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João Francisco E A EDUCAÇÃO: ~~QUÊ?? A Educação na Sociedade e/ ou a Sociedade na Educação Departamento de Fundamentos Sociofilosójhos da Educação NUPEP (Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação deJovens e Adultos e em Educação Popular) Centro de Educação Universidade Federal de Pernambuco Recife, Pernambuco, Brasil Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional Unidade de Educação de Adultos Instituto de Educação e Psicologia Universidade do Minha Braga - Portugal Janeiro 2004 EDIÇÔES li B.~GAÇO Recife • 2004

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João Francisco

E A EDUCAÇÃO: ~~QUÊ??A Educação na Sociedade

e/ou a Sociedade na Educação

Departamento de Fundamentos Sociofilosójhos da Educação

NUPEP (Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação deJovens e

Adultos e em Educação Popular)

Centro de Educação

Universidade Federal de Pernambuco

Recife, Pernambuco, Brasil

Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional

Unidade de Educação de Adultos

Instituto de Educação e Psicologia

Universidade do Minha

Braga - Portugal

Janeiro 2004

EDIÇÔES

liB.~GAÇO

Recife • 2004

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Copyright©2004, João Francisco de Souza

Capa e projeto gráficoEdições Bagaço

RevisãoRosário de Sá Barreto

S72ge

PeR-BPE

ISBN: 85-7409-780-2

Souza, João Francisco de, 1944-E a educação: iiquê??; a educação na sociedade e/ou

a sociedade na educação / João Francisco de Souza. - Re-cife: Bagaço, 2004.

360p.

1. EDUCAÇÃO 2. SOCIOLOGIA EDUCACIO-NAL. 3.EDUCAÇÃO - FINS E OBJETIVOS. 4. EDU-CAÇÃO DE ADULTOS. r. Título.

CDU 37CDD 370

Produção Gráfica:Edições Bagaço

Rua dos Arcos, 150 - Poço da PanelaCEP: 52061-180 Recife-PE

Tel: (81) 3441.0133 /3441.0134E-mail: [email protected]

www.bagaco.com.br

Impresso no Brasil- 2004

"Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual.

Suplicamos expressamente:

não aceiteis o que é de hábito como coisa narúral,

pois em tempo de desordem sangrenta,

de confusão organizada,

de arbitrariedade consciente,

de humanidade desumanizada,

nada deve parecer natural,

nada deve parecer impossível de mudar."

Bertold Bretch

(1898-1956)

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profundas desigualdades econômico-sociais, inclusões perversas

e de hierarquias que a confrontação dos diferentes povos e

culturas provocou a partir daquele expancionismo europeu,

também, simultaneamente, geraram vida, liberdade,

epistemogêneses, aculturações, recriações, miscigenações, lutas

por relações mais igualitárias e horizontais, figurações e

configurações que hoje são a riqueza da pós-rnodernidade/

mundo. Foi desencadeado, portanto, um amplo processo de

transculturação "não só fundamental, mas permanente e

reiterado. Com altos e baixos, avanços e recuos, acomodações e

rupturas" (IANNI, 2000, p. 76) vem atravessando,

constituindo, construindo, reconfigurando e imprimindo outras

configurações à história humana e aos diferentes grupos que

vão se conformando e fazendo essa mesma história. O problema

que se apresenta é, pois, o da convivência democrática nessa

diversidade cultural, a través do diálogo entre as diferentes

expressões culturais, possibilitando a constituição de um espaço/

mundo rnulticultural.

Nessa direção, parecem necessárias algumas

considerações a mais sobre a configuração do contexto que

constitui a moldura e o conteúdo para o debate da diversidade

cultural e suas implicações nos processos educativos. Nessas

considerações, poderão ser evidenciadas as exigências da

educação necessária ao "tecido do novo clima cultural"

(FRElRE, 1967, p. 46) em que nos encontramos. Par-se-a,

então, uma necessária configuração do contexto da pós-

modernidade/mundo, ampliando as indicações feitas

anteriormente, mas, ainda, não exaustivas, apenas, para, em

seguida, identificar as exigências de uma educação no interior

dessa diversidade cultural, ou identificar os termos em que se

coloca a questão da educação na/para a pós-modernidade/mundo, escolar e não-escolar.

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3.1.1. O Debate Sociológico sobre a DiversidadeCultural

As indicações que vimos fazendo são suficientes para se

caracterizar o atual contexto mundial como resultado dos

diversos e diferentes processos de transculturação

experimentados na Terra ao longo dos últimos 500 anos e, de

modo especial, nos últimos 50 anos (IANNI, 2000, p. 91-120),expressos pela diversidade cultural conformada desde diferentes

recortes, como os étnico-raciais, religiosos, profissionais, de

classe, de gênero, de idades, entre outros tantos possíveis. _Esse_

contexto coloca como problem~~ais tanto as djfLculda.des-(j)

da convivência entre os diferentes, qua~do 7--:,espeito às diferen~ e a urgência de _d~ruir não somente as~remas de~gualdades econômico-sQ.ç:~ as incl'üS.§es

pcrversa~ o desempreg~eStl~ral, as hierarguias21rutoS daS-.explorações, dominações e subordingções, ..mas t..a·mbé-m-a-s-

exclusões histórico-culturais.A importante pergunta possível de ser formulada é sobre

'

as possibilidades do diálogo entre as diferentes culturas

(interculturalidade) que vão se conformando a partir de diversos

recortes, como os indicados, e outros possíveis. Neste trabalho

interessa, sobretudo, a composição do cenário para uma

posterior, rigorosa e minuciosa pesquisa sobre a questão da

educação, tanto escolar como não-escolar. A questão

ed.!:lcaci!-)J1al provoca, no interior de todas as configuraç~

Culturais dos diferentes grupos humanos, uma diferenciação (f)substanti~ intragrupal, ta~ entr~ os indivíduos como entreos subgrupos possíveiSi1o iíiteri()r de um-grupo cultural, além,~ém, e especialmente, intergrupal no interior de umamesma cultura e entre culturas. --- -- -

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As diferentes figuras, figurações, transfigurações econfigurações34, entre os grupos culturais e no interior dosdiversos grupos culturais, são caracterizadas pelos recortes declasses, etn ias, regiões, religiões, profissões e nações. Essesrecortes vêm sendo construidos ao longo desses cinco séculos,especificamente nos últimos cinqüenta anos, e exigem umaintensa reflexão "sobre o ocidentalismo, o orientalismo, amundialização e a cultura, a cultura e o imperialismo, amodernidade, o mundo e outros temas relativos a impasses eperspectivas das culturas e civilizações" (IANNI, 2000, p. 76).

Caracterizam a nossa contemporaneidade como de umaenorme diversidade cultural, provocando - no interior datentativa de certas forças econômico-sociais e culturais dehomogeneizar - os riscos de uma fragmentação da humanidade,se já fragmentados não nos encontramos, em vez da construçãode uma humanidade multicultural. Os problemas, os desafios,as possibilidades, as ameaças e as probabilidades engendradassão, simultaneamente, enormes tanto do ponto de vistaintelectual quanto político. Amedrontam-nos, levam-nos anovas perguntas e ações ao lado de muitos que se paralisam.

Seremos capazes de responder a esses desafiospositivamente? Essa resposta se expressaria por umahumanização crescente de todos os seres humanosevidenciada num m undollil term ul ticul tu r--ª.l...J:rí ricO::;democrático, polifônico e multicolorido, no q~aC aspessoas, em sua singularidade, conformariam uma

34 "São figuras e figurações vivas e vividas, ativas e empenhadas, cômicas etrágicas, dramáticas e épicas. No limite, estão sempre vivificadas na tramadas relações sociais, no jogo das forças sociais, no conrraponto diversidade-desigualdade, na dialética alienação-emancipação. Alguns se dedicam a tornaros tipos e tipologias abstrações convenientes à reflexão sobre a sociedade.Outros se dedicam a tomar os tipos e as ripologias como figuras e figuraçõesde movimentos e configurações da história" (IANNI, 2000, P: 282).

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comunidade, ainda que com conflitos, mas sem violênciasou antagonismos, desigualdades econômico-sociais eexclusões culturais exasperantes?Ou vamos perder as batalhas e a guerra pela humanizaçãodo ser humano em sua integral idade e a humanização detodos os seres humanos da Terra?

A ampla tematização dessas problemáticas está a atrairprofundos olhares e a provocar ricos debates sobre a questão dadiversidade cultural, das probabilidades d~multiculturalidade Je potencial idades dati.!:!!.~l.c.\llrmalidade;t±specialmente sobre asresponsabilidades dos processos educativos, escolares ou não,face a essas problemáticas. A diversidade cultu.Bb não sendoum fenômeno social recente, tem hoje, no entanto, .urnanovidade que se situa no fato de esses temas terem se colocado

no centro da reflexão política e sociológica na últimadécada. Isso se explica, no nível internacional, pela quedado socialismo realmente existente que possibilitou areinsurgência dos nacionalismos nas regiões em quepredominou de maneira soberana, impedindo -deexpressar-se plenamente a diversidade desses países por causa de umadefinição política. (...). Em relação a nosso país, talvez umdos primeiros elementos que tornou a colocar em evidênciao sentido da diversidade existente na América Latina e osfenômenos sociais que ela tem encarnado historicamente,gerou-se com os festejos comemorativos do V Centenárioda chegada de Cristóvão Colombo a nosso continente(RODRÍGUEZ-LEDESMA, 1998, p. 111-112)35.

35 O autor se refere ao México, mas, talvez, o mesmo se possar afirmar sobre oBrasil e o quinto centenário da chegada de Pedro Álvares Cabral às terras que~a ser o Brasil] A diversidade cultural, no entanto, com certeza, é um

patrimônio mundial e de cada uma de nossas nações, no concerto internacional

ainda desconsertado.

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Adquiriram, assim, esses temas um status sociológico eantropológico inquestionável e de suma importância para/na pós-modernidade/mundo. A partir, portanto, das conflitivas,ambíguas e arriscadas relações entre os países e, no interior decada país, entre seu Estado e suas nações ou classes sociais - nessas,as relações entre os diferentes grupos étnico-sociais, classes,

lj1 I' , . . I d~ segmentos cu turais e as ternancas que suscitam -, tem-se co oca o? o debate sob outros ângulos. Uma das importantes perspectivas~ t~m sido as chances de diálogo entre as culturas ou entre :9.5~ diversos traços de uma mesma cultura, se~esquecer as guerras,f\. as conquistas, dizimações, tensões e acomodações, mas relevando~ --ª-Lpossíyeis transculturações, que vêm se dando, e as

probabilidades e possibilidades da inter/multiculturalidade crítica.Esse debate com suas diversas perspectivas parece abrir

outros horizontes não apenas para explicação/compreensão mastambém para convivência e agradabilidade da existênciahumana na Terra. Pois, "ao lado das justaposições, imitações,paródias ou caricaturas, ocorrem tanto acomodações comorecriações, estas muitas vezes originais e surpreendentes"(IANNI, 2000, p. 78). As recriações originais e surpreendentestêm revelado que

A transculturação não nega a permanência ou a reiteraçãode singularidades ou identidades. Ao contrário, muitassituações de interdependência e tensão favorecem arecriação dessas e outras particularidades. Acontece quea transculturação pode propiciar a decantação deelementos, traços ou potencialidades insuspeitados antesdo intercâmbio (IANNI, 2000, p. 77).

Esses traços ou potencialidades insuspeitados nosmostram que algo novo sempre pode acontecer e alentam nossasesperanças nas probabilidades e possibilidades de uma inter/

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multiculturalidade crítica. Os cenários passam, pois, a ser~aracterizados por um mosaico multicolorido de diferentes

traços ou um coral de múltiplas vozes. Surgem, portanto, váriosgrupOS culturais baseados em diferentes recortes étnicos, declasse, gênero, idades, orientações sexuais, políticas e opçõesprofissionais, entre outras possibilidades, no interior desse amploe profundo processo de transculturaçâo. Isso gera a diversidadecultural não apenas entre as nações, mas no interior de cadanação e mesmo no interior de um mesmo grupo cultural. Podenos dar argumentos para lutar por outras formas de convivênciaentre os diferentes, mas embarcados numa mesma aventura deconstrução de nossa humanidade individual e coletiva.

Essa configuração da sociedade hodierna leva a tentativasde compreensão de nosso mundo, ainda que dominado pelocapitalismo como modo de produção e processo civilizatório.Percebe-se que esse domínio não é absoluto nem impede açõesde transformação com outras possibilidades de modos de pensar,agir e emocionar-se. Esse mundo está permeado de tensões,contradições, ambigüidades, portanto, eivado de possibilidadesde superar-se. Essas são decorrentes de uma.:mesc1a decristianismo, islarnismo, budismo e confucionismo, animismo,além das diferentes ciências e tecnologias, bem como dosmúltiplos interesses expressos nos diversos modelos ideológico-políticos de organização da economia, de exercício do poder eprodução/apropriação do saber.

Tudo isso tem provocado diversas implicaçõessocioculturais, econômicas, políticas, interpessoais e subjetivas,conformando vários processos civilizatórios. "Eles se desenvolvem,entrecruzam, tensionam, mutilam, fertilizam e transfiguram, emgeral tendo por referência o capitalismo, mas sempre produzindoe reproduzindo ideologias, utopias e nostalgias" (IANNI, 2000,p. 95). Por isso, podemos, como nos convida Ianni, fazer outraleitura da existência dos povos na história.

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A história dos povos e coletividades, das nações enacionalidades ou das culturas e civilizações pode ser lidacomo uma intrincada, contínua, reiterada e contraditóriahistória de um vasto processo de transculruração, de parcom a ocidentalização, a orientalização, a africanização e aindigenização. Um processo sempre permeado deidentidades e alteridades, tanto quanto de diversidades edesigualdades, mas compreendendo sempre o contato e ointercâmbio, a tensão e a luta, a acomodação e a mutilação,a reiteração e a transfiguração (IANNI, 2000, p.99-100).

