, transformadora de sistemas? Vd. Andrew Hacker, So-ciology and Ideology» in Max BLACK (ed.), The Social Theories of TalcottParsons, Prentice-Hall, Englewood Cliffs, N. J., 1961.

III

GRANDES CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO SOCIOLÓGICA

Partindo do esquema de percepção sociológica da realidade so-cial acima traçado, possível é definir agora um certo número degrandes campos de investigação da Sociologia. Eis o que tentare-mos fazer seguidamente.

1. A análise dos comportamentos dos indivíduos sob condiçõessociais

A sociedade surge-nos, em primeiro lugar, como uma colecçãode indivíduos agindo. Mas os indivíduos não agem no vácuo: a suaacção desenrola-se num «meio envolvente», que sabemos ser ummeio sócio-cultural (interactuante e interpenetrado, aliás, com ummeio natural). Assim, entre o indivíduo e o meio sócio-cultural háum permanente jogo de acções e reacções: o meio reage à acçãodo indivíduo e o indivíduo reage à acção do meio. Deste modoi,os comportamentos individuais não são explicáveis apenas em fun-ção de factores e mecanismos psicológicos. Importa atendertambém, e não menos, às condições e transformações do meiosócio-cultural em que o indivíduo age e reage, às incidências detais condições e transformações sobre os comportamentos indi-viduais.

Da explicação dos comportamentos individuais através da aná-lise de factores e mecanismos psicológicos, ocupa-se a Psicologia.Da explicação desses mesmos comportamentos pela análise das con-dições e transformações do meio sócio-cultural envolvente do indi-víduo, ocupa-se a Sociologia. Evidentemente, os dois tipos de ex-plicações partem de pontos diferentes e seguem diferentes cami-nhos ; mas convergem e completam-se um ao outro. Eis, por conse-guinte, um primeiro grande campo de investigação sociológica: oda observação, conceituação e interpretação dos comportamentosindividuais na sociedade.

Tomemos um exemplo: o dos comportamentos dos indivíduosno trabalho. O sociólogo pode começar por observar, registar, des-crever com minúcia e rigor, por exemplo, os comportamentos detrabalhadores no exercício de funções oficinais. Descobre assim,suponhamos, que em certas oficinas os operários refreiam delibe-radamente a sua produtividade, enquanto noutras o não fazem.Eis identificado um tipo de comportamento (refrear deliberada-mente a produtividade) que necessita de ser explicado. Que faz,então, o sociólogo? Vai tentar descobrir as condições de meio sócio--cultural a que esse tipo de comportamento pode ser directamente

atribuído — por exemplo: tensões e conflitos entre os operários e osseus chefes imediato®, atitudes e medidas adoptadas pela direcçãoda empresa, opiniões difundidas na massa trabalhadora, normas in-formais dos grupos de trabalho, características da organizaçãotécnica e administrativa da fábrica, atitudes dos sindicatos acercados problemas de produtividade^ etc. — e depois as condições a queessas devem, por sua vez, ser atribuídas—por exemplo: as con-cepções que determinam as atitudes e medidas da direcção da em-presa, os processos mediante os quaás se geram normas limitativasdo esforço e da produtividade nos pequenos grupos de trabalho,etc. Um número suficientemente elevado de estudos deste géneropoderá levar, por fim,, à determinação dos factores socio-culturaisdo refreamento da produtividade e da sua importância relativa.Analogamente se poderá chegar à determinação dos factores socio--culturais da incitação à produtividade. Num caso e no outro, ésempre uma interpretação objectiva — mas sócio-cultural, não psi-cológica—o que se pretende obter.

2. A análise dos grupos e da sua acção e evolução na sociedade

As sociedades — já o dissemos — não são formadas apenas porindivíduos, mas também por «unidades colectivas», isto é: por gru-pos sociais. Observar, identificar, descrever essas unidades, carac-terizar os seus tipos fundamentais — eis um primeiro empreendi-mento da Sociologia neste domínio.

Mas cada grupo — como a sociedade global — tem, ou pode ter,a sua estrutura, a sua cultura, a sua organização e a sua vida social.E assim), a Sociologia aparece-nos a investigar os processos decomunicação e de interacção que nos grupos se desenvolvem,, osseus sistemas internos de relações sociais, o® subgrupos que nelesse formam e actuam, as forças e os poderes formais e informaisque aí se exercem, os elementos culturais privativos e as situaçõesespecíficas que aí se geram e aí modelam as atitudes e os compor-tamentos individuais e colectivos.

Por outro lado, os grupos não surgem «por acaso», nem per-manecem isolados, imunes do contacto com outros grupos e com asociedade global. Pelo contrário: surgem e duram na sociedade,como elementos da sua estrutura — e se aí surgem e duram, éporque aí se verificam condições que os fazem surgir e durar;quando se extinguem, é ainda porque da sociedade desapareceramtodas as condições da sua permanência. Aliás^ na medida em queduram, os grupos mudam, isto é: produzem-se neles sucessivas alte-rações de estrutura, de cultura*, de organização e de vida socialinternas. Comof, porém, durante toda ,a sua duração, se achamsempre inseridos na sociedade global e envolvidos por todo um

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meio sócio-cultural, também ele em evolução, que não só os rodeia,mas neles penetra e com eles incessantemente interactua, a suaevolução não é autónoma, independente da que entretanto se pro-cessa à sua volta, no sistema social global. Por outras palavras: aevolução de um grupo é uma trajectória no tempo que é sempre de-terminada, conjuntamente, por factores internos e por factores ex-ternos ao grupo, uns e outros também em evoluçjao. E aqui temosum novo campo de investigação: a análise das condições e dos pro-cessos da formação, da evolução e da extinção dos grupos na socie-dade— análise incidente, não apenas sobre o grupo abstraído domeio envolvente sócio-cultural, mas também sobre todo o jogo deacçõas e reacções, de influências recíprocas, entre o grupo e o meiosócio-cultural que o rodeia.

Tomemos, outra vez, um exemplo: o dos grupos sindicais. Osociólogo começará, naturalmente, por observar e descrever osgrupos sindicais, tais como estes se lhe apresentam em diversospaíses, regiões, ramos de «actividade. E logo a partir da informaçãoassim recolhida lhe será possível distinguir tipos diferentes ide sin-dicatos: por exemplo, sindicatos de empresa, de ofício e de ramode actividade; sindicatos centralizados e descentralizados; sindi-catos de contestação, de negociação e de controle; sindicatos ideo-lógicos e de bem-estar. Masi, se o sociólogo distingue esses váriostipos de organizações sindicais, é porque se apercebe da existênciade diferenças significativas, de tipo para tipo, no atinente a estru-turas, elementos culturais», esquemas de organização formal, mo-delos de funcionamento efectivo, manifestações de vida sindical.Eis, por conseguinte, o que ele se proporá então investigar, paracada tipo de sindicato: as suas estruturas características, os seuselementos culturais próprios, a sua orgânica formali, o seu funcio-namento, as suas actividades, as suas relações com os trabalha-dores, as formas e o grau da participação destes na actividadesindical.

A sua análise não se limitará, contudo, a uma simples des-crição e sistematização. Para cada característica diferencial de umdado tipo de sindicato, o sociólogo buscará, no próprio sindicato efora dele, uma explicação. Assim, ele não se contentará com afir-mar, v. g., que os sindicatos de certo tipo são portadores de ideo-logias exigentes ide transformações radicais no sistema socialglobal e que os sindicatos de um outro tipo não só não reclamam,mas até se opõem a tranformações desse género. Tal diferenciade atitude e de acção será por ele explicada como resultante dedistintos condicionalismos internos e externos aos sindicatos decada um dos tipos considerados, bem como de uma disparidadede situação e de influência desses sindicatos na sociedade. Analo-gamente, serão interpretativas, e não meramente descritivas, as

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análises que o sociólogo fará, quer das relações dos grupos sindi-cais com outros grupos (com o Estado, com as empresas, com osorganismos patronais, com partidos políticos, etc), quer dos mé-todos de acção dos sindicatos e dos resultados desta acção na socie-dade, quer ainda da evolução dos grupos sindicais dentro de umdado tipo ou através de vários tipos sucessivos. Por exemplo: se osociólogo verifica que, em determinados países europeus, o sindi-calismo, sendo inicialmente contestativo, se transformou depois emsindicalismo negociador e tende agora para o sindicalismo de con-trole, decerto não lhe bastará constatar esse facto: — na verdade,procurará descobrir e mostrar como tal evolução se explica apartir de transformações internas, sofridas pelo próprio movi-mento sindical, e de alterações ocorridas na estrutura, na cultura ena organização da sociedade global.

