Eduardo Viveiros de Castro - A propriedade do conceito

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ANPOCS 2001 / ST 23: Uma notável reviravolta: antropologia (brasileira) e filosofia (indígena) A propriedade do conceito Eduardo Viveiros de Castro A ciência geral é simplesmente a ciência daquilo que é pensável universalmente enquanto tal. Isso inclui não apenas o que até aqui foi visto como lógica, mas também a arte da invenção, juntamente com o método ou meio de disposição, síntese e análise, a didática ou a ciência do ensinar, a gnostologia (a assim chamada noologia), a arte da reminiscência ou mnemônica, a arte dos caracteres ou dos símbolos, a arte da combinação, a arte da sutileza, a gramática filosófica; a arte de Lull, a Cabala dos sábios, e a magia natural. Talvez inclua também a ontologia, ou a ciência de algo e de nada, do ser e do não-ser, da coisa e de seus modos, da substância e do acidente. Não faz muita diferença como dividimos as ciências, pois elas são um corpo contínuo como o oceano. (Leibniz, Introdução a uma enciclopédia secreta) As páginas a seguir foram extraídas da primeira parte (inacabada) de um livro (em preparação). O núcleo temático desse livro foi esboçado em dois artigos já publicados: “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio” (Viveiros de Castro 1996a) e “Atualização e contra-efetuação do virtual na socialidade amazônica: o processo do parentesco” (idem 2000). O que se apresenta abaixo procura explicitar a concepção de antropologia que estava implícita nessas análises. Trata-se, em suma, de meu modo de tentar responder à questão: “o que é a antropologia?” Ou, pelo menos, de sugerir uma das coisas que ela pode ser. No caso: uma metafísica experimental. Sobre Lévi-Strauss e vice-versa Uma maneira de situar este estudo sobre o pensamento dos povos nativos da floresta amazônica — um ‘pensamento selvagem’ — é dizer que seus temas estão radicados no estruturalismo, mas que seus problemas são, ao menos em parte, outros, pois outros são os tempos, e outro o estado do conhecimento etnológico. Digamos, então, que seu ponto de partida é o ponto de chegada de Lévi-Strauss, o estado a que ele soube levar a etnologia ameríndia. Por isso, pareceu-me apropriado abrir este prólogo por uma conclusão — de Lévi-Strauss. Nas linhas finais do posfácio a um volume recente de L’Homme, dedicado aos avanços na teoria do parentesco, o decano do americanismo observa: É digno de nota que, a partir de uma análise crítica da noção de afinidade, concebida pelos índios sul-americanos como ponto de articulação entre termos opostos: humano e divino, amigo e inimigo, parente e estrangeiro, nossos colegas brasileiros tenham vindo a extrair o que se poderia chamar de uma metafísica da

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ANPOCS 2001 / ST 23: Uma notável reviravolta: antropologia (brasileira) e filosofia (indígena)

A propriedade do conceito

Eduardo Viveiros de Castro

A ciência geral é simplesmente a ciência daquilo que é pensável universalmente enquanto tal. Isso inclui não apenas o que até aqui foi visto como lógica, mas

também a arte da invenção, juntamente com o método ou meio de disposição, síntese e análise, a didática ou a ciência do ensinar, a gnostologia (a assim

chamada noologia), a arte da reminiscência ou mnemônica, a arte dos caracteres ou dos símbolos, a arte da combinação, a arte da sutileza, a gramática filosófica; a

arte de Lull, a Cabala dos sábios, e a magia natural. Talvez inclua também a ontologia, ou a ciência de algo e de nada, do ser e do não-ser, da coisa e de seus

modos, da substância e do acidente. Não faz muita diferença como dividimos as ciências, pois elas são um corpo contínuo como o oceano.

(Leibniz, Introdução a uma enciclopédia secreta)

As páginas a seguir foram extraídas da primeira parte (inacabada) de um livro (em preparação). O núcleo temático desse livro foi esboçado em dois artigos já publicados: “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio” (Viveiros de Castro 1996a) e “Atualização e contra-efetuação do virtual na socialidade amazônica: o processo do parentesco” (idem 2000). O que se apresenta abaixo procura explicitar a concepção de antropologia que estava implícita nessas análises. Trata-se, em suma, de meu modo de tentar responder à questão: “o que é a antropologia?” Ou, pelo menos, de sugerir uma das coisas que ela pode ser. No caso: uma metafísica experimental.

Sobre Lévi-Strauss e vice-versa

Uma maneira de situar este estudo sobre o pensamento dos povos nativos da

floresta amazônica — um ‘pensamento selvagem’ — é dizer que seus temas estão

radicados no estruturalismo, mas que seus problemas são, ao menos em parte,

outros, pois outros são os tempos, e outro o estado do conhecimento etnológico.

Digamos, então, que seu ponto de partida é o ponto de chegada de Lévi-Strauss, o

estado a que ele soube levar a etnologia ameríndia. Por isso, pareceu-me

apropriado abrir este prólogo por uma conclusão — de Lévi-Strauss. Nas linhas

finais do posfácio a um volume recente de L’Homme, dedicado aos avanços na

teoria do parentesco, o decano do americanismo observa:

É digno de nota que, a partir de uma análise crítica da noção de afinidade, concebida pelos índios sul-americanos como ponto de articulação entre termos opostos: humano e divino, amigo e inimigo, parente e estrangeiro, nossos colegas brasileiros tenham vindo a extrair o que se poderia chamar de uma metafísica da

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predação. Os sul-americanistas presentes neste volume (…) não ficaram atrás.1 Sem dúvida, essa abordagem não está livre dos perigos que ameaçam qualquer hermenêutica: que nos ponhamos insidiosamente a pensar no lugar daqueles que acreditamos compreender, e que os façamos dizer mais, ou outra coisa, que aquilo que eles pensam. Ninguém pode negar, porém, que ela tenha transformado os termos em que se punham certos grandes problemas, como os do canibalismo ou da caça de cabeças. Desta corrente de idéias, resulta uma impressão de conjunto: quer nos regozijemos, quer nos inquietemos, a filosofia está novamente no centro do palco antropológico. Não mais a nossa filosofia, aquela de que minha geração queria se livrar com a ajuda dos povos exóticos; mas, em uma notável reviravolta, a deles (Lévi-Strauss 2000: 719–20).

Não sei se todos os colegas brasileiros em que pensava o autor

reconheceriam-se em tal retrato. Mas este colega, ao menos, não saberia resumir

melhor a origem do percurso que o levou até aqui, os perigos envolvidos na

empresa, e a ambição que o tenta. O presente livro consiste exatamente em um

esforço de formulação dos pressupostos ontológicos da socialidade amazônica (que

incluem o que Lévi-Strauss chamou de uma metafísica da predação, mas não se

reduzem a ela), e seu propósito último é de fato lançar alguma luz sobre a

dimensão propriamente filosófica do pensamento indígena.

É perigoso tentar uma ‘hermenêutica’ da passagem acima; pode-se acabar

fazendo-a dizer mais, ou outra coisa, que aquilo em que seu autor estava

pensando. Mas não há negar que ela transpira uma certa ambiguidade. Esta não

diz respeito aos riscos do uso do discurso indireto livre e da interpretação

anagógica, que são apontados sem rebuço, e são bem reais (o que não quer dizer

que não valha a pena corrê-los). Sem dúvida, poderíamos recordar que o próprio

Lévi-Strauss já achou necessário precaver-se contra a suspeita de projeção

interpretativa. Mas sua argumentação não nos protegeria: ela apelava para a

unidade última do espírito humano, tema que não desempenha qualquer papel nas

páginas a seguir.2 Para este livro, ao contrário, a divergência entre o pensamento

ameríndio e a vulgata cosmológica de que se alimenta a antropologia é justamente

1 I. Daillant, D. Karadimas, A. Surralès, A.–C. Taylor. A menção de Lévi-Strauss aos pesquisadores brasileiros alude às referências presentes nos artigos destes americanistas franceses. 2 Penso no célebre argumento de O cru e o cozido: “No uso que fazemos do método, seremos certamente acusados de interpretar e simplificar excessivamente. À parte o fato de que, repita-se, não pensamos que todas as soluções propostas tenham o mesmo valor… seria hipócrita não ir até o fim em nosso modo de pensar. Responderíamos, então, a nossos criticos eventuais: que importa? Pois, se a finalidade última da antropologia é contribuir para um melhor conhecimento do pensamento objetivado e de seus mecanismos, tanto faz, para este livro, que seja o pensamento dos índios sul-americanos que tome forma sob a ação do meu, ou o meu sob a ação do deles. O que importa é que o espírito humano, indiferente à identidade de seus mensageiros ocasionais, manifeste uma estrutura cada vez mais inteligível, à medida em que progride a operação duplamente reflexiva de dois pensamentos agindo um sobre o outro, e dos quais ora um, ora outro, pode ser a mecha ou a fagulha de cujo contato brotará sua comum iluminação” (L.–S. 1964: 21).

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um dos problemas a explorar. O perigo, neste caso, é menos o de fazer os índios

dizerem outra coisa que o que eles pensam, e mais o de insistir que eles dizem

outra coisa que o que nós pensamos.

A ambiguidade da passagem citada está na sentença final, e envolve, ali

como em tantos outros momentos de sua obra, a relação de Lévi-Strauss com a

noção de ‘filosofia’. Sabe-se como esse antropólogo sempre guardou suas

distâncias face à academia filosófica; como, desde cedo, contrapôs seu entusiasmo

pelas ciências do inconsciente a seu desprezo pelas filosofias da consciência; e

como, há pouco, ele exprimiu sua consternação diante das tentativas de

recuperação antropológica de temas e estilos filosóficos que lhe pareciam haver

sido sepultados pelo estruturalismo (L.–S. 1998). A idéia de que a filosofia tenha

voltado ao proscênio antropológico é-lhe certamente mais inquietante que

alvissareira. E inquietante, talvez, mesmo que não seja a nossa que tenha voltado,

mas a daqueles povos exóticos que o haviam ajudado a livrar-se dela.3 Pois é

difícil que a filosofia desses povos passe ao primeiro plano sem que à nossa isso

não acabe aproveitando; e de qualquer modo, de que serviria ter-se livrado de

uma filosofia, se era para cair nos braços de outra?

Ambiguidade indubitável, portanto, frente à reviravolta notável. Isso posto,

dar à observação de Lévi-Strauss uma interpretação ‘a favor’ do objetivo visado no

presente livro não é, penso, pôr-se a pensar insidiosamente em seu lugar. Pois foi

ele mesmo quem insistiu sobre a necessidade de se abrir espaço, no centro do

palco, para uma filosofia selvagem:

Entre a absurdidade radical das práticas e crenças primitivas proclamada por Frazer, e sua validação especiosa pelas evidências de um pretenso senso comum invocado por Malinowski, há lugar para toda uma ciência e toda uma filosofia (L.–S. 1962b: 99).

Resta que, entre essa ciência e essa filosofia, Lévi-Strauss sempre optou

pela primeira. Ela é o tema privilegiado, por exemplo, de O pensamento selvagem,

livro que procede a uma série de paralelos entre a ciência moderna e a ciência

primitiva, e que pode ser lido como uma espécie de filosofia da “ciência do

concreto”. Já a filosofia selvagem propriamente dita, enquanto atividade

intelectual distinta da ciência, movida por outras intenções e operando com outros

3 A expressão “uma notável reviravolta” da passagem citada — no original, “un frappant retour des choses” — não deixa de trazer à mente o título da resposta de seu autor, dois anos antes, a um artigo que pretendia jogar-lhe contra Merleau-Ponty: “Voltas atrás”, Retours en arrière (L.–S. 1998). Título ele próprio ambíguo, evocando tanto uma lamentável regressão intelectual como uma recordação saudosa de personagens e debates do passado.

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objetos, recebeu um tratamento bem menos sistemático por parte do autor. No

caso do livro citado, o lado ‘não-científico’ dessa filosofia (seu pólo sacrificial antes

que seu pólo totêmico, digamos) vê-se assimilado à religião, dimensão que

constitui, aos olhos de Lévi-Strauss, um verdadeiro império do não-senso. Entre a

ciência e a religião, em suma, o lugar da filosofia selvagem na obra lévi-

straussiana parece bastante instável.4

Há porém um momento, e largo, dessa obra no qual se pode entrever a

perspectiva de uma filosofia selvagem em particular: a dos povos indígenas

americanos. Refiro-me ao momento representado pelos quatro volumes das

Mitológicas e os três livros que as completam.5 Digo que se pode, apenas, entrevê-

la, porque tal perspectiva permanece em estado não-cristalizado, é uma

virtualidade difusa ou dispersa nas análises mitológicas empreendidas nesses

estudos. À parte certos excursos fundamentais — assim os que versam sobre o

problema do contínuo e do discreto em O cru e o cozido, ou as páginas de O

homem nu sobre o “mito único” —, a significação filosófica da mitologia americana

encontra-se como que imprensada entre, de um lado, a minuciosa

contextualização etnográfica do conteúdo das narrativas, e, de outro, a

demonstração de seus valores formais e de sua combinatória intertextual.

O propósito do presente livro é cristalizar essa perspectiva e atualizar essa

significação virtual. Trata-se, portanto, de formular os problemas filosóficos

adequados a certos temas sociológicos e cosmológicos identificados nas

Mitológicas, entre os quais se encontram, para evocarmos a citação que abria este

prólogo, a questão da afinidade e o motivo da ‘predação’. É essencial que tais

problemas encontrem apoio na etnografia e permitam dar sentido a outras

dimensões, não-discursivas ou não-mitológicas, isto é, que sejam, eles próprios,

problemas indígenas. De fato, como observou Lévi-Strauss, é a filosofia ‘deles’,

não a ‘nossa’, que está em cena, ainda que seja preciso utilizar algo do

vocabulário da segunda para poder falar da primeira.

Ao tentar fazer isso, entretanto, estaremos necessariamente nos afastando

dos limites que Lévi-Strauss se impôs. Pois a relativa ausência de foco sobre a

filosofia ameríndia nas Mitológicas é o resultado de uma posição firmada de seu

autor, segundo a qual “os mitos não dizem nada capaz de nos instruir sobre a

ordem do mundo, a natureza do real, a origem do homem ou o seu destino” (L.–S

1971: 571; eu grifo). Em troca, prossegue ele, os mitos nos ensinam muito sobre

4 O que talvez reflita uma imagem tradicional da da filosofia não-selvagem, que faz dela uma etapa evolutiva entre a Religião e a Ciência.

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as sociedades de onde provêm, e, sobretudo, sobre certos modos fundamentais (e

universais) de operação do espírito humano (loc.cit.). Vale notar que tal afirmação

é feita no contexto de uma resposta particularmente dura a certas críticas

filosóficas dirigidas ao estruturalismo; ou talvez devéssemos dizer, a certas

críticas religiosas, pois é em Paul Ricœur que o autor parece, aqui, estar

pensando.

Essa idéia de que os mitos não nos dizem nada de instrutivo sobre seu

objeto (a ordem do mundo, a origem do homem, a natureza do real) mas apenas

sobre seu sujeito (a sociedade indígena e a mente humana) é muito complicada.

Em primeiro lugar, a sociedade e o espírito são, como Lévi-Strauss não cansa de

lembrar, parte do mundo e da natureza. Em seguida, e mais importante, a

questão de saber o que os mitos dizem de proveitoso para os sujeitos que os

contam, antes que apenas sobre eles, permanece em aberto; resolvê-la afirmando

que os mitos existem para resolver contradições (L.–S [1955]: 254) é certamente

insuficiente. Por fim, e sobretudo, a alternativa proposta é demasiado drástica.

Para fazer com que os mitos nos ensinem algo sobre a sociedade e a mente, não é

necessário decretar primeiro que eles não nada nos ensinam sobre o mundo e o

real — como se, caso o fizessem, estivessem então a validar alguma verdade

transcendente, um sentido oculto e numinoso. Não se pode esperar dos mitos,

continua nosso autor (1971: loc.cit.), “nenhuma complacência metafísica; eles não

virão em socorro de ideologias extenuadas”. Com certeza, não se pode esperar

nenhuma complacência dos mitos indígenas para com a nossa metafísica; mas daí

não se segue que se possa esperar deles que não exprimam suas próprias

exigências metafísicas, nem que estas não sejam um objeto antropológico e

filosófico interessante. Tão interessante, por exemplo, quanto nossa já algo

extenuada metafísica da Ciência, e suas idéias sobre uma “ordem do mundo” e

uma “natureza do real”.6

Lévi-Strauss ofereceu uma formulação bem mais instigante em seu famoso

artigo de 1955 sobre a estrutura dos mitos. Em lugar, diz ele, de opor a

mentalidade primitiva e o pensamento científico como se dois modos

qualitativamente diferentes de pensar os mesmos objetos — o mesmo mundo —, é

5 A via das máscaras, A oleira ciumenta e História de Lince. 6 Note-se que o último livro mitológico do autor, o História de Lince, é introduzido por uma declaração que não deixa de destoar daquela de 1971, parecendo assumir a idéia de uma filosofia especificamente ameríndia, distinta do, digamos, metabolismo basal do pensamento selvagem: “[C]reio que é possível, hoje, recuar até as fontes filosófica e ética do dualismo ameríndio” (1991: 16). Uma notável reviravolta?

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preciso pôr a diferença no mundo. Pois não são as “operações intelectuais” que

diferem, mas “a natureza das coisas sobre as quais incidem essas operações”:

Descobri-se-á, quem sabe, um dia, que a mesma lógica subjaz ao pensamento mítico e ao pensamento científico, e que o homem sempre pensou igualmente bem. O progresso — se é que o termo poderia, nesse caso, aplicar-se — não teria, então, a consciência como seu teatro, mas o mundo, onde uma humanidade dotada de faculdades constantes se encontraria, no decorrer de sua longa história, constantemente às voltas com novos objetos (L.S. [1955]: 255).

Não seria assim a consciência que varia, mas o mundo. Ora, como

veremos, os mitos amazônicos ‘dizem’ exatamente isso. E vão mesmo adiante,

pois a idéia de um sujeito dotado de “faculdades constantes” a braços com uma

diversidade objetiva é generalizada, por eles, para além da espécie humana como

personagem e da história como palco. O que nos leva a suspeitar que os mitos

dizem, afinal, algo de instrutivo, sobre a ordem do mundo e sobre o espírito

humano. Esta, então, nossa questão: antes que as “operações intelectuais” do

pensamento ameríndio, trata-se de tentar divisar a natureza das coisas que ele

pensa, seus objetos — isto é, seus conceitos —, e o mundo descrito por esses

conceitos. Em outras palavras, trata-se de prestar atenção ao que dizem os

discursos amazônicos sobre a ordem do mundo e a natureza do real, o que inclui o

que eles dizem sobre a sociedade e o espírito humanos: não indiretamente e como

que à sua revelia, em benefício de nossas filosofias do espírito humano, mas

textualmente e como que deliberadamente, para o governo filosófico dos povos

que os enunciam. E o que eles dizem — se preferir o leitor, o que eles ensinam —

é que não há por que escolher, pois não há como separar, entre a natureza do real

e o espírito humano, a ordem do mundo e o movimento da sociedade.