,...,.,.Nessa perspectiva, cabe-nos examinar as possibilidades e

dificuldades da construção de outras probabilidades para aexistência humana na convivialidade (multiculturalidade) e seusimpactos específicos na formação do sujeito humano para assumirsuas diferentes singularidades (etnia, gênero, idade, profissão, sexo,ideologia, geografia e história) num diálogo mais agradável(inrerculruralidade), no qual todos possamos crescer humanamentee inserir-nos no conjunto da humanidade a partir do debate dadiversidade cultural, da inter/multiculruralidade como provávelituação, condição da pós-modernidade/mundo. Desde nossas

diferenças (identidades), é necessário perscrutar possibilidades deconvivência e crescimento conjunto para fazer face aos desafiosatuais, . tanto no interior de nossas nações como em suas inter-relações (rnultilintercul turalidade- mundo pós-moderna).

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3.1.2. As Exigências do Contexto Sociológico

Talvez se possa, como fazem alguns, identificar aconfiguração atual provocada pelas transculturações como umasituação de eclosão de "uma revolução cultural nuclear" a partirde três mudanças nodulares. Essas estão ocorrendo, para se colocar

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um marco, desde 1968, no mundo inteiro: "mudanças deatitudes diante da instituição pública, revisão da moralindividual, refação do estatuto da família" (COELHO, 2000,p. 30)36. Trata-se de

uma revolução múltipla em seus aspectos, ao contráriodas anteriores, e ao mesmo tempo indivisível em seusefeitos e objetivo final. (... ) .... é uma autêntica revoluçãoporque voltou atrás para recuperar a dimensão corporalda existência negada pelo cristianismo " e por suasversões materialistas. Mas suas contradições não sãomaiores que as das outras revoluções culturais que aprecederam. E, como não unitária, fundamentalista ouintegrista, tem condições de ir mais longe. Existiu umarevolução cultural em 'maio de 68' e a revolução se fez.Não se fez do mesmo modo por toda parte, fez-se maisnum lugar do que em outro, mais ali do que aqui. Masse fez (COELHO, 2000, p. 33).

Essa revolução, permeada de contradições e ambigüidades- mas, como afirma Coelho, nem maiores nem menores que ascontradições e ambigüidades das anteriores revoluções -, está adesencadear

mudanças nos conceitos de identidade e de sujeito ...aspectos de nossas identidades que surgem de nosso"pertencimento" a culturas étnicas, raciais, lingüísticas,

36 Não esquecer de confrontar essas reflexões de Coelho com as feitasanteriormente, P: 23-26: elementos contexrualizadores e exigências àsCiênccias Humanas/Sociais.

37 Trata-se de algumas versões do cristianismo. Não creio, porém, que se possaimputar à mensagem de Jesus Cristo o desprezo ao corpo que se desenvolveuem algumas culturas do Ocidente.

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\ religiosas e, acima de tudo, nacionais. '" as identidadesmodernas estão sendo "descentradas", isto é, deslocadasou fragmentadas .... complexidades que a noção dedescentração, em sua forma mais simplificada,desconsidera .... O próprio conceito com o qual estamoslidando, "identidade", é demasiadamente complexo,muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendidona ciência social contemporânea para ser definitivamenteposto à prova (HALL, 2000, p. 8).

Encontramo-nos no interior de situações muitocomplexas e plurais. De um lado;' aponta para a globalizaçãodo mundo; de outro, para a diversidade gerada pelatransculturação. Corremos, então, o risco de já nosencontrarmos face à fragmentação da humanidade, em vezde estarmos diante de uma multiculturalidade. ?or isso, nãotem sido fácil assumi-Ias do ponto de vista intelectual nempolítico, entretant~ão podemos deixar de fazê-Io. Essassituações se transfor~m em questões de sobrevivência, emqualquer parte da pós-modernidade/mundo, maisespecialmente em países como os da América Latina, África eÁsia. Neles, uma extrema concentração de renda se desenvolveem meio a um mar crescente de misérias, de exclusões ouinclusões' perversas no sistema mundo. Poder-se-ia formulara questão nos termos em que o faz Rodriguez-Ledesma parao caso do México. Não é fácil

assumir plenamente a pluralidade que conforma nossomundo, e no caso particular de nosso país, os diversoselementos identitários que convivem aqui e agora emuma sociedade marca da tanto pelo atraso econômicocomo pela ausência total até muito pouco tempo, dasmínimas condições para o exercício de uma vida política

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democrática; ambos elementos definitórios coexistemdentro de uma conformação social caracterizadahistoricamente pela existência de uma grande diversidadecultural (RODRÍGUEZ-LEDESMA, 1998, p. 111).

E como ainda insiste Rodríguez-Ledesma (1998, p. 112-

113):

A complexidade do problema significa, entre outrascoisas, um ponto cardeal: o reconhecimento e a aceitaçãoda existência de outro equiparável em valor e valores anós próprios. Mas este é tão somente um aspecto do tema.O outro, talvez o mais problemático, é o conformado naatual discussão sobre o pluralismo e a tolerância. (...).Isso significa que, ao reconhecer o outro, estaremosreconhecendo-nos a nós próprios. Conceber a existênciado outro é avançar na comprensão e admissão de nossaprópria historicidade. Se o outro existe e com ele certosvalores diante da vida, da morte, do amor, da educação,do progresso, enfim, frente a tudo que é concebido comosua existência, possibilita que nós próprios percebamosos limites históricos, geográficos, políticos, numa palavra,culturais do nosso próprio sistema de valores.

~ P/VO(1'Owr- l>-.r

.--J De fato, não é facil admitir que nosso próprio sistema devalores é relativo. Nossa formação nos convenceu de que nossosvalores são os valores. Se não fora os valores, buscaríamos outros.Guardadas todas as precauções, proporções e as especificidadesconjunturais, essa problemática se revela o terna para a nossaexistência pessoal, coletiva e acadêmica, especialmente, pararesponder às exigências que possam ser identificadas para osprocessos educativos na busca da formação humana do sujeitohumano (nosso projeto histórico).

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É uma problemática muito complexa "que, praticamente,contém tantas facetas como problemas de identidade ediversidade cultural na sociedade, tanto no nível mundial comono nacional, que, evidentemente, não é casual que se tenhaevidenciado nas últimas décadas" (RODRÍGUEZ-LEDESMA,1998, p. 112). Nas Ciências Humanas/Sociais, de modoparticular na Antropologia, na Sociologia e na Pedagogia, torna-se imprescindível assumir

e

a problemática constituída pelo tema da diversidadecultural, isto é, da ampla gama de possíveis círculosidentitários existentes dentro de uma sociedade, para quede forma racional, consciente e operativa assumam osdesafios que a aceitação da presença desse espectro imensode possibilidades representa para a vida social em geral, epara os processos educativos, em particular(RODRÍGUEZ-LEDESMA, 1998, p. 112).

É preciso, pois, examiná-Ia sob todos os ângulos e deuma maneira distinta. Para isso, é preciso adotar, como propõelanni (2000, p. 95), uma "outra perspectiva na análise dacultura": "cabe experimentar a perspectiva aberta pela idéia decontato, intercâmbio, permuta, aculturação, assimilação,hib r idação ", mestiçagem ou, mais propriamente,transcultutação". Essa perspectiva se aproxima da proposta deRodríguez-Ledesma (1998, p. 112), para quem "falar dedefinições culturais dos conceitos que, graças à hegemonia deuma particular concepção do mundo ocidental e moderna, sepretendem a-históricos, é começar a romper justamente essanoção de universalidade".

fÉ necessário realizar, portanto, sobre o termo cultura,

um processo de recognição que o apreenda em sua complexidade

38 Ver García-Canclini, 200 I.

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e em seus interstícios mais recônditos, percebendo suasdimensões pessoais, interpessoais, locais, regionais e universais.Esse é o desafio acadêmico. É importante captá-Ias em suasinter-relações dialéticas, escapando dos localismos asfixiantes euniversalismos estéreis.

Esse processo de recognição colocar-nos-á em outra rotaçãopara nos situar no contexto da pós-modernidade/mundo, pois

A valoração e a admissão da existência de diferentesculturas, de diferentes grupos da sociedade que nãocompartilham necessariamente nossa apreciação sobretudo o que nos define, é, apenas, iniciar a concepção ecompreensão dos temas que, desde duas décadas, estãopresentes com maior assiduidade na reflexão sociopolítica,pluralidade, tolerância, interculturalidade e, no quecorresponde a essas reflexões, ao mais geral da democracia'(RODRÍGUEZ-LEDESMA, 1998, p. 112).

A questão d{diversidade cultural eviden~ortanto, oproblema das (im)p.ossibilidades da convivência (inter/intra)grupal das diferenças etno-culturais, de gênero, de religiões, deerspectivas políticas, bem como da necessidade de urgentementeeduzir as desigualdades econômico-sociais e superação das

exclusões histórico-culturais. No limite, tratar-se-á da construçãode uma democracia ou processo de democratização (SOUZA,1999) cuja ex ressão seria uma sociedade inter/rnulticulturalcrítica s problemas serem enfrentados diuturnamenre,inclusive nos processos educativos, serão:

@\' Como as singularidades individuais e grupais vãoconviver, sem ser essa convivência uma mera justaposição(pluriculturalidade), mas a conformação de umacomunidade humana em sua singularidade convivendo

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G

pelo diálogo (interculturalidade) de tal maneira que todosganhem e possam se enriquecer material e culturalmente(rnulriculturalidade) ?

• I Então, como conceber e manejar o problema dasidentidades socioculrurais que, ao configurar assingularidades, geram as diferenças e, muitas vezes, asdesigualdades econômico-sociais e as exclusões histórico-culturais?

Identidade X Diversidade na Pós-modernidade/Mundo

Inicialmente, é importante salientar que não se está abuscar uma convivência sem conflitividade; mas entrar em umaluta pela reduçã;'-;o máximo, das d~ des e exclusõ~s(SÃfrrOS;T9 ,provoca oras de violências e antagonismosque estão se tornando insuportáveis. Portanto, temos que pensaruma ideiWêla~ cUlturãD seja de um indivíduo ou de umacoletividade, não importa o tamanho, como uma construção apajtit.da.ccnvizência com as diferenças singlllarizadQras e não

~equalizadoras de todas~uaisquer naturezas. Não se trata,na construção das identidades, de buscar

@

uma espécie de marca distintiva com a qual se nasce oucomo de uma roupa da qual não pudéssemos nos livrare que elimina a possibilidade de pertencer a outrosgrupos identitários. Evidentemente, isso não é assim,e, justamente, porque os indivíduos pertencem (oupodem fazê-lo) simultaneamente a diversos âmbitosidentitários, a definição do sentido da identidade devefazer-se em função de características analíticassociológicas e políticas específicas (RODRÍGUEZ-LEDESMA, 1998, p. 113).

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\

Trata-se, po~ da construção efetiva de um sujeito social-e individual capaz de administrar e organizar as diferentes,) dimensões da experiência coletiva e das singularidades que essa

vai configurando. Segundo Dubet (1989, p. 536),

A identidade social não é dada nem é unidimensional,mas resulta do trabalho de um sujeito que administra eorganiza as diversas dimensões de sua experiência social ede suas identificações. O sujeito social é aquele que reúneos diversos níveis da identidade de maneira que se produzauma imagem subjetivamente unificada de si mesmo.

Ao citar Dubet, entende Rodríguez-Ledesma que aidentidade sociocultural é r~sultante da elaboração de um suje~toindividual ou coletivo que maneja sua diversificada experiência~e múltiplas identificações. Por isso, conclui: "asidentidades se constroem, constiruem-se, a partir daparticipação de uma série de características definidassocialmente. Dessa forma, um único il}divíduo podecompartilhar diversas formas identitárias" (I~ODRIGUEZ-LEDESMA, 1998, p. 113).

Atualmente, todos nós e cada um de nós, individualmente,compartilhamos, no interior dos processos de mudança, diversasexperiências que nos levam a viverldife~ntes formas identitáriaslEssesprocessos de mudança - experimentados na pós-modernidadelmundo, tomados em conjunto - representam transformações tãofi.mdame.ntaise abrangentes q~e est~o a ~nrfigurar a própria pós-modernldade/mundo. ArlaentIdad~ Ino seu processo deconformação têm que manejar milhares de imagens, informaçõese situações. Entretanto, esses mesmos processos que rompem osantigos laços de pertença e enraizamento dão

lugar à busca de uma instância que integre os diversosaspectos da vida social em uma identidade coletiva. Essa

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busca já não se deixa expressar em termos de progressohistórico ou de interesse de classe nem se reconhece nodiscurso individualista-utilitário do mercado. Nutre-sede desejos e temores que nos remetem às necessidades desociabilidade e segurança, amparo e certeza, enfim, desentimentos compartilhados (LECHNER, 1992, p. 22).

Essa busca de uma instância integradora da vida social(identidades coletivas) - que se nutre de desejos e medos tecidospelas necessidades de sociabilidade e segurança, amparo ecertezas - nos leva à superação da perspectiva de análise herdadado Iluminismo. Essa perspectiva analítica busca compreendera identidade a partir de um núcleo ou essência do ser para

-1un.d . A • •• h-·- ~Erunnamenrar nossa existencra como sujeitos . umanos. ssaposição, por sua vez, se baseava numa concepção de pessoahumana como um indivíduo totalmente centrado, unificado,dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação. Esseindivíduo estava constituído por "centro" que conforma umnúcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeitonascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendoessencialmente o mesmo - contínuo ou "idêntico" a si mesmo- ao longo da sua existência. O centro essencial do eu era aidentidadede uma pessoa (HALL, 2000, p. 9-10).~

A essa noção filosófica de sujeito, a reflexão sociológicadesvela a crescente complexidade do mundo moderno e aconsciência de que este núcleo interior do sujeito não é autônomoe auto-suficiente.Jli formado na relação com outras pessoasimportantes para ele, que medeiam para o sujeito os valores,sentidos e símbolos - uma cultura - dos mundos que ele/ela habita.!

G. H. Mead, C. H. Cooleye os interacionistas simbólicossão, na sociologia, de acordo com Hall (2000, p. 11), as figuras-chaves que elaboraram esta concepção interativa da identidadee do eu. De acordo com essa visão, que se tornou a concepção

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socio~ quest~oridade é fo~~ ®inter:ação entre O eu e a sociedade. O sujeito ainda tem umnúcleo ou essência interior, que é o eu real, mas este é formadoe modificado num diálogo contínuo com os mundos culturaisexteriores e as identidades que esses mundos oferecem.