3. A análise das condições, dos mecanismos e dos efeitos da in-teracção social

Os indivíduos e os grupos agem e reagem na sociedade. Eis,portanta, um novo campo de investigação sociológica: o da aná-lise das condições que influenciam ou determinam, dos mecanismosatravés dos quais se processam, conjugam ou opõem e dos efeitosque produzem na sociedade (considerada sob o ponto de vista so-ciológico) as múltiplas acções e reacções individuais e grupais.

Mas este campQ, o sociólogo partilha-o com o psicólogo social,cabendo a este último a análise da interacção que se produz no con-tacto imediato de indivíduo a indivíduo ou no seio de pequenosgrupos «face to face». Ao sociólogo interessa, essencialmente, ainteracção à escala da sociedade global e dos grandes grupos.

a) A sociedade, como um campo de intercomunicação humana

Situando-se neste nível macro-social, o sociólogo apercebe-sede que a sociedade constitui, antes do mais, um enorme campo deintercomunicação humana. Pela fala, pela escrita, pela imagem,por meios mecânicos, por simples gestos,, aparências e expressões,por todo um instrumental de símbolos e sinais, pelas suas atitudesexplícitas,, pelos seus mesmos comportamentos, pelos próprios re-sultados da sua acção — incessantemente os indivíduos e os gruposuns aos outros transmitem informações e de uns para os outrospropagam formas e conteúdos de pensamento,, de sentimento e deconduta. Aliás, sem essa ininterrupta intercomunicação, não po-deria sequer haver saciedade, mas tão-só aglomeração informe deindivíduos «encerrados» em si mesmos,, incapazes de acção conju-gada e de criação colectiva^ incapazes portanto de progresso. A

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intercomunicaçjão é, na verdade, o fundamento primordial das so-ciedades.

Podem distinguir-se nela dois componentes: uma circulaçãosocial de informação e um contágio social de formas de pensar, desentir, de agir e de reagir. Mas o segundo resulta do primeiro. Querdizer: os indivíduos e os grupos «emitem» constantemente informa-ções, que são «captadas» por outros indivíduos e grupos; mas ainformação captada não tem apenas, nos indivíduos e grupos re-ceptores, o efeito momentâneo de neles provocar a percepção dealguma coisa exterior; parte dela, sendo retida e acumulada namemória ou no subconsciente dos indivíduos, incorpora elementosnovos no conteúdo psíquico desses indivíduos e dos grupos por elesformados, elementos que aí se vão combinar com outros elementospreexistentes, dando origem ao aparecimento de novas formasde pensar, de sentir e de agir. E assim se produz o contágio — deideias, de atitudes, de sentimentos, de comportamentos. Em lin-guagem mais acessível poderíamos dizer que toda a massa de «in-formação» que, durante toda a sua vida, os indivíduos e os gruposrecebem, não apenas os informa, como também os forma.

O indivíduo começa a receber informação do mundo que orodeia (mundo físico, biológico e humano);, desde o primeiro mo-mento em que entra em contacto com ele. Essa informação temsobre ele um duplo efeito durável: por um lado, a aquisição deum conhecimento, mais ou menos amplo e complexo, do mundoonde vive; por outro, a estruturação e fixação de um determinadbitipo de personalidade, consubstanciado em mecanismos, disposiçõesmentais e emocionais e modalidades próprias de comportamento.Dois resultados, aliás*, onde se conjuga — sobretudo no segundo —a influência da informação com as da hereditariedade e do meiobio-físico. Como* porém, é evidente que os indivíduos (e não só osindivíduos: também os grupos) actuam simultaneamente em funçãodo conhecimento de que dispõem e dos seus mecanismos psicoló-gicos próprios — então compreende-se que a conduta dos indiví-duos e dos grupos na sociedade é poderosamente condicionada edeterminada pelo volume e conteúdo da massa de informação que,,ao longo de toda a sua duração, os atinge e eles recebem (isto é:que eles são efectivamente capazes de captar e acumular).

Simplesmente, a sociedade, sendo embora, e radicalmente,um campo de intercomunicação, nem por isso constitui um camponeutro e homogéneo de propagação da informação. Esta nãocircula uniformemente em toda a extensão da sociedade, nempermanece inalterada ao circular. Não circula uniformemente, por-que, de grupo para grupo, de classe para classe, de meio social parameio social, de sector para sector da sociedade, existem hiatos decomunicação, espontaneamente formados ou deliberadamente man-

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tidos, que retêm a circulação de grande parte do caudal <le informa-ção dentro dos limites de um dado grupo, classa, meio social, sectorgeográfico, económico, etc. E assim os grupos, classes, meios sociaise sectores da sociedade tornam-se relativamente «opacos» uns aosoutros — isto é: em maior ou menor grau não comunicam entre si.Além disso, a informação não permanece inalterada enquanto cir-cula,, porque é filtrada, reduzida (ou acrescentada), reinterpretadae reordenada, ao passar de uns para outros «receptores», dotadosde estruturas de percepção e conhecimento e de personalidade dis-tintas. As deformações da informação,, resultantes de todo esse pro-cesso — tão facilmente observáveis, por exemplo, no vulgar boato—, revelam-se particularmente extensas e intensas, quando nacadeia da transmissão (ou, por outras palavras, no circuito que ainformação percorre) há «receptores» culturalmente heterogéneos,situados em grupos, classes, meios sociais, sectores de actividade,estratos socio-íprofissionais, etc. distintos. Quanto mais longa acadeia transmissora e quanto maiores e mais numerosos os desní-veis e as diferenciações sociais e culturais entre os seus elos, maio»res as distorções sofridas, pela «informação».

Largo terreno se abre aqui à investigação sociológica. Muitassão, na verdade, as perguntas que podem ser postas —como, porexemplo, as seguintes:

1.°) Em que «universo de informação» se formam, trans-formam e actuam os indivíduos? — Por exemplo: como vêem omundo que os rodeia os camponeses ou os operários? qual é a suaimagem da sociedade e das outras classes? quais são os dados emecanismos económicos e políticos de que se apercebem e comoos apercebem e interpretam? que visão da sua própria posição esituação na sociedade é a sua? quais são os seus horizontes subjecti-vos de oportunidades individuais? quais as suas perspectivas inte-riorizadas de futuro colectivo (se as têm) ?

2.°) Quais são os «canais da informação» na sociedade? dequem partem, quem atingem, que transmitem, que filtragens ope-ram na transmissão, que distorções imprimem nos elementostransmitidos? — Por exemplo: tanto o ensino, sob todaa as formase em todos os níveis, como a imprensa, em qualquer das suas mani-festações, são importantíssimos «canais de informaçjão» acerca dosquais se podem formular estas interrogações.

3.°) Como se formam e mantêm na sociedade universos «semi--fechados» ou «quase-fechados» de informação? — Por exemplo:como desenvolvem certos sectores ou camadas da sociedade um sis-tema próprio de atitudes e concepções, uma visão «sua» do mundoe da sociedade, e preservam os seus membros do contágio de outrasatitudes e concepções?

4.°) Que hiatos de comunicação existem na sociedade? — Por

H

exemplo: que obstáculos impedem a informação técnica de irrigarmais profundamente certos sectores de actividade económica? quebarreiras obstam a que o operariado transmita à sociedade em geraluma imagem mais nítida ou mais fiel da sua situação, seus pro-blemas, suas aspirações, suas frustrações? que limitaçjões se revelamna imagem que as minorias dirigentes urbanas têm da agriculturae da vida rural?