O que vem a ser outra idéia muito complicada. Este livro consiste em seu

desenvolvimento, defesa e ilustração.

(…)

A imagem do vínculo e o mundo de outrem

O presente livro versa sobre os pressupostos do pensamento indígena

americano. Ele procura discernir as intuições instauradoras que, a montante do

pensado, definem o pensável, o que há a pensar para esse pensamento. Mais

particularmente, seu foco é a imaginação conceitual nas culturas nativas da

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Amazônia, e sua abordagem é antropológica, pois descreve tal imaginação do

ponto de vista das relações sociais que ela implica.

Os capítulos desta primeira parte tentam precisar os termos — as palavras

e os limites — de semelhante declaração de intenções, a natureza do experimento

intelectual que ela propõe, e o campo de problemas em que ela se situa.

Comecemos diretamente por algumas palavras do parágrafo acima.

Pela última, por exemplo: o verbo ‘implicar’, que começa por excluir uma

alternativa pouco interessante. Este livro não trata as relações sociais como causa

ou sujeito da imaginação amazônica, menos ainda como seu objeto ou efeito; isto

é, ele não distingue entre ‘sociedade’ e ‘cultura’, e assim não as ordena

causalmente. As relações sociais são tomadas como dimensão intrínseca ao

exercício dessa imaginação, o espaço implícito que ela percorre. Dito de outro

modo, elas não são uma ordem transcendente ao pensamento, mas seu elemento

imanente: nem contexto, nem texto, formam a contextura própria do pensamento

indígena.

Em seguida, tais relações vão qualificadas de ‘sociais’ somente em atenção

preliminar às nossas convenções cosmológicas, pois o que se tenciona apreender é

o conceito geral de relação imaginado pelo pensamento indígena, e a constituição

deste pensamento como imaginação relacional. O esquema ou figura de tal

conceito radica-se, decerto, em uma intuição da socialidade como implicada na

própria trama do cosmos; mas é por isso mesmo que a expressão ‘relação social’

é, a rigor, um pleonasmo, de utilidade apenas temporária. As concepções

indígenas sugerem, ademais, uma idéia da relação como consistindo em um tipo

de dinamismo mais que em um tipo de atributo. As relações são aqui virtualidades

relacionantes, relações que acionam e diferenciam relações; mais precisamente,

elas envolvem a existência de uma diferença de potencial que se atualiza em seus

termos, ou relações relacionadas. Os termos (substâncias e propriedades) serão

interpretados como resíduos das relações que os constituem, aquilo que surge e

sobra quando estas se consumam e se consomem. Mas resta sempre, como

veremos, uma virtualidade relacional irredutível nesse resíduo, algo que ele não

pôde atualizar.

Uma relação, em particular — justamente porque ela não é uma relação

particular —, funciona como fio condutor das páginas que seguem. Um dos temas

centrais do livro, e é a isso que eu me referia ao falar na intuição de uma

socialidade cósmica, é o sentido da relação de alteridade no pensamento

ameríndio. Há muito que os etnólogos interessados na Amazônia, o autor entre

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eles, vêm insistindo sobre a importância da alteridade na economia simbólica dos

povos dessa região. Essa importância foi por vezes atribuída a um certo estilo

cognitivo panamericano (quiçá ‘primitivo’ em geral), que privilegiaria as

classificações dualistas e as oposições binárias. Cuido que semelhante propensão,

se podemos realmente chamá-la assim, é antes um fenômeno derivado, uma

repercussão abstrata de algo que pouco tem de cognitivo, de classificatório, ou de

simplesmente binário — algo de que os dualismos indígenas são o limite inferior

ou a versão reduzida, e que lhes imprime um viés característico (Lévi-Strauss

1991). As dualidades tão frequentes nas cosmologias amazônicas formam apenas

as margens, incessantemente desfeitas e refeitas, entre as quais flui o

pensamento nativo. Longe de ser o avatar de um Dois a obcecar a razão indígena,

a alteridade está situada, como diria Guimarães Rosa, na terceira margem desse

rio.

Em outras palavras, a alteridade se inscreve nos pressupostos da

imaginação amazônica como o campo próprio do pensável.7 Ela é a marca da

presença de Outrem enquanto relação a priori ou condição geral de atualização

dos estados de coisas e corpos que povoam o mundo. Tal condição se reflete na

cosmopraxis indígena sob a forma de um esquema conceitual virtual, que rotulei

de perspectivismo, devido a algumas analogias com as orientações filosóficas

assim denominadas.8 A idéia básica (que não é uma idéia simples) do

perspectivismo, tanto o indígena como seu análogo ocidental, é que toda posição

de realidade especifica um ponto de vista, e que todo ponto de vista especifica um

sujeito — nessa ordem. No caso indígena, tal especificação é em primeiro lugar

uma especiação, pois a diferença de ponto de vista entre humanos e não-humanos

é ali uma questão fundamental, e a realidade assim posta compreende a realidade

reflexiva do sujeito, individual ou coletivo, pois toda posição de auto-identidade

envolve a “perspectiva do Outro” (Taylor 1993: 673) como um momento

constitutivo. O perspectivismo implica portanto a alteridade: a diferença como

ponto de vista, o ponto de vista como diferença — e a diferença como positiva, nos

7 Nota terminológica. A variação entre os determinativos ‘amazônico’ e ‘indígena’, nas páginas que seguem, não é rigorosa. Em certos momentos, ‘amazônico’ refere-se apenas aos povos da floresta homônima; em outros, ele é uma sinédoque que designa todas as culturas das chamadas ‘terras baixas’ da América do Sul; em outros, enfim, ele indica apenas o foco principal do livro — ou os limites de minha ignorância etnográfica —, sem implicar a exclusão de outros povos americanos. O pressuposto de base é a existência de uma unidade histórico-cultural profunda de toda a América indígena. 8 Viveiros de Castro 1996b. O perspectivismo filosófico a que me refiro está associado originalmente ao nome de Leibniz, mas se acha variamente presente em pensadores como

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dois sentidos da palavra. A alteridade não é uma dentre as várias categorias

formais impostas arbitrariamente pelo espírito sobre um mundo preexistente, em

vista de sua ordenação, mas a condição imanente de categorização da experiência

real, e, ao mesmo tempo, um vínculo necessário que dá corpo aos termos que

efetua, pondo-os no mundo e assim pondo o mundo.

Nesse sentido, o perspectivismo amazônico poderia ser descrito como uma

ontologia relacional, isto é, como uma imagem do ser na qual a relação ocupa o

lugar da substância enquanto ‘categoria’ primeira. Uma ontologia relacional,

ademais, onde a relação primeira é o nexo de alteridade, a diferença ou ponto de

vista implicado em Outrem. Não bastaria dizer então, com Gilbert Simondon

([1964]: 30, 126), que a relação tem o estatuto de ser, é uma modalidade do ser,

uma relação no ser. Aqui, é o ser que teria o estatuto de relação: a substância é

uma modalidade da relação, os termos são a relação em seu estado explicado, e a

relação é a diferença ou disparidade entre os termos em que ela se desenvolve.9

Tudo isso, é claro, se admitirmos que a imagem do ser — o ser como

imagem — constitui uma alegoria adequada à imaginação indígena, e portanto que

a noção de ontologia se justifica nesse contexto.10 Talvez a ousada sugestão de

Gabriel Tarde ([1893]: 86-88), de abandonarmos o conceito irremediavelmente

solipsista de Ser e recomeçarmos a metafísica a partir do Ter (ou Haver: Avoir),

no que este implica de transitividade intrínseca, de abertura originária a uma

exterioridade, seja mais interessante para o caso amazônico, onde o processo que

chamei de predação ontológica faz as vezes de princípio geral de subjetivação.11

Não obstante, conservei a linguagem da ontologia por um motivo, digamos,

tático. Ela toma a contrapelo uma manobra frequente contra o pensamento

indígena, que consiste no bloqueio desrealizante desse pensamento através de sua

redução às dimensões de um conhecer ou representar, isto é, a uma

‘epistemologia’ ou a uma ‘visão de mundo’ — como se o que houvesse a conhecer

Nietzsche, Tarde, Whitehead e Deleuze; este último, como ficará claro, é minha referência principal para o conceito. 9 Essa formulação leva adiante uma sugestão do mesmo Simondon, que recomendava uma apreensão realista das relações e nominalista dos termos (op.cit.: 82), de modo a compensar o viés inverso de nossa metafisica. A tese de Simondon sobre o processo de individuação forneceu vários dos instrumentos utilizados neste livro. 10 Ou em qualquer outro contexto não-ocidental. A questão é levantada, e respondida negativamente, por François Jullien a propósito da China, para cujo pensamento esse autor reivindica, aliás, um mesmo “primado da relação” (Jullien & Marchaisse 2000: 12–13, 265–67, 308, 352) — e, convém recordar, um uso particularmente sofisticado da dualidade (Jullien 1993). 11 Viveiros de Castro 1993a, 1996b. O capítulo @@ abaixo, onde se retoma a monadologia de Tarde (e a de Whitehead), trata da preensão ontológica — conceito que hoje me parece preferível ao de predação — como dinamismo característico da socialidade amazônica.

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ou a ver já estivesse resolvido de antemão; e resolvido, é claro, a favor de nossa

ontologia (Latour 2000a). A noção de ontologia, portanto, não é empregada aqui

para sugerir que o pensamento indígena exprime mais uma metafísica do Ser

(dizer que o ‘ser’ é relação já é indicar o contrário de uma Ontologia), mas sim

para sublinhar que esse pensamento é inseparável de uma realidade que constitui

o seu exterior. A manobra que se pretende neutralizar foi bem resumida por Roy

Wagner, na linguagem mais classicamente antropológica da natureza e da cultura:

Quando usamos desse modo os controles, não-convencionalizados e diferenciantes, da natureza, nós objetificamos e recriamos nossa Cultura coletiva com sua ideologia básica do ‘natural’ versus o ‘cultural’ e artificial.12 Quando usamos esses controles no estudo de outros povos, inventamos suas culturas não como análogos de nosso esquema cultural e conceitual em seu todo, mas somente de parte dele. Inventamos essas culturas como análogos da Cultura (como ‘regras’, ‘normas’, ‘gramáticas’, ‘tecnologias’), isto é, como a parte consciente, coletiva e ‘artificial’ de nosso mundo, em relação a uma única ‘realidade’ natural universal. Assim, essas culturas não contrastam com nossa cultura, ou oferecem contra-exemplos dela enquanto um sistema total de conceitualização, mas, antes, sugerem uma comparação como se elas fossem ‘outros modos’ de tratar nossa própria realidade. Incorporamos esses povos dentro de nossa realidade, e assim, incorporamos seus modos de vida dentro de nossa própria auto-invenção. Aquilo que conseguimos perceber das realidades que eles aprenderam a inventar e habitar é relegado ao ‘sobrenatural’ ou despachado como ‘meramente simbólico’ (Wagner 1981: 142; grifos originais).

O comparativismo usual poderia ser descrito, então, como um jogo de dois

contra um, ou como uma discussão onde um dos interlocutores é ao mesmo

tempo juiz e parte: de um lado, nossa cultura e nossa natureza; do outro, a

cultura do nativo. A natureza do nativo é vista como interna à sua cultura, ao

passo que a natureza do antropólogo é vista como externa a todas as culturas.

Mas assim, como se diz, é covardia.13

Wagner está distinguindo, na passagem acima, entre um conceito de

cultura como plano de imanência, com suas duas faces dadas simultaneamente —

uma imagem do pensamento e uma matéria do ser —, de um conceito de cultura

12 Veremos adiante o significado das noções wagnerianas de controle, convenção e diferenciação. 13 Outro modo assimétrico de jogar esse jogo é o praticado pelos antropólogos ‘cognitivistas’ — mas também por autores como Ingold (2000), embora com os sinais de valor invertidos. Se a crítica de Wagner à comparação pseudo-relativista, de tipo ‘dois contra um’, visava a idéia de que nós temos natureza e cultura, os selvagens tendo só cultura, quando passamos aos especialistas na ‘natureza humana’ a distribuição muda: os selvagens são só natureza (suas culturas exprimem imediata e diretamente as disposições cognitivas ou existenciais do Homo sapiens), os ocidentais somos natureza e cultura (a ciência, a escrita, etc.). Para os cognitivistas, essa cultura nos dá um acesso privilegiado à natureza das coisas, corrigindo as ilusões (necessárias) inscritas evolucionariamente na constituição mental da espécie; para Ingold, ao contrário, tal cultura é uma perversão que nos expulsa da morada do Ser, compartilhada pelos demais humanos.

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11

como doxa, como conjunto particular de representações referidas a um mundo

exterior universal.14 Neste segundo e mais corrente sentido da noção de cultura, a

democracia epistemológica professada pela antropologia, quando afirma a

diversidade cultural dos significados, revela-se, como outras democracias que

conhecemos tão bem, muito relativa, pois se apóia ‘em última instância’ em uma

monarquia ontológica absoluta, onde se impõe a unidade referencial da natureza.15

No primeiro sentido da noção de cultura, porém, não há última instância: o oposto

da cultura não é a natureza, mas o nada, pois ‘atrás’ da cultura não há nada. Ou,

talvez, tudo — isto é, o caos.

Tentando contornar a piedosa hipocrisia relativista de nossa disciplina, e

em acordo com o conceito de cultura proposto por Wagner, o presente livro

advoga o direito à autodeterminação ontológica das culturas indígenas.

Autodeterminação, aliás, é exatamente a palavra, pois estaremos falando de

conceitos — da imaginação conceitual nessas culturas.

(…)

Dissemos acima que há um razoável consenso do discurso americanista no tocante

à importância do vínculo de alteridade. Como todo consenso, este também

repousa sobre um mal-entendido, e envolve um processo de esvaziamento

semântico. Um dos objetivos do presente livro é tentar uma tematização mais

rigorosa da ‘questão do outro’ no pensamento amazônico. Não por via de uma

compilação de suas diversas incidências na literatura disponível, ou do exame em

profundidade de um caso etnográfico, mas de um esforço para lhe dar consistência

conceitual, isto é, para situá-la em um campo problemático bem definido.

14 Para o conceito de plano de imanência, a que retornaremos, ver Deleuze & Guattari 1991: 38–59. Seria também possível pensar o contraste entre os dois sentidos de cultura em Wagner nos termos da diferença entre Weltbild e Weltanschauung feita pelo ‘último’ Wittgenstein. A analogia entre os conceitos de Weltbild e de plano de imanência foi avançada em um magnífico artigo de Bento Prado Jr (1998: 317-ss). 15 O recurso a tal ultima ratio é analisado por Bruno Latour em vários trabalhos recentes (Latour 1996b, 1999, 2000a). A cultura de Wagner, no sentido de “sistema total de conceitualização” que inclui tanto a ‘cultura’ como a ‘natureza’, parece corresponder ao que Latour ([1991], 1999) chamará de Constituição, embora possa ser igualmente aproximada, na medida em que só existe como complexo de ação e motivação atualizado em uma coletividade humana concreta, dos conceitos latourianos de natureza-cultura e de coletivo. Latour e Wagner são duas influências capitais sobre este livro; seus trabalhos (desenvolvidos de modo independente) mostram uma clara mas pouco notada convergência, em particular Nous n’avons jamais été modernes (Latour [1991]) e The invention of culture (Wagner 1981). Além disso, eles me parecem completar-se bastante bem, com o primeiro sendo nitidamente mais forte quando se trata de descrever a

Page 12: Eduardo Viveiros de Castro - A propriedade do conceito

12

Para tanto, é necessário desenvolver a mútua implicação dos conceitos de

perspectivismo e de alteridade, e distingui-los inequivocamente de dois ‘falsos

amigos’ com os quais costumam ser confundidos. Trata-se de mostrar, de um

lado, como o perspectivismo indígena (uma ontologia da relação) pouco tem a ver

com o relativismo moderno (uma epistemologia do relativo), e, de outro, como a

alteridade amazônica (o Eu e o Outro como efeitos da relação-Outrem) resiste a

uma tradução no vocabulário da ‘intersubjetividade’ (o Eu e o Outro como

conteúdos da forma-Sujeito).

A distinção entre perspectivismo e relativismo já fora esboçada nos textos

reelaborados neste livro, e é aqui aprofundada; mas a ‘irredução’ do regime de

alteridade amazônico a um tipo de intersubjetivismo é algo cuja necessidade só se

me tornou clara recentemente, obrigando-me a rever algumas formulações, e

mesmo, como logo veremos, o próprio nome dessa relação que estou chamando

‘alteridade’. Tal revisão tem consequências para o conceito de perspectivismo, pois

permite evitar sua trivialização em uma forma de idealismo intersubjetivo ou de

construcionismo social. Mas ela se impôs, em primeiro lugar, em vista de um

melhor entendimento dos dispositivos de subjetivação indígena, e de uma

imaginação mais precisa das relações — ou melhor, da relação — referidas pela

etnologia americanista pelos termos de ‘troca’ e ‘reciprocidade’, ‘predação’ e

‘inimizade’.

A revisão se mostrou necessária, acima de tudo, para dissipar qualquer

conotação de transcendência que tenha alguma vez sido dada, pelo autor

inclusive, à idéia de ‘Outro’ no mundo amazônico: que os deuses araweté sejam

outros, por exemplo (Viveiros de Castro [1986]), não significa que o Outro

araweté seja Deus. A alteridade é indubitavelmente um dispositivo transcendental

do pensamento indígena, mas não projeta nenhuma imagem do transcendente;

trata-se, ao contrário, da modalidade mesma de imanência desse pensamento.16

Ela é a versão amazônica daquilo que Roy Wagner, em um contexto melanésio,

chamou de “mundo da humanidade imanente” (1981: 86-89), onde a ‘cultura’ é

da ordem do fato, e a ‘natureza’, do feito. Este mundo da humanidade imanente,

advirta-se, está nas antípodas de qualquer forma de humanismo, assim como o

mundo da alteridade imanente está nas antípodas de qualquer forma de altruísmo.