Essas duas concepções de identidade/sujeito, aindasegundo Hall (2000:12), estão sofrendo mudanças. O sujeito,previamente vivido como detentor de uma identidade unificadae estável, está se tornando fragmentado; composto não de umaúnica, mas de várias identidades, algumas vezes contraditóriasou não resolvidas. Esse processo produz o sujeito pós-moderno,conceituado como não tendo uma identidade fixa, essencialou permanente. Essas situações, constatações, figurações, levamRose (1998, p. 33) a afirmar que

1) 1C'\1":" cll""n-r' c.J\..~IG / ~d("Yd do-J

Essas novas formas de pensar e agir não dizem respeitoapenas às autoridades. Elas afetam cada um/a de nós,nossas crenças pessoais, desejos e aspirações: em outraspalavras, nossa ética. As novas linguagens empregadasna construção, compreensão e avaliação de nós mesmose dos outros têm transformado as formas pelas quaisinteragimos com nossos chefes, empregadores, colegasde trabalho, maridos, esposas, amantes, mães, pais, filhos/as e amigos/as. Nossos mundos mentais têm sidoreconstruídos: nossas formas de pensar e falar sobre nossossentimentos pessoais, nossas esperanças secretas, nossasambições e decepções. Nossas técnicas para administrarnossas emoções têm sido revolucionad~s. Nós nostornamos seres intensamente subjetivos.

Todos esses questionamentos/construções levam HaU(2000, p. 9) a constatar que estarnos a participar de um tipodiferente de mudança estrutural, consolidando, digo eu, uma

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sociedade pós-moderna/mundo. Essa mesma sociedade, aindaque predominantemente fragmentadora dos indivíduos e dosgrupos, pode apontar em outras direções. As

~

paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia,raça e nacionalidade, ... , no passado, nos tinhamfornecido sólidas localizações como indivíduos sociais.Estas transformações estão também mudando nossasidentidades pessoais, abalando a idéia que temos de nóspróprios como sujeitos integrados. Esta perda de sentido

-.de si estável é chamada, algllmas vezes, d~deslocamenl.oou descentração do sujei~1 (HALL, 2000, p. 9).

No interior dessa multidimensionalidade das transformações,corre-se um risco de banalização da questão das identidades,tornando-a um sLoganou um mero ornamento de discursos oficiais.Isso leva Rodríguez-Lesma (1998, p. 115) a afirmar:

Atualmente, de forma lamentável, o problema dasidentidades está correndo o risco de converter-se em um lugarcomum no interior da reflexão política em nosso país, isto é,em um dos conceitos de moda nos discursos dos funcionários,tal como aconteceu com os de "transição", "democracia" ou,em determinado momento, "solidaridade".

De ·outro lado, a riqueza cultural - que representa aexistência das identidades e as possíveis relações entre essasdiferentes identidades - pode nos levar, se criarmos espaços deinterlocução dos diferentes, a superar os perigos da fragmentaçãoe de disputas intermináveis e oposições destruidoras, ou deredução a uma celebração móvel das diferenças, pela atuaçãono sentido de construir a inter/mulriculturalidade crítica.

Se formos capazes de avançar nessa construção, aidentidade será formada e transformada continuamente emrelação às formas pelas quais somos representados ou

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interpelados nos sistemas culturais que construímos, nos quaisvivemos e poderemos existir humanamente. Estaremos a fazeruma importante construção de caráter histórico, e não biológicodas identidades individuais e sociais.

Em cada um de nós, há identificações contraditórias quenos empurram em diferentes direções, de tal modo que nossasidentidades estão sendo continuamente deslocadas. No entanto,não se foge da necessidade de uma narração que nos garanta osentimento de uma identidade uniflcada desde o nascimentoaté a morte. Ainda que essa não seja uma cômoda estória sobrenós mesmos, não pode deixar de ser uma confortadora narrativa

do eu.Os sistemas de significação (significados e sentidos) e

representação cultural se multiplicam: somos confrontados poruma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidadespossíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar -ao menos temp'orariamente -, mas psicologicamente nãopodemos deixar de experimentar uma certa identidade que seexpressa pela narrativa do eu.

Certamente, encontramo-nos diante das-mais amplasconseqüências da hipótese que Marx e Engels já haviamaventado em O manzfesto comunista. Segundo eles, amodernidade seria "o permanente revolucionar da produção,o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incertezae o movimento eternos". Essa revolução, não apenas econômicae política mas, sobretudo, uma revolução cultural nuclear,transforma "todas as relações fixas e congeladas, com seu cortejode vetustas representações e concepções", além de envelhecer" dto as as relações recém-formadas ... antes de poderem ossificar-se. Tudo que é sólido desmancha no ar".'

Por outro lado, essa situação leva à reivindicação do direitoà diferença (identidade) não apenas individual, mas grupal er colet~v~,como insiste Lechner, acima citado. Essa reivindicaçãoh direito à diferença passa a significar "o reconhecimento e o

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respeito de sua cultura, e o direito de seus membros a preservá-Ia, a fazê-Ia florescer e desenvolvê-Ia de maneira criativa, e aviver segundo os planos de vida que cada um eleja de acodocom essa cultura, sem deixar por isso de participar na vidanacional" (OLIVÉ, 1999, p. 15).11ssoimplica, ao mesmo tempo,

P a obrigação de reconhecer e respeitar o direito dos outros, namedida, inclusive, em que somos os Outros para eles e queremos,enquanto outros, ser reconhecidos e respeitados. Se eu tenhodireito, sou um eu, uma singularidade, o outro também é umeu, uma identidade, com os mesmos direitos que eu.

Diversidade x Direitos Humanos na Pós-modernidade/ mundo

~

No interior de todas as transformações, "existe umatendência crescente a universalizar de maneira efetiva osdireitos humanos, ao abrir-se a possibilidade de julgargenocidas e crimes contra a humanidade em países distintosdaqueles em que foram cometidos" (OLIVÉ, 1999, p. 15).Assim, a p6s-modernidade/mundo proporciona as condiçõesque podem permitir "a construção de uma sociedadeplanetária na qual participem as diversas culturas do mundo,em um processo no qual cada uma enriqueça a sociedadeglobal e ao mesmo tempo se beneficie do intercâmbio e daooperação com as outras" (Id: 16).

Essa multiculturalidade, entretanto, só será possível sedesenvolvermos a interculturalidade, ou seja, o diálogo entreculturas que possibilite a sua confrOntação e, portanto, oflorescimento e o desenvolvimento criativo das diferentesculturas em presença, inclusive das nacionalidades.

Não podemos deixar, no entanto, de perceber que essassão apenas possibilidades que necessitam da ação individual ecoletiva, nessa direção, para efetivar-se. Por outro lado, os riscosde não-concretização existem. Apesar de todas as ambigüidades

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e incertezas em que nos encontramos, tanto do ponto de vistaintelectual quanto do político, essas mesmas ambigüidades eincertezas não nos impedem de perceber que esse processo vaiconformando transformações culturais que podem, pelo seu

tvolume e densidade, bem como pela sua acumulação, começara configurar mudanças sociais significativas.

As transformações sociais que vão se dando pelas maisdiferentes ações com âmbitos e alcances muito diversificados,inclusive projetos de intervenção social de apoio aos setorespopulares, provocam o redirecionamento de processos sociaisque, no entanto, não têm os mesmos alcances nem atingem osmesmos âmbito..JTambém não se situam todos no sentido daConstrução do diálogo entre culturas (interculturalidade) nadireção da uma multiculturalidade como característica dasinstituições, comunidades e nações. Por isso, é possívelidentificar transformações de curta, média e longa duração,assim como de naturezas distintas (técnicas, culturais, éticas,estéticas, ideológicas) em muitas divergentes direções.

De qualquer maneira, essas transformações sociais seopõem à direção que muitos governos tentam imprimir à

tconstrução e desenvolvimento da sociedade em seus países"como um processo tendente a impor uma única cultura".Por isso, já estão em curso, no interior das nações e no âmbitointernacional, outras ações e outros projetos que indicam eajudam a reconhecer que a nação é pluricultural, "e que seudesenvolvimentO pode enriquecer-se com essa diversidadese se apoia o florescimento de todas as culturas que acompõem e se sentam bases sólidas para que todas cooperemno projeto comum de desenvolvimento nacional" (OLIVÉ,1999, 16-17).

O sonho é que "em um mundo multicultural, os direitosh --- -~ devem construir-se nainteração transcultural" (1d:17). E, assim, podem ser criadas as

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respeito de sua cultura, e o direito de seus membros a preservá-Ia, a fazê-Ia florescer e desenvolvê-Ia de maneira criativa, e aviver segundo os planos de vida que cada um eleja de acodocom essa cultura, sem deixar por isso de participar na vidanacional" (OLIVÉ, 1999, p. 15).11ssoimplica, ao mesmo tempo,a obrigação de reconhecer e respeitar o direito dos ourros, namedida, inclusive, em que somos os outros para eles e queremos,enquanto outros, ser reconhecidos e respeitados. Se eu tenhodireito, sou um eu, uma singularidade, o Outro também é umeu, uma identidade, com os mesmos direitos que eu.

Diversidade x Direitos Humanos na Pós-modernidade/ mundo

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No interior de todas as transformações, "existe umatendência crescente a universalizar de maneira efetiva osdireitos humanos, ao abrir-se a possibilidade de julgargenocidas e crimes contra a humanidade em países distintosdaqueles em que foram cometidos" (OLIVÉ, 1999, p. 15).Assim, a pós-modernidade/mundo proporciona as condiçõesque podem permitir "a construção de uma sociedadeplanetária na qual participem as diversas culturas do mundo,em um processo no qual cada uma enriqueça a sociedadeglobal e ao mesmo tempo se beneficie do intercâmbio e daooperação com as outras" (Id: 16).

Essa multiculturalidade, entretanto, só será possível sedesenvolvermos a interculturalidade, ou seja, o diálogo entreculturas que possibilite a sua confrontação e, portanto, oflorescimento e o desenvolvimento criativo das diferentesculturas em presença, inclusive das nacionalidades.

Não podemos deixar, no entanto, de perceber que essassão apenas possibilidades que necessitam da ação individual ecoletiva, nessa direção, para efetivar-se. Por outro lado, os riscosde não-concretização existem. Apesar de todas as ambigüidades

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e incertezas em que nos encontramos, tanto do ponto de vistaintelectual quanto do político, essas mesmas ambigüidades eincertezas não nos impedem de perceber que esse processo vaiconformando transformações culturais que podem, pelo seu

tvolume e densidade, bem como pela sua acumulação, começar\a configurar mudanças sociais significativas.

As transformações sociais que vão se dando pelas maisdiferentes ações com âmbitos e alcances muito diversificados,inclusive projetos de intervenção social de apoio aos setorespopulares, provocam o redirecionamento de processos sociaisque, no entanto, não têm os mesmos alcances nem atingem osmesmos ârnbitos.Í'Iambérn não se situam todos no sentido daconstrução do diálogo entre culturas (interculturalidade) nadireção da uma multiculturalidade como característica dasinstituições, comunidades e nações. Por isso, é possívelidentificar transformações de curta, média e longa duração,assim como de naturezas distintas (técnicas, culturais, éticas,estéticas, ideológicas) em muitas divergentes direções.

De qualquer maneira, essas transformações sociais seopõem à direção que muitos governos tentam imprimir à

tconstrução e desenvolvimento da sociedade em seus países"como um processo tendente a impor uma única cultura".Por isso, já estão em curso, no interior das nações e no âmbitointernacional, outras ações e outros projetos que indicam eajudam a reconhecer que a nação é pluricultural, "e que seudesenvolvimento pode enriquecer-se com essa diversidadese se apoia o f1orescimento de todas as culturas que acompõem e se sentam bases sólidas para que todas cooperemno projeto comum de desenvolvimento nacional" (OLIVÉ,1999, 16-17).

O sonho é que "em um mundo m~lticultural, os ilir~itoshumanos devem construir-se ~terarão transcultural" (Id:17)~ -x

. E, aSSIm,podem ser criadas as

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condições para superar conflitos específicos entre culturasconcretas ... reconhecer o direito das outras culturas apresevar-se, a florescer e evoluir, e devem admitir, aomesmo tempo, que isso é compatível com a participaçãode todas na construção e o desenvolvimento de sociedadesmais amplas, de autênticas sociedades multiculturais _nos âmbitos nacional e global (OLIVÉ, 1999, p. 18).

, Para a proposta da construção da inrer/rnulticulturalidadecrítica, tomo emprestada a hipótese de León Olivé (1999, p.18): "a possibilidade de um autêntico diálogo, a cooperação e asolidaridade entre as culturas, o respeito à identidade de cada

\'lj J uma e seu direito à sobrevivência e ao florescimento, esse modelomulticultural também defende o máximo respeito à autonomiae à dignidade dos indivíduos"

Essa hipótese se baseia na suposição epistemológica deque "a realidade 'se deixa' conhecer de muitas maneirasdiferentes. Mas não é qualquer coisa que pode passar porconhecimento". Por Outro lado, há uma fundamentação éticapara um "modelo pluralista" que se alicerça

na tese de que não há normas morais de vali dez absolutapara julgar como corretas ou incorretas as ações daspessoas, nem há critérios absolutos para avaliar as normase os sistemas normativos. De saída, isso não significa quequalquer ação possa justificar-se de um ponto de vistamoral. Em síntese, o modelo pluralista defende que háuma diversidade de pontos de vista, de formas legítimasde conhecer e interactuar com o mundo, e de conceber oque é moralmente correto. Mas disso não se conclui quetudo esteja permitido. Pelo contrário, veremos que, deacordo com esse pluralismo, a realidade impõeconstrangimentos muito fortes em relação ao que é

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correto crer e ao que é possível e correto fazer. Daí sesegue que, em certas circunstâncias, seja possível comparar,por exemplo, conhecimentos e propostas para a ação eque, em função de fins específicos sobre os quais se podeentrar em um acordo membros de diferentes culturas, sejarazoável sustentar que algumas dessas propostas sejampreferíveis a outras (OLIVÉ, 1999, p. 19).

Essa perspectiva ética implica um compromisso dosdiferentes grupos culturais que constituem um Estado, umanação, as nações, seus partidos políticos e o governo, assim comoas diferentes instituições econômicas e culturais com aconstrução de múltiplas configurações da humanidade do serhumano. Caso contrário, dificilmente se poderá avançar naconstrução da multiculturalidade. Revela-se també~fundamental a atuação das instituições, especificamente I'/'-~educativas (escolares e sociais), na medida em que contribuem Upara a construção de subjetividades capazes de suportar outrostipos de convivência com mentalidades 'ibertas e competentespara o diálogo com os diferentes.

