dissertacao_unicamp

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Número: 32/2005 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA VITOR PIRES VENCOVSKY Sistema Ferroviário e o uso do território brasileiro. Uma análise do movimento de produtos agrícolas. Dissertação apresentada ao Instituto de Geociências como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Geografia. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Abid Castillo CAMPINAS - SÃO PAULO Janeiro – 2006

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  • Nmero: 32/2005 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    INSTITUTO DE GEOCINCIAS PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA

    VITOR PIRES VENCOVSKY

    Sistema Ferrovirio e o uso do territrio brasileiro. Uma anlise do movimento de produtos agrcolas.

    Dissertao apresentada ao Instituto de Geocincias como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Geografia.

    Orientador: Prof. Dr. Ricardo Abid Castillo CAMPINAS - SO PAULO

    Janeiro 2006

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    by Vitor Pires Vencovsky, 2005

    Catalogao na Publicao elaborada pela Biblioteca

    do Instituto de Geocincias/UNICAMP

    Vencovsky, Vitor Pires V552s Sistema ferrovirio e o uso do territrio brasileiro: uma anlise do

    movimento de produtos agrcolas / Vitor Pires Vencovsky.-- Campinas,SP.: [s.n.], 2006.

    Orientador: Ricardo Abid Castillo

    Dissertao (mestrado) Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geocincias.

    1. Ferrovias. 2. Transporte ferrovirio. 3. Territrio nacional -

    Brasil. 4. Soja.. I. Castillo, Ricardo Abid. II. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geocincias. III. Ttulo.

    Ttulo em ingls: Railroad system and the use of the Brazilian territory: An analysis of the transport of agricultural products. Keywords: - Railroads; - Transport systems; - Brazilian territory; - Soybean. rea de concentrao: Anlise Ambiental e Dinmica Territorial Titulao: Mestre em Geografia Banca examinadora: - Ricardo Abid Castillo; - Regina Clia Bega dos Santos; - Samuel Ribeiro Giordano. Data da defesa: 27/01/2006

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    INSTITUTO DE GEOCINCIAS PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA

    AUTOR: VITOR PIRES VENCOVSKY ORIENTADOR: Prof. Dr. Ricardo Abid Castillo Aprovada em: _____/_____/_____ EXAMINADORES:

    Prof. Dr. Ricardo Abid Castillo _______________________- Presidente Profa. Dra. Regina Clia Bega dos Santos _______________________

    Prof. Dr. Samuel Ribeiro Giordano _______________________

    Campinas, 27 de janeiro de 2006.

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    minha esposa Neiva e meus filhos Leonardo e Eduardo

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    Agradecimentos Gostaria de agradecer ao meu professor e orientador Ricardo Castillo pelos dois anos de

    muita ajuda e dedicao que me permitiram construir uma viso mais crtica da sociedade.

    Agradeo tambm aos professores Ricardo Mendes Antas Jr., Walter Belik, Jos Graziano

    da Silva, Carlos Antnio Brando pelas discusses enriquecedoras em sala de aula e s

    professoras Adriana Maria Bernardes da Silva e Maria Laura Silveira pelas orientaes no meu

    exame de qualificao.

    Um muito obrigado tambm a todos os funcionrios do IG, em especial Valdirene e

    Edinalva que estiveram sempre prontas a ajudar.

    Agradeo aos colegas da ps-graduao da geografia Mrcio Toledo, Samuel Frederico,

    Fabiano, Fabola, Clayton, Murilo, Mrio, Joseane, Mnica, Hebert, e da economia Pedro, Elmer,

    Tatiane, Cristina, Clber, Andria, rica, Tomaz e Francisca.

    Agradeo tambm aos profissionais das bibliotecas do Instituto de Geocincias, Instituto

    de Economia e IFCH da Unicamp, Instituto de Economia da Esalq-USP, UFRJ e IBGE.

    Agradeo os profissionais do Ministrio dos Transportes, do Ministrio da Agricultura,

    Pecuria e Abastecimento, do DNIT, da ANTT da ANTF que me receberam durante o meu

    trabalho de campo realizado em Braslia.

    Um agradecimento muito especial aos meus pais Roland e Maria Olvia que, como

    professores, sempre me apoiaram nos estudos e na busca da perfeio.