5.°) Como são produzidos e circulam os vários tipos de «infor-mação» ? — Por exemplo: como e por que se geram e propagam esta-dos de inquietação social? como se desencadeiam pânicos financei-ros ou psicoses inflacionistas? como se difunde e como se transfor-ma, ao vulgarizar-sç, o conhecimento científico? como se transmi-tem e contagiam, de umas para outras classes sociais, necessida-des, aspirações, formas de comportamento?

b) A sociedade, como v/m campo de interacção

Mas a sociedade não é apenas um campo de intercomunica-rão : mais amplamente tem de ser vista como um campo de interac-ção. As acções dos indivíduos e dos grupos provocam outras acções(ou alterações) em outros indivíduos e grupos — eis o que chama-mos interacção. São muitas, e muito diferentes, as formas de inte-racção na sociedade. Sem desprezar as demais, o sociólogo destacasobretudo a cooperação, a oposição e a dominação.

Diz-se ««cooperação» a interacção que se processa em condiçõestais que é possível aos agentes interactuantes realizar concomitan-temente os seus projectos.

Diz-se «oposição» ia interacção que se processa de um modotal que, quanto maior o êxito de um agente nos seus projectos,menor o dos outros. Na realidade, a cooperação e a oposição apare-cem, com frequência, tão estreitamente associadas na interacção,que se pode utilizar o conceito de interacção mista ou de coopera^ção-oposição. Por exemplo: nas sociedades de economia capitalista,as relações económicas são, na generalidade, formas de coopera-ção-oposição.

A oposição pode, no entanto, ocorrer sem que os agentes emoposição se apercebam dela — isto é: sem que os agentes que benefi-ciam do desenrolar do processo, ou os que por ele são prejudicados,tomem consciência de que as vantagens obtidas por uns são o rever-so das desvantagens sofridas pelos outros. Quer dizer: a oposiçãopode ser efectiva e não se tornar consciente, ignorando os benefi-ciados, os prejudicados, ou ambos, a incompatibilidade que existeentre os projectos por uns e outros adoptados. Ê assim que, porexemplo, longos períodos da História de todas as sociedades decor-

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rem na inconsciência generalizada de profundas oposições de inte-resses que dentro dessas sociedades êfêôtÍVâ!Yl£ntê êXÍSteíll.

Uma vez que se verifique tomada de consciência da oposição,esta pode manifestar-se (embora não necessariamente), quer comocompetição, quer como conflito, quer ainda como tensão. Diz-secompetição uma forma de oposição consciente indirecta: os agentesem oposição não actuam directamente uns sobre os outros, mascada um esforça-se por atingir objectivos que os outros tambémpretendem alcançar e que não podem ser atingidcis simultanea-mente por todos. Exemplos típicos: os esforços paralelos de publi-cidade de duas empresas visando a conquista da mesma clientela,ou os esforços paralelos de propaganda de dois partidos políticosvisando a conquista do mesmo eleitorado. Diz-se conflito, pelo con-trário, uma forma de oposição, também consciente, mas directa:os agentes em oposição actuam agora directamente uns sobre osoutros, como sucede numa guerra ou numa greve. Uma colisão di-recta de acções de sentido contrárioi dos agentes em oposição —eis o conflito. Finalmente, diz-se que há tensão entre dois ou maisagentes, quando pelo menos um deles toma consciência de uma opo-sição susceptível de conduzir a um conflito.

Tal como a oposição, também a cooperação pode ser efectiva,sem se tornar consciente. Assim é que a divisão social do trabalhoe toda a diferenciação de actividades na sociedade significam que,de facto, a imensia maioria dos membros de qualquer sociedade seacha integrada num vasto sistema de cooperação social; todavia^só um pequeno número se apercebe desse facto. Mas, por exemplo,quando um grupo se organiza para a prossecução de fins comuns,então já a cooperação é consciente.

Finalmente, a dominação. Entre dois agentes (indivíduos ougrupos), diz-se que há uma relação de dominação, quando as acçõesde um dos agentes induzem (condicionando-as e determinando-as)os do segundo, mas as deste não têm efeito equivalente sobre asdo primeiro. Por outras palavras: o agente dominado actua dentrode um condicionalismo que não pode modificar e que é criado (oupelo menos sustentado) e controlado pelo agente dominante. É ocaso, por exemplo, da relação entre certas grandes e pequenas(ou médias) empresas, como foi também o caso1 da relação entrea alta burguesia e o proletariado turbano dos países industriais,no século XIX.

Note-se, contudo, que, do ponto de vista sociológico, indepen-dentemente portanto de qualquer valoração ética ou ideológica, adominação não é forçosamente opressÕM. Só o é quando persisteapesar de «contestada» pelo agente dominado, ou seja: quando estenão a reconhece «legítima». Se tal contestação não se verifica(mas,, para se verificar, não necessita de se tornar publicamente

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notória), não haverá, em sentido sociológico, propriamenteopressão, mas submissão ou subordinação. Submissão, quando adominação se reveste, para o agente submisso (indivíduo ou grupo),de um significado «sagrado», «mítico» ou «moral» — e é o caso,outrora, da espontânea aceitarão,, pelos; povos, dos seus «senhores»tradicionais, e no presente, da não menos incondicional adesão degrandes massas a líderes ou partidos carismáticos. Subordinação,quando a relação de domínio e, por conseguinte, a supremacia doagente dominante, assumem, para o agente subordinado, um signi-ficado «racional», uma justificação lógica—e assim, por exemplo,um governo será obedecido por ser o governo legalmente eleito,como será obedecido um superior reconhecido' como chefe hierár-quico. Se, porém, havendo dominação, o agente dominado lhe nãoatribui nenhum significado sacro, mítico, moral ou racional, issoimplica que, na sua mente, nada a legitima — e então,, mesmo queo agente dominador tenha para si mesmo como legítimo o domínioque exerce (sacralizando-o, moralizando^ ou racionalizando-o dequalquer forma), a relação entre dominador e dominado é, doponto de vista sociológico, uma opressão.

Aqui está como, sob um certo ângulo de visão, a vida socialnos aparece como um jogo de acçiões cooperantes (isto é: de acçõesque, consciente ou inconscientemente, se conjugam), de acções an-tagónicas (quer dizer: de acções que, também consciente ou incons-cientemente, se opõem), de acções de domínio e ainda de reacçõesaceitantes ou contestativas à dominação. Jogo extremamente com-plexo e em constante processamento, que representa um dos maisimportantes campos da análise sociológica.

Também aqui há, com efeito, uma extensa gama de perguntasque podem ser feitas — por exemplo:

1.°) Como é possível a acção conjugada, isto é: a cooperação,na sociedade ou num grupo? Esta pergunta — que em rigor nosreenvia a toda a problemática da organização social — pode reves-tir-se, sobretudo quando referida à acção conscientemente con-jugada, de um alcance prático imediato. Pode, por exemplo, tra-duzir-se do modo seguinte: como é possível intensificar a coope-ração entre os vários agentes económicos (direcção, quadros epessoal) numa empresa? E todo o problema das chamadas «rela-ções humanas», se visto sob o ângulo das necessidades de efi-cácia do organismo empresarial, está contido nesta interrogação.Onde quer que esteja em causa suscitar, organizar ou dirigir umesforço comum, estará em causa também o problema das condiçõesque tornarão possível ou mais eficaz a acção conjugada que todo oesforço comum sempre é.

2.°) Como se processa a competição na sociedade? Como secomportam, a que regras obedecem, por que motivações são guia-dos, de que capacidades e meios se socorrem, que estratégias de

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acção utilizam os indivíduos e os grupos em competição? São iguaisOU desiguais as «oportunidades» de que, na competição, desfrutamos membros da sociedade? Se são desiguais, quais os factores de-terminantes da desigualdade de «oportunidades»? Em que medidapodem tais factores ser modificados? — Eis toda uma série dequestões directamente relacionadas, por exemplo, com um dosprincípios básicos da organização das sociedades modernas: oda «selecção pela competição» em todos os campos de actividade.Mas é claro que se pode ainda inquirir: como opera a selecçãoresultante da competição?, quais são as qualidades que favorecemo êxito?, qual é a origem social dos que a competição guinda aosprimeiros lugares na sociedade?, que tipos de estratificações so-ciais são abalados ou destruídos pela competição e a que outrostipos de estratificações sociais ela conduz? — Encontrar respostaspara estas perguntas e para as que logicamente se lhes seguem,permitirá desvendar mecanismos fundamentais da sociedade (so-bretudo da moderna sociedade competitiva) e também, porventura,descobrir como poderão esses mecanismos ser modificados.