Os indivíduos e os diferentes grupos sociais estão Idesafiados a desenvolver atitudes capazes de aceitar "a diferença, \(para que) sejam respeitosos das outras culturas e estejamdispostos a cooperar no desenvolvimento de uma sociedade

. multicultral e a admitir a possibilidade de fazer as mudançasnecessárias em sua própria cultura para a convivênciaharmoniosa com os outros" (OLIVÉ, 1999, p. 20). ...•...

Os problemas se configuram, pois, do ponto de vista dapesquisa, da teoria social e da ação coletiva, nas questões dasrelações entre as singularidades culturais (identidades grupais,diferenças culturais), numa cultura nacional e na pós-~odernidade/mundo; e nos problemas das relações entre asIndividualidades (identidades pessoais, diferenças individuais)

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'",

'na convivência grupal e societal. Enfim, configuram-se nosdesafios que apresentam uma situação de diversidade cultural,perrrieada pelos-problemas das relações de pod~oportunizar as condições do diálogo entre culturas semdominações (interculruralidade: possibilidades de diálogo entreas diferentes culturas ou traços culturais) e, portanto,probabilidades/potencialidades de uma multiculturalidade(convivência valorizadora das diferentes culturas, promovidas,respeitadas, responsáveis, em desenvolvimento, florescentes) napós-modernidade/mu

VEm uma pergunta, talve~ se pudesse formular o problemada seguinte maneira: a pluriculruralidade pode proporcionar ainterculruralidade e, a partir dessa, configurar sociedadesnacionais e uma sociedade internacional multiculrurais, nasquais os indivíduos e os grupos desenvolvam ao máximo suasidentidades e o prazer da convivência dos diferentes,enriquecendo a todos material e simbolicamente

ranscul ruralidade)?

3.2. Apresentando o Problema Pedagógico na Di-versidade Cultural

A pergunta que conclui o item anterior revela e releva aimportância e a complexidade de g.ue se reve~te o debatepedagógico e o posicionamento sobre os processos educarivos, •escolares ou não, na diversidade culrural caracterizador,Lda_pós,modernIdadelmLífléio"39. Torna-se imprescindível para todos ~ .tematização das possibilidades e da transcendência de umaeducação que não apenas leve em conta essa problemática, mas .

39 As reflexões que seguem reproduzem resultados da análise que realizei depesquisas do CIIE (Centro de Investigação e Intervenção Educativas), linhade pesquisa 11. 3, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação daUniversidade do Porto, Portugal (SOUZA, 2002, capítulo 4).

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a transforme em conteúdos básicos de aprendizagem paraefetivar suas probabilidades de construção do humanoindividual e coletivo. Está em causa, portanto, o problema daoonstrução de formas de convivência que garantam umaexistência agradável e alegre à humanidade pela criação dascondições da multiculturalidade através da ampliação daspotencialidades da interculturalidade como condições de umaconstrução humana do ser humano e de suas sociedades.

Diante desse possível cenário, os questionamenros que.. têm sido a resentados pelos debates das chances de umaeducação interllllulJicultur~ cmIC (STOER; CORTESÃO,1999) se revelam fundamentais; talvez mais: fundantes, porquerepõem o problema central da existência humana em outrasperspectivas históricas e culrurais.

Essas perspectivas implicam uma transformação radicaldas sociedades e das escolas, no sentido assumido na obra dePaulo Freire (1867, 1992, 1996), ou seja, as possibilidades daconstrução de uma sociedade substantivamente democrática,de uma escola como Centro de Culrura e de aulas~como CírculosCulturais. O Centro de Cultura e os Círculos Culturais podem~roporcionar condições da percepção e da ação humanas numa

ireção que maneje as singularidades ou identidades individuaise grupais; portanto, as diferenças não somente comodesigualdades, diversidades, fragmentações, mas à maneira deum coral de múltiplas vozes, polifônico, resultante de "processos~ivilizatórios que são, simultaneamente, co ex is te n tes ,JUstapostos, polarizados, adversos, interdependentes ec~mplices, conforme o jogo das forças sociais GU a pompa e ascIrcunstâncias" (IANNI, 2000, p. 90).

Trata-se, enfim, de relações de poder entre indivíduos,grupos, classes, etnias, gêneros, idades, em suas diferentesfigurações, configurações e transfigurações culturais, naeconomia, na política e nos saberes. Assim, problematizarn-se,

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na ~-ão-de P-flu!oJreire, as chances de uma e_~1iberdade para a-libensçãG-de rodos ew~mo possibilidadede crescjmento bljwano e não obstáculo à convivência humana.--..

A hipótese é a de que a Educação, inclusive a escolar,

pode contribuir com a construção da humanidade do ser

humano. Essa hipótese se desdobra em duas outras, que lhesão complementares e a concretizam, como apresentamos, naIntrodução deste livro, e a retomamos:

1. Os conhecimentos que educadores e educandos,

professores e alunos adquirem nos processos educativos(escolares ou não-escolares), podem ser úteis para ocrescimento humano de todas as mulheres e de todos oshomens. Por isso, a educação, inclusive a escolar, é umdirei to inalienável de todos os seres humanos.Crianças, adolescentes, jovens e adultos, homens e

mulheres, aprendemos com os conflitos sociocognitivosgerados entre os saberes que cada um já possui e asinformações que podem ser recebidas nos diferentesambientes sociais e educativos (escolares, não-escolares).

Apenas no confron to de saberes, que conformamprocessos de ressocialização (recognição e reinvenção),aprendemos, construímos novos saberes e adquirimoscondições de construir novas formas de convivência.

~~

@

Se nos colarmos nessas perspectivas e assim organizarmos.os Centros de Cultura e os Círculos Culturais, ampliam-se asprobabilidades de avançarmos na construção da in ter/

~ticulturalidade crítica. Os saberes assim produzidos "são

'J--Io ~ múltiplos e intrincados, ao mesmo tempo que surpreendentes~. e fascinantes os processos socioculturais que se desenvolvem

pelo mundo, tanto atravessando territórios, fronteiras, mares eoceanos como mesclando culturas e civilizações, ou modos de

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ser, agir, sentir, pensar e imaginar" (Ian ni, 2000, p. 93),

permitindo-nos perceber que esses processos socioculturais são

dinâmicos, mutáveis e desafiantes ao tempo que realizadores

do humano do ser humano.O debate pedagógico, nesse contexto, pode se orientar

no sentido de se perguntar sobre os manejos possíveis dosprocessos socioculturais no interior de processos educativos não-escolares ou de uma escola pública, a serem organizados comoum Centro Cultural nos quais se ampliem as possibilidades deseus sujeitos como seres humanos e profissionais de um mundo

diferente.O problema se caracteriza, avolurna-se e desafia-nos pela

presença - nos diferentes âmbitos educativos - de educandos que"foram socializados noutros valores, de acordo com outras regras,

tiveram outro tipo de vivência, têm outros conhecimentos epossuem outros interesses, outras inquietações, outras formas deestar na vida" (CORTESÃO, 2000, p. 19). Os espaços educativosocasionam a presença simultânea de identidades diferentes. Comogarantir sua convivência sem que cada um necessite superar suassingularidades? É importante garantir o cresci'fnento pessoal, dos

grupos culturais e das nacionalidades. Tornã-los florescentes emais ricos, material, espiritual e simbolicamente.

Parece não haver necessidade de superar as singularidades

pessoais, grupais e nacionais, mas de buscar ap;ofundá-~constituindo comunidades humanas polifônicas e multicoloridas(se as desejamos). Precisa-se perceber que, "a despeito das

,incursões nas relações políticas, econômicas, sociais e culturais

exteriores, predomina o empenho em esclarecer o que é, o quepode ser ou o que deverá ser o nacional" (IANNI, 2000, p. 94) eo pessoal. Poder-se-a, então, superar o caráter excludente quetem tido a construção das singularidades ou das identidades, na

conformação de comunidades nas quais se possa viver a plenitudedas diferenças em suas inter-relações expansivas.

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Evidencia-se que

o problema não é a identidade como uma realidade ouconvicção. O problema é que esse tema, muito presentena literatura e na sociologia, assim como em outrasproduções culturais, freqüentemente predomina sobreoutros temas, dilemas ou horizontes. Sendo assim, opredomínio do nacional em muito do que é reflexão oufabulação pode representar uma limitação; inclusive noque se refere à inteligência do que poderia ser o nacional(IANNI, 2000, p. 94).

A questão situa-se não apenas na identidade nacional,mas, também, similarmente, na pessoal e na comunitária. Comopodem o ser nacional, as identidades grupais e o ser pessoal,desde diferentes critérios, não re resentar um obstáculo à idéiade uma sociedade inter/ .cultural crític~( Como nãodesprezar a guestão nacional e a identificação das pessoas comuma nação? Trata-se de gerar uma outr~ direção para anacionalidade (sem naêionalísmos)que pode oferecer as

-condições do crescimento da ind~idUàlidade e da convivênciapara a construção do ser pessoal no concerto comunitário, daidentidade comunitária na nacional e da nacional no concertoda - u na pós-modernidade/rnundo.

6 A caracterização a pós-=mo erni a e/mundo como urmdiversidade cultural e o debate sobre as probabilidades de umasociedade mult~ultural pela constituição de relações intercultu~têm, pois, que equacionar a questão das inter-relações nacionaisnum mesmo Estado ou entre nações-Estados autônomos noconcerto mundial. Passa, então, a ser, juntamente como todos osoutros temas indicados até aqui, questões substantivas dosconseúdos de todos os processos educativos (escolares ou não).Como indica o mexicano Rodríguez Ledesma (1998, p. 113) "é

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aqui onde, justamente, o sentido da educação e o sistema,,..escolarizado deverão, uma vez mais, assumir o desafio da reflexãC\,-'e de colocar eQUJ.Jitiçª-as lógicas para que o discurso se convertaem..ação.práctica de incidência direta e geral", •

Ademais, como insiste Carlos Fuentes (1997, p. 125),outro mexicano, Prêmio Nobel de Literatura,

Uma dimensão essencial do magistério é ensinar a cadaaluno que ele não está sozinho. Que ele está no mundo.Que está com outros. O professor tem que ser agentecontra a discriminação e os preconceitos. Ao aluno, oprofessor afirma: "tu existes. Tu es único". Mas, ao mesmotempo, ensina-lhe a reconhecer a existência e a qualidade.do outro indíviduo. Inclusive, à criança, ao jovem, aoaluno: "reconhe-te a ti mesmo para que reconheças ateus companheiros, mas, também, com humanidade,aqueles que não são nem pensam como tu".

Esse posicionamento de Fuentes pode ser aproximadoda proposta do pesquisador espanhol Ortega-Rufz Ü998, p.70), da Universidad de Murcia. Ele analisa a questão do pOntode vista da educação em valores e, reconhecendo a diversidadecultural como um valor a ser promovido, indica que

o problema é como realizar essa difícil simbiose entredesenvolvimento tecnológico e identidade cultural; comointegrar ciência e tecnologia no mundo da vida, valores,tradição e cultura de cada povo ou comunidade. (...). Oacelerado progresso no bem-estar que experimenta asociedade moderna é impensável sem a aportação daciência e da tecnologia. Mas tampouco pode-sedesconhecer o desenvolvimento tecnológico da cultura,isto é, o desenvolvimento humano que necessariamenteo deve animar, porque, ao idolatrar-se uma técnica

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efémera, entra-se inevitavelmente num processo dedesintegração do homem como ser cultural.

Insiste Ortega-Rufz (1998, p. 71) que é

nas estruturas de acolhida que se torna viável isso quechamamos "ser humano", no fluxo de uma tradiçãoconcreta. (...). As diversas formas de pensamento, crenças,sentimentos, valorações constituem outras tantas formasde vida, como interpretações diversas de realização daexistência humana. Nem pensamento, nem a ação doshumanos jamais partem do zero. Pelo contrário,encontram na tradição, em SUA tradição no espaço parauma das modulações possíveis da natureza humana.

Se cada tradição representa um espaço para as modulaçõespossíveis da natureza humana, o risco é cada grupo social pensarque apenas a sua é a única verdadeira tradição humana. Esse éo problema dos valores: cada indivíduo e cada grupo humanopensam que seus valores são os valores. Então, quando se

~) ~onfrontam, os conflitos são inevitáveis, mesmo porque, al~r.::.dessas questões, também se apresentamos problemas de podere de hie.rarquias. Logo, parece que faz sentido o pressupos~;- deHenri Giroux, norte-arnerica oria crítica da educação,ao indicar ue a escol é uma arena de lutas esde que tambémse pense em espaços educativ - sepm apenas o escolar,mas também outros projetos e processos educativos. E,~

)caso, como ele propõe, a Pedagogia adquire a dimensão de umaforma política cultur~LjSegundo Giroux (1994, p. 95),

as escolas são formas sociais que ampliam as capacidadeshumanas, a fim de habilitar as pessoas a intervirem naformação de suas próprias subjetividades e a serem capazesde exercer poder com vistas a transformar as condições

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ideológicas e materiais de dominação em práticas quepromovam o fortalecimento do poder social e demonstremas possibilidades da democracia.

Essas disputas, presentes em quaisquer projetos eprocessos educativos, escolares ou não, acirram-se quandosujeitos populares neles se inserem, pois "a cultura popularrepresenta não só um contraditório terreno de luta, mastambém um importante espaço pedagógico onde sãolevantadas relevantes questões sobre os elementos queorganizam a base da subjetividade e da experiência do aluno"(Giroux, 1994, p. 96). Em relação a isso, ainda existem,contudo, muitos preconceitos acadêmicos e, sobretudo,disputa de espaços das outras formas culturais. Por isso, essespreconceitos terão que ser enfrentados e superados, numasíntese mais ampla e desafiadora. ,{oLv~t , (

I jl ,(

~

Trata-se, na verdade, da realização de confrontos entre asdiferentes culturas que conformam a diversidade cultural da pós- .!Jmodernidade/mundo, em nível local, regional, nacional einternacional. Especificamente no nível local, um espaçoprivilegiado para esse confronto é ~)nclusive a educaçãoescolar. Nessa, os processos de enslOo-aprendizagem devemestabelecer o confronto entre a cultura científica, a cultura demassa e a cultura popular, na busca de construir novos saberes,novas instituições e novas subjetividades, novas sociedades'".