    Agradeo tambm aos meus irmos Cludia, Norberto, Ceclia e Ronaldo, meus cunhados

    e cunhadas Paulo, Newton, Marcela, Amanda e Janete, minha sogra Elvira, meus sobrinhos

    Pedro, Lucas, Thiago, Andr, Karen, Raquel, Matheus e Rafael, primos e primas, tios e tias.

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    O intelectual a classe que est

    permanentemente criticando, de alto a

    baixo, a sociedade (Milton Santos).

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    NDICE

    NDICE DE FIGURAS X NDICE DE FOTOS X NDICE DE GRFICOS X NDICE DE QUADROS X NDICE DE MAPAS XI NDICE DE TABELAS XI NDICE DE ANEXOS XII SIGLAS E ABREVIATURAS XIV RESUMO XVI ABSTRACT XVII INTRODUO 1 1. A FERROVIA COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DO ESPAO GEOGRFICO 5

    A Primeira Revoluo Chandleriana e a nova concepo espao-temporal da sociedade 6

    Ferrovias: densidades tcnicas e normativas 9

    Competitividade regional e fluidez territorial 12

    2. ABORDAGEM DIACRNICA DAS FERROVIAS NO BRASIL: UMA PROPOSTA DE

    PERIODIZAO 14

    O territrio como componente da periodizao 15

    Momento 1 Desenvolvimento e criao das ferrovias 17

  • viii

    Momento 2 Estatizao e readequao das ferrovias 22

    Momento 3 Desestatizao e recuperao das ferrovias 26

    O papel das ferrovias no processo de integrao do territrio brasileiro 27

    Sistema ferrovirio nacional ou integraes regionais? 28

    Planos de desenvolvimento do Brasil 29

    3. ABORDAGEM SINCRNICA DAS FERROVIAS NO BRASIL: UMA ANLISE DA

    SITUAO ATUAL 37

    Situao atual dos modais de transporte no territrio brasileiro 38

    A matriz de transportes de cargas no Brasil 41

    Comparao entre os modais de transporte (ferrovia, hidrovia, rodovia) 43

    Caractersticas operacionais 43

    Topologia dos modais no territrio nacional 49

    Investimentos realizados 52

    ndices de desempenho dos modais 55

    Concessionrias do setor ferrovirio 56

    O processo de privatizao do setor ferrovirio 57

    O modelo de contrato de concesso 66

    As concessionrias 69

    Os investimentos realizados 74

    Projetos de melhoria e expanso 79

    4. O TRANSPORTE FERROVIRIO DE PRODUTOS AGRCOLAS NO BRASIL 88

    A importncia das ferrovias no escoamento de produtos agrcolas 89

    As regies produtoras 92

    Caracterizao dos novos fronts agrcolas 93

    A localizao da produo de alguns produtos agrcolas no Brasil 99

    Os corredores de escoamento de produtos agrcolas 102

    Caracterizao dos corredores de escoamento 103

    Quantidades de produtos agrcolas transportados 106

  • ix

    O transporte de produtos agrcolas 107

    O transporte ferrovirio de produtos agrcolas 107 CONCLUSES 111 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 115

    BIBLIOGRAFIA 120 STIOS CONSULTADOS 124 ANEXOS 125

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    NDICE DE FIGURAS Figura 3.1 Comparao entre os modais segundo a forma Tradicional 44

    Figura 3.2 Comparao entre os modais segundo a forma Geogrfica 46

    Figura 3.3 Diagrama comparativo entre os modais ferrovirio e rodovirio 47

    Figura 3.4 Diagrama do modal hidrovirio 48

    Figura 3.5 Relao entre estado e concessionrias 67

    NDICE DE FOTOS

    Foto 3.1 Interferncias entre ferrovias e reas urbanas 76

    Foto 3.2 Vages da Bunge fabricados pela Amsted Maxion e operados pela ALL 85

    Foto 4.1 Produo de soja nos novos fronts agrcolas 96

    NDICE DE GRFICOS Grfico 1.1 Desenvolvimento dos meios de transportes 10

    Grfico 3.1 - Densidade de rodovias e ferrovias por UF 40

    Grfico 3.2 Evoluo dos investimentos do governo em transportes - perodo 1995-2004 53