3.°) Como surgem, se processam e extinguem as situações detensão e de conflito na sociedade? Como se produz a «tomada deconsciência» donde a tensão e o conflito resultam? Que circunstân-cias a favorecem? Que condições a impedem ou limitam? E, umavez surgida a tensão ou o conflito, como se comportam os anta-gonistas, de que meios se servem, que estratégias desenvolvem?Que repercussões tem, sobre cada um dos contendores, a luta queele próprio trava? Que influência nele exercem os seus adversá-rios? Em que condições se dispõem os antagonistas à negociaçãoe ao acordo eventual? !É possível favorecer a tendência à nego-ciagão? Por que meios? — Todas estas questões são meramenteexemplificativas das muitas que o fenómeno fundamental dastensões e dos (conflitos na sociedade e nos grupos suscita. Estáneles envolvido o estudo das tensões e dos conflitos políticos, daslutas de classes, das controvérsias colectivas de trabalho, daspugnas ideológicas, etc. — e, noutro plano, o das tensões e con-flitos dentro de qualquer organização social, por exemplo de umaempresa, de um sindicato, de um partido político. De resto, con-duzem-nos a uma problemática ainda mais ampla: são as tensõese os conflitos fenómenos de pura «patologia social», ou desempe-nham alguma função integradora?, que resultados produzem nasociedade e nos grupos as tensões e os conflitos que aí se geram?,em que medida, ou sob que condições, podem tais resultados ser«criadores» e não «destruidores»?

4.°) Como se formam, se sustentam, evolucionam e desargregam as situações de dominação? que factores e processos de-terminam o aparecimento de relações de domínio de uns indivíduosou grupos sobre outros indivíduos ou grupos? Como se exerce

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o controle dos agentes dominantes sobre os agentes dominados?Em que medida é consciente e em que medida não o é? Como podea dominação parecer legítima ao dominado e como se opera a sua«deslegitimação»? A que causas pode esta ser atribuída? Queinfluência tem sobre os modos de ser, de pensar e de agir de umagente dominador o domínio que ele mesmo exerce? Que influênciatem sobre os modos de ser, de pensar e de agir de um agente domi-nado o domínio de que é objecto?

4. A análise das «implicações sociais» das actividades exercidasna sociedade e das «formas sociais» do desenvolvimento dessasactividades

Em artigo anterior, sobre certas condições socioculturaisdo crescimento económico64, mostrámos que há uma estreita rela-ção entre o desenvolvimento das actividades produtivas moder-nas e a transformação do sistema social. Sob certo aspecto—no-támos aí — , tal relação apresenta-se como uma dependência dodesenvolvimento económico relativamente às condiçftes de estru-tura, cultura e organização da sociedade global. Sob outro aspecto,porém, são as características de estrutura, cultura e organizaçãoda sociedade global — portanto, do sistema social — que dependemdo nível, ritmo e forma do desenvolvimento económico, dado queeste, uma vez desencadeado, opera como indutor de toda umasequência ininterrupta de alterações que irradiam, em todos ossentidos e a todos os níveis, no interior do sistema, forçando-oà mudança. Na verdade, o desenvolvimento económico é apenasum aspecto de um fenómeno social total de mudança, de transfor-mação da sociedade global.

Ora, um dos temas que, presentemente, mais prendem a aten-ção dos sociólogos é o das «implicações sociais do desenvolvimentoeconómico», tema que aliás resultou de um duplo alargamento deâmbito de outro — «as consequências sociais do progresso técnico»—que gozou de ampla audiência no imediato após-guerra de1939-45. A análise das «implicações sociais do desenvolvimentoeconómico» abrange o estudo, por um lado, das condições de estru-tura, cultura e organização da sociedade global que influenciam,positiva ou negativamente, o desenvolvimento económico e, poroutro, das repercussões que o desenvolvimento produz sobre o sis-tema social global e sobre os seus diversos elementos estruturais.

Simplesmente: uma análise deste género — investigação decondições e repercussões de um dado tipo de actividade, no sis-tema social global — não é aplicável apenas às actividades produ-

64 A. SEDAS NUNES, «A perspectiva sócio-cultural do desenvolvimentoeconómico», Análise Social, n.° 3, Jul. 1963, pp. 375-401.

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tivas modernas, cuja expansão a médio e longo prazo constituio principal aspecto do desenvolvimento económico. Pode, na ver-dade, aplicar-se a outro qualquer tipo de actividade — religiosa,política, educacional, científica, etc. — cujo impacto sobre o sis-tema social se mostre relevante. Seja qual for o tipo de actividadeconsiderado, sempre se pode perguntar:

1.°) Em que medida e sob que formas o conteúdo, a exten-são, a eficácia e o ritmo de expansão (ou contracção) dessa acti-vidade são influenciados por condições de estrutura, cultura eorganização da sociedade? Por exemplo: o declínio das actividadesreligiosas num grande número de sociedades contemporâneas éinexplicável por si mesmo; tem de ser entendido em função detransformações globais ocorridas nessas sociedades. Do mesmomodo, é nas estruturas sociais e culturais dos diversos países — enão, ou não exclusivamente, nos próprios regimes políticos—quese pode encontrar explicação, quer para a estabilização de formasdemocráticas de actividade política em determinados países, querpara a consolidação ou persistência de outras formas dessa mesmaactividade, noutros países.

2.°) Em que medida e sob que formas o conteúdo,, a exten-são, a eficácia e o ritmo de expansão (ou contraôção) da activi-dade considerada influenciam as condições de estrutura, culturae organização do sistema social global? Por exemplo: o nível dedesenvolvimento, o grau e a forma de diferenciação, a orgânica,a metodologia pedagógica, a orientação ideológica das actividadeseducacionais de um dado país repercutem-se sobre a estrutura dasclasses sociais, a mobilidade social, o comportamento económicoe político!, o acesso à informação, etc, da população desse país.

Na perspectiva accionalista que lhe é própria e à qual jáacima fizemos ocasional referência, Alain TOURAINE labriu recen-temente caminhos novos à investigação neste campo. Empenhadona constituição de uma Sociologia do Desenvolvimento, TOURAINEdeclara, apesar disso: «a investigação que temos em vista distin-gue-se desde o ponto de partida de dois grandes tipos de investiga-ções. Não procuramos estudar, nem as causas sociais do desenvolvi-mento económico, do seu arranco ou da sua rapidez, nem os efeitosda industrialização e da urbanização sobre as estruturas sociaistradicionais». Afastado, pois, o género de análise atrás men-cionado—isto é: o das implicações sociais do desenvolvimentoeconómico — sobre qual se vai debruçar este investigador? Eiscomo ele próprio o define:

«A diversidade das vias de acesso e de progressão na civili-zação industrial é muito grande. Podemos esforçar-nos por de-compor essa diversidade e medir o efeito de certas variáveiseconómicas), mas é igualmente legítimo considerar que a indus-trialização é uma política e que as suas características dependem

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das forças saciais que intervêm nas decisões económicas e políticasque lhe dão forma. (...) Em vez de isolar o facto económico dodesenvolvimento, procuramos compreender a diversidade das suasformas sociais. (...) O nosso objectivo principal é ligar estreita-mente o estudo das formas sociais da industrialização e o dosmovimentos sociais que, ao mesmo tempo, as acompanham e con-tribuem para as determinar. (...) Por movimentos sociais, enten-demos a acção organizada de grupos ou de categorias que tendema orientar totalmente ou em parte a política de industrialização,a repartição das vantagens e dos sacrifícios, o grau e os métodosde transformação da situação social anterior, as relações entreo poder e os dirigidos» 65.

Uma análise deste tipo — cuja fecundidade se adivinhaa priori —> pode, porém, ser estendida a outros campos. Por exem-plo: na medida em que também o ensino é uma política (e o re-sultado de uma política), também as suas características depen-dem das decisões que lhe dão forma e, por conseguinte, das forçassociais que intervêm, por via endógena ou exógena, na determi-nação de tais decisões e que são, elas próprias, de algum modocondicionadas pelas estruturas educacionais geradas por essa po*lítica. Assim também em relação ao ensino (mas o ensino é apenasum exemplo) é possível um estudo das suas formas sociais e dodesenvolvimento dessas formas, em correlação com o estudo dasacções exercidas por forças sociais.