Creio que a perspectiva em que me coloco pode ajudarna realização de quaisquer processos cducativos, inclusive osescolares, nomeadamente os não-escolares. A concepção deeducação como processos e experiências de 'ressocialização(recognição e reinvenção), orientados a aumentar e consolidarcapacidades individuais e coletivas dos sujeitos populares

'I

40 Ver essa questão desenvolvida mais amplamente em Souza (2002).

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mediante a recuperação e recriação de valores, a produção,apropriação e aplicação de conhecimentos que permitam odesenvolvimento de propostas mobilizadoras, se me apresentacom um alto potencial intelectual e prático.

A ressocialização dos sujeitos populares ou subalternizados(crianças, adolescentes, jovens e adultos) se dá a partir doconfronto das visões e das práticas pessoais e coletivas dessessujeitos com outras visões e práticas. Numa palavra: a partir deprocessos e experiências de recongição e reinvenção. Portanto,a ressocialização ocorre pela aquisição de uma nova compreensãoda realidade que vai sendo, individual e coletivamente,transformada e reconsrruída numa outra perspectiva,adquirindo figuração ou configuração e interpretação diferentes.Constitui-se, assim, em um processo de diálogo, de confronto,conflitivo ou não, quase sempre tenso, entre culturas ou entretraços culturais, no interior de uma mesma cultura. Na escola,esse confronto se dará entre o que genericamente se poderiadenominar cultura popular (saberes dos educandos e de seusgrupos de referência) e os saberes científicos, ou entre saberesinformais e saberes formais (CORREIA, 1999).

Tal perspectiva exige, segundo Correia, pesquisador doCIIE, outra concepção e outras formas de tratamento das"relações entre os saberes formais e os saberes informais" (1999,p. 129). Essa não é, porém, uma tarefa fácil a ser cumpridapelas instituições escolares e por seus educadores. O habitusdesenvolvido é o de que

como fiel depositária dos interesses do Estado, a Escolaevitou a invasão dos saberes não escolares e a incursão domundo da vida através de mecanismos de exclusão à suaentrada ideologicamente legitimados pelo interesse doEstado que, paradoxalmente, incluíam os interesses dospróprios excluídos (CORREIA, 1999, p. 130).

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Esse habitus de impedir a invasão da escola pelos saberesnão escolares há que ser quebrado. Se não o for, torna impossível

ualquer renovação e inovação das escolas de educação básica.q íd - d I-Tem, portanto, que ser construi a outra concepçao as re açoesentre saberes informais e formais na busca do estabelecimentode outro habitus. Isso exige outra concepção de conteúdosbásicos de aprendizagem. Os conteúdos básicos deaprendizagem passam a ser o confronto entre os saberespopulares ou informais e os eruditos, formais ou científicos nabusca da construção de um novo saber escolar. Os dois tipos·ou formas de saber passam a integrar os conteúdos educativos,e não apenas o saber formal ou erudito é conteúdo a sertrabalhado nos processos educativos escolares?'.

Diante dos temas, assuntos, problemas em estudo, temque se realizar o confronto entre os conhecimentos científicose os saberes populares ou do senso comum sobre esses temasem estudo a fim de se construir um novo saber sobre eles.Esse novo saber constituirá o conteúdo dos processoseducativos.

Por outro lado, parece que, caso se queira ~erconseqüente,nesse confronto dos conhecimentos (dos educadores, doseducandos e das ciências) face aos temas ou problemas emestudo, não se deve validar um ou outro dos saberes em presença.Ao contrário, deve-se buscar suas oposições, composições, naconstrução de compreensões e posicionamentos novos emrelação aos temas e problemas em estudo. Sobre eles, enquantocidadãos, todos poderão intervir. A busca é a construção deum novo conhecimento que supere as limitações dos doisconhecimentos (formais e informais) em confronto, e que onovo conhecimento consrruído seja útil à intervenção socialtransformadora da escola, da educação em outros âmbitos, quenão o escolar, e das próprias relações sociais.

41 Ver um aprofundamenro dessa questão no irem 5.1 desre livro.

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Correia (1999) propõe, para superar as possíveis posiçõesequivocadas, o paradigma da interpelação em oposição aosparadigmas da exterioridade e da continuidade no qual "as lógicasda exterioridade e da continuidade se subordinem às preocupaçõesrelacionadas com a gestão de uma conílictualidade que não anule,mas seja interpelante das diferenças" (p. 133). Para ele,

o diálogo entre os saberes formais e informais não podepreocupar-se apenas com a eficácia cognitiva da acção daescola, nem pode ser apenas limitado a uma relaçãodialogante entre Escola e Família que melhore o clima deaprendizagem mantendo intactos os fundamentos docurrículo escolar. O paradigma da interpelação subentendepor um lado que se reabilitem as potencialidades formativasdo conflito cognitivo e por outro lado que se reconheçaque a comunidade está sempre presente através dos alunos,razão pela qual as relações que se estabelecem com acomunidade derivam prioritariamente das relaçõespedagógicas e sociais que ela estabelece com os alunos.Essa perspectiva implica que a escola se pense como umacidade a construir, ou seja, que se pense não só como espaçode formação de cidadão, mas principalmente como umespaço de exercício de uma cidadania que não se limite àaprendizagem da disciplina e das regras, mas que instituauma cultura dos direitos e da participação democrática(CORREIA, 1999, p. 133-134).

Defende, além da potencialidade formativa do conflitocognitivo e da mudança dos fundamentos do currículo escolar,como maneira de concretizar essa alternativa, a adoção de "umpensamento reticular" que seja capaz de atribuir "uma atençãoacrescida à gramática das formas de vida e à erupção dasheterogeneidades e insira analiticamente a escola numa rede de

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relações que a transcendem e que ela deve procurar qualificar,contribuindo para sua diversificação, densificação e oenriquecimento" (CORREIA; 1999, p. 134).

Esses processos e experiências de ressocialização podemacontecer em diferentes práticas pedagógicas. Não é apenas naeducação escolar que elas podem se realizar. Elas podem ocorrera partir das religiões, da política e têm encontrado um espaçoprivilegiado nos diversos movimentos sociais populares(SOUZA, 1999). Além disso, é possível também se darem naescola, desde que esta se oriente por um processo de reinvençãode si mesma pela percepção de suas contradições, ambigüidadese possibilidades. Creio que a tematização da diversidade cultural,das possibilidades da interculturalidade e das probabilidadesda multiculturalidade será um bom conteúdo para essareinvenção e recognição da instituição escolar, bem como deoutras agências educativas.

Nesse sentido, é pertinente examinar o debate sobre asprobabilidades da multiculturalidade e as possibilidades dainterculturalidade a partir da diversidade cultural, c~·nfrontando-o com o pensamento de Paulo Freire e identificando suacontribuição a esse debate, na perspectiva da ressocialização comoversão de uma teoria da educação tendo em vista a construção daescolaadequada às camadas da classe trabalhadora (SOUZA, 2000).

A suposição teórica da reflexão e da investigação empíricapara uma Sociologia da Educação (Escolar e Não-Escolar), suahipÓtese substantiva, é que a diversidade cultural podeEossibilitar o diálogo intercultural na construção de I2.I-.Q~s~ucativos, inclusive esc;Gres, que garantam o êÚro acadêmi

~rie as CQndiçõe~ do sl:lce~~o social às camadas da ~trab-ª.fuadora. Tal desbobramento contribuirá para a efetivaçãoda pós-modernidade/mundo como uma sociedade inter/multicultural; numa palavra: em processo contínuo dedemocratização, transcultural.

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3.2.1. Pistas para uma Sociologia da Educação,implicada pedagogicamente, na Diversidade Cultural

Educar e educar-se, na prática da liberdade, não é estenderalgo desde a "sede do saber", até a "sede da ignorância"para "salvar", com este saber, os que habitam nesta. Aocontrário, educar e educar-se, na prática da liberdade, étarefa daqueles que sabem que pouco sabem - por istosabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais- em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensamque nada sabem, para que estes, transformando seu pensarque nada sabem em saber que pouco sabem, possamigualmente saber mais (Freire, 1975, p. 25)42.

Quaisquer que sejam, as realidades sociais estão sempreconformadas, constituídas, configuradas por diversidades,exclusões e desigualdades (políticas, econômicas, culturais, étnicas,lingüísticas, religiosas, de gênero, entre outras) que se expressamde maneira emblemática, em proporções maiores e intensas, nasmegalópoles mundiais. Suas influências se estendem, entretanto.sobre todas as outras situações socioculturais, condicionando-as.Até mesmo sobre comunidades muito isoladas.

Essas formas de sociabilidade e suas inrer-relações, talvez,possam ser percebidas mais adequadamente a partir dos debatessobre a transculruração, sobre as fragilidades e potencial idadesda pluri/rnulti/inrer-culturalidade. Esses debates, como indicalanni (2000, p. 134), podem permitir" taquigrafar característicase tendências das formas de sociabilidade, do jogo das relações

42 Obra publicada, em 1969, pelo Instituto de Capaciración e Invesrigación enReforma Agrária, sob o título iExtensión o Comunicación?, resultante dasreflexões de Freire, sobre o trabalho realizado nos Assentamentos de ReformaAgrária do Chile no Governo Eduardo Frey, especialmente com e poragrônomos.

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ciais,das modalidades de produzir e reproduzir signos, símbolossOsi nificados, por meio dos quais os indivíduos e coletividadese g ."se expressam e se constituem .

Nesses debates não se pode, no entanto, esquecer asuestões nacionais, mas um ser nacional no concerto das nações.

Áfinal, a pós_modernidade/mundo se constitui de nacionalidadese não há sinais que indiquem que elas tendam a desaparecer, e,talvez,não seja desejável que desapareçam. Há, ao contrário, fortesindícios de recrudescimentos de nacionalismos e fragmentaçõesde classe, gênero, religiões, de indivíduos e gtupOS sociais. Asuperação desses nacionalismos e fragmentações é desejável. Nãodas nacionalidades nem das singularidades forjadas a partir dediversos recortes. É necessário, no entanto, reconhecer assituações de fragmentação e nacionalismos para identificar suaspossibilidades de superação. Como reconhecem pesquisadores

do CIlE,

toda esta variedade de indivíduos, que integra a actualsociedade, tem vindo a cruzar-se.:ainda entre si,originando situações múltiplas de identidade que se vãofirmando e que, afinal, contrariam a anunciadahomogeneização que, aparentemente, se poderia esperarir dominar completamente, decorrente das situações deglobalização (CORTESÃO, 2000, p:18).

6Essa caracterização da pós-modernidade/mundo comodiversidade cultural, identificada pelas situações múltiplas deidentidades em presença, com seus riscos de fragmentação,nacionalismos e fundamentalismos rornândo-se objeto dodebate sobre as probabilidades de uma multiculturalidade pelaconstituição de relações interculturais. não apenas coloca váriosproblemas para os processos educativos (escolares ou não) mastambém revela potencialidades como já indicado anteriormente.

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Esses problemas podem provocar uma reflexão crltlcapormenorizada, permanente, consistente e rigorosa sobre ascausas e não apenas sobre os sintomas dos riscos da fl-agmentaçãomas também sobre as responsabilidades e as significações(significados e sentidos) da educação e dos educadores, bemcomo das instituições educativas, escolares ou não, na atuaçãopara superar os perigos dos divisionismos, construindo algunsobjetivos comuns aos diferentes grupos culturais que compõemas nacionalidades e a pós-modernidade/mundo.

No âmbito do Cllf', as análises sobre a educação escolarna diversidade cultural, segundo Stoer (2001, p. 246), partemde uma constatação, diante do contexto acima referido, que é

a explosão recente de reflexões e textos sobre o inter emulticulturalismo, a forte presença nas sociedadesocidentais da questão (e manifestações) da diferença _ daproblemática de género, de questões étnicas -, a procuratremenda de informação e acesso à formação na área domulticulturalismo e educação intercultural, oaparecimento subitâneo de organizações oficiais e nãogovernamentais promovendo e preocupando-se com ainter e multiculturalidade testemunham, neste fim dosétulo XX, a emergência de uma dinâmica social cujasilações precisam de ser e/ucidadas, investigadas ecom preendidas.

Nessa mesma linha, mas especificando os cenanoseducacionais escolares, Carlinda Leite, também pesquisadorado CrrE, esclarece que essas preocupações, investigações eintervenções têm lugar, particularmente, no bojo da Reformado Sistema Educativo Português, no final dos anos 1980, cujoespírito favorece

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a emergência de um discurso de educação face àmulticulturalidade, questão até aí pouco (re)conhecida. Noentanto, este discurso nem sempre foi acompanhado pelaacção prática e pelo exercício, por parte dos professores, deprocessos que se enquadrem numa lógica decoexistencialism043 e de educação intercultural. De facto, nosprincípios dos anos 90, as iniciativas de intervenção nestaespecificidade educativa correspondiam a pequenosgrupos de académicos e investigadores ou a grupos sociaisque nos seus quotidianos conviviam com a necessidadede agir face às situações de exclusão a que eram votadosmembros das chamadas minorias presentes na sociedadeportuguesa (principalmente africanos das ex-colóriiasportuguesas e populações de etnia cigana) (LEITE, 2000,p.138-139).

Tais preocupações e debates, no CIlE, se concretizam apartir de um projeto de pesquisa e intervenção, coordenadopela Prof- Luiza Cortesão, o PIC (Projecto de Educação Inter/Multicultural), desenvolvido de 1989 a 1992, envolvendo "trêsescolas do 10 ciclo do ensino básico 44 freq uen tadas po r umsignificativo número de crianças ciganas ou de origem africana,provenientes das antigas colónias portuguesas" (LEITE, 2000,

43 Refere-se a um dos três posicionarnentos possíveis das escolas na organizaçãodo currículo idenrificados por Forquin (1989, p. 152-160) face à diversidadecultural: isolacionismo, universalismo e coexisrcncialismo.