    Grfico 3.3 Distribuio regional dos investimentos realizados pelo governo brasileiro

    em transportes 1995/2004 54

    Grfico 3.4 Evoluo do PIB, PIB do agronegcio, investimentos e produo das

    ferrovias e da produo de soja 78

    Grfico 4.1 Produo de soja e subprodutos ao longo do ano 108

    NDICE DE QUADROS Quadro 2.1 Periodizao das ferrovias no Brasil 16

    Quadro 2.2 Evoluo das linhas ferrovirias - 1845 1939 21

    Quadro 2.3 Planos de Viao anteriores a 1934 30

    Quadro 3.1 Matriz de transporte de cargas em geral e de produtos agrcolas (%) no Brasil 43

  • xi

    Quadro 3.2 Caractersticas dos modais de transporte 45

    Quadro 3.3 Interesses dos agentes do setor ferrovirio no Brasil 60

    Quadro 3.4 Principais marcos regulatrios do processo de privatizao no Brasil 61

    Quadro 3.5 Resultado dos leiles da RFFSA 62

    Quadro 3.6 Principais concessionrias do setor ferrovirio - caractersticas dos contratos 68

    Quadro 3.7 Classificao das empresas concessionrias 2004 72

    Quadro 3.8 Composio das cargas transportadas pelas ferrovias no Brasil 2003 77

    Quadro 3.9 Projetos prioritrios do setor ferrovirio - PPA 2004-2007 83

    Quadro 4.1 Caractersticas distintivas dos novos fronts 95

    NDICE DE MAPAS Mapa 2.1 Ferrovias e o caf Momento 1 20

    Mapa 3.1 Ferrovias brasileiras 2005 70

    Mapa 3.2 Localizao dos projetos prioritrios do PPA 2004-2007 e obras de contorno e

    interveno para o setor ferrovirio 84

    Mapa 4.1 Principais rotas de escoamento da produo de soja 105

    NDICE DE TABELAS Tabela 2.1 Evoluo do trfego de mercadorias1950 - 1970 - bilhes de ton.km 24

    Tabela 2.2 Evoluo do rodoviarismo no Brasil - 1950-1970 25

    Tabela 2.3 Desequilbrio das ferrovias no Brasil - 1965 1970 25

    Tabela 2.4 Distribuio de recursos por modalidade de transportes (%) 32

    Tabela 3.1 Densidade de rodovias por pases 39

    Tabela 3.2 Densidade de transporte por grandes regies 41

    Tabela 3.3 Principais empresas concessionrias do transporte ferrovirio 71

    Tabela 3.4 Investimentos previstos no PPA 2004 2007 em infra-estrutura

    (em R$ milhes) 81

    Tabela 3.5 Principais objetivos dos projetos para ferrovias PPA 2004-2007 81

    Tabela 4.1 Exportaes brasileiras segundo as grandes regies do IBGE 2003 91

  • xii

    Tabela 4.2 Produo de soja e leo de soja por regio 2003 92

    Tabela 4.3 Produtividade da soja por regies 2001 97

    Tabela 4.4 Grau da concentrao da produo agrcola brasileira 100

    Tabela 4.5 Maiores municpios produtores de soja 101

    Tabela 4.6 Quantidade de soja exportada pelos principais corredores de transporte 107

    Tabela 4.7 Transporte de soja no modal ferrovirio 109

    Tabela 4.8 Transporte de produtos agrcolas no modal ferrovirio 110

    NDICE DE ANEXOS Anexo 1 Organizao do territrio brasileiro 126

    Anexo 2 Decreto n 473, de 10 de maro de 1992 127

    Anexo 3 Economia brasileira I Plano Nacional de Desenvolvimento 128

    Anexo 4 Investimentos previstos no I Plano Nacional de Desenvolvimento 128

    Anexo 5 Economia brasileira - II Plano Nacional de Desenvolvimento 129

    Anexo 6 Investimentos previstos no II Plano Nacional de Desenvolvimento 129

    Anexo 7 Eixos Nacionais de Integrao e Desenvolvimento PPA 1996-1999 130

    Anexo 8 Eixos Nacionais de Integrao e Desenvolvimento PPA 2000-2003 131

    Anexo 9 Corredores Estratgicos de Desenvolvimento - movimentao de soja - 2005 132