5. A análise da Cultura como fenómeno social

A Cultura em sentido sociológico é, como vimos, produtoacumulado e seleccionado de acções criadoras humanas. Ora, tudoo que os homens criam, é na sociedade que o criam. (Daqui resultaque toda a Cultura é criada e se mantém em determinadas condiações sociais. Por exemplo: quando surge uma lei, essa lei aparecenuma sociedade determinada, onde existem determinadas institui-ções políticas,, determinados grupos políticos, determinadas classessociais, determinadas situações dessas classes, determinadas ideias,etc Mas, se é assim, o sociólogo pode perguntar: que influênciatem tudo isso sobre a elaboração da lei?, em que medida o con-teúdo, as intenções, as fórmulas da lei são ou foram influenciadospor essas várias condições da sociedade em que a lei é ou foi ela-borada?

65 Alain TOURAINE, Un projet de recherche: industrialisation et mouve-ments sociaux (brochura), pp. 1-2. Vd. também deste Autor: «Sociologie dudéveloppement», Sociologie du Travail, 2 (196í3), pp. 156-174, e «Mobilité so^ciale, rapports de classe et nationalisme en Amérique Latine», Sociologie duTravaiU 1 (1965), pp. 71-82.

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Talvez se possa entender melhor a, posição do sociólogo nestecaso, se a compararmos com a do jurista. Perante uma lei, o ju-rista diz: o legislador fez esta lei; esta lei está em vigor; o seuconteúdo é tal; o que ela dispõe constitui uma norma obrigatória,que tem de ser aplicada e cumprida. Pelo contrário, o sociólogodirá: esta lei foi feita; mas não saiu de um jacto da mente dolegislador,, nem é obra de um indivíduo isolado; foi preparada,discutida, modificada, acrescentada, amputada, antes de ser final-mente (promulgada; ao longo de todo esse processo, muitas in-fluências se exerceram: influências de doutrinas e ideologias, deconcepções científicas e técnicas, de várias mentalidades, de dife-rentes tipos de interesses; tais influências exerceram-se, umasdirectamente, através daqueles que a redigiram, a discutiram,a aprovaram, outras indirectamente, através de indivíduos ougrupos que exerceram influência sobre esses, reagindo contra cer-tos aspectos da lei projectada ou contra toda ela, ou pelo contrá-rio, defendendo-a, lapoiando-a, reivindicando^a até; a lei, tal comose apresenta, é o resultado de todo esse processo.

E o sociólogo prosseguirá: a lei foi feita, mas agora queestá feita e vai entrar em execução, é que se vão produzir os seusefeitos na sociedade; tais efeitos poderão ser nulos (pois há leisque não chegam a ser executadas) ou parciais em relação ao quea lei dispõe (dado que há também leis que só em parte se exe-cutam) ; de qualquer modo, mesmo que a execução da lei venha aser integral, haverá sempre o problema do modo como será inter-pretada e aplicada pelos serviços públicos competentes, pelos tri-bunais, pela polícia, pelos práticos do Direito; algumas das suasdisposições revelar-se-ão impraticáveis, outras cairão no desusoou no esquecimento; e em tudo isto, em todas estas distorções que,na prática social, a lei virá a sofrer, de novo inúmeras influênciasse exercerão. Assim, se uma lei sobre fatos de banho não se exe-cuta, ou só é parcialmente aplicada, é talvez pela influência deum generalizado abandono do tipo de moralidade que ela pretendedefender; mas se uma lei sobre redistribuição de terras agrícolaspermanece inoperante, é provavelmente porque os proprietários quese julgariam lesados pela sua aplicação lhe opõem resistência. Seum Governo ou uma Administração Pública se encontra peranteuma lei que fere as suas concepções ou lhe cria dificuldades, pro-curará ignorá-la, ou protelar a sua execução, ou deixar cair noolvido ao menos uma parte das suas disposições; noutros casos,será a simples rotina administrativa a exercer a principal resis-tência a uma lei nova. Em suma: os costumes, as ideias, os interes-ses, os hábitos, a prática condicionam a vigência social da lei,os seus verdadeiros efeitos sociais.

Pois bem: escolhemos o exemplo de uma lei, mas podíamoster escolhido outro exemplo qualquer, dentre os inúmeros elementos

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da Cultura de qualquer sociedade — fosse um costume, uma crença,uma ideologia, uma técnica, um estilo de Arte, etc. Sempre o so-ciólogo poderia formular um certo número de questões fundamen-tais: 1.°) que influência exerceram factores sociais no apareci-mento e nas características com que se apresenta esse elementoda Cultura? — 2.°) que transformações sofre em resultado de in-fluências sobre ele exercidas por factores sociais? quais sãos essasinfluências? como se processam? — 3.°) que influência exerce, queefeitos tem, esse elemento da Cultura sobre outros e na sociedadeem geral?

Ora, suponhamos que nos era possível efectuar um número ele-vado de investigaçjões acerca de leis, procurando responder às per-guntas anteriores. Provavelmente, esses estudos permitir-nos-iamenunciar um conjunto de generalizações respeitantes aos factoressociais que exercem influência na elaboração e execução das leise ao modo como esses factores actuam em distintos condiciona^lismos. Começaríamos a ter, assim, uma Sociologia do Direito, umadaquelas Sociologias especiais a que nos referimos. jSeguindo aná-logo caminho, poderíamos chegar a uma Sociologia da Moral, auma Sociologia da Religião, a uma Sociologia da Ciência, etc. Edisporíamos, então, de um conjunto de ramos de Sociologia daCultura.

Mas é claro que um conjunto de ramos de Sociologia da Cul-tura não basta para se ter uma Sociologia da Cultura — falta umtronco comum. O trono comum é a Sociologia Geral da Cultura,capítulo particularmente difícil da Sociologia Geral, onde não seconseguiu ainda avançar para além das meras hipóteses, e de algu-mas concepções muito abstractas e, por vezes, muito discutíveis.

6. A análise da organização, da desorganização e da reorganiza-ção social

Notámos ser lógico dizer-se que a vida social está organizada,na medida em que está efectivamente regulada por sistemas nor-mativos socialmente operantes, ou seja: na medida em que nelase exercem controles sociais. Captar os sistemas normativos queefectivamente modelam os comportamentos individuais e colecti-vos, explicitar o seu conteúdo, desvendar a-sua função na socie-dade, apreender e interpretar os processos (planeados ou não) ea eficácia do controle que exercem sobre a vida social — eis umalinha de investigações que directamente nos leva às causas de todasas formas do conformismo — e, portanto, à análise: 1.°) dos mé-todos utilizados ou utilizáveis para o provocar e dos seus reaisou possíveis resultados; 2.°) das situações sociais que o favoreceme das que, pelo contrário, suscitam a inconformidade, o desvio;

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3.°) dos grupos em que ele se gera ou mantém e dos mecanismosde interacção através dos quais tal resultado aí ocorre.

Nesta mesma perspectiva avulta um outro aspecto da socie-dade a que ainda não tínhamos aludido. Qualquer sociedade (etodo grupo) pode ser visto, não só como um campo de inter--comunicação e de interacção, mas também como vm campo de for-ças. Em rigor, dizem-se «forças sociais» todos os indivíduos egrupos que dispõem da capacidade de, pela sua acção, exercer umainfluência, útil para os seus próprios fins, sobre a acção de outrosindivíduos ou grupos, quer entravando-a, quer modificando-a, querprovocando-a directamente. Assim, tanto o pequeno grupo (v. g.,uma família ou uma equipa de trabalho), como o grupo de maioresdimensões (uma empresa, um sindicato, um partido político, umaassociação qualquer), como ainda a sociedade global e a própriasociedade internacional são campos de forças sociais.

Encarada sob este ângulo, a organização social — numa so-ciedade ou num grupo — aparece-nos sustentada por um sistemade forças, onde há forças em equilíbrio e forças a exercerem do-mínio sobre outras. Dizer como se mantém uma dada organizaçãosocial é, por conseguinte, dizer que forças operam na sociedade ouno grupo em que tal organização existe, como estão, por sua vez,organizadas essas forças, quais são os seus elementos, factores emeios de acção na sociedade ou no grupo, quais os projectos porelas adoptados, como se equilibram reciprocamente ou que rela-ções de dominação entre elas existem. Mas investigar tudo istoé, precisamente, efectuar uma das análises que mais útil contri-buto à compreensão dos problemas das sociedades e dos grupospodem trazer. Mostrar, por exemplo, o jogo de forças políticas,económicas, religiosas, militares, sindicais, etc, que se encontrapor detrás da organização aparente de uma dada sociedade global,não é pequena, nem despicienda tarefa.