44 Corresponde aos anos iniciais (10 ao 40) do Ensino Fundamental na estruturaescolar brasileira a partir da Lei 9394/96. A estrutura' da Educação Escolarportuguesa de acordo a Lei de Bases do Sistema Educativo é: Ensino Básicode 9 anos, conformado em três ciclos; Ensino Secundá tio e Ensino Superior.No Brasil, a estrutura é Educação Básica e Educação Superior. A educaçãobásica está constituída pela Educação Infantil (O a 6 anos), EnsinoFundamental (8 anos, a partir dos 7 anos de idade) e o Ensino Médio (3anos). Daí, acesso à Educação Superior.

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p. 141, nota 3; STOER; CORTESÃO, 1999, p. 37-38). Esseprojeto teve continuidade no PEDIC (Projecro Educação eDiversidade Cultural: para uma sinergia de efeitos deinvestigação), sob a coordenação de Stephen Stcer, de 1992 a1995, "que, pretendendo obter uma sinergia de efeitos,acrescentou ao grupo de escolas com quem se trabalhava umaoutra, C+S, do meio rural" (LEITE, 2000, p. 141)45. OPEDIC, iniciado em janeiro de 1992, incorporara também,além do PIC, o Projeto "Aprendizagem para o Trabalho:Educação e Democracia num País da (Semi)periferiaEuropeia" (1987-1991) (STOER; ARAÚJO, 2000). Para ospesquisadores desses dois projetos, a sua junção

permi riria trabalhar a diversidade cultural na escolaportuguesa, cruzando algumas das diferentes culturas nelapresentes, a fim de produzir um efeito sinergético. Narealidade, pensava-se que essa reunião iria possibilitar aarticulação de duas equipas de pesquisa, já constituídasanteriormente, bem como a associação de trabalhosrealizados em qualquer uma delas. Para além disso, iriaintroduzir as dimensões rural/urbano e o trabalho comdiferentes níveis de ensino às dimensões de diversidadecultural já em análise em qualquer um dos projectosinciais (CIIE, 1995:9).

Os projetos que deram origem ao PEDIC

anteciparam as preocupações com a diversidade que maisrecentemente foram emergindo, em diferentes situações,no sistema educativo português. Na verdade, desde 1989estes projectos começaram a trabalhar problemas de relaçãocultura/culturas a nível da educação. Terminados estes

45 Cf CIIE, 1995; STOER; ARAÚJO, 2000; STOER; CORTESÃO, 1999.

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projectos em que a pesquisa/formação e a intervençãocoexistiam e se inter-estirnulavam, seguiu-se um períodoem que se sentiu a necessidade de aprofundar ainda mais ealongar a reflexão teórica sobre toda a experiência, todosos dados e todos os questionamentos que se tinhamrecolhido e, em que, simultaneamente, começou a emergira consciência da importância de rentabilizar a reflexão feitaaté então. Para além de trabalhos vários produzidos(artigos e livros), um dos efeitos dessa rentabilizaçãomaterializou-se na proposta e desenvolvimento de um

tmestrado _em Educação e Diversidade Cultural(CORTESAO, 1998, p. 65).

Essas intervenções pedagógicas e investigativas, as análisesque proporcionam e os conteúdos dos Programas de Pós-Graduação estão buscando

a compreensão necessária para produzir práticas capazesde reduzir os constrangimentos, designadamente sócio-económicos, actuando sobre estes grupos passa pelacompreensão, não só de sua relação direta com a produçãomaterial e o mundo de trabalho, mas passa também pela

. .maneira como estes grupos vivem e constroem as suasvidas, isto é, com os seus processos de reprodução cultural(STOER; CORTESÃO, 1999, p. 38).

Nessa p~tiva, definem como objetivo das atividadesda Linha 3 d~ intervenção no sentido de produzir práticaspedagógicas transformadoras que levem em conta tanto osaspectos estruturais da realidade como suas dimensões simbólicas,compreendendo, portanto, os processos de produção ereprodução culturais. Mas, por outro lado, não querem ospesquisadores ver seus projetos ou propostas confundidos com o

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que identificam, em suas análises, como práticas das/nas/comquestões culturais na educação que apenas visam amenizar assituações. Essas práticas amenizadoras implicam, segundo ospesquisadores do CrrE, um multiculturalisrno que denominamde benigno. Afirmam que seu desejo é se demarcarem

do que parece ser uma tentativa de valorizar as diferençasna escola para melhor justificar (e legitimar) a selecçãolevada a cabo pela escola nestes novos tempos de produçãoe consumo diversificados. Na nossa perspectiva isso seriaigual ao 'reforço' da escola e, assim, uma subversão doideal rnulticultural. Valorizar as diferenças na escola podequerer dizer aumentar o valor dos recursos culturais (detodos os grupos sociais, mas especialmente daquelessubalrernizados), sem subestimar a importância daquiloque nos liga uns aos outros (e que se pode exprimir atravésde concretização do princípio de igualdade deoportunidades de acesso e sucesso e a consolidação dosdireitos sociais e humanos (STOER, 1993, p. 51).

Nessa perspectiva e com essas utopias (ideal multicultural,aumentar o valor dos recursos culturais, sobretudo, dos grupossociais subalrernizados, concretização do princípio de igualdadede oportunidades de acesso e de sucesso, consolidação dosdireitos sociais e humanos), os objetivos do PEDIC sãoformulados nos seguintes termos:

conhecer características, valores, hábitos, ritmos eexpectativas dos grupos sócio-culturais existentes naescola; promover, através de uma metodologia deinvestigação-acção, a preparação de professores paradiferenciar as suas ofertas de ensino-aprendizagem;encarar, numa perspectiva não emocêntrica, os costumes,

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valores, ritmos e expectativas de crianças com origensculturais diferentes; construir, na base da investigação,um currículo, ao nível da formação de professores doensino básico, para uma educação inter/rnulticulrural(CIIE, 1995, p. 11).

A direção das pesquisas e das intervenções está, portanto,demarcada pela indicação de que se tem ~ compreender acultura, tanto na esfera produtiva.como reprodutiva e, portanto,"7ambém na forma como outros farares interferem na SIIa~S'fOER; CORTESÃO, J999, p. 38-39). Isso deveocorrer a fim de aumentar o valor dos recursos culturais derodos os grupos sociais, mas especialmente dos setoressubalternizadOs, garantindo a igualdade de oportunidades deacesso e de sucesso escolares que os equipem para êxitos sociais.Enfim, a garantia da efetivação dos direitos humanos e sociais.Numa palavra, a cu tura como pratica social. Deseja-se uma"escolaonde crianças e Jovens e 1 erentes grupos' minoritários'adquiram saberes e instrumentos que os ajudem a viver e intervirnuma sociedade" (hegemonicamente dominante), sem que issoseja conseguido através da destruição da auto-imagem e dacultura do seu grupo de pertença" (CIIE, 1995, p. 13).

Armados com esses desejos, os investigadores/intervencionistas do CIIE fazem uma crítica a propostas deeducação, no interior da diversidade cultural, sobretudo nospaíses centrais, que denominam, na esteira de Bullivant(981)47, de pluralismo cul tural benigno (STOER;CORTESÃO, 1999, p. 24, 26, 115), mas também reagem auma crítica neomarxista que continua dando ênfase apenas àrelação estrutural entre um currículo escolar diferenciado e ummercado de trabalho segmentado (Id., 39).

46 '" que possui um setor. ..

47 "multiculturalismo benigno": "doce e simpática interpretação das diferenças"(STOER; CORTESÃO, 1999, p. 115).

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Em relação ao pluralismo cultural benigno dentro daescola, Stoer (2001, p. 258) afirma que "se revela como i)ingénuo face aos estatutos sociais desiguais dos diferentes gruposculturais, e ii) desarmado perante um Estado que, apesar deboas intenções, continua a promover uma política educativaque justifica uma cidadania política pela negação dosparticularismos e das especificidades culturais".

Para esses pesquisadores, apenas "uma permanenteanálise crítica permitirá ir mais longe tentando trabalhar anível das causas e não dos sintomas dos problemasdecorrentes da diversidade no processo educativo" (STOER;CORTESÃO, 1999, p. 26). Infelizmente, não é nessaperspectiva que se colocam muitas das propostas que desejamtrabalhar a questão das implicações da diversidade culturalnos processos educativos.

Muitos projetos e, sobretudo, suas práticas procedem de"forma redutora" face aos problemas que "frequentemente ...se fazem sentir a nível da educação, particularmente do querespeita ao papel e significados da actuação da escola e doprofessor" (STOER; CORTESÃO, 1999, p. 13). Identificamos problemas que a diversidade cultural apresenta à escola que,no seu cotidiano, não considera nem valoriza as diferentesculturas presentes nos processos de ensino-aprendizagem. A não-consideração nem a valorização das diferenças culturais é,supõem, uma das causas da maciça incidência do insucessoescolar que acontece com crianças culturalmente mais distantesda norma prestigiada na escola":

Um dos instrumentos que os pesquisadores do CrrEapontam como podendo contribuir para superar essa situaçãoé a "investigação-acção" na construção de uma práticapedagógica que possibilite oportunidades de sucesso a esses

48 Essa é uma das suposições que apresento no Projeto de Pesquisa da LicençaSabática que deu origem ao livro Atualidade de Paulo Freire (SOUZA, 2002).

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alunos49, bem como a construção de dispositivos dediferenciação pedagógica" que permitam tratar as situaçõesculturais em suas singularidades e inter-relacioná-Ias,potenciando a capacidade de aprendizagem dos alunos ealunas.

No entanto, a superação da situação de interculturalidadeinvertida, de multiculturismo benigno, pluralismo culturalbenigno implica uma compreensão, interpretação, explicaçãodessasituação e, especialmente, uma intervenção. Nesse esforço,em sua análise das questões da diversidade cultural da sociedadehodierna, especificamente a portuguesa, e suas implicações parao processo educativo, recorrem os pesquisadores do CIIE àsnoções de desigualdades econômico-sociais (MARX) e exclusõesculturais (FOUCAULT), em suas interdependências, propostaspor Santos (1995), para compreender a situação da pós-modernidade/mundo. A inter-relaçâo dessas noções vai serconstruída através do que Santos denomina de reflexãohermenêutica diatópica, como uma ferramenta analítica,caracterizada pela:

capacidade de identificar e se indignar com as injustiças;- competência para a convivência e aceitação crítica das

diferenças;compreensão de nossa própria incornplerude (STOER;CORTESÃO, 1999, p. 25-26).

Para Santos, segundo os investigadores do CIIE (STOER;CORTESÃO, 1999, p. 114), a hermenêutica diatópica é umprocesso para abordar a incomensurabilidade das culturas.Santos a fundamenta

49 Stoer; COrtesão, 1999, p. 32-36; Ciie, 1995: 11; Cortesão, 1998; Stoer; Araújo,2000.

50 Stoer; Cortesão, 1999, p. 53, 60, 77, 81; Cortesão, 2000, p. 63-80.

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na idéia de que os topoi de uma dada cultura, por maisfortes que sejam, são tão incompletos quanto a própriacultura a que pertencem. Tal incompletude não é visíveldo interior dessa cultura, uma vez que a aspiração àtotalidade induz a que se tome a parte pelo todo. Oobjectivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingira cornplerude - um objecrivo inatingível - mas, pelocontrário, ampliar ao máximo a consciência daincornpletude mútua através de um diálogo que sedesenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura eoutro noutra. Nisto reside o seu carácter diatópico(SANTOS, 1997, p. 23).

Diante da incomensurabilidade das culturas, doinacabarnento de todas as culturas, da nossa própria inconclusãocomo concluem os pesquisadores do CIIE, e de posse de uminstrumento que permita sua abordagem, apelam ospesquisadores do CIIE para o reconhecimento da naturezatransgressiva e globalizante da problemática inter/rnulticuluralque faz com que essa questão interfira em/com toda a práticasocial na qual se inclui a educativa. Segundo eles, há que se daratenção à riqueza das formas culturais que medeiam a relaçãoentre estrutura (classe social) e subjetividades (STOER;CORTESÃO, 1999, p.40). "Assim, em vez de se deixar adiversidade escapar entre os dedos, em vez de tratar a diversidadecomo um símbolo de fraqueza e tomar uma atitude arroganteem relação à tal diversidade que é ofensiva, dever-se-iaconfrontar a incomensurabilidade de culturas e combater a docee simpática interpretação da diferença" (STOER; CORTESÃO,1999, p. 114).

Trata-se de aproveitar ao máximo a riqueza das formasculturais que medeiam a relação entre estrutura (classe social) esubjetividade, identificar a importância das lutas e das práticas

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étnicas e de gênero, além de perceber a diversidade no interior dosróprios grupOSétnicos e as dinâmicas inter-relacionadas de gênero

~ classesocial para potencializar suas possibilidades educativas.propõem ainda os pesquisadores do CrIE, para isso, uma

abordagem não-sincrônica, baseados em McCarthy (1988),que toma como ponto de partida o que se pode definir comouma política da diferença a fim de que se consigaoperacionalizar as relações entre raça, ecnia, classe e gênerono nível do cotidiano, que concebe essas mesmas relaçõescomo sistematicamente contraditórias. Destina-se essaabordagem a possibilitar a compreensão da complexidade doque se passa no terreno das escolas e das comunidadesenvolventes. Essa abordagem tem as seguintes características(STOER E CORTESÃO, 1999, p. 41-42):

_ a promoção do 'ruído' (complexidade) damultidimensionalidade, que garante a reintrodução davariabilidade histórica e da subjetividade, ambas ausentesdas abordagens multicultural e neornarxisra;

- o reconhecimento da importância, na escola, das lógicase efeitos autónornos das dinámicas de etnia e de género ea sua interacção necessária com classe social;

- a adoção de uma postura crítica face à tendência dosteóricos da educação inrer/rnulticultural e da correnteneomarxista de dividir a sociedade em domíniosseparados de estrutura e cultura (esta tendência promoveexplicações monocausais);a defesa de uma concepção do conceito de raça (e etnia)'não como uma categoria ou uma coisa' em si própria'(Thompson, 1996), mas, antes, como"'um processosocial vital integralmente ligado a ou tros processos edinâmicas sociais da educação e da sociedade"(McCARTHY, 1988, p. 272).

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Em poucas palavras, poder-se-ia dizer que a abordagemnão-sincrônica -relacionando classe social, estrutura ,subjetividades, história e cultura - tenta perceber as diferentesracionalidades, presentes na escola e nas comunidades dereferência, para criar as condições de sua comunicação,identificar as diferenças e o direito à diferença. Apostam ospesquisadores do CIIE, por certo, na complementariedade entreuma abordagem não-sincrôriica de McCarthy e a reflexãoherrnenêutica diatópica de Santos. Essas funcionarão, então,como um procedimento metodológico.