Constituição da modernidade, e o segundo, muito mais rico na caracterização dos regimes ontológicos de tipo extra-moderno. 16 Recordo a diferença, de origem kantiana, entre o ‘transcendental’ (cujo antônimo é ‘empírico’), que remete às condições de possibilidade da experiência, situando-se aquém desta, e o ‘transcendente’ (cujo antônimo é ‘imanente’), que se refere ao que está além da toda experiência possível, isto é, ao supra-sensível ou às coisas-em-si.

Page 13: Eduardo Viveiros de Castro - A propriedade do conceito

13

Há bem mais sujeitos, no mundo amazônico, que os sujeitos humanos; em certo

sentido, há mais humanos nesse mundo que os membros da espécie epônima;

mas isso só faz tornar as concepções indígenas de sujeito e de humanidade ainda

mais avessas a qualquer interpretação em termos de razão comunicacional ou de

consenso dialógico.

Para distinguir a função amazônica de alteridade da problemática da

intersubjetividade, um ponto de apoio decisivo para mim foi o conceito acima

evocado, o de Outrem como estrutura a priori. Ele foi inicialmente proposto no

conhecido comentário de Gilles Deleuze ao Vendredi de Michel Tournier.17 Lendo o

livro de Tournier como a descrição ficcional de uma experiência metafísica — o que

é um mundo sem outrem? —, Deleuze procede a uma indução dos efeitos da

presença desse outrem a partir dos efeitos causados por sua ausência. Outrem

aparece, assim, como a condição do campo perceptivo: o mundo fora do alcance

da percepção atual tem sua possibilidade de existência garantida pela presença

virtual de um outrem por quem ele é percebido; o invisível para mim subsiste

como real por sua visibilidade para outrem.18 A ausência de outrem acarreta a

desaparição da categoria do possível; caindo esta, desmorona o mundo, que se vê

reduzido à pura superfície do imediato, e o sujeito se dissolve, passando a

coincidir com as coisas-em-si (ao mesmo tempo em que estas se desdobram em

duplos fantasmáticos). Outrem, porém, não é ninguém, nem sujeito nem objeto,

mas uma estrutura ou relação, a relação absoluta que determina a ocupação das

posições relativas de sujeito e de objeto por personagens concretos, bem como

sua alternância: outrem designa a mim para o outro Eu e o outro eu para mim.19

Outrem não é um elemento do campo perceptivo; é o princípio que o constitui, a

ele e a seus conteúdos. Outrem não é, portanto, um ponto de vista particular,

relativo ao sujeito (o ‘ponto de vista do outro’ em relação ao meu ponto de vista

17 Esse comentário está publicado em apêndice a Logique du sens (Deleuze 1969a: 350–72; ver também id. 1969b: 333–35, 360). O conceito de Outrem pertence à fase que se poderia chamar de estruturalista da obra de Deleuze; mas ele é retomado, em termos praticamente idênticos, em seu último livro, Qu’est-ce que la philosophie? (Deleuze & Guattari 1991: 21–24, 49), e justamente como o primeiro exemplo do que vem a ser um conceito filosófico. 18 “[O]utrem para mim introduz o signo do não-percebido naquilo que percebo, determinando-me a apreender o que não percebo como perceptível para outrem” (Deleuze 1969a: 355). 19 Utilizo aqui e doravante o substantivo ‘(o) Eu’ (e o pronome oblíquo ‘mim’), com inicial maiúscula, para traduzir o francês (le) Moi ou o inglês (the) Self, e a forma ‘(o) eu’, com minúscula, para traduzir o francês ‘le Je’ ou o inglês ‘the I’. A noção deleuziana de Outrem dá conta precisamente da diferença entre o eu e o Eu, o Je e o Moi, diferença esta tanto externa (outrem sou eu para um outro Eu e vice-versa) como interna (o eu é um outro que

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14

ou vice-versa), mas a possibilidade de que haja ponto de vista — ou seja, é o

conceito de ponto de vista. Ele é o ponto de vista que permite que o Eu e o Outro

acedam a um ponto de vista.20

Deleuze prolonga aqui criticamente a famosa análise de Sartre sobre o

‘olhar’, afirmando a existência de uma estrutura anterior à reciprocidade de

perspectivas do regard sartriano. O que é essa estrutura? Ela é a estrutura do

possível: Outrem é a expressão de um mundo possível. Um possível que existe

realmente, mas que não existe atualmente fora de sua expressão em outrem. O

possível exprimido está envolvido ou implicado no exprimente (que lhe permanece

entretanto heterogêneo), e se acha efetuado na linguagem ou no signo, que é a

realidade do possível enquanto tal — o sentido. O Eu surge então como explicação

desse implicado, atualização desse possível, ao tomar o lugar que lhe cabe (o de

‘eu’) no jogo de linguagem. O sujeito é assim efeito, não causa; ele é o resultado

da interiorização de uma relação que lhe é exterior — ou antes, de uma relação à

qual ele é interior: as relações são originariamente exteriores aos termos, porque

os termos são interiores às relações. “Há vários sujeitos porque há outrem, e não

o contrário” (op.cit.: 22).21

O conceito deleuziano de Outrem mostra várias facetas importantes para

este livro. Em primeiro lugar, sua indução (ou abdução) a partir de um exame do

campo perceptivo visual — onde não apenas o sujeito e o objeto são dispostos por

Outrem, mas também o contraste entre a forma e o fundo, a latitude e a

longitude, o ‘texto’ e o ‘contexto’ — é rica em sugestões para uma análise do

perspectivismo indígena, que faz um uso intenso de esquematismos ligados à

visão. A relação entre figura e fundo, por exemplo, será útil para a reconceituação

da diferença entre a ‘alma’ e o ‘corpo’ amazônicos.

Em segundo lugar, a idéia de outrem como condição de posição da

realidade (que, nesses termos, certamente não se origina com Deleuze; pense-se

em Husserl) permite discernir o que há de insatisfatório no modelo perceptivo

o Eu). Tais ‘questões pessoais’ terão importância na parte III do livro, quando discutiremos a deixis cosmológica e seus pronomes. 20 Esse ‘ele’ que é Outrem não é uma pessoa, uma terceira pessoa diversa do eu e do tu, à espera de sua vez no diálogo, mas também não é uma coisa, um ‘isso’ de que se fala. Outrem seria mais bem a “quarta pessoa do singular” — situada, digamos assim, na terceira margem do rio —, anterior ao jogo perspectivo dos pronomes pessoais (Deleuze ([1979]: 79). 21 A idéia de uma realidade própria do possível — o possível tomado como realidade implicada em sua expressão — é o que Deleuze ([1966]: 96ss; 1969b: 269ss) chama, via Bergson, de virtual, por oposição ao atual. A distinção entre os pares virtual/atual e possível/real, a que voltaremos, é importante para a rediscussão do conceito amazônico de afinidade, feita na parte II deste livro, e para a análise do ‘tempo mítico’ feita na parte III.

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15

clássico, que continua a servir de paradigma da ‘cognição’ para a maioria das

abordagens psico-antropológicas contemporâneas. Este modelo parte de um

sujeito individuado diante de um objeto a individuar, ou vice-versa. Uma vez

fechada em torno desse dualismo, a questão se resume a saber se o sujeito dispõe

de categorias inatas ou adquiridas, se ele é um tipo de objeto ou algo mais

especial, se as determinações do objeto são intrínsecas ou projetadas pelo sujeito,

o que acontece quando o objeto é um outro sujeito, e por aí vai — não muito

longe. Ao afirmar, contra isso, que “não é o Eu, é outrem como estrutura que

torna a percepção possível” (1969a: 358), Deleuze remete ao transcendental,

como imanência e virtualidade, aquilo que Durkheim havia reificado como

substância transcendente — a socialidade, que deixa assim de ser Sujeito molar

coletivo e passa a Relação distributiva e molecular de subjetivação —, ao mesmo

tempo em que transforma o sujeito e o objeto pré-individuados em termos

atualizados de uma virtualidade pré-individual.22 Não cabe então perguntar como

Outrem é construído ou percebido pelo sujeito, como ele entra no campo cognitivo

ou perceptivo: à maneira do tio materno no átomo de parentesco de Lévi-Strauss

([1945]: 56–57), ele não entra no campo — ele sempre esteve lá, como sua

condição heterogênea exterior.23

22 Se o estruturalismo de Lévi-Strauss foi famosamente definido como um “kantismo sem sujeito transcendental” (Ricœur 1963: 618) — e a fórmula foi assumida por Lévi-Strauss (1963: 633; 1964: 19) —, poderíamos dizer que a sociologia durkheimiana é um kantismo com sujeito transcendente, e a antropologia cognitiva contemporânea um kantismo com sujeito empírico (a rigor, um inatismo de tipo cartesiano), ao passo que a filosofia de Deleuze sugeriria um peculiar ‘kantismo com outrem transcendental’, que positiva o kantismo negativo estruturalista em uma direção duplamente oposta à de sua empirização cognitiva. Digo que o ‘kantismo’ deleuziano é peculiar, porque seu campo transcendental não é concebido como uma figura da interioridade, isto é, não é ‘decalcado’ da forma empírica da representação: ele não pressupõe uma forma-sujeito do campo, mas uma relação impessoal e assubjetiva exterior a seus termos, e a noção de condição não envolve uma semelhança retroprojetiva com o condicionado, mas é um princípio heterogenético (Zourabichvili 1994: 46–47; Lebrun 1998). O que equivale a dizer: contra os vários idealismos empíricos, ou kantismos sem o transcendental, um “materialismo transcendental” (Stengers @@@), ou um transcendental sem Kant. 23 O ‘irmão da mãe’ é ao mesmo tempo exterior à família conjugal e o que a torna possível; ele não é, portanto, um termo de mesma ordem que os membros da família (pai, mãe, filho), mas uma relação diferenciante. O paralelo entre a estrutura de Outrem e o átomo de parentesco não é apenas alegórico, como veremos na Parte II. Tal paralelo, note-se bem, não passa por nenhuma noção de interdito ou de lei (que, entre outros defeitos, modela indevidamente o constitutivo segundo a forma do regulativo): Outrem não é uma figura da necessidade negativa, mas da possibilidade positiva.

Recorde-se que a relação avuncular é o que produz a diferença entre o ‘eu’ (o filho, no átomo lévi-straussiano) e o ‘outro’ (o pai), bem como sua projeção temporal. O filho difere do pai através do irmão da mãe. Na verdade, todas as posições familiares são criadas pela função avuncular: além da díade pai-filho, ela distingue o marido de sua mulher (ao pô-los como não-germanos), e o filho de sua mãe (via a posição do pai como diferente do irmão desta). Não seria, então, por acaso que os Daribi da Nova Guiné definem o tio

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Esse conceito, em suma, parece-me fornecer um instrumento interessante

de tradução do regime de alteridade amazônico; mais interessante, quero dizer,

que as hermenêuticas intersubjetivas visadas pela antropologia contemporânea

como alternativa aos positivismos disponíveis no mercado. Mais adequado,

também, que as interpretações dialéticas da alteridade como trabalho do negativo

no sujeito. Pois Outrem não é, enquanto tal, ‘o outro’, isto é, o outro (alter) do

sujeito; ele é um outro (aliud) que o sujeito, uma multiplicidade virtual de onde

emergem todo Eu e qualquer Outro. Outrem é a diferença relacional pura ou

molecular, anterior à sua molarização no par opositivo e relativo Eu/Outro. A

oposição, como já ensinava Tarde, é a versão macroscópica, simplificada e

normalizada da diferença, não o seu modelo; ela é o primeiro compromisso entre a

diferença e a identidade.

Aqui se começa a poder perceber, enfim, o que há de equívoco, ou pelo

menos de impreciso, na noção de alteridade: ela não permite distinguir entre o

outro e Outrem, o termo alterno ao sujeito e a relação que os altera a ambos. A

noção implica, além disso, uma extrinsicidade ou transcendência do Outro face ao

Eu, ao passo que no regime amazônico, como se depreende mais ou menos

claramente da etnografia, a “perspectiva do Outro” é uma determinação imanente

dos dispositivos de subjetivação nativos: trata-se de uma ‘alteridade interna’. Com

seu sufixo de estado ou de atributo, a forma ‘alteridade’ sugere ainda uma

imagem finalizada — literalmente, terminada — da relação, que a toma a partir de

seus termos, como relação relacionada e não como relação relacionante: oposição

extensiva antes que diferença intensiva. E se há uma insuficiência importante na

metodologia antropológica que mais fez para afirmar o primado da relação

diferencial — o estruturalismo —, esta reside em sua concepção exclusivamente

extensivista da diferença.

É preciso achar uma outra palavra. O termo que melhor caberia está,

infelizmente, ocupado há muito tempo, e por um locatário conceitual que não

poderia ser mais antagônico ao sentido aqui visado: alienação, que tem a tripla

vantagem de ser um nome de ação e não de estado, de estar mais próxima do

aliud latino e não do alter, e de designar uma diferença interna ao sistema

subjetivo ‘eu-Eu’. Mas é inútil insistir por aí, sob pena de criar toda sorte de mal-

entendidos. Assim, proponho que se distinga entre a alteridade, oposição

extensiva entre Eu e não-Eu, e a alteração, diferenciação intensiva característica

materno como constituindo a ‘base’ ou ‘causa’ do sobrinho uterino (Wagner 1967): o pai pode ser o autor eficiente da criança, mas o tio é sua razão suficiente.

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da estrutura-Outrem. A alteridade procede da alteração, a alteração se resolve ou

desenvolve em alteridade, mas não se confunde com esta: “Outrem é sempre

percebido como outro, mas em seu conceito ele é a condição de toda percepção,

para os outros como para nós” (Deleuze & Guattari 1991: 24). A alteração está

para a alteridade como uma relação virtual implicada está para os termos atuais

em que ela se explica. A alteração não é dada; o dado é a alteridade: mas a

alteração é aquilo pelo qual o dado se dá como alteridade.24

Não há alteridade sem alteração. Abstraída da potência de alteração de que

procede, a alteridade se congela em uma ‘relação’ meramente formal, e

frequentemente degenera em uma taxonomia de oposições diacríticas entre

posições constituídas. No caso da antropologia amazônica, isso muitas vezes se

traduz em uma “sociologia verbal” (Calavia 1995: 249) de categorias de

identidade e de autodesignações coletivas — uma étimo-sociologia mais que uma

etno-sociologia —, e em uma cartografia estática de círculos de distância social,

quando não em análises ‘cognitivas’ que reduzem toda diferença a uma

classificação, todo pensamento a um reconhecimento, todo conceito a um taxon:

triunfo da extensão, anulação total das diferenças de intensidade portadas pela

alteração.

Alteração, então, designaria o ‘processo’ de atualização da alteridade que é

o efeito próprio de Outrem como relação a priori. Escrevo ‘processo’ entre aspas

porque não se trata, a rigor, de um processo, ou não se trata apenas disso: o

processo de atualização da alteridade se dobra de um contra-processo involutivo,

um devir, que contra-efetua a alteração por outros caminhos, como se verá na

parte II deste livro.

Alteração, enfim, porque essa palavra evoca uma noção capital da

metafísica ameríndia, a de transformação intensiva ou metamorfose, comentada

na parte III deste livro. A real relação entre Eu e Outro, no mundo indígena, não é

a oposição analítica ou a negação dialética, mas a metamorfose como alteração

ontológica. Tensão, preensão, alteração.

(…)

24 Isso parafraseia uma passagem de Deleuze: “A diferença não é o diverso. O diverso é o dado. Mas a diferença é aquilo pelo qual o dado é dado. Aquilo pelo qual o dado é dado como diverso” (1969b: 286).

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O conceito de Outrem como relação a priori serviu-me, sobretudo, para formular

de modo mais claro a conexão entre as duas idéias centrais deste livro, a

alteração-alteridade e o perspectivismo.

Uma expressão prototípica de Outrem na tradição ocidental é a figura do

Amigo. O Amigo é outrem, mas outrem como ‘momento’ do Eu. Se me determino

como amigo do amigo, é apenas porque o amigo, na conhecida definição de

Aristóteles, é um outro Eu.25 O Eu está lá desde o início: o amigo é a condição-

Outrem pensada retroprojetivamente sob a forma condicionada do sujeito. Como

observa Francis Wolff (2000: 169), essa definição aristotélica implica uma teoria

segundo a qual “toda relação com outrem, e por conseguinte toda forma de

amizade, encontra seu fundamento na relação do homem consigo mesmo”. O

vínculo social pressupõe a auto-relação como origem e modelo.

Mas o Amigo não funda somente uma ‘antropologia’. Dadas as condições

histórico-políticas de constituição da filosofia grega, o Amigo emerge como

indissociável de uma certa relação com a verdade: ele é uma condição de

possibilidade do pensamento em geral, uma “presença intrínseca … uma categoria

viva, um vivido transcendental” (Deleuze & Guattari 1991: 9). O Amigo é, em

suma, o que Deleuze chama de um personagem conceitual, o esquematismo de

Outrem próprio ao conceito. A filosofia exige o Amigo, a philia é a relação

constitutiva do saber.

Pois bem. O problema que se coloca, do ponto de vista do pensamento

indígena, é: como funciona a estrutura Outrem em um mundo onde é o Inimigo,

não o Amigo, que faz as vezes de vivido transcendental ou de protagonista

conceitual? Onde outrem não é concebido como um outro Eu, mas como um eu

Outro?26 Onde, em suma, não é a semelhança que funda a relação, e onde a

relação consigo mesmo não é primeira — mas onde é a diferença que liga, e onde

é a relação com o outro que permite a relação consigo mesmo? Este é o problema

que se procura tratar na parte II do livro: a imagem amazônica da Relação. Ele

exige a travessia de um campo clássico da antropologia social, o parentesco, pois

o inimigo e a diferença são determinações internas das ‘categorias vivas’ da

25 Ética a Nicômaco, 1170 b 6. 26 Reencontro — este livro está cheio de reinvenções do alheio — exatamente tal formulação em Manuela Carneiro da Cunha (1978: 93-94), a propósito da diferença entre o companheiro (um ‘outro Eu’) e o amigo formal (um ‘eu-Outro’) dos Timbira, figuras que são os esquematismos rituais, respectivamente, das posições de irmão e de cunhado. Esse último par (ou antes, as idéias que eles encarnam) é longamente tematizado na parte II a seguir.