Simplesmente, nenhuma organização social está isenta deperturbações. Em todas (e agora pensaremos apenas na organi-zação de sociedade globais), surgem fenómenos que podem ser:— ou meros comportamentos «desviados» das normas do sistemae dos seus controles, como a criminalidade, a delinquência juvenil,a desagregação familiar, a vadiagem — ou seja: fenómenos dedesorganização social; — ou movimentos de «contestação» do pró-prio sistema e visando a sua reforma ou revolução, como organi-zações subversivas, partidos revolucionários, correntes ideológicasadversas do sistema — quer dizer: fenómenos de reorganizaçãosocial.

E aqui temos dois novos campos abertos à investigação so-ciológica: 1.°) o dos factores socioculturais dos comportamentos«desviados» das normas e controles da organização; — por exem-plo: a que se devem os altos índices de criminalidade em certos

países, regiões, áreas urbanas, etc.?, a que se deve o incremento,em tantos países, da delinquência de jovens?, que factores favo-recem ou desfavorecem, no meio social e cultural, a coesão fami-liar?— 2.°) o dos factores e processos do aparecimento e desenvol-vimento de «movimentos sociais» de reforma e de revolução;—»por exemplo: como surgem situações de insatisfação relativa-mente a um dado sistema?, como brotam dessas situações movi-mentos reformistas e (ou) revolucionários? em que condições oamovimentos reformistas predominam sobre os movimentos revo-lucionários? em que condições se verifica o contrário? em quecondições pode um sistema suportar a contestação interna e mesmoreabsorvê-la? em que condições se torna inevitável a ruptura dosistema, isto é: a revolução?

Reformando-se ou revolucionando-se, os sistemas de organi-zação social transformam-se ao longo do tempo. É este um dosaspectos da fenomenologia da evolução social, que constitui outrogrande campo da investigação sociológica.

7. A análise da evolução social

A evolução social — ou mudança social, como preferem di-zer os autores brasileiros (influenciados pela terminologia anglo--saxónica, «social change») —é um conceito amplo que abarcatodas as transformações de estrutura, de cultura, de organizaçãoe de vida social que ocorrem nas sociedades.

Ora, há sociedades cujo ritmo de evolução é rápido, e sociedadescujo ritmo de evolução é lento. Mas não há sociedades estacionárias,definitivamente fixadas em formas imóveis. Todas as sociedadesestão sempre — embora por vezes tão lentamente que os seusmembros não se apercebem do facto — a evoluir, a mudar. Com-preender como e por que se transformam as sociedades, como epor que se processa a evolução social — eis o último e porventurao mais ambicioso desígnio da Sociologia. Entende-se bem a enormecomplexidade da tarefa — dado que a evolução social tudo arrasta:mediante sucessivas repercussões e implicações, tudo atinge, tudoafecta, tudo em última análise abrange na sociedade.

No século XIX, muitos sociólogos pensaram que essa com-plexidade podia ser fortemente reduzida, porque as caracterís-ticas e a evolução das sociedades seriam determinadas, basica-mente, por um «factor predominante». Mas esses sociólogos divi-diam-se, quando se tratava de indicar este factor. Uns privilegia-vam o factor geográfico, outros a hereditariedade e a raça, outrosainda a densidade e o movimento demográficos; alguns destaca-vam as técnicas e os equipamentos de produção; finalmente, haviaos que preferiam a «psicologia dos povos», o movimento geral das

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ideias e dos conhecimentos, as formas do Direito, etc. Cada umesforçava-se por fazer derivar de algum de tais factores todas ascaracterísticas básicas e toda a evolução das sociedades. Assimse elaboraram explicações geográficas, raciais, demográficas,tecnicista^, psicológicas, intelectualistas, espiritualistas, etc., daevolução social — todas unilaterais e todas arbitrariamente afir-mativas da predominância absoluta de um dado factor de evoluçãosobre todos os outros.

A Sociologia moderna considera indemonstrável a hipótese dea evoluçião social ser conduzida por um «factor predominante»,e retoma assim toda a complexidade do problema. Mas, retoman-do-a, a maior parte dos sociólogos reconhece a impossibilidadede a enfrentar em toda a sua amplitude. Frequentemente preferem,então, em vez de tentar desde logo uma análise total, englobante detodos os aspectos da evolução social, ir efectuando análises par-ciais, restritas a aspectos bem definidos e delimitados — por exem-plo : os aspectos económicos, ou os aspectos políticos, etc. E assimse vão elaborando, designadamente, análises e teorias da evoluçãoeconómica, das transformações políticas, das mudanças nas estru-turas e relações das classes sociais, das variações culturais — aná-lises e teorias que, em rigor, são meros fragmentos de uma hipo-tética análise e teoria da evolução social, em toda a variedade ecomplexidade das suas componentes.

Em todas estas investigações, a hipótese de um «factor predo-minante»— ou seja: de um factor cujas variações comandariamas de todos os outros — aparece insustentável. Por um lado, se-jam quais forem o aspecto da evolução considerado, a sociedadeanalisada e a época escolhida, sempre impossível é descortinar umfactor que comande as variações de todos os mais: aonde sem-pre se chega é a um conjunto de factores propulsivos daevolução (por exemplo: André MARCHAL admite que a evoluçãoeconómica dos países industriais, desde os fins do século XVIII,tem sido conduzida por três factores fundamentais: o progressotécnico, o crescimento demográfico e o movimento das ideias) 66.Por outro lado, tanto a composição desse núcleo de factores pro-pulsivos, ou seja: a natureza destes, como a influência relativa decada um deles, variam de sociedade para sociedade e de época paraépoca. Assim, o progresso técnico é decerto uma poderosa forçamotriz de evolução nas sociedades modernas; mas no passadooutras sociedades evolucionaram durante séculos, sem ou quasesem nelas se verificar progresso técnico67.

66 André MARCHAL, Systèmes et Structures Economiques, P.U.F., Paris,1959, p p . 414 e &egs.

67 Vd. os t r a b a l h o s de Georges BALANDIER, n o m e a d a m e n t e a s u a Sócio-logie Actuette de VAfrique Noire, P.U.F., Paris, 2.a ed., 1963.

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Extraindo conclusões de um debate científico sobre «as im-plicações sociais do prioigresso técnico», efectuado sob o patrocíniodo Conselho Internacional das Ciências Sociais, escreve GeorgesBALANDIER: «Uma questão foi posta: existe um encadeamentológico das transformações sociais, uma disposição ordenada dascausas e dos efeitos? Sugeriu-se o recurso ao método comparativo,ao confronto entre os factos historicamente conhecidos e os factoshoje observados pelos especialistas das Ciências Sociais. Isto signi-fica que a resposta não pode, de momento, ser dada a partir dfc>constatações suficientemente numerosas e diversificadas. Toda-via, o estado actual dos conhecimentos e das interpretações teó-ricas permite pensar que se trata menos de uma ordem simples,de uma sucessão determinada de causas e efeitos, que de modifi-cações reciprocamente interferentes, agindo umas sobre as outrase, de certo modo, em relação dialéctica. E neste jogo complexo, oprogresso técnico pode aparecer, ora como causa primeira, oracomo consequência» 68. Sob o ponto de vista empírico, dos factosobservados, comparados e interpretados, é por conseguinte pre-maturo empreender uma teorização geral da evolução das socie-dades. Apesar disso, certos sociólogos têm efectuado valiosas ten-tativas neste campo—• até por necessidade metodológica de dis-por de um quadro analítico global para investigações de âmbitomais restrito. Assim se elaboraram diversas teorias da mudançasocial, das quais J. A. PONSIOEN recentemente fez uma útil revi-são 69. Essas teorias, operacionais para distintos propósitos analí-ticos, devem ser tomadas sobretudo como diferentes refracçõ&sda, evolução social, através de diversos prismas de observação —analogamente ao que sucede com as múltiplas concepções da estru-tura social a que acima nos referimos.