    Anexo 10 Caractersticas dos corredores propostos pelo Geipot 135

    Anexo 11 Exportaes brasileiras - principais produtos 136

    Anexo 12 Organizao das rodovias no territrio brasileiro 137

    Anexo 13 Rodovias concessionadas - 2005 138

    Anexo 14 Principais hidrovias no Brasil - 2005 139

    Anexo 15 Investimentos regionais em transportes realizados pelo governo no perodo

    1995/2004 (milhes de R$) 140

    Anexo 16 Investimentos multiregionais - 1995-2004 141

    Anexo 17 Acidentes ferrovirios 142

    Anexo 18 rea plantada de gros - Brasil - mil hectares 143

    Anexo 19 Produo de gros - Brasil - mil toneladas 144

    Anexo 20 Exportaes agropecurias Brasil - US$ milhes, FOB 145

  • xiii

    Anexo 21 Exportaes agropecurias - Brasil - peso lquido - mil toneladas 146

    Anexo 22 Principais pases produtores de soja (mil toneladas) 147

    Anexo 23 Produo e exportao de produtos agrcolas - Brasil - (mil toneladas) 148

    Anexo 24 Participao nas exportaes mundiais - Brasil - (bilhes de US$) 149

    Anexo 25 Grau de dependncia das exportaes - 2004 150

  • xiv

    SIGLAS E ABREVIATURAS

    Abiove - Associao Brasileira das Indstrias de leos Vegetais

    ALL Amrica Latina Logstica

    ANTF Associao Nacional dos Transportadores Ferrovirios

    ANTT Agncia Nacional de Transportes Terrestres

    ANUT - Associao Nacional dos Usurios de Transporte de Carga

    BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social

    BTU - British Temperatura Unity, Unidade Inglesa de Temperatura

    CAD Critrio de Avaliao de Desempenho

    Campo - Companhia de Promoo Agrcola

    CFN Companhia Ferroviria do Nordeste

    CIDE - Contribuio de Interveno no Domnio Econmico

    CNT Confederao Nacional dos Transportes

    Conab - Companhia Nacional de Abastecimento

    CSN - Companhia Siderrgica Nacional

    CVDR - Companhia Vale do Rio Doce

    DNIT - Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes

    EFC Estrada de Ferro Carajs

    EFVM Estrada de Ferro Vitria Minas

    Embrapa Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecurias

    FMI Fundo Monetrio Internacional

    FCA Ferrovia Centro Atlntica

    FDNE - Fundo de Desenvolvimento do Nordeste

    Fepasa Ferrovia Paulista S.A.

    Ferroban - Ferrovias Bandeirantes

    Ferroeste - Estrada de Ferro Paran Oeste

    Ferropar - Ferrovia Paran S.A

    FTC Ferrovia Tereza Cristina

    Funcef - Fundao dos Economirios Federais

    Geipot - Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes

  • xv

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    Incra - Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    Ipea - Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

    Inesc - Instituto de Estudos Socioeconmicos

    Mapa - Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento

    MDIC - Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior

    Novoeste - Ferrovia Novoeste S.A.

    OMC - Organizao Mundial do Comrcio

    OTM Operador de Transporte Multimodal

    PAM - Produo Agrcola Municipal

    PIB Produto Interno Bruto

    PND - Programa Nacional de Desestatizao

    PPA Plano Plurianual

    PPP - Parceria Pblico-Privada

    Previ - Caixa de Previdncia dos Funcionrios do Banco do Brasil

    Prodecer - Programa de Cooperao Nipo-Brasileira para o desenvolvimento do Cerrado

    RFFSA Rede Ferroviria Federal S.A.

    Secex Secretaria de Comrcio Exterior

    TEU - twenty equivalente unit, unidade equivalente a um continer de 20 ps

    TKU - tonelada por quilmetro til

    TU - tonelada til tracionada

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE GEOCINCIAS

    PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA

    Sistema Ferrovirio e o uso do territrio brasileiro. Uma anlise do movimento de produtos agrcolas.