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cosmopraxis indígena, e estas se exprimem antes de mais nada como categorias

de parentesco: o irmão e o cunhado, o pai e o sogro, a irmã e a prima cruzada…27

A questão do perspectivismo já se encontra formulada no problema acima.

Se Outrem é o conceito de ponto de vista, o que é um mundo constituído pelo

ponto de vista do inimigo (Viveiros de Castro 1992) como determinação

transcendental? Um mundo onde a ‘inimizade’ não é um mero complemento

privativo da ‘amizade’, nem uma simples facticidade negativa, mas uma estrutura

de direito do pensamento, e uma positividade? E por fim — que relação com o

saber, ou que regime de verdade, constitui-se nesse elemento da diferença ou

distância positivas?

Para poder começar a dizer algo sobre este último ponto, é preciso

percorrer uma outra dimensão do pensamento indígena, formulável igualmente

por contraste com nossas configurações da alteridade. Pois Outrem não se

manifestou na tradição ocidental apenas na figura grega do Amigo — que continua

bem viva entre nós, apenas não mais como mediação maiêutica (o diálogo antigo

conduzia a uma essência transcendente), mas como condição hermenêutica (a

verdade moderna se tornou imanente ao diálogo). Outrem também é

consubstancial a uma outra figura, esta um pouco mais recente, um personagem

conceitual completamente singular — Deus. É difícil não ver em Deus a forma por

excelência de Outrem em nossa tradição: ele é ao mesmo tempo o grande Outro,

garantia da realidade absoluta (o Dado) face ao solipsismo da consciência, e o

grande Eu, garantia da inteligibilidade relativa (o Construído) do que o sujeito vê

em torno de si. Com efeito, a função maior de Deus, no que concerne ao destino

do pensamento moderno, foi a de demarcar a linha fundamental entre o dado e o

construído, ao se instituir, enquanto Criador, como seu horizonte de

indiferenciação.

É verdade que Deus foi saindo aos poucos de nossa cena histórica, mas

antes de morrer ele tomou duas medidas propriamente providenciais: interiorizou-

se no foro íntimo dos homens como forma inteligível do Sujeito (a lei moral), e

exteriorizou-se em um Objeto sensível infinito, a natureza como campo total da

27 Seria possível formular o problema a partir de uma outra tradição ocidental fundadora, por exemplo, da figura do Próximo bíblico — aquele que devemos ‘amar como a nós mesmos’. A convergência entre essas duas imagens tão diferentes, o Amigo (e a philia) e o Próximo (e a agapè), só é pertinente do ponto de vista de seu comum contraste com o regime amazônico da alteridade.

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realidade substantiva (o céu estrelado).28 A Cultura e a Natureza, em suma, os

dois mundos (Ingold 2000: 1), o subjetivo e o objetivo, em que se dividiu a

Sobrenatureza como Outrem originário. Deus, portanto, também continuou entre

nós, na forma duplamente eficaz da ausência e da divisão.

Pois bem. Essas considerações algo ligeiras (para não dizer grosseiras)

visavam apenas introduzir nosso segundo problema.29 Como funciona a relação-

Outrem em um mundo radicalmente não-monoteísta, e que sempre passou ao

largo de uma teologia da criação? Problema ligeiramente diferente daquele que

Deleuze lia em Tournier: não se trata aqui de saber o que é um mundo sem

outrem, mas o que é outrem em um mundo sem Deus. Não, note-se, um mundo

criado pela retirada de Deus, como nosso mundo moderno, mas um mundo

incriado, na inexistência de uma divindade transcendente. Nesse regime de

alteração, o que garante a realidade para os sujeitos, que ‘percipiente’ virtual é

pressuposto para assegurar a transição entre os possíveis? Onde está Outrem,

como se distribuem — se alteram e alternam — as posições do sujeito e do objeto,

do dado e do construído, da forma e do fundo?

Para responder a tais questões, será preciso rediscutir os termos da

oposição clássica entre Natureza e Cultura, região objetiva e região subjetiva do

existente, de modo a discernir a diferença propriamente ontológica do pensamento

indígena face ao nosso. Este é o tema da parte III do livro: a disseminação de

Outrem pelas dobras do mundo, sua manifestação sob a forma de uma infinidade

potencial de sujeitos não-humanos, e, reciprocamente, a presença do humano

como imanência absoluta.

Em outras palavras, estaremos discutindo mais uma variante da “velha

matriz antropológica” da humanidade (Latour 1991: 90), a matriz que a velha

antropologia chamava, como se sabe, de ‘animismo’. Pode-se dizer que o

animismo, para definí-lo sucintamente mediante os conceitos de uma tradição que

se imagina ‘desanimista’, é uma imagem do mundo onde o objeto é um caso

particular do sujeito, isto é, onde todo objeto é um sujeito em potência. O

animismo de que se tratará aqui, entretanto, conhece uma inflexão crucial. No

mundo amazônico, o Eu é um caso particular do Outro, pois ali a relação com o

28 Considerando-se que o Deus cristão é um híbrido greco-judaico, dir-se-ia (e Hegel deve ter dito isso em algum lugar) que a parte que se interiorizou como Sujeito é a judaica, e a que se exteriorizou como Natureza, a grega. 29 Considerações em parte inspiradas na história contada por Latour ([1991]: 50-53, passim) sobre a “Constituição” dos modernos, e, pela mesma via, no livro de Funkenstein (1986) sobre as relações entre teologia e imaginação científica na transição para a modernidade.

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outro, o ‘inimigo’, funda a relação consigo mesmo. Um animismo, portanto,

alterado, uma alteridade que se animiza na medida exata em que se inimiza —

alteração. Um ‘inimismo’, então: o perspectivismo indígena, ou o mundo por

outrem.

(…)

O conceito de outrem como expressão de um mundo possível pode ser assim

extraído de seu terreno filosófico imediato e transferido para a antropologia. No

que diz respeito a este livro, ele se constitui, com efeito, como duas vezes

antropológico, pois permite perceber que o problema da antropologia enquanto

disciplina é o mesmo problema posto pelo pensamento indígena aqui comentado:

a relação com o mundo de outrem, o mundo possível que existe como virtual para

mim e atual para outrem. Outrem é, neste sentido, a condição de passagem entre

mundos possíveis, e o perspectivismo, o esquema conceitual que pensa tal

passagem. O que vale tanto para o perspectivismo ‘interno’ ao pensamento

indígena — onde ele especifica as coordenadas de transformação entre os mundos

dos vivos e dos mortos, dos parentes e dos inimigos, dos humanos e dos animais

— como para o perspectivismo ‘interfacial’ que relaciona o discurso antropológico

ao discurso do nativo. Isso significa que o regime de alteração característico do

pensamento amazônico inclui como mundo possível a relação externa entre esse

pensamento e o que podemos dizer sobre ele; e, reciprocamente, que uma teoria

antropológica sobre esse pensamento deve poder se pôr em continuidade com ele,

uma continuidade que exige a diferença entre os dois discursos, para poder

interiorizá-la conceitualmente. Pois o tema do livro é, enfim, precisamente este:

como se apresenta Outrem no mundo de outrem? O que é o possível nativo?

Isso nos leva a um segundo aspecto da declaração de intenções que abria

este capítulo. Dizia-se ali que a abordagem adotada no livro é antropológica, por

se aproximar de seu objeto do ponto de vista das relações sociais. Mas há outras

disciplinas além da antropologia que poderiam ser definidas em tais termos, e há

outros termos possíveis de definição desta disciplina. Para precisar o que se

entenderá aqui por ‘antropologia’, pareceu-me útil apresentar as regras do jogo de

linguagem usualmente praticado sob este nome.

Page 22: Eduardo Viveiros de Castro - A propriedade do conceito

22

As regras do jogo

O ‘antropólogo’ é alguém que discorre sobre o discurso de um ‘nativo’. O nativo

não precisa ser especialmente selvagem, ou tradicionalista, tampouco natural do

lugar onde o antropólogo o encontra; o antropólogo não precisa ser

excessivamente civilizado, ou modernista, sequer estrangeiro ao povo sobre que

discorre. Os discursos, o do antropólogo e sobretudo o do nativo, não precisam ser

textos: são quaisquer práticas de sentido.30 O essencial é que o discurso do

antropólogo (o ‘observador’) estabeleça uma certa relação com o discurso do

nativo (o ‘observado’). Essa relação é uma relação de sentido, ou, como se diz

quando o primeiro discurso pretende à Ciência, uma relação de conhecimento. Mas

o conhecimento antropológico é imediatamente uma relação social, pois é o efeito

das relações que constituem reciprocamente o sujeito que conhece e o sujeito que

ele conhece, e a causa de uma transformação (toda relação é uma transformação)

na constituição relacional de ambos:

O conhecimento não é uma conexão entre uma substância-sujeito e uma substância-objeto, mas uma relação entre duas relações, das quais uma está no domínio do objeto, e a outra no domínio do sujeito. … [A] relação entre duas relações é ela própria uma relação (Simondon [1964]: 81).31

Essa (meta-)relação não é de identidade: o antropólogo sempre diz, e portanto

faz, outra coisa que o nativo, mesmo que pretenda não fazer mais que repetir

‘textualmente’ o discurso deste, ou que tente dialogar (noção duvidosa) com ele.

Tal diferença é o efeito de conhecimento do discurso do antropólogo, a relação

entre o sentido de seu discurso e o sentido do discurso do nativo.32

A alteridade discursiva se apóia, é claro, em um pressuposto de

semelhança. O antropólogo e o nativo são entidades de mesma espécie e

30 O fato de que o discurso do antropólogo consista canônica e literalmente em um texto tem muitas implicações, que não cabe desenvolver aqui. Elas foram objeto de atenção exaustiva por parte de correntes recentes de reflexão auto-antropológica. O mesmo se diga do fato de que o discurso do nativo não seja, geralmente, um texto, e do fato de que ele tenha sido frequentemente tratado como se o fosse. 31 Itálicos removidos. Traduzi por ‘conexão’ a palavra rapport, que Simondon distingue de relation, ‘relação’: “podemos chamar de relação a disposição dos elementos de um sistema que está além de uma simples visada arbitrária do espírito, e reservar o termo conexão para uma relação arbitrária e fortuita… a relação seria uma conexão tão real e importante como os próprios termos; poder-se-ia dizer, por conseguinte, que uma verdadeira relação entre dois termos equivale, de fato, a uma conexão entre três termos” (id.: 66). 32 Veja-se M. Strathern 1987 para uma análise dos pressupostos relacionais desse efeito de conhecimento. A autora argumenta que a relação do nativo com seu discurso não é, em princípio, a mesma que a do antropólogo com o seu, e que tal diferença ao mesmo tempo

Page 23: Eduardo Viveiros de Castro - A propriedade do conceito

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condição: são ambos humanos, e estão ambos instalados em suas culturas

respectivas, que podem, eventualmente, ser a mesma. Mas é aqui que o jogo

começa a ficar interessante, ou melhor, estranho. Ainda quando o antropólogo e o

nativo partilham a mesma cultura, a relação de sentido entre os dois discursos

diferencia tal comunidade: a relação do antropólogo com sua cultura e a do nativo

com a dele não é exatamente a mesma. O que faz do nativo um nativo é a

pressuposição, por parte do antropólogo, de que a relação do primeiro com sua

cultura é natural, isto é, intrínseca e espontânea, e, se possível, não-reflexiva;

melhor ainda se for inconsciente. O nativo exprime sua cultura em seu discurso. O

antropólogo também, mas, se ele pretende ser outra coisa que um nativo, deve

poder exprimir sua cultura culturalmente, isto é, reflexiva, condicional e

conscientemente. Sua cultura se acha contida, nas duas acepções da palavra, na

relação de sentido que seu discurso estabelece com o discurso do nativo. Já o

discurso do nativo, esse está contido univocamente, encerrado em sua própria

cultura. O antropólogo usa necessariamente sua cultura; o nativo é

suficientemente usado pela sua.

Tal diferença, é ocioso lembrar, não reside na assim chamada natureza das

coisas; ela é própria do jogo de linguagem que vamos descrevendo, e define os

personagens designados (arbitrariamente no masculino) como ‘o antropólogo’ e ‘o

nativo’. Vejamos mais algumas regras desse jogo.

A idéia antropológica de cultura coloca o antropólogo em posição de

igualdade com o nativo, ao implicar que todo conhecimento antropológico de outra

cultura é culturalmente mediado. Entretanto, a igualdade propiciada pela noção de

cultura é, em primeira instância simplesmente empírica ou de fato: ela diz

respeito à natureza cultural comum (no sentido de genérica) do antropólogo e do

nativo. A relação diferencial do antropólogo e o nativo com suas culturas

respectivas, e portanto com suas culturas recíprocas, é de tal ordem que a

igualdade de fato não implica uma igualdade de direito — uma igualdade no plano

do conhecimento. O antropólogo tem usualmente uma vantagem epistemológica

sobre o nativo. O discurso do primeiro não se acha situado no mesmo plano que o

discurso do segundo: o sentido que o antropólogo estabelece depende do sentido

nativo, mas é ele quem detém o sentido desse sentido — ele quem explica e

interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza, justifica e significa esse

sentido. A matriz relacional do discurso antropológico é hilemórfica: o sentido do

condiciona a relação entre os dois discursos e impõe limites a toda empresa de auto-antropologia.

Page 24: Eduardo Viveiros de Castro - A propriedade do conceito

24

antropólogo é forma; o do nativo, matéria. O discurso do nativo não detém o

sentido de seu próprio sentido. De fato, como diria Geertz, “somos todos nativos”;

mas de direito, uns sempre são mais nativos que outros.

Este livro tenta responder às perguntas seguintes.33 O que acontece se

recusarmos ao discurso do antropólogo sua vantagem estratégica sobre o discurso

do nativo? O que se passa quando o discurso do nativo funciona, dentro do

discurso do antropólogo, de modo a produzir reciprocamente um efeito de

conhecimento sobre este discurso? Quando a forma intrínseca à matéria do

primeiro modifica a matéria implícita na forma do segundo? Tradutor, traidor, diz-

se; mas o que acontece se o tradutor decidir trair sua própria língua? O que

sucede se, insatisfeitos com a mera igualdade passiva, ou de fato, entre os

sujeitos desses discursos, reivindicarmos uma igualdade ativa, ou de direito, entre

os discursos eles mesmos? Se a antropologia for tomada como uma prática de

sentido em continuidade epistêmica com as práticas sobre que discorre, como

equivalente a elas? Se a disparidade entre os sentidos do antropólogo e do nativo,

longe de neutralizada por tal equivalência, for internalizada, introduzida em ambos

os discursos, e assim potencializada? Se, ao invés de admitir complacentemente

que somos todos nativos, levarmos às últimas, ou devidas, consequências a

aposta oposta — que somos todos ‘antropólogos’ (Wagner 1981: 36), e não uns

mais antropólogos que os outros, mas apenas cada um a seu modo, isto é, de

modos muito diferentes? Se aplicarmos a noção de ‘antropologia simétrica’ (Latour

[1991]) à antropologia ela própria, não para condená-la por colonialista, exorcizar

seu exotismo, minar seu campo intelectual, mas para fazê-la dizer outra coisa?

Outra coisa não apenas que o discurso do nativo, pois isto é o que a antropologia

não pode deixar de fazer, mas outra que o discurso, em geral sussurrado, que o

antropólogo enuncia sobre si mesmo, ao discorrer sobre o discurso do nativo?34

33 Elas são como pré-condições das perguntas feitas na seção anterior, sobre o regime de Outrem no mundo de outrem. 34 Somos todos nativos, mas ninguém é nativo o tempo todo. Como recorda Lambek (1998: 113) em um comentário à noção de habitus e congêneres, “as práticas encorporadas são realizadas por agentes capazes também de pensar contemplativamente: nada do que ‘não é preciso dizer’ permanece não-dito para sempre” (nothing ‘goes without saying’ forever; a alusão é a um artigo de M. Bloch [1992] cujo título fala do que ‘goes without saying’ para o nativo, e que caberia ao antropólogo dizer em seu lugar). Pensar contemplativamente, sublinhe-se, não significa pensar como pensam os antropólogos: as técnicas de reflexão variam crucialmente. A antropologia reversa do nativo (o cargo cult melanésio, por exemplo; Wagner 1981: 31–34) não é a auto-antropologia do antropólogo (Strathern 1987: 30–31): uma antropologia simétrica feita do interior da tradição que gerou a antropologia não é simétrica a uma antropologia simétrica feita de fora dela. A simetria não cancela a diferença, pois a reciprocidade virtual de perspectivas em que penso aqui não é nenhuma ‘fusão de horizontes’.

Page 25: Eduardo Viveiros de Castro - A propriedade do conceito

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Se fizermos tudo isso, eu diria que estaremos fazendo o que sempre se

chamou propriamente de ‘antropologia’, em vez de, por exemplo, ‘sociologia’ ou

‘psicologia’. Digo apenas diria, porque muito do que se fez e faz sob esse nome

supõe, ao contrário, que o antropólogo é aquele que detém a posse eminente das

razões que a razão do nativo desconhece. Ele tem a ciência da dose precisa de

universalidade e particularidade contida no nativo, e das ilusões que este entretém

a respeito de si mesmo — ora manifestando sua cultura nativa acreditando

manifestar a natureza humana (o nativo ideologiza sem saber), ora manifestando

a natureza humana acreditando manifestar sua cultura nativa (ele cognitiza à

revelia).35 A relação de conhecimento é aqui concebida como unilateral, a

alteridade entre o sentido dos discursos do antropólogo e do nativo resolve-se em

um englobamento. O antropólogo conhece de jure o nativo, ainda que possa

desconhecê-lo de facto. Quando se vai do nativo ao antropólogo, dá-se o

contrário: ainda que ele conheça de facto o antropólogo (frequentemente melhor

do que este o conhece), não o conhece de jure, pois o nativo não é, justamente,

antropólogo como o antropólogo. A ciência do antropólogo é de outra ordem que a

ciência do nativo, e precisa sê-lo: a condição de possibilidade da primeira é a

deslegitimação das pretensões da segunda, seu “epistemocídio”, no forte dizer de

Bob Scholte (1984: 964). O conhecimento por parte do sujeito implica o

desconhecimento por parte do objeto.

Mas não é realmente preciso fazer um drama a respeito disso. Como atesta

a história da disciplina, esse jogo discursivo, com tais regras desiguais, disse

muita coisa instrutiva sobre os nativos. A experiência realizada no presente livro,

entretanto, consiste precisamente em recusá-lo. Não porque tal jogo produza

resultados objetivamente falsos, isto é, represente de modo errôneo a natureza do

nativo; o conceito de verdade objetiva (como os de representação e de natureza)

é parte das regras desse jogo, não do que se propõe aqui. E, uma vez dados os

objetos que o jogo clássico se dá, seus resultados são frequentemente ‘plausíveis’,

e às vezes até convincentes. Recusar esse jogo significa apenas dar-se outros

objetos, compatíveis com as outras regras acima enunciadas.