O enfoque não-sincrônico, a reflexão hermenêuricadiatópica, a política da diferença, a investigação-ação, capazesde garantir a multidimensionalidade e o interrelacionarnentoentre estrutura e cultura, serão assegurados, propõem ospesquisadores do CIIE, na prática pedagógica, por meio doscampos da recontextualização dos textos do sistema educativoproposta por Bernstein (1990). Esses campos podem sercaracterizados da seguinte maneira:

a recon textualização do campo oficial do discursoeducativo que determina "o quê" dos processospedagógicos pelas instâncias centrais do Estadoencarregadas da elaboração e irnplementação de políticaseducacionais;a recontextualização dos textos educativos provenientesdo campo especificamente pedagógico que tentamdeterminar "o como" dos processos educativosconfigurado pelas publicações e mídia da educação, pelasfaculdades e departamentos de educação dasuniversidades e dos politécnicas e pelas instituições efundações de pesquisa e divulgação educacionais (STOERE CORTESÃO, 1999, p. 43-44,78-79,83; Leite, 2000).

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Argumentam, para isso, com a idéia de autonomia relativa

do discurso pedagógico, também. pr~posta "" ~ernstein ema compreensão da recontextuallzaçao pedagógica dos textos

sdu sistema educativo. Segundo Bernstein, citado peloso -

pesquisadores do CIIE (STOERE CORTESAO, 1999, p. 79),

podemos definir a autonomia relativa do discursopedagógico na medida em que aos campos darecontextualização pedagógica não só Ihes é permitidoter existência, mas também afectar a prática pedagógicaoficial. (...). Onde existem campos da recontextualizaçãopedagógica que são efecuvos e gozam de uma autonomiarelativa, então torna-se possível para os activistas nestecampo recontextualizar textos que por si próprios podemconsiderar-se ilegítimas, opostos, proporcionadores deespaços contra-hegemónicos da produção de discursos(BERNSTEIN, 1990, p. 198,202).

É possível encontrar ou inventar, na prática pedagógica,espaços capazes de ressignificar os discursos ofi€iais da políticaeducativa de tal maneira que permitam processos educativos emoutras direcionalidades que não as que se quer impor a partir dosdiscursos pedagógicos oficiais. O mesmo processo é possível comos textos dos discursos, especificamente pedagógicos. Evidencia-se, então, uma exigência ou possibilidade para a prática pedagógicadenominada de progressista. A recontextualização pedagógicaindica que os discursos, os textos, para cumprirem sua funçãoeducativa, têm que assumir suas dimensões formativas a partir dascondições e situações dos educandos. E exige uma competênciados educadores a ser desenvolvida tanto na formàção inicial quantoContínua para garantir a tarefa da recontextualização.

. No dia-a-dia da prática pedagógica, como afirmaCarlmda Leite (2000a, p. 12), "recontextualizar as mensagensescolar " . ·c " I hes signmca va orizar o con ecimento e os processos

111

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100....-

de comunicação entre as culturas presentes no espaço escolar".Para os pesquisadores do CIIE, isso seria superar o daltonismocultural da escola e dos professores pela aquisição de umaracionalidade transcul tural.

Insistem na importância de perceber que o daltonismocultural, além de ser um obstáculo à "percepção da diversidade,é essencialmente adquirido através de uma socialização muitofrequentemente etnocêntrica e uniformizante". Não tem,portanto, nada a ver, a não ser analogicamente, com o daltonismoorgânico que, além de ser hereditário, pode afetar a visão. Asuperação do daltonismo cultural dar-se-a pelo desenvolvimentoda racionalidade transcultural que "é crucial para o processo detradução das culturas e, portanto, para o aproveitamento dadiferença dentro da escola e, mais particularmente, dentro dasala de aula" (STOER; CORTESÃO, 1999, p. 78).

3.2.2. Uma possível proposta pedagógica para adiversidade cultural

Nessa perspectiva, temos, em Pernambuco, Brasil, pormeio da atuação do NUPEP (Núcleo de Ensino, Pesquisa eExtensão em Educação de Jovens e Adultos e em EducaçãoPopular).do Centro de Educação da Universidade Federal dePernambuco (UFPE), formulada (SOUZA, 2003, p. 4-7),como abaixo segue, uma Proposta de Educação que afirmamosser para a Educação de Adultos, mas que parece servir paraquaisquer processos educativos.

Hoje, no âmbito do NUPEP/UFPE, trabalha-se comuma proposta pedagógica que resulta da contribuição teóricade Paulo Freire, confrontada com o debate pedagógicohodierno, como indicada nos parágrafos acima. Seufundamento e nossa inspiração são uma concepção de educaçãocomo atividade cultural e de desenvolvimento da cultura.

Proposta que perspectiva contribuir com a construção dahumanidade do ser humano em suas diferentes feições -masculinas, femininàs, adultas, infantis, juvenis, idosas,adolescentes, rurais e urbanas, rurbanas, negras, mestiças,brancas -, no interior de suas orientações sexuais e ideopolíticas,entre tantas outras possíveis identidades.

A hipótese substantiva do seu trabalho é que a diversidadecultUral pode possibilitar um diálogo inter e intracultural naconstrução de processos educativos com as camadas popularesou setores subalternizados das sociedades nacionais e dasociedade mundial que respondam aos desafios da pós-modernidade/mundo. Construção de uma educação que,compreendendo as diversas implicações da diversidade cultural,trabalhe pelo diálogo entre as culturas (interculturalidade) pormeio de sua realização na prática pedagógica. Isso virá acontribuir, a partir da experiência da interculturalidade nasinstituições educativas, com a construção da rnulticulruralidade.Experiência que, certamente, repercutirá em todas ~s relaçõessociais dos indivíduos e grupos que a tenham vivenci;-do. Nossaaposta é que a multiculturalidade possa vir a ser a característicafundamental de uma sociedade democrática expansiva.

Partimos do pressuposto de que a sociedade atual, em suasfeiçõeslocais, nacionais e internacional, ainda não é multiculrural,nem predomina nela a interculturalidade. Daí a insistência comque alguns pesquisadores chamam a nossa atenção para os~roblemas do multiculturalismo benigno, da inrerculturalidadeI~vertida. Nesse sentido, a contribuição de Paulo Freire se tornaslgnificat' P . ,rva, or ISSO,para evitar esse mal-estar, trabalhamos comoscon~trutos freireanos (aparato conceitual) que passo a explicitar.A SOCIedadehodierna se caracteriza como uma diversidadecultural ou I 'I l id dA' A • d. P UflCU tura I a e, s expenenclas eIntercult Íid d '. ,.-r- ura I a e e rnulticulturalidade são multo reduzidas.trata-se , pOrtanto, de expectativas,

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A posição de Freire dimensiona a seriedade e aspreocupações necessárias ao tratamento dessa problemática,assumindo-se pós-moderno crítico. Esse posicionamento pós-moderno crítico face à diversidade cultural na busca da construçãoda interculturalidade e multiculturalidade é desafiante e necessitade uma criteriosa análise e de uma prática conseqüente a fim deque não se confunda justaposição de culturas, ou dominação deuma cultura sobre várias, com uma situação rnulticultural, demulticulturalismo ou de multiculturalidade construída pelainterculru ralidade.

A necessidade de retomada da radicalidade, da criticidadee sua prática, a distinção entre uma pós-modernidadeprogressista e uma conservadora, neoliberal - rejeitando essaúltima -, a reafirmação da opção pelos excluídos, subordinados(FREIRE, 1992) que orienta a crítica e lhe dá direcionalidade,não dão margem a nenhuma dúvida. Como afirma inicialmente,

A Pedagogia da esperança: um reencontro com apedagogia do oprimido é um livro assim, escrito comraiva, com amor, sem o que não há esperança. Uma defesada tolerância, que não se confunde com a conivência, daradicalidade; uma crítica ao sectarismo, uma compreensãod~ pós-modernidade progressista e uma recusa àconservadora, neoliberal (FRElRE, 1992, p.12).

Nessa perspectiva, encontramo-nos atualmente em umasituação de diversidade cultural ou pluriculturalismo, não aindaem uma situação de multiculturalidade, enquanto umaconfiguração social consolidada e caracterizadora da pós-modernidade/ mundo.

Ele pensa que a multiculturalidade não pode existir"como um fenômeno espontâneo", mas apenas se for "criado,produzido politicamente, trabalhado, a duras penas, na história"

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(FRElRE, 1992, p. 157). Estamos diante de um fato social: adiversidade cultural ou a pluralidade de culturas( luriculturalidade). Essa pode ser tomada como uma dasc~racterísticas da pós-modernidade/mundo, fruto dos processosde globalização vividos, sobretudo, nos últimos cinqüenta anos,os quais provocaram as diferentes e novas transculturações emtoda a Terra, mas que ainda não permitem caracterizar asociedade atual como multicultural produzida pelainterculturalidade. As diferentes culturas ou traços culturais deuma mesma cultura nacional, ainda se encontram justapostas/os ou em situações de dominação e subalternidades comocondição predominante. O desafio é transformar essapluriculturalidade ou diversidade cultural, através do diálogocrítico entre as culturas e das culturas (inrerculruralidade), numa

multiculturalidade.A multiculturalidade só acontecerá a partir de uma

construção desejada política, cultural e historicamente. Édiferente da pluriculturalidade que não é resultado de uma açãointencional, voluntária e politicamente con stru ída. Amulticulturalidade, decorrente de um processo consciente dediálogo entre culturas ou de traços culturais numa mesmacultura (interculturalidade), se caracterizará como "invençãoda unidade na diversidade. Por isso é que o fato mesmo dabusca da unidade na diferença, a luta por ela, como processo,significa já o começo da criação da multiculturalidade"(FREIRE, 1992, p. 157).

As justaposições de culturas, resultantes dos processos deglobalização, que configuraram a pós-modernidade/mundo,~ão caracterizam per se um mundo rnulticultural nemlntercultural. Indicam apenas uma situação de diversidadecultural ou uma pluriculruralidade. além de configurar umdesafio à convivência dessas diferentes culturas ou traçosculturais em presença. Segundo Freire (1992, p. 157),

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É preciso reenfatizar que a multiculturalidade cornofenômeno que implica a convivência num mesmo espaçode diferentes culturas não é algo natural e espontâneo. E.uma criação histórica que implica decisão, VOntadepolítica, mobilização, organização de cada grupo CUlturalcom vistas a fins comuns. Que demanda, portanto, urnacerta prática educativa coerente com esses objetivos. Quedemanda uma nova ética no respeito às diferenças.

o estabelecimento de fins comuns para a convivênciadas culturas implica um amplo debate entre elas de tal maneiraque possam decidir e desenvolver uma vontade política,organizada e mobilizada, numa ação inrerculrural crítica, quegaranta o respeito e o enriquecimento mútuo das culturas outraços culturais em presença: a intermultliculturalidade.

Indica, por outro lado, Freire (1992, p. 151) que aconstrução da unidade na diversidade

tem de ser a eficaz resposta dos interditados e dasinterditadas, proibidos de ser, à velha regra dos poderosos:dividir para reinar. Sem unidade na diversidade não hácomo sequer as chamadas minorias lutarem ... pelosdireitos mais fundamentais, mais, se se pode dizer,mínimos, quanto mais superar as barreiras que asimpedem de 'ser si mesmos' ou 'minorias para si', mascom as outras e não umas contra as outras.

Há, portanto, uma complexa exigência para essa luta: amobilização e a organização dos oprimidos, excluídos,explorados, dominados, subordinados, interditados, uma novaética de respeito entre os diferentes. É necessário, pois, que seconstituam como forças culturais novas, ou seja, novosmovimentos sociais. Pois a luta pela unidade na diversidade, sendo,

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obviamente, uma luta política, implica a mobilização e aorganização das forças culturais em que o corte de classenão pode ser desprezado, no sentido da ampliação e nodo aprofundamento e superação da democraciapuramente liberal. É preciso assumirmos a radical idadedemocrática para a qual não basta reconhecer-se,alegremente, que nesta ou naquela sociedade, o homeme a mulher são de tal modo livres que têm o direito atéde morrer de fome ou de não ter escola para seus filhos efilhas ou de não ter casa para morar. O direito, portanto,de morar na rua, o de não ter velhice amparada, o desimplesmente não ser (FREIRE, 1992, p. 157).

A finalidade da luta dessas forças culturais, mobilizadase organizadas em novos movimentos sociais, será radicalizar ademocracia, ou seja, levar as exigências democráticas às últimasconseqüências, como revelou pesquisa comparativa que realizeisobre as representações sociais da democracia, nessesmovimentos, no Brasil e no México (SOUZA, 1999).

Fica claro, portanto, que, para Freire, a multiculturalidadee a interculturalidade não são situações espontâneas, não sãofaros sociais, não são dados estatísticos, pelo menos não se trataainda da condição predominante da pós-modernidade/mundo.São ainda desejos, utopias, metas de alguns poucos grupossociais, especialmente dos novos movimentos sociais. Não sepode ainda identificar como sendo a situação caracterizadorada pós-rnodernidade/ mundo.

Essa posição difere dos achados de Forq uin (1989, p.153) ao estudar a sociologia da educação britânica na qual

o termo multiculturalisrno possui ao mesmo tempo umsentido descritivo e um sentido normativo ou prescritivo.Entende-se em primeiro lugar como a situação objetivade um país no qual coexistem grupos de origem étnica

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ou geográfica diversa, falando línguas diferentes, podendonão partilhar as mesmas crenças religiosas nem os mesmosvalores ou modo de vida?'.

Para Paulo Freire (também assumo essa posição), omulticulturalismo não se refere a essa justaposição. Aí teríamos umasituação de pluriculturalidade ou de diversidade cultural e não demulticulturalidade. A rnulticulturalidade se constitui a utopia, aesperança de uma nova configuração da convivência humana (emsuas dimensões econômica, política, religiosa e gnosiológica), nosnovos cenários mundiais. Isso só será possível, porém, se foremconstruídas de acordo com as exigências éticas acima enunciadas.