IV

C O N C L U S Ã O :

SOCIOLOGIA, PRÁTICA E «PROFECIA»

Evocámos, no começo deste artigo, preconceitos e resistênciasque à Sociologia se opõem. Justo é que, a, concluir, se evoque tam-bém o interesse crescente que ela desperta e as novas oportuni-dades de desenvolvimento que lhe são oferecidas e das quais efecti-

68 Gearges BALANDIER, In t rodução a : «Conseil I n t e rna t iona l des SciencesSociales», Les Implications Sociales du Développement Economique, P a r i s ,P.U.F., 1952, p. 25.

69 J . A. PONSIOEN, The Analysis of Social Change Reconsidered, Mouton,'S-Gravenhage, 1962.

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vãmente se aproveita. Ainda há pouco, por exemplo, Jean STOETZELsalientava, perante a Academia das Ciências Morais e Políticas,de Paris, o extraordinário surto da Sociologia em França — e ci-tava números: «uma centena de docentes nas Faculdades de Letrase outros tantos no exterior; trezentos investigadores responsáveis,dos quais um terço no C.N.R.S.; no conjunto, contando os diversosauxiliares, um pessoal que não deve ser inferior a três mil pes-soas. Em Paris, cerca de trinta institutos ocupam-se de investi-gações sociológicas; e desses, dezoito fazem dessas investigaçõesa sua actividade exclusiva» 70.

O interesse que a Sociologia suscita tem, no entanto, aspec-tos ambíguos que oscilam entre dois pólos: o do interesse práticoe o do interesse profético. Frequentemente se pede à Sociologiaque se volte imediatamente para «as aplicações» ou para a buscade resultados úteis aos investigadores de outras disciplinas ou aostécnicos de outras especialidades. O que, assim, se lhe requer éque ignore as exigências do seu próprio desenvolvimento cientí-fico (que não coincidem, conforme fez notar François PERROUX,com as da prática e das aplicações) 71 ou que renuncie a controlare definir o seu próprio caminho, as suas próprias vias de expansãoe avanço. No extremo-limite desta tendência, a Sociologia é enca-rada como pura técnica de inquéritos e o sociólogo é procuradocomo simples perito de questionários. Mas sobre esta matéria, jáem outra ocasião algo dissemos ** — frizando então a importânciade que se reveste, para a Sociologia como para qualquer outroramo científico, a investigação fundamental, desinteressada, liber-ta das imediatas solicitações dos poderes sociais e da acção. «Paraque as Ciências Humanas não sejam desviadas do seu verdadeiroobjecto, uma condição essencial tem de ser exigida: que sejamlivres perante as diversas categorias de poder, qualquer que sejaa sua forma», escreve, em artigo recente, Paul-Henri CHOMBARTDE LAUWE, que certeiramente acrescenta: «se os estudos aplicadosem Ciências Humanas não forem renovados e estimulados pelainvestigação livre, por um lado rapidamente esclerosam, e poroutro, são cada vez mais utilizados, em sentido único, pelo poder(político, financeiro, comercial, técnico, militar)»73.

70 Le Monde, 2 de Junho de 1965.71 Como escreve François PERROUX, «a lógica do conhecer, a do trans-

formar e a do produzir não são exactamente sobreponíveis. Nem essas lógicas,nem as actividades por elas regidas são harmónicas. Mais ainda: são, emcerta medida, contraditórias». Vd. industrie et création collective, I, P.Ú.F.,1954, p. 54.

72 A. SEDAS NUNES, «Problemas da sociologia em Portugal», Análise So-cial, n.° 3, Jul. 1963, pp. 459>-464.

73 Paul-iHenri CHOMBART DE LAUWE, «Les sciences humaines et le pou-voir», Esprit, 4 (1965), pp. 698-709.

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Do pólo oposto vem a solicitação de profecia. Esta soli-citação pressupõe o seguinte: 1*°) que a evolução das estruturase formas de organização fundamentais das sociedades está sujeitaa «leis de evolução histórica» que a comandam necessariamente:2.°) que se podem determinar essas «leis de evolução histórica»,através da análise sociológica dos factos históricos; 3.°) que, por-tanto, é possível prever — profetizar — cientificamente o futurodas sociedades, o curso inelutável da evolução social vindoura, alongo prazo e pelo menos nas grandes linhas respeitantes à estru-tura e organização das sociedades; 4.°) que, sendo assim, ficamcomo que predeterminadas as finalidades básicas das transfor-mações a operar na sociedade; essas transformações deverão,efectivamente ser orientadas de modo que se acompanhe e, sepossível, se apresse a evolução cujo sentido antecipadamente seconhece.

O problema da profecia histórica científica foi, porventura,-o primeiro grande problema que a Sociologia enfrentou. Para ondevai a sociedade? para que tipo de organização social caminha oHomem, na sua marcha para o futuro? — pode dizer-se que, ini-cialmente, o pensamento sociológico consistiu sobretudo num es-forço para encontrar resposta a estas interrogações, para resolvero problema da determinação de um sentido da História, isto é:de um sentido geral da evolução das sociedades e de um estádiofinal para que essa evolução tenderia. Hoje, tem-se clara cons-ciência de que a profecia histórica, nos termos amplos em queesta expressão aqui se entende, não é possível num plano estricta-mente científico. O problema do sentido da História é, como dizGeorges GURVITCH, um «falso problema da Sociologia»74, umfalso problema científico. E por várias razões, como vamos ver,em conclusão.

Antes do mais, a evolução social, longe de oferecer o espec-táculo dum andamento constante em determinada direcção e sen-tido, está, pelo contrário, sujeita a inftectir e a reverter, podendomesmo empenhar-se em movimentos cíclicos. Assim, mesmo quea sociedade evolua, durante certos períodos, segundo uma certalinha, noutros períodos o sentido da sua evolução poderá ser di-ferente. Por exemplo: certas sociedades ocidentais industrializa-das pareceram, em certas fases do seu desenvolvimento, avançarrapidamente para o socialismo; hoje, duvida-se de poder dizer omesmo de países como os Estados-Unidos, Suécia, a Holanda, aSuíça, a Grã-Bretanha. Há pontos de inflexão e de reversão nascurvas representativas das evoluções sociais de longo prazo.

74 Georges GURVITCH, La Vocation Actuelle de Ia Sociologie, T. l«r, cit.,pp. 31-35.

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Mas sobretudo cada sociedade é, como tivemos ocasião de dizer,um macroscosmos de grupos e um campo de forças sociais. «Épor isso que — nota G. GURVITCH —, em cada sociedade se reve-lam conflitos de tendências diversas que se defrontam vigorosa-mente e, para cada crise, se desenham várias soluções possíveis» 75*O curso da evolução de cada sociedade é, assim, largamente deter-minado pelas «soluções» que acabam por prevalecer em cada «crise»— digamos pela forma como cada crise vem a ser resolvida e su-perada. Evidentemente, referimo-nos aqui às «crises estruturais»,ou seja: àquelas que afectam as estruturas e formas de organiza-ção fundamentais das sociedades, e não às crises meramente «supe-res trutur ais», que podem ser resolvidas sem repercussão sensívelsobre aquelas estruturas e formas de organização. Ora é de umarelação e de um jogo de forças sociais que a «solução» de cadacrise estrutural resulta. Simplesmente: as Ciências Sociais nãodispõem de instrumentos analíticos que permitam prever, ao menosna maioria dos casos, a resultante do complexo jogo das forças quese movimentam nos decisivos momentos críticos da evolução dumasociedade. Poderá talvez prever-se quei, se a solução de uma dadacrise for X, ela terá certas consequências a, b ou c; mas não po-derá, normalmente, prever-se se será X ou Y. E assim, a evoluçãosocial aparece pontuada por uma série de momentos de indetermi-nação. Por exemplo: grande parte dos países da América Latinaatravessa hoje «períodos críticos», em que o seu futuro acabarápor ser decidido, para muitos anos,, em resultado dos jogos de forçasque aí presentemente se processam; mas as soluções que acabarãopor dar às suas crises permanecem indeterminadas — e são cienti-ficamente indetermináveis.