O que estou sugerindo, em suma, é a incompatibilidade entre duas

concepções da antropologia, e a necessidade de escolher entre elas. De um lado,

35 Via de regra, supõe-se que o nativo faz, sem saber o que faz, as duas coisas — a raciocinação natural e a racionalização cultural —, em fases, registros ou situações diferentes de sua vida. As ilusões do nativo são, note-se, tidas por necessárias, no duplo sentido de inevitáveis e úteis (são, dirão outros, evolucionariamente adaptativas). É tal necessidade que define o ‘nativo’, e o distingue do ‘antropólogo’: este pode errar, mas aquele precisa se iludir.

Page 26: Eduardo Viveiros de Castro - A propriedade do conceito

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temos uma imagem do conhecimento antropológico como resultando da aplicação

de conceitos extrínsecos ao objeto: sabemos de antemão o que são as relações

sociais, ou a cognição, o parentesco, a religião, a política etc., e vamos ver como

tais entidades se realizam nesse ou naquele contexto etnográfico — como elas se

realizam, é claro, pelas costas dos interessados. De outro lado (e este é o jogo

aqui proposto), uma idéia do conhecimento antropológico como envolvendo a

pressuposição fundamental de que os procedimentos que caracterizam a

investigação são conceitualmente de mesma ordem que os procedimentos

investigados.36 Tal equivalência no plano dos procedimentos, note-se bem, supõe e

produz uma não-equivalência radical de tudo o mais. Pois, se a primeira concepção

de antropologia imagina cada cultura ou sociedade como encarnando uma solução

específica de um problema genérico — ou como preenchendo uma forma universal

(o conceito antropológico) com um conteúdo particular —, a segunda, ao contrário,

suspeita que os problemas eles mesmos são radicalmente diversos; sobretudo, ela

parte do princípio de que o antropólogo não sabe de antemão quais são eles. O

que a antropologia, nesse caso, põe em relação são problemas diferentes, não um

problema único (‘natural’) e suas diferentes soluções (‘culturais’). A “arte da

antropologia” (Gell 1999), penso eu, é a arte de determinar os problemas postos

por cada cultura, não a de achar soluções para os problemas postos pela nossa. E

é exatamente por isso que o postulado da continuidade dos procedimentos é um

imperativo epistemológico.37

Dos procedimentos, note-se bem, não dos que os levam a cabo. Pois

tampouco se trata de condenar o jogo clássico por produzir resultados

subjetivamente falseados, ao não reconhecer a condição de sujeito do nativo: ao

mirá-lo com um olhar distanciado e carente de empatia, construí-lo como um

objeto exótico, diminuí-lo como um primitivo não-coevo ao observador, negar-lhe

o direito humano à interlocução — conhece-se a litania. Não é nada disso. Antes

pelo contrário, penso. É justo porque o antropólogo toma o nativo muito

facilmente por um outro sujeito que ele não consegue vê-lo como um sujeito

36 É assim que interpreto a declaração de Wagner (1981: 35): “Estudamos a cultura através da cultura, e portanto as operações, sejam quais forem, que caracterizam nossa investigação devem ser também propriedades gerais da cultura.” Isso poderia ser aproximado da passagem de Le cru et le cuit supracitada (ver nota 2), onde Lévi-Strauss fala da relação de determinação recíproca entre o pensamento do nativo e o pensamento do antropólogo (1964: 21). 37 Ver, sobre isso, Jullien 1989: 312. Os problemas reais de outras culturas são problemas apenas possíveis da nossa; o papel da antropologia é o de dar a essa possibilidade (lógica) o estatuto de virtualidade (ontológica), determinando — isto é, construindo — sua operação latente em nossa própria cultura.

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outro, como uma figura de Outrem que, antes de ser sujeito ou objeto, é a

expressão de um mundo possível. É por não aceitar a condição de não-sujeito (no

sentido de outro que o sujeito) do nativo que o antropólogo introduz, sob a capa

de uma proclamada igualdade de fato com este, sua sorrateira vantagem de

direito. Ele sabe demais sobre o nativo desde antes do início da partida; ele pré-

define e circunscreve os mundos possíveis expressos por esse outrem; a

alteridade desse outrem foi radicalmente separada de sua capacidade de

alteração. O autêntico animista é o antropólogo, e a observação participante é a

verdadeira (ou seja, falsa) participação primitiva.38

O problema não está, portanto, em ver o nativo como objeto, e a solução

não reside em pô-lo como sujeito. Que o nativo seja um sujeito, não há a menor

dúvida; mas o que pode ser um sujeito, eis precisamente o que o nativo obriga o

antropólogo a pôr em dúvida. Tal é a ‘cogitação’ especificamente antropológica; só

ela permite à antropologia assumir completamente a presença virtual de Outrem

que é sua condição — a condição de passagem de um mundo possível a outro —, e

que determina as posições derivadas e permutáveis de sujeito e de objeto.39

O físico interroga o neutrino, e não pode discordar dele; o antropólogo

responde pelo nativo, que então só pode (de direito e, frequentemente, de fato)

concordar com ele. O físico precisa se associar ao neutrino, pensar com seu

recalcitrante objeto; o antropólogo associa o nativo a si mesmo, pensando que seu

objeto faz as mesmas associações que ele — isto é, que o nativo pensa como ele.40

O problema é que o nativo certamente pensa, como o antropólogo; mas, muito

provavelmente, ele não pensa como o antropólogo.41 O nativo é, sem dúvida, um

objeto especial, um objeto pensante ou um sujeito. Mas se ele é objetivamente um

sujeito, então o que ele pensa é um pensamento objetivo, a expressão de um

38 Os nativos — aqueles que são o objeto deste livro — também são ‘animistas’, atribuindo aos objetos sobre que pensam uma certa condição de sujeito. Mas, como veremos, seu animismo vai na direção oposta à do animismo do antropólogo, pois distribui a identidade e a alteridade, de um lado, e o fato e o direito, de outro, de um modo radicalmente diferente. 39 Um exemplo dessa problematização é o capítulo 6 de The gender of the gift (Strathern 1988), onde se desmonta o argumento sobre a exploração do trabalho feminino nas sociedades melanésias. A autora mostra como tal argumento implica um sujeito completamente ausente das premissas nativas — premissas do ‘trabalho’ nativo inclusive —, ao assumir como naturais as idéias européias de que o trabalho produtivo seria o foco da conversão do valor social, podendo ser assim apropriado por outrem, e de que as pessoas teriam um direito natural à propriedade de seu trabalho (isto é, de que elas ‘devem’ possuir e controlar o fruto de sua atividade). Esse livro de M. Strathern é, em seu todo, um prodigioso esforço de conceitualização do que pode ser um sujeito outro, enquanto efeito de um outro regime de funcionamento da estrutura de Outrem. 40 A noção de ‘recalcitrância’ é de Isabelle Stengers, mas a tomo via Latour. 41 Ou como registrou memoravelmente Dorsey sobre Duas-Gralhas, seu interlocutor omaha: “Two Crows denies it” (Barnes 1984).

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mundo possível, ao mesmo título que o que pensa o antropólogo. Por isso, a

diferença malinowskiana entre o que o nativo pensa (ou faz) e o que ele pensa

que pensa (ou que faz) é uma diferença pouco interessante. É justamente por ali,

por essa bifurcação da natureza do outro, que pretende entrar o antropólogo (que

faria o que pensa).42 A boa diferença, ou diferença real, é entre o que pensa (ou

faz) o nativo e o que o antropólogo pensa que (e faz com o que) o nativo pensa, e

são esses dois pensamentos (ou fazeres) que se confrontam. Tal confronto não

precisa se resumir a uma mesma equivocidade de parte a parte — o equívoco

nunca é o mesmo, as partes não o sendo; e de resto, quem definiria a adequada

univocidade? —, mas tampouco precisa se contentar em ser um diálogo edificante.

O confronto deve poder produzir a mútua implicação, a comum alteração dos

discursos em jogo, pois não se trata de chegar ao consenso, mas ao conceito.

Evoquei a distinção criticista entre o quid facti e o quid juris. Ela pareceu-

me útil porque o primeiro problema a resolver consistia nessa avaliação da

pretensão ao conhecimento implícita no discurso do antropólogo. Tal problema não

é cognitivo, ou seja, psicológico; não concerne à possibilidade empírica do

conhecimento de uma outra cultura.43 Ele é epistemológico, isto é, político. Ele diz

respeito à questão propriamente transcendental da legitimidade atribuída aos

discursos que entram em relação de conhecimento, e, em particular, às relações

de ordem que se decide estatuir entre estes discursos, e que certamente não são

42 Que faria o que pensa porque a bifurcação de sua natureza, ainda que admitida por uma questão de princípio, distingue, na pessoa do antropólogo, o ‘antropólogo’ do ‘nativo’, e portanto vê-se expulsa de campo antes do início do jogo. A expressão ‘bifurcação da natureza’ é de Whitehead ([1920] 1964: cap. II); ela protesta contra a divisão do real em qualidades primárias, inerentes ao objeto, e qualidades secundárias, atribuídas ao objeto pelo sujeito. As primeiras são a meta própria da ciência, mas ao mesmo tempo seriam, em última instância, inacessíveis; as segundas são subjetivas e, em última instância, ilusórias. Isto produz duas naturezas, “das quais uma seria conjetura e a outra, sonho” (ver a citação em Latour 1999: 62–76, 315 n. 49 e n. 58). Tal bifurcação, obviamente, repete-se na oposição antropológica entre natureza e cultura. E quando o objeto é ao mesmo tempo um sujeito, como no caso do nativo, a bifurcação de sua natureza se transforma na distinção entre a conjetura do antropólogo e o sonho do nativo: cognição vs. ideologia (Bloch 1985), teoria primária vs. secundária (Horton [1993]), modelo inconsciente vs. consciente (Lévi-Strauss 1958a), representações proposicionais vs. semi-proposicionais (Sperber 1982) e assim por diante. 43 Ver M. Strathern (1999b: 172), sobre os termos da relação possível de conhecimento entre, por exemplo, os antropólogos ocidentais e os melanésios: “Isto nada tem a ver com compreensão, ou com estruturas cognitivas; não se trata de saber se eu posso entender um melanésio, se posso interagir com ele, comportar-me adequadamente etc. Estas coisas não são problemáticas. O problema começa quando começamos a produzir descrições do mundo”.

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inatas, como tampouco o são seus pólos de enunciação. Ninguém nasce

antropólogo, e menos ainda, por curioso que pareça, nativo.44

(…)

Nos últimos tempos, os antropólogos têm mostrado grande inquietação a respeito

da identidade e destino de sua disciplina: o que ela é, se ela ainda é, o que ela

deve ser, se ela tem o direito de ser, qual é seu objeto próprio, seu método, sua

missão, e assim por diante (ver, por exemplo, Moore 1999). Fiquemos com a

questão do objeto, que implica as demais. Seria ele a cultura, como na tradição

disciplinar americana? A organização social, como na tradição britânica? A

natureza humana, como na tradição francesa? O presente autor pensa que a

resposta adequada é: todas as respostas anteriores, e nenhuma delas. Cultura,

sociedade e natureza dão na mesma; tais noções não designam o objeto da

antropologia, seu assunto, mas seu problema, aquilo que ela justamente não pode

assumir. Pois há uma ‘tradição’ a mais a levar em conta, e aquela que conta mais:

a tradição do nativo.

Admitamos, pois se há de começar por algum lugar, que a matéria

privilegiada da antropologia seja a socialidade humana, isto é, o que vamos

chamando de ‘relações sociais’; e aceitemos a ponderação de que a ‘cultura’, por

exemplo, não tem existência independente de sua atualização nessas relações.45

Resta, ponto importante, que tais relações variam no espaço e no tempo; e se a

cultura não existe fora de sua expressão relacional, então a variação relacional

também é variação cultural, ou, dito de outro modo, cultura é o nome que a

antropologia dá à variação relacional.

44 A distinção quid facti/quid juris é, disse eu, política; mas ela pouco tem a ver com o tipo de autodesconstrução que a antropologia recente vem se comprazendo em empreeender. O contraste entre o direito e o fato a que me refiro não coincide com aquele entre o ideal e a realidade, o dito e o feito — ele, na verdade, o inverte. Recuso, em outras palavras, a hipótese de que a desigualdade histórica entre a sociedade do antropólogo e a do nativo tenha jamais sido uma condição de possibilidade da antropologia como disciplina; vejo tal desigualdade, ao contrário, como um obstáculo intelectual maior. Mas afirmar uma igualdade de facto, isto é, empírica, entre os dois pólos em nome de uma condição genérica comum não resolve o problema, enquanto não se tiram as consequências de direito, no plano do conhecimento. Em suma: não adianta criticar o colonialismo antropológico, a essencialização dos ‘outros’, a naturalização do primitivo etc., se continuamos a operar teoricamente com noções como illusio, ideologia, méconnaissance, fetichismo, e outras tantas sobrevivências (no sentido tyloreano) da noção iluminista de superstição. 45 A ponderação é de Alfred Gell (1998: 4); ela poderia, é claro, aplicar-se igualmente à ‘natureza humana’.

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Mas essa variação relacional — não obrigaria ela a supormos um sujeito,

um substrato invariante do qual ela se predica? Questão sempre latente, e

insistente em sua suposta evidência. Questão, sobretudo, mal formulada. Pois o

que varia crucialmente não é o conteúdo das relações, mas sua idéia mesma: o

que conta como relação nesta ou naquela cultura. Não são as relações que variam,

são as variações que relacionam.46 E se assim é, então o substrato imaginado das

variações, a ‘natureza’ — para evocarmos o conceito caro à terceira grande

tradição antropológica —, mudaria completamente de função, ou melhor, deixaria

de ser uma substância e se tornaria uma verdadeira função. A natureza, humana

ou geral, deixaria de ser uma espécie de máximo denominador comum das

culturas, de fundo de semelhança que se obtém por cancelamento das diferenças

entre elas a fim de constituir um sujeito constante, um referente estável dos

significados culturais variáveis (como se as diferenças não fossem elas próprias

igualmente naturais!). Ela passaria a ser algo como um mínimo múltiplo comum

das diferenças — maior que as culturas, não menor que elas —, ou algo como a

integral parcial das diferentes configurações relacionais que chamamos ‘culturas’.47

Deixaria de ser, assim, uma substância auto-semelhante situada em algum lugar

natural privilegiado (o cérebro, por exemplo), e assumiria ela própria o estatuto de

uma relação diferencial, disposta entre os termos que ela ‘naturaliza’: tornar-se-ia

o conjunto de transformações requeridas para se descreverem as variações entre

as diferentes configurações relacionais conhecidas. Ou, para usarmos ainda uma

outra imagem, ela se tornaria aqui um puro limite — mas não no sentido

geométrico de limitação, isto é, de perímetro ou termo que constrange (idéia tão

presente no imaginário lévi-straussiano) e define uma forma substancial, e sim no

sentido matemático de ponto para o qual tende uma série ou uma relação: limite-

tensão, não limite-contorno.48 A natureza humana, por exemplo, seria uma

operação teórica de ‘passagem ao limite’, que indica aquilo de que os seres

humanos são virtualmente capazes, e não uma limitação que os determina

46 O que parafraseia a fórmula do Totemismo hoje (Lévi-Strauss 1962a): não são as semelhanças que diferem, são as diferenças que se assemelham. 47 Esse argumento é apenas aparentemente semelhante ao que Sperber (1982: cap. 2) avança contra o relativismo. Pois esse autor não crê que as culturas sejam essencialmente diversas: para ele, elas são exemplares contingentes de uma mesma natureza humana substantiva. (Ver a crítica de Ingold [2000: 164] a Sperber, feita de outro ponto de vista, mas compatível com o aqui adotado). 48 Sobre essas duas idéias de limite, uma de origem platônica e euclidiana, a outra de origem arquimediana e estóica (que reaparece no cálculo infinitesimal do século XVII), ver Deleuze 1981.

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31

atualmente a não ser outra coisa.49 Se a cultura é um sistema de diferenças, como

gostavam de dizer os estruturalistas, então a natureza também o é: diferenças de

diferenças.

O objeto da antropologia, assim, seria a variação das relações sociais. Não

das relações sociais tomadas como uma província ontológica distinta, mas de

todos os fenômenos possíveis enquanto relações sociais, enquanto implicam

relações sociais: de todas as relações como sociais. Mas isso de uma perspectiva

que não seja totalmente dominada pela doutrina ocidental das relações sociais;

uma perspectiva, portanto, pronta a admitir que o tratamento de todas as relações

como sociais pode levar a uma reconceituação radical do que seja ‘o social’.

Digamos então que a antropologia se distinga dos outros discursos sobre a

socialidade humana não por dispor de uma doutrina particularmente sólida sobre a

natureza das relações sociais, mas, ao contrário, por ter apenas uma vaga idéia

inicial do que seja uma relação. Pois seu problema característico consiste menos

em determinar quais são as relações sociais que constituem seu objeto, e muito

mais em se perguntar o que seu objeto constitui como relação social, o que é uma

relação social nos termos de seu objeto, ou melhor, nos termos formuláveis pela

relação (social, naturalmente, e constitutiva) entre o ‘antropólogo’ e o ‘nativo’.

Este, pelo menos, é o nosso problema.

Da concepção ao conceito

Isso tudo não quereria apenas dizer que o ponto de vista perseguido no livro é ‘o

ponto de vista do nativo’, como os antropólogos professam de longa data? De fato,

não há nada de particularmente original no ponto de vista aqui adotado; a

originalidade que conta é a do ponto de vista indígena, não a de meu comentário.