A globalização atual?", provocadora das diversastransculturações que se vêm verificando nos últimos quinhentosanos, especialmente, ao longo dos últimos 50, não provoca umaunidade na diversidade de culturas, mas provoca umadiversidade cultural ou pluriculturalidade que tende,predominantemente, à fragmentação cultural como tem sido

51 "ce terme de 'rnulricultualisrne' possede à Ia fois un sens descriptif et un sensnorrnarif ou prescriptif On entend d'abord par là Ia situacion 'objectif' d'unpays dans lequel cexistent des groupes d'origine ernique ou géographiquediverse, parlant des langues différentes, pouvant ne pas partager les mêmesadhésions religieuses ni les mêmes valeurs ou mode de vie",

52 Não esquecer que o fenômeno' atualmente denominado de globalização temsua divulgação a partir do "surto vertiginoso das transformações tecnológicas"que "não apenas abole a percepção do tempo: ele também obscurece as referênciasdo espaçlól. Foi esse efeito que levou os técnicos a formular o conceito deglobalização, implicando que, pela densa concectividade de toda a rede decomunicações e informações envolvendo o conjunto do planeta, tudo se tornouuma coisa só. Algo assim como um único e gigantesco show. Assistindo a esseespetáculo a partir de nossa perspectiva brasileira - entretanto, com algumsenso crítico -, podemos concluir que ou a peça é uma comédia tão maluca quenão dá para rir, ou é um drama em que nos deram o papel mais ingrato. Porqueo fato é que as mudanças tecnológicas, embora causem vários desequilíbriosnas sociedades mais desenvolvidas que as encabeçam, também canalizam paraelas os maiores benefícios. As demais são arrastadas de roldão nessa torrente, aocusto da desestabilização de suas estruturas e instituições, da exploraçãopredatória de seus recursos naturais e do aprofundamento drástico de suas jágraves desigualdades e injustiças" (SEVCENKO, 2001, p. 20-21).

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identificada por vários pesquisadores, entre eles, Wallerstein(1996), Ianni (2000), o próprio Paulo Freire (1992, 1993,1996). Os diferentes movimentos sociais têm denunciadopermanentemente essa problemática. Vejam-se os protestos quetêm se dado por ocasião de diferentes reuniões internacionais.

Na acepção de Ianni (2000), vimos que as transculturaçõesprovocadas pela globalização não têm eliminado as singularidades,de certa forma as têm promovido. A globalização tem provocadoou acirrado, simultaneamente à inrer-relação dos povos, dasculturas, das relações comerciais e simbólicas, sua particularização,as culturas locais, as oposições étnicas, de classe, de gênero, entreoutras, como resultado das transculturações que têm acontecido.Ao mesmo tempo, portanto, e ato contínuo, tem surgido umamulticiplicidade de situações culturais justapostas, dominadas,subalternas, predominantes, subordinadas, rebeldes, emergentes,no conjunto da pós-modernidade/mundo e, inclusive, interiorde uma mesma nação.

O posicionamento de Paulo Freire sobre a questão damulticulruralidade, como indicado acima, ao mesmo tempo,nos aponta elementos rnerodológicos para a análise-das situaçõesconcretas de diversidade cultural. Atente-se para suaargumentação (FRElRE, 1992, p. 156):

A multiculturalidade é outro problema sério que não escapaigualmente a essa espécie de análise. A multiculturalidadenão se constitui na justaposição de culturas, muito menosno poder exacerbado de uma sobre as outras, mas naliberdade conquistada de mover-se cada cultura no respeitouma da outra, correndo o risco livremente de ser diferente,sem medo de ser diferente, de ser cada urna Ipara si I,

somente como se faz possível crescerem juntas e não naexperiência da tensão permanente, provocada pelo todo-poderosismo de uma sobre as demais, proibidas de ser.

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Esse princípio metodológico para análise da situaçãopredominante na pós-modernidade/mundo, proposto noposicionamento de Freire sobre a multiculturalidade, parececontribuir para a identificação das possibilidades de relaçõesentre culturas (justaposição, dominação, submissão, assimilação,predomínio, guetização, fragmentação, diálogo), no interiorda atual diversidade cultural. Esse princípio pode nos ajudar aolhar, sem daltonismos culturais ou veleidades assimilacionistas,tanto as situações internacionais, como nacionais e locais docontexto de pós-modernidade/mundo, tanto as relações entreos movimentos sociais e/ou políticos (antigos ou novos), comoas relações econômicas e de saberes, no interior de nossas nações,o concerto/desconcerto das nações.

Ajuda-nos, ainda, a perceber as relações de gênero, deidades, de profissões, religiosas, subjetivas, ideológicas. E,especificamente, leva-nos olhar o interior das instituiçõeseducativas, inclusive da escola e, também, da sala de aula paraperceber o tratamento dado à diversidade cultural e às formasde trabalhar suas relações. Assim, poder-se-a identificar asperspectivas - que estão a ser criadas - de interculturalidade nadireção da construção de situações de multiculturalidade e serápossível interferir sobre elas, confirmando-as, redirecionando-as, ampliando-as, consolidando-as.

No interior da sala de aula ou nas atividades educativasnão-escolares, esse princípio/conceito freireano demulticulturalidade pode, inclusive, contribuir para identificaro tipo de relações entre os diferentes alunos provenientes deculturas distintas e perceber as relações entre as diferentesversões escritas e as diversas versões orais de uma mesmacultura nacional. Essa é uma questão central, mas poucotrabalhada nos processos educativos escolares e até mesmonão-escolares. Por isso, está a exigir uma compreensão maiore mais profunda para reorientar seu manejo e garantir a

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aquisição da cultura letrada alfabeticamente pelas pessoasredominantemente ágrafas.

P Mantendo-se no horizonte utópico do projeto pedagógico,Paulo Freire não abre mão de seu realismo crítico. Nãodesconhece, portanto, que seu desejo de uma relação dialógicaentre culturas, seu sonho de interculturalidade, e a possívelconstrução da multiculturalidade não eliminam as tensõespermanentes que atravessam essas mesmas relações, assim comosuas ambigüidades, conflitos, contradições e as múltiplaspossibilidades tanto positivas quanto negativas.

Não ignora, também, as negatividades, fraquezas oudebilidades da cultura, presentes em todas e quaisquer culturasou traços culturais de uma mesma cultura. Chama-nos a atençãosobre essa problemática, especialmente baseado nos escritos deAmílcar Cabral (FRElRE, 1992, p. 147-148).

As tensões presentes entre culturas ou traços culturaisde uma mesma cultura nacional, numa situação demulticulturalidade, são, no entanto, de qualidade diferentedas existentes numa situação de justaposição, dominação,submissão, assimilação, fragmentação, configuraçÕes possíveisnas relações entre culturas. Para Freire (1992, p. 156),

A tensão necessária, permanente, entre as culturas namulticulturalidade é de natureza diferente. É a tensão aque se expõem por ser diferentes, nas relaçõesdemocráticas em que se promovem. É a tensão de quenão podem fugir por se acharem construindo, criando,produzindo a cada passo a própria multiculturalidadeque jamais estará pronta e acabada. A tensão, neste caso,portanto, é a do inacabamento que se assume comorazão de ser da própria procura e de conflitos nãoantagônicos e não a criada pelo medo, pela prepotência,pelo "cansaço existencial", pela "anestesia histórica" ou

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pela vingança que explode, pela desesperação ante ainjustiça que parece perpetuar-se.

Duas novas noções aparecem na sua teoria darnulticulturalidade: a de inacabamento de sua construção e a detensão não antagônica entre as culturas. Percebe com clareza acomplexidade da questão da multiculturalidade e damultiplicidade de elementos que levam a tantos diferentes recortesnas questões culturais. Entende Freire (1992, p. 156-157) ser

preciso também deixar claro que a sociedade a cujo espaçopor motivos econômicos, sociais, históricos, chegaramoutros grupos étnicos e aí se inseriram em relaçãosubordinada, tem sua classe dominante, sua cultura declasse, sua linguagem, sua sintaxe, sua semântica de classe,seus gostos, seus sonhos, seus fins, seus projetos, valores,programas históricos.

Trata-se de situações distintas: a diversidade de umasociedade nacional e a diversidade de uma sociedade que,aparentemente unitária, se diversifica pela entrada de migrantes.Mas, ainda que diferentes, não deixam as sociedades nacionaisde apresentar situações conflitivas de assimilação, dominação,submissão, justaposição, predominância nas relações entre seusdiferentes traços culturais em presença. Às vezes, essas relaçõessão tão violentas quanto as que se verificam entre culturas muitodiferentes porque todas estão permeadas pelos problemas dasrelações de poder, das formas do exercício de poder. Dequaisquer formas, em uma ou em outra sociedade, é possívelperceber, claramente,

Sonhos, projetos, valores, linguagem que a classedominante não apenas defende como seus e, sendo seus,diz serem nacionais, como exemplares, mas também,

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por isso mesmo, 'oferece' aos demais através de ncaminhos, entre eles, a escola e não aceita recusa. É porisso que não há verdadeiro bilingüismo, muito menosmultilingüismo, fora da rnulticulturalidade e não há estacomo fenômeno espontâneo, mas criado, produzidopoliticamente, trabalhado, a duras penas, na história(FREIRE, 1992, p. 157).

Releva-se a complexidade da percepção, da análise e dasperspectivas de se trabalhar a questão da pluriculturalidade,tendo em vista a utopia da interculturalidade e a sempreinconclusa construção de situações de multiculturalidade. Porisso insiste Freire na necessidade da "compreensão crítica daschamadas minorias de uma cultura" sem reduzir esse processode compreensão às "questões de raça e de sexo", mas incluindonela "a compreensão ... do corte de classe". E arremata,

Em outras palavras, o sexo só não explica tudo. A raça só,também. A classe só, igualmente. A discriminação racialnão pode, de forma alguma, ser reduzida a um problema

. de classe como o sexismo, por outro lado. Sem, contudo,o corte de classe, eu, pelo menos, não entendo o fenômenoda discriminação racial nem o da sexual, em sua totalidade,nem tão pouco o das chamadas minorias em si mesmas.Além da cor da pele, da diferenciação sexual, há também a'cor' da ideologia (FREIRE, 1992, p.156).

Percebem-se, assim, as perspectivas analíticas e operativascom que Paulo Freire trata a questão da multiculturalidade esuas implicações para os processos educativos. Essas perspectivassão construídas como exigência de uma interpretação crítica,de uma compreensão transformadora do contexto da pós-modernidade, um pós-modernismo libertador e crítico. Implica

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a presença do conceito de classe social nas análisescompreensivas dessas situações permeadas pelas questõesétnico-culturais, de gênero, de idades, de opções ideológico-políticas, religiosas, de orientação sexual, entre outros recortes.

Trata-se de construir a unidade na diversidade, delutar pelo sonho possível, pela utopia necessária que, paraFreire, implica sua concepção de interculturalidade emulticulturalidade, pela superação da guetização e doassimilacionismo na interação crítica entre culturas outraços culturais; numa palavra, do enriquecimento dasdiferentes culturas e ou traços culturais em presença.Enfim, poder-se-á chegar à construção de uma sociedadedemocrática não apenas representativa, mas, também, equiçá, sobretudo, participativa.

3.2.3. Os fenômenos da educação não-escolar

Essas persJ.ectiva-s-p<lTe€~- poder contribuir com asuperação dq imperialismo da educação escolar ao qual,praticamente, todos os olhares sociológicos, inclusive osimplicados pedagogicamente, se voltaram. E procura-serestabelecer a importância da educação escolar sem exageros.A maioria dos estudos em Sociologia da Educação tem sededicado à análise da escola e dos fenômenos sociais que sedão no seu interior ou para sua organização e manutenção,ou até mesmo para sua reforma, mas sem buscar arrebentarcom seus enquadramentos excessivamente burocratizados erotineiros. Têm sido, portanto, os amplos processos sociaispara a organização dos sistemas de ensino (políticas deescolarização) ou os processos que se passam na instituiçãoescolar ou apenas no espaço da sala de aula, a chamar a atençãoda maioria dos estudiosos.

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Inclusive, estabeleceu-se uma diferenciação entre os estudosdos fenômenos que denominam macro (Sociologia da Educação)e os estudos dos fenômenos meso e/ou micro (SociologiaEducacional)53. Diferenciação que não parece procedenteteoricamente, mas que se estabeleceu historicamente e que nãotem mais sentido na atualidade. Afonso (1994) situa todas asanálises (micro, meso, macro) dos fenômenos educacionais,escolares e não-escolares, como objeto de estudo do âmbito daSociologia da Educação. Incluem-se, pois, como objeto de estudoda Sociologia da Educação, os amplos processos educacionaisque se dão fora da escola, denominados pelo mesmo Afonso deeducação não-escolar, na qual ele inclui os fenômenos conhecidoscomo educação não-fomal e informal.

Essa concepção tri parti te do universo da educação(educação formal, educação informal e não-formal) (TRILLA-BERNET, 1998, p. 23) é praticamente consensual. Afonso(1992), no entanto, agrupa essas três modalidades em duas, asescolarizadas e as não-escolarizadas (não-formal e informal),propondo uma ampla caracterização de cada um desses âmbitos...'

53 "Entre as contribuições durkeimianas ao estudo da relação entre educação esociedade e a adoção do termo 'sociology of education' em um artigo publicadopor W. Brookover em 1949, transcorre um período que Jerez Mir (1990)denominou de preformação da sociologia da educação. A chamada'educacional sociology' (sociologia educacional), desenvolvida a partir dosdepartamentos de pedagogia de universidades norte-americanas, respondeua uma autêntica revolução que experimentou o sistema educarivo norte-americano no começo do século (vinte) e à sua função de preparação dasmassas trabalhadoras para a crescente economia industrial. Durante a primeiradécada do século, sob a influência de John Dewey, a sociologia educacionalsurgiu como alternativa à orientação essencialista e metafísica dominante napedagogia (JEREZ MIR, 1990, p. 358). A partir dessa nova perspectiva, aeducação é contemplada como um processo ativo e crítico fundamental paraa coesão social e o fortalecimento da democracia, uma orientação, portanto,que se aproxima de Durkheim na visão pcsitivista da escola como instrumentode desenvolvimento moral e social. Para Dewey, a importância daaprendizagem e da experiência para a atividade humana, do ensino datUtodisciplina e da autonomia como fundamentos da formação de indivíduosivres e capazes de pensar e atuar por si mesmos" (BONAL, 1998, P: 22-23).

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