Finalmente, há ainda a crítica que, de um outro ponto de vista,Karl POPPER fez ao historicismo. Ele mesmo a condensa nos se-guintes pontos: 1.°) o curso da evolução social depende, em largamedida, do desenvolvimento dos conhecimentos humanos (conheci-mentos científicos, técnicos, etc.); 2.°) mas não é possível predizer,por métodos científicos, o desenvolvimento futuro desses conheci-mentos: as descobertas, as invenções, as criações intelectuais são,em absoluto, imprevisíveis; 3.°) não se pode, por conseguinte, pre-dizer o curso futuro da evolução social; 4.°) não pode, assim,existir uma teoria científica da evolução social, sobre a qual apredição histórica possa basear-se; 5.°) logo, o propósito essencialdo historicismo é irrealizável. — O ponto fundamental desta argu-mentação é, obviamente, o segundo 76. Exemplifiquemos. QuandoKarl MARX fez previsões acerca do destino do capitalismo, predi-zendo a sua derrocada final após um período de desenvolvimento

75 Ibidem, p. 34.

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cada vez mais difícil e ciclicamente crítico;, pressupôs este sistemaafectado, como de facto o era no seu tempo, por crises económicasrepetitivas e de intensidade crescente. Mas os progressos da teoriae da análise económica, a invenção de novos processos de inter-venção do Eistado nos mecanismos económicos e o aparecimentode novos tipos de instituições (nomeadamente, as instituições desegurança social) invalidaram tal pressuposto e permitiram aocapitalismo evoluir segundo ritmos de flutuação incomparável^mente mais suaves. Assim, um movimento de inovação intelectual,política e institucional teve por efeito uma alteração na forma deevolução do sistema e mesmo no seu destino, dado que é difícilconceber que o capitalismo pudesse ter sido «salvo», se as suasicrises houvessem continuado a verificar-se e a agravar-se ciclica-mente.

Em resumo, a posição da generalidade dos cientistas sociaisperante os problemas da previsão histórica científica é hoje aque JeaijrDaniel REYNAUD exprime nos termos seguintes: «hesi-tamos em acreditar que sejamos capazes de predizer o destinoglobal da sociedade. Certamente, estamos aptos a fazer prediçãoacerca de um certo número de pontos precisos, como uma evoluçãode profissões,, uma evolução de sectores profissionais, uma evo-lução de sectores económicos. Já somos muito menos capazes depredizer yma evolução das formas políticas. Mas quando preten-demos reunir tudo isso, e levantar o problema de como actuarãoesses diversos elementos, como se comportarão e a que tipo desociedade irão conduzir2 pomos uma questão à qual é difícil res-ponder de uma forma cabal. Estamos hoje muito menos segurosde que se possa determinar uma linha definida de evolução dassociedades. Ao mesmo tempo, somos mais exigentes a respeito dosinstrumentos de estudo e da exactidão das previsões» 77.

Não foi Max WEBER quem falou do trabalho científico comode uma ascese? Para que lhe seja possível escapar, tanto às solici-tações prementes da utilidade, como à embriaguez das prospectivasgrandiosas mas gratuitas, é na verdade uma ascese que à Socio-logia se requer. Pois muito mais fácil é a uma Ciência vender-secomo técnica ou alienar-se em ideologia, do que fazer-se a simesma como Ciência.

76 Karl POPPER, Mysère de VHistortcvsme, trad., Plon, Par is , 1956.77 J . -D. R E Y N A U D , Éléments de Sociologie Générale (cours po iycopiéh

Inst i tut d'Etudes Politiques de l 'Université de Par i s — Amicale des Élèves ,1962-1963, p. 256. Sobre o problema das previsões de grande escala e longoprazo, vd. de Jean M E Y N A U D , Les Spéculations sur VAvenir* «Etudes de SciencePolitique», n.° 12, 1965.

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BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA SOBRE SOCIOLOGIA

1. Como textos de iniciação, aconselham-se os seguintes: T. B. BOTTO-MORE, Sociology. A Guide to Problems and Literature, Prentice-Hall, Engle-wood Cliffs, N. J., indiscutivelmente a primeira obra a ler, da qual existe,aliás, tradução em português (Introdução à Sociologia, Zahar Edit., Rio deJaneiro); Jean STOETZEL, La Psychologie Sodale, Flammarion, Paris; eP. VIRTON, Les Dynamismes Sociaux. Initiation à Ia Sociologie, 2 pequenosvolumes, Ed. Ouvrières, Paris. Estes três livros completam-se. A editoraPrentice-Hall, de Englewood Cliffs, New Jersey lançou, não há muito, umaexcelente colecção de pequenos volumes, Foundations of Modern SociologySeries, elaborados pelos melhores sociólogos norte-americanos.

2. Os manuais de Sociologia são numerosos nos E.U.A., mas frequente-mente demasiado elementares ou excessivamente centrados nas realidadessociais norte-americanas. Destaquem-se os seguintes: Leonard BROOM & PhilipSELZNICK, Sociology. A Text with Adapted Readings, Row, Peterson & Co.,Evanston, Illinois; Francis E. MERRIL, Society and Culture. An Introductionto Sociology, Alfred A. Rnopf, New York; Arnold M. ROSE, Sociology. TheStudy of Human Relations, Prentice-Hall, Englewood Cliffs, N.J. Este últimoé porventura o melhor.

3. Entre os tratados de teoria geral, o mais acessível é talvez o deHarry M. JOHNSON, Sociology. A Systematic Introduction, Routledge andKegan Paul, do qual há tradução em castelhano (Sociologia, Ed Paidós,Buenos Aires). O Traiié de Sociologie, 2 vols., Presses Univ. de France,dirigido por Georges GURVITCH, reflecte, no plano teórico, as concepções desteautor; contém bons capítulos sobre os diversos ramos da Sociologia. Final-mente, os 2 vols. editados por Talcott PARSONS, Edward SHIIS, KasparD. NAEGELE e Jesse R. PITTS, Theories of Society. Foundations of SociologicalTheory, The Free Press of Glencoe, New York, constituem uma obra monu-mental, acaso o mais notável empreendimento de sistematização teórica e anto-lógica na História da Sociologia.

4. Sobre as diversas Sociologias especiais e globais, podem apontar-se:Robert K. MERTON, Leonard BROOM and Leonard S. COTTRELL, edsi, SociologyToday. Problems and Prospects, Basic Books, New York; e o 2.° vol. de:Angelo PAGANI, dir., Antologia di Scienze Sociali, S. Ed. II Mulino, Bologna.

5. No domínio da metodologia sociológica, os dois livros seguintes ofe-recem sobretudo boas sistematizações das múltiplas técnicas de pesquisa:Maurice DUVERGER, Méthodes des Sciences Sociales, P.U.F., col. «Thémis»,Paris, e Roger PINTO et Madeleine GRAVITZ, Méthodes des Sciences Sociales,2 vols., Dalloz, Paris. Mas a obra fundamental, não aconselhável a princi-piantes, é: Paul L. LAZARSFELD and Morris ROSENBERG, eds., The Languageof Social Research, The Free Press of Glencoe, New York. 0 1.° vol. dumaadaptação francesa desta obra foi recentemente publicado: Raymond BOUDONet Paul LAZARSFELD, dir., Le Vocabulaire des Sciences Sociales, Mouton, Paris— La Haye. Relativamente acessíveis são: Robert K. MERTON, Eléments deMéthode Sociologique, Plon, Paris, e C, Wright MILLS, The SociologicalImagination, Oxford Univ. Press, New York (trad. em port.: A ImaginaçãoSociológica, Zahar, Rio de Janeiro).

6. O «curioso» de Sociologia pode encontrar vantagem em começar porobras de tema restrito, mais ligadas às suas curiosidades. Eis algumas suges-tões: Luiz PEREIRA e Marialice FORACCHI, Educação e Sociedade. Comp. Edit.Nacional, São Paulo; Maurice DUVERGER, Introduction à Ia Politique, Galli-mard, Paris; L. A. COSTA PINTO, Sociologia e Desenvolvimento, Edit. Civili-zação Europeia, Rio de Janeiro; Raymond ARON, Temas de Sociologia Contem-porânea e Novos Temas de Sociologia Contemporânea, Ed. Presença, Lisboa;Georges FRIEDMANN et Pierre NAVELLE, Traité de Sociologie du Travail, 2 vols.,Armand Colin, Paris.

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