Mas, sobre a questão do objetivo ser o ponto de vista do nativo — a resposta é

sim, e não. Sim, e mesmo mais, porque o problema é o de saber o que é um

‘ponto de vista’ para o nativo, entenda-se, qual é o conceito de ponto de vista

presente nas culturas amazônicas: qual o ponto de vista nativo sobre o ponto de

vista. Não, por outro lado, porque o conceito nativo de ponto de vista não coincide

com o conceito de ponto de vista do nativo; e porque meu ponto de vista não pode

ser o do nativo, mas o de minha relação com o ponto de vista nativo. O que

envolve uma dimensão essencial de ficção, pois trata-se de pôr em ressonância

49 Ver, nessa direção, a argumentação fenomenológica de Mimica 1991: 34-38.

Page 32: Eduardo Viveiros de Castro - A propriedade do conceito

32

interna dois pontos de vista completamente heterogêneos. Os ensaios

etnográficos das partes II e III deste livro são uma experiência de pensamento, e

um exercício de ficção antropológica. A noção de ‘experiência de pensamento’ não

tem aqui o sentido usual de entrada imaginária na experiência pelo (próprio)

pensamento, mas o de entrada no (outro) pensamento pela experiência real: não

se trata de imaginar uma experiência, mas de experimentar uma imaginação.50 A

experiência, no caso, é a minha própria, como etnógrafo e como leitor da

bibliografia etnológica sobre a Amazônia indígena, e o experimento que se tenta

aqui é uma ficção controlada por essa experiência. Ou seja, a ficção é

antropológica, mas sua antropologia não é fictícia. Em que consiste tal

ficção? Ela consiste em tomar as idéias indígenas como conceitos, e em extrair

dessa decisão suas consequências: determinar o solo pré-conceitual ou o plano de

imanência que tais conceitos pressupõem, os personagens conceituais que eles

acionam, e a matéria do real que eles põem. Tratar essas idéias como conceitos

não significa, note-se bem, que elas sejam objetivamente determinadas como

outra coisa, outro tipo de objeto atual. Pois tratá-las como cognições individuais,

representações coletivas, atitudes proposicionais, crenças cosmológicas, esquemas

inconscientes, disposições encarnadas e assim por diante — estas seriam outras

tantas ficções teóricas, que apenas escolhi não acolher. Assim, este livro não é,

nem um estudo de ‘mentalidade primitiva’ (supondo que tal noção ainda tenha um

sentido), nem uma análise dos ‘processos cognitivos’ indígenas (supondo que

estes sejam acessíveis, no presente estado do conhecimento psicológico e

etnográfico): seu objeto é menos o modo de pensar indígena que os objetos desse

pensar, o mundo possível que seus conceitos projetam. Não se trata, tampouco,

de um ensaio etno-sociológico sobre uma certa visão de mundo. Primeiro, porque

não há mundo pronto para ser visto, um mundo antes da visão, ou antes, da

divisão entre o visível (ou pensável) e o invisível (ou pressuposto) que institui o

horizonte de um pensamento. Segundo, porque tomar as idéias como conceitos é

recusar sua explicação em termos da noção transcendente de contexto (ecológico,

econômico, político etc.), em favor da noção imanente de problema, de campo

problemático onde as idéias estão implicadas. Não se trata, por fim, de propor

uma interpretação — uma hermenêutica, diria Lévi-Strauss — do pensamento

ameríndio, mas de realizar uma experimentação com ele, e portanto com o nosso:

50 Essa leitura da noção de Gedankenexperiment é aplicada por T. Marchaisse à obra de F. Jullien sobre o pensamento chinês (Jullien & Marchaisse 2000: 71), a qual foi outra influência importante sobre o presente livro. Ver também Jullien 1989: 311-12, sobre as ‘ficções’ comparativas.

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“every understanding of another culture is an experiment with one’s own”

(Wagner 1981: 12).

Tomar as idéias indígenas como conceitos é afirmar uma intenção

antipsicologista, pois o que se visa é uma imagem de jure do pensamento,

irredutível à cognição empírica, ou à análise empírica da cognição feita em termos

psicológicos. A jurisdição do conceito é extraterritorial às faculdades cognitivas e

aos estados internos dos sujeitos: os conceitos são objetos ou eventos

intelectuais, não estados ou atributos mentais. Eles certamente ‘passam pela

cabeça’ (ou, como se diria em inglês, ‘cruzam a mente’): mas eles não ficam lá, e

sobretudo, não estão lá prontos — eles são inventados. Deixemos as coisas claras.

Não acho que os índios americanos cognizem diferentemente de nós, isto é, que

seus processos ou categorias ‘mentais’ sejam diferentes dos de quaisquer outros

humanos. Não é o caso de imaginar os índios como dotados de uma neurofisiologia

peculiar, que processaria diversamente o diverso. No que me concerne, penso que

eles pensam exatamente ‘como nós’; mas penso também que o que eles pensam,

isto é, os conceitos que eles se dão, as ‘descrições’ que eles produzem, são muito

diferentes dos nossos — e portanto que o mundo descrito por esses conceitos é

muito diverso do nosso.51 No que concerne aos índios, penso que eles pensam que

todos os humanos, e além destes, muitos outros sujeitos não-humanos, pensam

exatamente ‘como eles’, mas que isso, longe de produzir (ou resultar de) uma

convergência referencial universal, é exatamente a razão das divergências de

perspectiva.

A noção de conceito supõe uma imagem do pensamento como atividade

distinta da cognição, e como outra coisa que um sistema de representações. A

presente discussão do pensamento indígena, assim, não visa nem o saber

indígena e suas representações mais ou menos verdadeiras sobre o real — o

‘indigenous knowledge’ hoje tão disputado no mercado global de representações —

, nem a cognição indígena e suas categorias mentais, cuja maior ou menor

51 Respondendo aos críticos de sua análise da socialidade melanésia, que a acusam de negar a existência de uma ‘natureza humana’ inclusiva dos povos daquela região, Marilyn Strathern (1999b: 172) esclareceu: “[A] diferença que existe está no fato de que os modos pelos quais os melanésios descrevem, dão conta da natureza humana, são radicalmente diferentes dos nossos — e o ponto é que só temos acesso a descrições e explicações, só podemos trabalhar com isso. Não há meio de eludir essa diferença. Então, não se pode dizer: muito bem, agora entendi, é só uma questão de descrições diferentes, então passemos aos pontos em comum entre nós e eles… pois a partir do momento em que entramos em comunicação, nós os fazemos através dessas autodescrições. É essencial dar-se conta disso”. O ponto, com efeito, é essencial. Ver também o que diz F. Jullien, sobre a diferença entre se afirmar a existência de diferentes “modos de orientação no pensamento” e se afirmar a operação de “outras lógicas” (in Jullien & Marchaisse 2000: 205–07).

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representatividade, do ponto de vista das faculdades da espécie, as ciências do

espírito não se cansam de explorar. Nem representações, individuais ou coletivas,

racionais ou (‘aparentemente’) irracionais, que exprimiriam parcialmente estados

de coisas anteriores e exteriores a elas; nem categorias e processos cognitivos,

universais ou particulares, inatos ou adquiridos, que manifestariam propriedades

de uma coisa do mundo, seja ela a mente ou a sociedade — o objeto deste livro

são os conceitos indígenas, os mundos que eles constituem (mundos que assim os

exprimem), o fundo virtual de onde eles procedem e que eles pressupõem. Os

conceitos, ou seja: as idéias e os problemas da ‘razão’ indígena, não suas

categorias do ‘entendimento’.

Como terá ficado claro, a noção de conceito tem aqui um sentido bem

determinado. Tomar as idéias indígenas como conceitos significa tomá-las como

dotadas de uma significação propriamente filosófica, ou como potencialmente

capazes de um uso filosófico.

Decisão irresponsável, dir-se-á, tanto mais que não são só os índios que

não são filósofos, mas, sublinhe-se com força, tampouco o autor. Como aplicar,

por exemplo, a noção de conceito a um pensamento que, aparentemente, nunca

achou necessário debruçar-se sobre si mesmo, e que remeteria antes ao

esquematismo fluente e variegado do símbolo, da figura e da representação

coletiva que à arquitetura rigorosa da razão conceitual? Não existe um bem

conhecido abismo histórico e psicológico, uma “ruptura decisiva” entre a

imaginação mítica e o universo da racionalidade ocidental (Vernant [1966]: 229)?

Entre a bricolagem do signo e a engenharia do conceito (Lévi-Strauss 1962b)?

Entre uma economia intelectual de tipo imagístico-monstrativa e outra de tipo

doutrinal-demonstrativa (Whitehouse 2000)? Bem, quanto a tudo isso, que é

tributário mais ou menos direto de Hegel, tenho algumas dúvidas.52 E antes disso,

tenho meus motivos para falar em conceito. O primeiro deles decorre da decisão

de tomar as idéias indígenas como situadas no mesmo plano que as idéias

antropológicas.

A experiência proposta aqui, dizia eu acima, começa por afirmar a

equivalência de direito entre os discursos do antropólogo e do nativo, bem como a

condição mutuamente constituinte desses discursos, que só acedem como tais à

existência ao entrarem em relação de conhecimento. Os conceitos antropológicos

atualizam tal relação, e são por isso completamente relacionais, tanto em sua

Page 35: Eduardo Viveiros de Castro - A propriedade do conceito

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expressão como em seu conteúdo. Eles não são, nem reflexos verídicos da cultura

do nativo (o sonho positivista), nem projeções ilusórias da cultura do antropólogo

(o pesadelo construcionista). O que eles refletem é uma certa relação de

inteligibilidade entre as duas culturas, e o que eles projetam são as duas culturas

como seus pressupostos imaginados. Eles operam, assim, um duplo

desenraizamento: são como vetores sempre a apontar para o outro lado,

interfaces transcontextuais cuja função é representar, no sentido diplomático do

termo, o outro no seio do mesmo, lá como cá.

Os conceitos antropológicos, em suma, são relativos porque são relacionais

— e eles são relacionais porque são relatores. Tal origem e função relacional

costuma vir marcada na ‘assinatura’ característica desses conceitos por uma

palavra estranha: mana, totem, kula, potlatch, tabu, gumsa/gumlao… Outros

conceitos, não menos autênticos, portam uma assinatura etimológica que evoca

antes as analogias entre a tradição cultural de onde emergiu a disciplina e as

tradições que são seu objeto: dom, sacrifício, parentesco, pessoa… Outros, enfim,

são invenções vocabulares que procuram generalizar dispositivos conceituais dos

povos estudados — animismo, oposição segmentar, troca restrita, cismogênese…

—, ou, inversamente, desviam para o interior de uma economia teórica específica

certas noções difusas de nossa tradição — proibição do incesto, gênero, símbolo,

cultura… —, buscando universalizá-las.53

Vemos então que numerosos conceitos, problemas, entidades e agentes

propostos pelas teorias antropológicas se originam no esforço imaginativo das

sociedades mesmas que elas pretendem explicar. Não estaria aí a originalidade da

antropologia, nesta sinergia relacional entre as concepções e práticas provenientes

dos mundos do ‘sujeito’ e do ‘objeto’? Reconhecer isso ajudaria, entre outras

coisas, a mitigar nosso complexo de inferioridade frente às ‘ciências naturais’.

Como observa Latour:

A descrição do kula se equipara à descrição dos buracos negros. Os complexos sistemas de aliança são tão imaginativos como os complexos cenários evolutivos propostos para os genes egoístas. Compreender a teologia dos aborígenes australianos é tão importante quanto cartografar as grandes falhas submarinas. O sistema de posse da terra nas Trobriand é um objetivo científico tão interessante como a sondagem do gelo das calotas polares. Se a questão é saber o que importa na definição de uma ciência — a capacidade de inovação no que diz

52 Dúvidas que se estendem ao tratamento da “geofilosofia” em Deleuze & Guattari (1991: cap. IV), que coincidem parcialmente com as expressas por Jullien 1998, e que serão desenvolvidas oportunamente. 53 Sobre a ‘assinatura’ das idéias filosóficas e científicas e o ‘batismo’ dos conceitos, ver Deleuze & Guattari 1991: 13, 28–29.

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respeito às agências que povoam nosso mundo —, então a antropologia estaria bem próxima do topo da hierarquia disciplinar… (1996a: 5).

A analogia feita nessa passagem é entre as concepções indígenas e os

objetos das ciências ditas naturais. Essa é uma perspectiva possível, e mesmo

necessária: deve-se poder produzir uma descrição científica das idéias e práticas

indígenas, como se fossem objetos do mundo, ou melhor, para que sejam objetos

do mundo. (É preciso não esquecer que os objetos científicos de Latour são tudo

menos entidades ‘objetivas’ e indiferentes, pacientemente à espera de uma

descrição). Outra estratégia possível é a de comparar as concepções indígenas às

teorias científicas, como o faz Horton, segundo sua “tese da similaridade” ([1993]:

348–54), que antecipa alguns aspectos da antropologia simétrica de Latour. Outra

ainda, todavia, é a estratégia aqui adotada. Cuido que a antropologia sempre

andou demasiado obcecada com a ‘Ciência’, não só em relação a si mesma — se

ela é ou não, pode ou não, deve ou não ser uma ciência —, como sobretudo, e

este é o real problema, em relação às concepções dos povos que estuda: seja para

desqualificá-las como erro, sonho, ilusão, e em seguida explicar cientificamente

como e por que os ‘outros’ não conseguem (se) explicar cientificamente; seja para

promovê-las como mais ou menos homogêneas à ciência, frutos de uma mesma

vontade de saber consubstancial à humanidade: assim a similaridade de Horton,

assim a ciência do concreto lévi-straussiana. A imagem da ciência, essa espécie de

padrão-ouro do pensamento, não é porém o único terreno, nem necessariamente

o melhor, em que podemos nos relacionar com a atividade intelectual dos povos

estrangeiros à tradição ocidental.

Imagine-se uma outra analogia que a de Latour, e outra similaridade que a

de Horton. Uma analogia onde, em lugar de ver as concepções indígenas como

entidades semelhantes aos buracos negros ou falhas tectônicas, vejamo-las como

algo de mesma ordem que o cogito ou a mônada. Diríamos então, parafraseando a

citação acima, que o conceito melanésio da pessoa como “divíduo” (Strathern

1988) é tão imaginativo como o individualismo possessivo de Locke; que

compreender a “filosofia da chefia ameríndia” (Clastres [1962]) é tão importante

quanto comentar a doutrina hegeliana do Estado; que a cosmogonia maori se

equipara aos paradoxos eleáticos e às antinomias kantianas (Schrempp 1992);

que o perspectivismo amazônico é um objetivo filosófico tão interessante como

compreender o sistema de Leibniz… E se a questão é saber o que importa na

avaliação de uma filosofia — sua capacidade de criar novos conceitos —, então a

antropologia, sem pretender substituir a filosofia, não deixa de ser um poderoso

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instrumento filosófico, capaz, por exemplo, de ampliar um pouco os horizontes tão

etnocêntricos de nossa filosofia, e de nos livrar, de passagem, da antropologia dita

‘filosófica’. Na definição vigorosa de Tim Ingold (1992: 696), que é melhor deixar

no original: anthropology is philosophy with the people in. Por ‘people’, Ingold

entende aqui os “ordinary people”, as pessoas comuns (loc.cit.); mas ele está

também jogando com o significado de ‘people’ como ‘povo’ — e mais ainda, como

‘povos’. Uma filosofia com outros povos, então: a possibilidade de uma atividade

filosófica que mantenha uma relação com a ‘não-filosofia’, isto é, a vida, de outros

povos do planeta, além de com a nossa própria.54 Não as pessoas comuns,

portanto, mas os povos incomuns, isto é, aqueles que estão fora de nossa esfera

de ‘comunicação’. Se a filosofia ‘real’ abunda em selvagens imaginários, a

geofilosofia visada pela antropologia faz uma filosofia ‘imaginária’ com selvagens

reais. Real toads in imaginary gardens (Marianne Moore).

Note-se, na paráfrase que fizemos de Latour, o deslocamento que importa.

Agora não se trataria mais, ou apenas, da descrição antropológica do kula

(enquanto forma melanésia de socialidade), mas do kula enquanto descrição

melanésia (da ‘socialidade’ como forma antropológica); ou ainda, seria preciso

continuar a compreender a “teologia australiana”, mas agora como constituindo

ela própria um dispositivo de compreensão; do mesmo modo, os complexos

sistemas de aliança ou de posse da terra deveriam ser vistos como imaginações

sociológicas indígenas. É claro que será sempre necessário descrever o kula como

uma descrição, compreender a religião aborígene como um compreender, e

imaginar a imaginação indígena: é preciso transformar as concepções em

conceitos, extraí-los delas e devolvê-los a elas. E um conceito é uma relação

complexa entre concepções, um agenciamento de intuições pré-conceituais; no

caso da antropologia, as concepções em relação incluem, antes de mais nada, as

do antropólogo e as do nativo — relação de relações. Os conceitos nativos são os

conceitos do antropólogo. Por hipótese.

Talvez em Lima…

Roy Wagner, desde seu The Invention of Culture, foi um dos primeiros

antropólogos que soube radicalizar a constatação de uma equivalência entre o

54 Sobre a ‘não-filosofia’ — o plano de imanência ou a vida —, ver Deleuze & Guattari 1991: 43–44, 89, 105, 205–06, bem como todo o comentário de Prado Jr 1998.

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antropólogo e o nativo decorrente de sua comum condição cultural. Do fato de que

a aproximação a uma outra cultura só pode se fazer nos termos daquela do

antropólogo, Wagner conclui que o conhecimento antropológico define-se por sua

“objetividade relativa” (op.cit.: 2). Mas isso não significa uma objetividade

deficiente, isto é, subjetiva ou parcial, e sim uma objetividade intrinsecamente

relacional, como se depreende do que segue:

A idéia de cultura […] coloca o pesquisador em posição de igualdade com aquele que ele pesquisa: ambos ‘pertencem a uma cultura’. Como cada cultura pode ser vista como uma manifestação específica […] do fenômeno humano, e como jamais se descobriu um método infalível de ‘graduar’ diferentes culturas e arranjá-las em tipos naturais, assumimos que cada cultura, como tal, é equivalente a qualquer outra. Tal postulado chama-se ‘relatividade cultural’. […] A combinação dessas duas implicações da idéia de cultura, isto é, o fato de que os antropólogos pertencemos a uma cultura (objetividade relativa) e que somos obrigados a postular que todas as culturas se equivalem (relatividade cultural), leva-nos a uma proposição geral a respeito do estudo da cultura. Como atesta a repetição da idéia de ‘relativo’, a apreensão de outra cultura envolve o relacionamento [relationship] entre duas variedades do fenômeno humano; ela visa a criação de uma relação intelectual entre elas, uma compreensão que inclua a ambas. A idéia de ‘relacionamento’ é importante aqui porque é mais apropriada a essa aproximação de duas entidades (ou pontos de vista) equivalentes que noções como ‘análise’ ou ‘exame’, que traem uma pretensão a uma objetividade absoluta (Wagner 1981: 2-3).

Ou, como diria Deleuze: não se trata de afirmar a relatividade do verdadeiro, mas

sim a verdade do relativo. É digno de nota que Wagner associe a noção de relação

à de ponto de vista (os termos relacionados são pontos de vista), e que essa idéia

de uma verdade do relativo defina justamente o que Deleuze chama de

‘perspectivismo’. Veja-se assim, desde já, como o perspectivismo não é um

relativismo — afirmação de uma relatividade do verdadeiro —, mas um

relacionalismo — a verdade do relativo é a relação.55

Indaguei o que aconteceria se recusássemos a vantagem epistemológica do

discurso do antropólogo sobre o do nativo; se entendêssemos a relação de

conhecimento como suscitando uma modificação, necessariamente recíproca, nos

termos por ela relacionados, isto é, atualizados. Isso é o mesmo que perguntar: o

que acontece quando se leva o pensamento nativo a sério? Quando o propósito do

antropólogo deixa de ser o de explicar, interpretar, contextualizar, racionalizar

esse pensamento, e passa a ser o de o utilizar, tirar suas consequências, verificar

os efeitos que ele pode produzir no nosso? O que é pensar o pensamento nativo?

55 Sobre o contraste entre “relatividade do verdadeiro” e “verdade do relativo”, ver Deleuze 1988: 30, Deleuze & Guattari 1991: 123. Zourabichvili (1994: 55), comentando essas passagens, fala em “perspectivismo não-relativista”, fórmula que, por coincidência, é a

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Pensar, digo, sem pensar se aquilo que pensamos (o outro pensamento) é

“aparentemente irracional”,56 ou pior ainda, naturalmente racional,57 mas pensá-lo

como algo que não se pensa nos termos dessa alternativa, que é inteiramente

alheio a esse jogo?

Levar a sério é, para começar, não neutralizar. É, por exemplo, pôr entre

parênteses a questão de saber se e como tal pensamento ilustra universais

cognitivos da espécie humana, explica-se por certos modos de transmissão social

do conhecimento, exprime uma visão de mundo particular, valida funcionalmente

a distribuição do poder político, e outras tantas formas de neutralização do

pensamento alheio. Suspender tal questão ou, pelo menos, evitar encerrar a

antropologia nela; decidir, por exemplo, pensar o outro pensamento apenas

(digamos assim) como uma atualização de virtualidades insuspeitas do pensar.

Levar a sério significaria, então, ‘acreditar’ no que dizem os índios, tomar

seu pensamento como exprimindo uma verdade sobre o mundo? De forma

alguma; esta é outra questão mal colocada. Para crer ou não crer em um

pensamento, é preciso primeiro imaginá-lo como um sistema de crenças. Mas os

problemas autenticamente antropológicos não se põem jamais nos termos

psicologistas da crença, nem nos termos logicistas do valor de verdade, pois não

se trata de tomar o pensamento alheio como uma opinião, único objeto possível de

crença ou descrença, ou como um conjunto de proposições, únicos objetos

possíveis dos juízos de verdade. Sabe-se o estrago causado pela antropologia ao

definir a relação dos nativos com seu discurso em termos de crença — a cultura

vira uma espécie de teologia dogmática —, ou ao tratar esse discurso como uma

opinião ou como um conjunto de proposições — a cultura vira uma teratologia

epistêmica: erro, engano, ilusão, ideologia…58 Como observa Latour (1996b: 15),

mesma empregada por L.H. Lopes dos Santos a propósito de Wittgenstein — “um perspectivismo sem relativismo” —, e referida por Prado Jr. (1998:320). 56 A expressão “aparentemente irracional” é uma fórmula secular da antropologia, de Andrew Lang ([1883], in Detienne 1981: 28) a Dan Sperber (1982). 57 Como professam as que poderíamos chamar de ‘antropologias do senso comum’, tais a de Obeyesekere (1992) contra Sahlins (ver Sahlins 1995) e, mais recentemente, LiPuma (1998), que aspira a ser o Obeyesekere de Marilyn Strathern. 58 As observações de Wittgenstein sobre o Golden Bough permanecem, a esse título, completamente pertinentes. Entre outras: “Um símbolo religioso não se funda sobre nenhuma opinião. E é somente em relação à opinião que se pode falar em erro”; “Creio que o que caracteriza o homem primitivo é que ele não age a partir de opiniões (ao contrário, Frazer)”; “O absurdo consiste aqui no fato de que Frazer apresenta tais idéias [sobre os ritos da chuva etc.] como se esses povos tivessem uma representação completamente falsa (e mesmo insensata) do curso da natureza, quando eles possuem apenas uma interpretação estranha dos fenômenos. Isto é, se eles pusessem por escrito seu conhecimento da natureza, ele não se distinguiria fundamentalmente do nosso. Apenas sua

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“a crença não é um estado mental, mas um efeito da relação entre os povos” — e

o tipo mesmo do efeito que não se pretende produzir aqui. A frase de Latour é

muito adequada, pois trata-se justamente de substituir, nas páginas que seguem,

a linguagem do estado (ou atitude) mental pela do efeito relacional, e não apenas

para a “relação entre os povos”.59

O animismo, por exemplo. O Vocabulário de Lalande, que não se mostra,

quanto a isso, muito destoante face a estudos psico-antropológicos recentes sobre

o tópico, define o animismo (s.v.) nestes exatos termos: como um “estado

mental”. Mas o animismo ameríndio pode ser tudo, menos isso. Ele é uma imagem

do pensamento, que reparte o fato e o direito, o que cabe de direito ao

pensamento e o que remete contingentemente aos estados de coisas; é, mais

especificamente, uma convenção de interpretação (Strathern 1999a: 239) que

pressupõe a personitude formal do que há a interpretar, fazendo assim do

pensamento uma atividade e um efeito da relação (‘social’) entre o pensador e o

pensado. Seria apropriado dizer que o dualismo cartesiano é um estado mental? O

mesmo (não) se diga do animismo amazônico: ele não é um estado mental dos

sujeitos individuais, mas um dispositivo intelectual transindividual, que toma,

aliás, os ‘estados mentais’ dos seres do mundo como um de seus objetos. Ele não

é uma condição da mente do nativo, mas uma ‘teoria da mente’ aplicada pelo

nativo, um modo de resolver, ou melhor, de sequer colocar — de deslocar — o

problema eminentemente filosófico das ‘outras mentes’. (Se o animismo é um

estado mental, então todas as doutrinas glosadas no Vocabulário de Lalande

também o seriam.)

Se não se trata de descrever o pensamento indígena americano em termos

de crença, tampouco então é o caso de relacionar-se a ele sob o modo da crença

— seja sugerindo com benevolência seu ‘fundo de verdade’ alegórico (uma

alegoria social, como para os durkheimianos, ou natural, como para os

‘materialistas culturais’), seja, pior ainda, imaginando que ele daria acesso à

essência íntima e última das coisas, detentor que seria de uma ciência esotérica

infusa. “Uma antropologia que … reduz o sentido [meaning] à crença, ao dogma e

à certeza cai forçosamente na armadilha de ter de acreditar ou nos sentidos

magia é outra” (Wittgenstein [1930–48]: 15, 24, 27). Sua magia, ou, poderíamos dizer, seus conceitos. 59 Nota a desenvolver: distinguir entre uma concepção ‘ontológica’ de crença, como a de Tarde (a crença como preensão), de uma concepção epistemológica, a crença como representação falsa ou inverificável. O problema com teorias como a de Sperber é que esses dois sentidos de ‘crença’ são confundidos, ou melhor, o segundo é contrabandeado

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nativos, ou em nossos próprios” (Wagner 1981: 30). O plano do sentido não é

povoado por crenças psicológicas ou proposições lógicas, e o ‘fundo’ contém outra

coisa que verdades. Nem uma forma da doxa, nem uma figura da lógica — nem

opinião, nem proposição —, o pensamento nativo é aqui tomado como atividade de

simbolização ou prática de sentido: como dispositivo auto-referencial ou

tautegórico de produção de conceitos, isto é, de “símbolos que representam a si

mesmos” (Wagner 1986).

Recusar-se a pôr a questão em termos de crença parece-me um traço

crucial da decisão antropológica. Para marcá-lo, reevoquemos o Outrem

deleuziano. Outrem é a expressão de um mundo possível; mas este mundo deve

sempre, no curso usual das interações sociais, ser atualizado por um Eu: a

implicação do possível em outrem é explicada por mim. Isto significa que o

possível passa por um processo de verificação, que dissipa entropicamente sua

estrutura. Quando desenvolvo o mundo exprimido por outrem, é para validá-lo

como real e ingressar nele, ou então para desmenti-lo como irreal: a ‘explicação’

introduz, assim, o elemento da crença. Descrevendo tal processo, Deleuze

indicava a condição-limite que lhe permitiu a determinação do conceito de

Outrem:

[E]ssas relações de desenvolvimento, que formam tanto nossas comunidades como nossas constestações com outrem, dissolvem sua estrutura, e a reduzem, em um caso, ao estado de objeto, e, no outro, ao estado de sujeito. Eis por que, para apreender outrem como tal, sentimo-nos no direito de exigir condições especiais de experiência, por mais artificiais que fossem elas: o momento em que o exprimido ainda não possui (para nós) existência fora do que o exprime — Outrem como expressão de um mundo possível (1969a: 335).

E concluía recordando uma máxima fundamental de sua reflexão:

A regra que invocávamos anteriormente: não se explicar demais, significava antes de tudo não se explicar demais com outrem, não explicar outrem demais, manter seus valores implícitos, multiplicar nosso mundo povoando-o de todos esses exprimidos que não existem fora de suas expressões (ibid.)

A lição pode ser aproveitada pela antropologia. Manter os valores de

outrem implícitos não significa celebrar algum mistério numinoso que eles

encerrem; significa a recusa de atualizar os possíveis expressos pelo pensamento

indígena, a deliberação de guardá-los indefinidamente como possíveis — nem

desrealizando-os como fantasias dos outros, nem fantasiando-os como atuais para

nós. A experiência antropológica, nesse caso, depende da interiorização formal das

para dentro do primeiro: as crenças epistemologicamente falsas exigem uma explicação

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“condições especiais e artificiais” de que fala Deleuze: o momento em que o

mundo de outrem não existe fora de sua expressão transforma-se em uma

condição eterna, isto é, interna à relação antropológica, que realiza esse possível

como virtual.60 Se há algo que cabe de direito à antropologia, deve ser essa tarefa

de multiplicar nosso mundo (não a de explicar o mundo de outrem), “povoando-o

de todos esses exprimidos que não existem fora de suas expressões”. Pois não

podemos pensar como os índios; podemos, no máximo, pensar com eles. E a

propósito — tentando só por um momento pensar ‘como eles’ —, se há uma

mensagem clara do perspectivismo indígena, é justamente a de que não se deve

jamais tentar atualizar o mundo tal como exprimido nos olhos alheios.

(…)

Realizar os possíveis nativos como virtualidades é o mesmo que tratar as idéias

nativas como conceitos. Dois exemplos.

1. Os porcos indígenas. É comum encontrar-se, na etnografia americana, a

idéia de que, para os índios, os animais são humanos. Tal formulação condensa

uma nebulosa de concepções sutilmente variadas, que discutiremos na parte III

deste livro: não são todos os animais que são humanos, e não são só eles que o

são; os animais não são humanos o tempo todo; eles foram humanos mas não o

são mais; eles tornam-se humanos quando se acham fora de nossas vistas; eles

apenas pensam que são humanos; eles vêem-se como humanos; eles têm uma

alma humana sob um corpo animal; eles são gente assim como os humanos, mas

não são humanos exatamente como a gente; e assim por diante. Além disso,

‘animal’ e ‘humano’ são traduções equívocas de certas palavras indígenas — e não

esqueçamos que estamos diante de centenas de línguas distintas. Mas não

importa, no momento. Suponhamos que enunciados como “os animais são

humanos” ou “certos animais são gente” façam algum tipo de sentido, e um

sentido que nada tenha de metafórico, para um dado grupo indígena — tanto

sentido, digamos (mas não exatamente o mesmo tipo de sentido), quanto o que a

afirmação aparentemente inversa, “os humanos são animais”, faz para nós.

diferente das crenças verdadeiras. 60 A exteriorização dessa condição especial e artificial, isto é, sua generalização e naturalização, gera o equívoco clássico da antropologia: a eternidade formal do possível é fantasmada sob o modo de uma não-contemporaneidade histórica entre o antropólogo e o nativo — tem-se então a primitivização de Outrem, seu congelamento como objeto (do) passado absoluto.

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Suponhamos então que o primeiro enunciado faça sentido para, por exemplo, os

Ese Eja da Amazônia boliviana: “A afirmação, que eu frequentemente ouvi, de que

‘todos os animais são Ese Eja’ …” (Alexiades 1998: 179).61 Pois bem. Isabella

Lepri, estudante de antropologia que hoje trabalha, por coincidência, junto a esses

mesmos Ese Eja, perguntou-me, penso que em maio de 1998, se eu acreditava

que os pecaris são humanos, como dizem os índios. Respondi que não — e o fiz

porque suspeitei (sem razão) que ela acreditava que, se os índios diziam tal coisa,

então devia ser verdade. Acrescentei, algo mentirosamente, que só ‘acreditava’

em átomos e genes, na teoria da relatividade e na evolução das espécies, na luta

de classes e na lógica do capital, enfim, nesse tipo de coisa; mas que, como

antropólogo, tomava perfeitamente a sério a idéia de que os pecaris são humanos.

Ela me contestou: “Como você pode sustentar que leva o que os índios dizem a

sério? Isso não é só um modo de ser polido com seus informantes? Como você

pode levá-los a sério se só finge acreditar no que eles dizem?”

Essa intimação de hipocrisia obrigou-me, é claro, a refletir, e a dar uma

resposta bem mais longa. Tão longa, de fato, que boa parte deste livro consiste

nela. Estou convencido de que a questão de Isabella é absolutamente crucial, de

que toda antropologia digna desse nome precisa respondê-la, e de que não é nada

fácil respondê-la bem.

Uma resposta possível, naturalmente, é aquela implícita na declaração de

Lévi-Strauss citada mais atrás, onde ele opunha, à vacuidade referencial do mito,

sua plenitude diagnóstica: dizer que os pecaris são humanos não nos ‘diz’ nada

sobre os pecaris, mas muito sobre os humanos que o dizem. Essa é a solução

clássica da antropologia, de Durkheim aos dias de hoje. Muita da antropologia

chamada cognitiva, por exemplo, pode ser vista como uma elaboração exaustiva

de tal atitude, que consiste em reduzir o discurso indígena a um conjunto de

proposições, selecionar aquelas que são falsas (alternativamente, ‘vazias’) e

produzir uma explicação de por que os humanos acreditam nelas, visto que são

falsas ou vazias. Uma explicação, também por exemplo, pode ser aquela que

conclui que tais proposições são objeto de um embutimento ou aspeamento por

parte de seus enunciadores (Sperber 1974, 1982); elas remetem, portanto, não

ao mundo, mas à relação dos enunciadores com seu próprio discurso. Tal relação é

mais diretamente explicitada nas antropologias ditas ‘simbolistas’, de tipo

61 Alexiades cita seu interlocutor em espanhol — ‘Todos los animales son Ese Eja’. Note-se já aqui uma primeira torção: ‘todos’ os animais (o etnógrafo mostra que há numerosas exceções) não são ‘humanos’, e sim ‘Ese Eja’, etnônimo que pode ser traduzido como ‘pessoas humanas’, em oposição a ‘espíritos’ e a ‘estrangeiros’.

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semântico ou pragmático: enunciados como esse sobre os pecaris falam (ou

fazem), ‘na verdade’, algo sobre a sociedade, não sobre o que falam. Tais

enunciados não ensinam nada sobre a ordem do mundo e a natureza do real,

assim, nem para nós nem para os índios. Levar a sério uma afirmação como “os

pecaris são humanos”, nesse caso, consistiria em mostrar como certos humanos

podem levá-la a sério, e mesmo acreditar nela, sem que se mostrem, com isso,

irracionais — e, naturalmente, sem que os pecaris se mostrem, por isso, humanos.

Salva-se o mundo: salvam-se os pecaris, salvam-se os nativos, e salva-se,

sobretudo, o antropólogo.

Essa solução não me satisfaz. De fato, ela me incomoda profundamente.

Ela parece implicar que, para levar os índios a sério, quando afirmam coisas como

“os pecaris são humanos”, é preciso não acreditar no que eles dizem, visto que, se

o fizéssemos, não estaríamos nos levando a sério. É preciso achar outra saída.

Como não tenho espaço nem, sobretudo e evidentemente, competência para

repassar a vasta literatura filosófica sobre a gramática da crença, a certeza, as

atitudes proposicionais etc., apresento aqui apenas certas considerações

suscitadas, intuitiva mais que reflexivamente, por minha experiência de etnógrafo.

Sou antropólogo, não suinólogo. Os pecaris (ou, como disse Evans-

Pritchard sobre os Nuer, as vacas) não me interessam enormemente, os humanos

sim. Mas os pecaris interessam enormemente àqueles humanos que dizem que

eles são humanos. Portanto, a idéia de que os pecaris são humanos me interessa,

a mim também, porque ‘diz’ algo sobre os humanos que dizem isso. Mas não

porque ela diga algo que esses humanos não são capazes de dizer, e sim porque,

nela, esses humanos estão dizendo algo não só sobre os pecaris, mas também

sobre o que é ser ‘humano’. Um enunciado como “os pecaris são humanos”, se

certamente revela — ao antropólogo — algo sobre o espírito humano, faz mais que

isso — para os índios: ele afirma algo sobre o conceito de humano. Ele afirma, por

exemplo, que a noção de ‘espírito humano’, ou o conceito indígena de socialidade,

incluem em sua extensão os pecaris, o que modifica a intensão destes conceitos

relativamente aos nossos.

A crença do nativo ou a descrença do antropólogo não têm nada a fazer

aqui. Perguntar(-se) se o antropólogo deve acreditar no nativo é um category

mistake equivalente a indagar se o número dois é alto ou verde. Eis os primeiros

elementos de minha resposta a Isabella. Quando um antropólogo ouve de um

interlocutor indígena (ou lê na etnografia de um colega) algo como “os pecaris são

humanos”, a afirmação, sem dúvida, interessa-lhe porque ele ‘sabe’ que os pecaris

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não são humanos. Mas esse saber — um saber essencialmente arbitrário, para não

dizer burro — deve parar aí: seu único interesse consiste em ter despertado o

interesse do antropólogo. Não se pode pedir mais a ele. Não se pode, acima de

tudo, incorporá-lo implicitamente na economia do comentário antropológico, como

se fosse necessário explicar (como se o essencial fosse explicar) por que os índios

crêem que os pecaris são humanos quando de fato eles não o são. É inútil

perguntar-se se os índios têm ou não razão a esse respeito: pois já não o

‘sabemos’? Mas o que é preciso saber é justamente o que não se sabe — a saber,

o que os índios estão dizendo, quando dizem que os pecaris são humanos.

Uma idéia como essa está longe de ser evidente. O problema que ela coloca

não reside na cópula, como se ‘pecari’ e ‘humano’ fossem noções comuns

partilhadas pelo antropólogo e pelo nativo, e a única diferença residisse na

equação bizarra entre os dois termos. É perfeitamente possível, diga-se de

passagem, que o significado lexical ou a interpretação semântica de ‘pecari’ e

‘humano’ sejam mais ou menos os mesmos para os dois interlocutores; não se

trata de um problema de tradução, ou de decidir se os índios e nós temos os

mesmos natural kinds (provavelmente, provavelmente). O problema é que a idéia

de que os pecaris são humanos é parte do sentido dos ‘conceitos’ de pecari e de

humano naquela cultura, ou melhor, é essa idéia que é o verdadeiro conceito em

potência — o conceito que determina o modo como as idéias de pecari e de

humano se relacionam. Pois não há ‘primeiro’ os pecaris e os humanos, cada qual

de seu lado, e ‘depois’ sobrevém a idéia de que os pecaris são humanos: ao

contrário, os pecaris, os humanos e sua relação são dados simultaneamente.62

A estreiteza intelectual que ronda a antropologia, em casos como esse,

consiste na redução das noções de pecari e de humano exclusivamente a variáveis

independentes de uma proposição, quando elas também podem ser vistas — se

queremos levar os índios a sério — como variações inseparáveis de um conceito.

Dizer que os pecaris são humanos, como já observei, não é dizer algo apenas

sobre os pecaris, como se ‘humano’ fosse um predicado passivo e pacífico (por

62 Não estou aqui me referindo ao problema da aquisição ontogenética de ‘conceitos’ ou ‘categorias’, no sentido que a psicologia cognitiva dá a estas palavras. A simultaneidade das idéias de pecari, humano e de sua identidade (condicional e contextual) é, do ponto de vista empírico, uma característica do pensamento dos adultos dessa cultura. Ainda que se admitisse que as crianças começam por adquirir ou manifestar os ‘conceitos’ de pecari e de humano antes de serem ensinadas que “os pecaris são humanos”, resta que os adultos, quando agem ou argumentam com base nesta idéia, não reencenam em suas cabeças tal suposta sequência cronológica, primeiro pensando nos humanos e nos pecaris, depois em sua associação. Além disso e sobretudo, tal simultaneidade não é empírica, mas transcendental: ela significa que a humanidade dos pecaris é um componente a priori da idéia de pecari (e da idéia de humano).

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exemplo, o gênero em que se inclui a espécie pecari); tampouco é dar uma

simples definição verbal de ‘pecari’, do tipo “‘surubim’ é (o nome de) um peixe”.

Dizer que os pecaris são humanos é dizer algo sobre os pecaris e sobre os

humanos, é dizer algo sobre o que pode ser o humano: se os pecaris têm a

humanidade em potência, então os humanos teriam, talvez, uma potência-pecari?

Com efeito, se os pecaris podem ser concebidos como humanos, então, por

exemplo, deve ser possível conceber os humanos como pecaris: o que é ser

humano, quando se é ‘pecari’, e o que é ser pecari, quando se é ‘humano’? Quais

as consequências disto? Que conceito se pode extrair de um enunciado como “os

pecaris são humanos”? Como transformar a concepção expressa por uma

proposição desse tipo em um conceito? Esta é a verdadeira questão. Assim,

quando seus interlocutores indígenas lhe dizem (sob condições, como sempre, que

cabe especificar) que os pecaris são humanos, o que o antropólogo deve se

perguntar não é se ‘acredita ou não’ que os pecaris sejam humanos, mas o que

uma idéia como essa lhe ensina sobre as noções indígenas de humanidade e de

‘pecaritude’. (O que uma idéia como essa, note-se, ensina-lhe sobre essas noções

e sobre outras coisas: sobre as relações entre ele e seu interlocutor, as situações

em que tal enunciado é produzido ‘espontaneamente’, os gêneros de fala e o jogo

de linguagem em que ele cabe etc. Essas outras coisas, porém — e gostaria de

insistir sobre o ponto — estão muito longe de esgotar o sentido do enunciado.

Reduzi-lo a um discurso que ‘fala’ apenas de seu enunciador é negar a este sua

intencionalidade, e, de quebra, é obrigá-lo a trocar seu pecari por nosso humano.

O que, seguramente, é um péssimo negócio para o caçador do pecari.)

E nestes termos, é óbvio que o etnógrafo tem de acreditar (no sentido de

confiar) em seu interlocutor: pois se este não está a lhe dar uma opinião, mas a

ensinar-lhe o que são os pecaris e os humanos, a explicar como o humano está

implicado no pecari… A pergunta, mais uma vez, deve ser: para que serve essa

idéia? Em que agenciamentos ela pode entrar? Quais suas consequências? Por

exemplo: o que se come, quando se come um pecari, se os pecaris são humanos?

E mais: carece ver se o conceito construível a partir de enunciados como

esse exprime-se de modo realmente adequado pela forma “X é Y”. Pois não se

trata tanto de um problema de predicação ou atribuição, mas de definir um

conjunto virtual de eventos e de séries em que entram os porcos selvagens de

nosso exemplo: os pecaris andam em bando… têm um chefe… são barulhentos e

agressivos… sua aparição é súbita e imprevisível… são maus cunhados… comem

açaí… vivem sob a terra… são encarnações dos mortos… e assim por diante. Não

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se trata com isso de identificar os atributos dos pecaris a atributos dos humanos,

mas de algo muito diferente. Os pecaris são pecaris e humanos, são humanos

naquilo que os humanos não são pecaris; os pecaris implicam os humanos, como

idéia, em sua distância face aos humanos. Assim, quando se diz que os pecaris

são humanos, não é para identificá-los aos humanos, mas para diferenciá-los de si

mesmos.

Disse acima que a idéia de que os pecaris são humanos está longe de ser

evidente. Por suposto: nenhuma idéia interessante é evidente. Esta, em particular,

não é não-evidente porque seja falsa ou inverificável (os índios dispõem de vários

modos de verificá-la), mas porque diz algo não-evidente sobre o mundo. Os

pecaris não são evidentemente humanos, eles o são não-evidentemente. Isso

quereria dizer que tal idéia é ‘simbólica’, no sentido que Sperber deu a este

adjetivo? Entendo que não. Sperber concebe os conceitos indígenas como

proposições, e pior, como proposições de segunda classe, ‘representações

semiproposicionais’ que prolongam o ‘saber enciclopédico’ sob um modo não-

referencializável: confusão do autopositivo com o referencialmente vazio, do

virtual com o fictício, da imanência com a clausura…63 Mas é possível ver o

‘simbolismo’ de outro modo que esse de Sperber, que o toma como algo lógica e

cronologicamente posterior à enciclopédia ou à semântica, algo que marca os

limites do conhecimento verdadeiro ou verificável, o ponto onde ele se transforma

em ilusão.64 Os conceitos indígenas podem ser ditos simbólicos, mas em sentido

muito diferente; não são subproposicionais, são superproposicionais, pois supõem

as proposições enciclopédicas mas definem sua significação vital, seu sentido ou

valor. As proposições enciclopédicas é que são semiconceituais ou subsimbólicas,

não o contrário. O simbólico não é o semiverdadeiro, mas o pré-verdadeiro, isto é,

o importante ou relevante: ele diz respeito, não ao que ‘é o caso’, mas ao que

importa no que é o caso, ao que interessa para a vida no que é o caso. O que vale

um pecari?

63 O simbolismo de Sperber funciona um pouco como a razão kantiana, essa faculdade que não pode deixar de pôr os problemas mesmos que ela não pode resolver. Semelhante inspiração faz a teoria sperberiana muito mais devedora de Lévi-Strauss do que seu autor estaria disposto a admitir: a semelhança, por exemplo, da ‘representação semiproposicional’ de Sperber com a noção lévi-straussiana do mana como ‘significante flutuante’ (ou: lá onde estavam o cérebro e o discurso, o mundo e o real devem advir) é profunda, e ao mesmo tempo profundamente recalcada. 64 Ilusão ‘necessária’, mas temporária. Como Lévi-Strauss, Sperber parece crer que a ‘cota’ de simbolismo ou de vacuidade referencial do pensamento humano diminui assintoticamente com o progresso histórico da ciência. Curiosa crença milenarista no advento de uma factualização absoluta das ‘crenças’… Esta sim é uma autêntica idéia reguladora da Razão.

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“Profundo: outra palavra para semiproposicional”, ironiza Sperber (1982:

173). Mas então caberia replicar — banal: outra palavra para proposicional.

Profundos, com efeito, os conceitos indígenas certamente o são, pois projetam um

fundo, um plano de imanência povoado de intensidades, ou, se o leitor prefere a

linguagem de Wittgenstein, um Weltbild quadrilhado por ‘pseudo-proposições’ de

base que ignoram e precedem a partilha entre o verdadeiro e o falso, “tecendo

uma rede que, lançada sobre o caos, pode lhe dar alguma consistência” (Prado Jr

1998: 317). Esse fundo é a “base sem fundamento” que não é nem

racional/razoável nem irracional/insensata, mas que “simplesmente está lá —

como nossa vida” (Sobre a certeza, § 59, in Prado Jr op.cit.: 319).

2. Os corpos indígenas. Meu colega Peter Gow narrou-me, cerca de um ano atrás,

a seguinte cena, presenciada em uma de suas estadas entre os Piro da Amazônia

peruana:

Uma professora da missão [na aldeia de] Santa Clara estava tentando convencer uma mulher piro a preparar a comida de seu filho pequeno com água fervida. A mulher replicou: “Se bebemos água fervida, contraímos diarréia”. A professora, rindo com zombaria da resposta, explicou que a diarréia infantil comum é causada justamente pela ingestão de água não-fervida. Sem se abalar, a mulher piro respondeu: “Talvez para o povo de Lima isso seja verdade. Mas para nós, gente nativa daqui, a água fervida dá diarréia. Nossos corpos são diferentes dos corpos de vocês” (Gow, com.pess. 12/10/00).

O que pode o antropólogo fazer com essa resposta da mulher índia? Várias coisas.

Gow, por exemplo, teceu comentários argutos sobre a anedota, em um artigo em

preparação:

Este enunciado simples [“nossos corpos são diferentes”] captura com elegância o que Viveiros de Castro [1996] chamou de perspectivismo cosmológico, ou multinaturalismo: o que distingue os diferentes tipos de gente são seus corpos, não suas culturas. Deve-se notar, entretanto, que esse exemplo de cosmologia perspectiva não foi obtido no curso de uma discussão esotérica sobre o mundo oculto dos espíritos, mas em uma conversação em torno de preocupações eminentemente práticas: o que causa a diarréia infantil? Seria tentador ver as posições da professora e da mulher piro como representando duas cosmologias distintas, o multiculturalismo e o multinaturalismo, e imaginar a conversa como um choque de cosmologias ou culturas. Isto seria, penso, um engano. As duas cosmologias/culturas, no caso, estão em contato já há muito tempo, sua imbricação precede de muito os processos ontogenéticos através dos quais a professora e essa mulher piro vieram a formulá-las como auto-evidentes. Mas sobretudo, tal interpretação estaria traduzindo a conversa nos termos gerais de uma de suas partes, a saber, o multiculturalismo. As coordenadas da posição da mulher piro estariam sendo sistematicamente violadas pela análise. Isso não quer dizer, é claro, que eu creia que as crianças devem beber água não-fervida. Mas isso quer dizer que a análise etnográfica não pode ir adiante se já se decidiu de antemão o sentido geral de um encontro como esse. Sugiro que estamos, aqui, diante de uma cosmologia única e coordenada, e que se manifesta na maneira

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pela qual as duas mulheres concordaram em discordar: a mulher piro atribuindo a coerência lógica da posição da professora a sua familiaridade limitada com a variabilidade dos tipos de corpos, e a professora atribuindo a coerência lógica da posição da mãe piro a sua ignorância, à incompetência técnica do conhecimento piro sobre o mundo, isto é, a diferenças culturais entendidas como uma hierarquia de valores. Meu argumento, portanto, é que tais conversações são os mecanismos pelos quais os povos nativos do Peru oriental vêm a experimentar a multiplicidade social como algo confirmatório de suas auto-evidencialidades em contraste (Gow, loc.cit.)

Concordo com muito do argumento acima. A anedota reportada por Gow é

de fato uma esplêndida ilustração, especialmente por derivar de um incidente

banalmente cotidiano, da divergência irredutível entre o que chamei de

‘multiculturalismo’ e de ‘multinaturalismo’.65 Mas a análise sugerida por ele não me

parece a única possível. Sobre a questão da tradução da conversa nos termos

gerais de uma das partes — no caso, a professora: não seria igualmente possível,

e sobretudo necessário, traduzi-la nos termos gerais da outra parte? Pois não há

terceira posição, uma posição de sobrevôo que remetesse “dos à dos” as duas

outras. É preciso tomar partido. Gow, entretanto, intima que não há, a rigor, duas

partes, mas uma só. Mas o que seria essa “cosmologia única e coordenada”?

Estaria ele sugerindo que as duas mulheres compartilham o mesmo conjunto de

pressupostos sobre o que é a realidade? Não creio. Alguns pressupostos, pelo

menos? Sem dúvida; mas seriam estes os interessantes?

Será que se poderia dizer, por exemplo, que cada mulher está

‘culturalizando’ a outra nessa conversa, isto é, atribuindo a tolice da outra à

‘cultura’ desta, ao passo que ‘interpreta’ a sua própria posição como ‘natural’?

Seria o caso de se dizer que o argumento sobre o ‘corpo’ avançado pela mulher

piro já é uma espécie de concessão aos pressupostos da professora? Não vejo que

as duas mulheres tenham concordado em discordar. A mulher piro ‘concordou em

discordar’, mas a professora, de modo algum. A primeira não contestou o fato de

que as pessoas da cidade de Lima (“talvez”) devam beber água fervida, ao passo

que a professora recusou peremptoriamente a idéia de que as pessoas da aldeia

de Santa Clara não o devam.

O ‘relativismo’ da mulher piro — um relativismo ‘natural’, não ‘cultural’,

note-se — pode ser interpretado segundo certas hipóteses a respeito da economia

cognitiva das sociedades não-modernas, ou sem escrita, ou tradicionais etc. Nos

65 Ela reproduz, a quatro séculos de distância, o mesmo equívoco evocado por Lévi-Strauss (1952, 1955) a propósito dos espanhóis e dos nativos das Antilhas, e que lhe serviu para tirar a célebre conclusão: “O bárbaro é, antes de mais nada, aquele que crê na barbárie”.

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termos da teoria de R. Horton ([1993]: 379-ss), por exemplo. Horton identifica o

que chama de “paroquialismo de visão de mundo” (world-view parochialism) como

algo característico dessas sociedades: contrariamente à exigência implícita de

universalização contida nas cosmologias racionalizadas da modernidade ocidental,

as cosmologias dos povos tradicionais parecem marcadas por um espírito de

grande tolerância, mas que é na verdade uma indiferença à concorrência de visões

de mundo discrepantes. O relativismo aparente dos Piro não manifestaria, assim,

sua largueza de vistas, mas, muito ao contrário, sua estreiteza: eles pouco se

importam como as coisas são alhures.

Há vários motivos para se recusar uma leitura como essa de Horton; por

exemplo, o de que o dito relativismo primitivo não é apenas intercultural, mas

intracultural, e que ele não exprime nem uma tolerância, nem uma indiferença,

mas sim uma exterioridade absoluta à idéia cripto-teológica de ‘cultura’ como

conjunto de crenças (Viveiros de Castro 1993b). O motivo principal, entretanto,

está perfeitamente prefigurado nos comentários de Gow, a saber, o de que essa

idéia do “paroquialismo” traduz o debate de Santa Clara nos termos da posição da

professora, com seu universalismo natural e seu diferencialismo (mais ou menos

tolerante) cultural. Há várias visões de mundo, mas há um só mundo — um

mundo onde todas as crianças devem beber água fervida, se, é claro,

encontrarem-se em uma parte do mesmo onde a diarréia infantil seja uma

ameaça.

Em lugar dessa leitura, proponha-se outra. A anedota dos corpos diferentes

convida a um esforço de determinação do mundo possível expresso no juízo da

mulher piro. Um mundo no qual os corpos humanos sejam diferentes em Lima e

em Santa Clara. Determinar esse mundo possível não é, sublinhe-se, imaginar um

mundo dotado de outra fisica ou outra biologia, segundo as quais, por exemplo, o

universo não seria isotrópico e os corpos comportar-se-iam segundo leis diferentes

em lugares distintos. Isso é ficção científica. O que se trata é de determinar um

mundo onde questões como a diarréia infantil não são tratadas como objetos de

uma teoria biofísica. O argumento de que “nossos corpos são diferentes” não

resulta de uma teoria biológica alternativa, e, naturalmente, errada (como

advertia Alfred Gell [1998: 101], a feitiçaria vodu não é uma física equivocada),

ou de uma biologia objetiva imaginariamente não-standard. O que tal argumento

manifesta é uma idéia não-biológica de corpo. Ele intima que nossos ‘corpos’

respectivos são diferentes, entenda-se, que os conceitos piro e ocidental de corpo

são diversos, não que nossas ‘biologias’ são diversas. O que a anedota da água

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piro exprime, nesse caso, não seria assim uma outra visão de um mesmo corpo,

mas um outro conceito de ‘corpo’, cuja relação com o nosso é, justamente, o

problema. O conceito piro de corpo, por exemplo, pode não estar na alma, isto é,

na ‘mente’, como imagem de um corpo fora dela; ele pode estar, ao contrário,

inscrito no corpo (Viveiros de Castro 1996). Não o conceito como ‘perspectiva’

(visão) sobre um corpo extra-conceitual, mas o corpo como perspectiva interna do

conceito — o corpo como implicado no conceito de perspectiva. E se, como diria

Spinoza, não sabemos o que pode um corpo, quanto menos saberíamos o que

pode esse corpo. Para não falar de sua alma.

BIBLIOGRAFIA

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