    RESUMO Dissertao de Mestrado Vitor Pires Vencovsky No final do sculo XX uma srie de eventos em escala global passou a condicionar muitas das polticas pblicas e privadas e a influenciar diretamente na organizao social e espacial do territrio brasileiro. So eventos que implicam na transformao das prticas e na mudana da lgica que preside a organizao do espao. Dentre muitos eventos possvel destacar a globalizao, a internacionalizao dos mercados, a criao de novos parmetros de produtividade e o novo papel do Estado que passa, ento, a compartilhar com outros agentes as aes de ordenamento do territrio. Os agentes externos, hegemnicos, colaboram para a criao de espaos onde a solidariedade substituda pela competitividade e eficincia, criando excluso e desigualdade social. Na dcada de 1970, com a criao de regies funcionais voltadas exportao de commodities agrcolas, como os novos fronts agrcolas do Cerrado brasileiro, uma nova demanda por sistemas de transporte foi criada. As ferrovias aparecem, ento, como uma das melhores opes para atender essa demanda. Para reativar as ferrovias e aumentar sua produtividade, estas, que at ento estavam sob controle da Unio atravs das empresas RFFSA, FEPASA e CVRD, foram privatizadas e transferidas para a iniciativa privada. Estas empresas, ento, passam a influenciar diretamente na organizao do territrio brasileiro. Este trabalho pretende, ento, identificar as implicaes que as atuais polticas relacionadas reativao do sistema ferrovirio brasileiro voltado ao escoamento de produtos agrcolas podem trazer para a sociedade e o territrio. Dentre algumas concluses possvel destacar que os planos de desenvolvimento dos ltimos anos e os investimentos realizados pelos governos e pela iniciativa privada no sistema ferrovirio reforam a integrao do territrio brasileiro aos mercados internacionais, criando redes extravertidas e promovendo a fluidez territorial para apenas algumas regies, empresas e atividades econmicas. Palavras-Chave: ferrovias, modais de transporte, territrio brasileiro, soja.

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    INSTITUTO DE GEOCINCIAS PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA

    Railroad System and the use of the Brazilian territory. An analysis of the transport of agricultural products.

    ABSTRACT By Vitor Pires Vencovsky At the end of the XX century a series of global events started conditioning many of the public and private politics and influencing directly the social and space organization of the Brazilian territory. These events imply in the transformation of the practices and the change of the logic that presides the organization of the space. Amongst many events it is possible to point out the globalization, the internationalization of the markets, the creation of new parameters of productivity and the new paper of the State that passes, then, to share with other agents the actions of the territorial organization. The hegemonic agents collaborate for the creation of spaces where solidarity is substituted by the competitiveness and efficiency, creating social exclusion and inequality. In the decade of 1970, with the creation of functional regions dedicated to the exportation of agriculture commodities, as the new agriculture fronts in the Brazilian Cerrado, a new demand for transport systems was created. The railroads appear, then, as one of the best options to take care of this demand. To reactivate the railroads and to increase its productivity, these, that until then were under control of the State through companies such as RFFSA, FEPASA and CVRD, had been privatized and transferred to private companies. This work intends to identify the implications that the current politics, related to the reactivation of the Brazilian railroad system used for the transport of agricultural products, can bring for the society and the organization of the territory. Amongst some conclusions it is possible to point out that the development plans of the last years and the investments carried through for the governments and the private initiative in the railroad system strengthen the integration of the Brazilian territory to the international markets, creating interior-port transport nets and promoting the territorial fluidity only to some regions, companies and economic activities. Key words: railroads, transport systems, Brazilian territory, soybean.

  • 1

    INTRODUO

    No final do sculo XX o mundo se depara com uma nova realidade colocada em prtica, a

    globalizao, que, segundo SANTOS (2003, p. 23), o pice do processo de internacionalizao

    do mundo capitalista. Porm, essa globalizao tem gerado grandes distores econmicas e

    sociais, provocando desigualdades geogrficas e fragmentao dos territrios nacionais.

    Analisando as implicaes desta globalizao para o territrio brasileiro, verifica-se que

    grande a produo de desigualdades scio-espaciais em termos de densidades tcnicas e tambm

    normativas.

    No Brasil, a globalizao veio acompanhada de uma mudana no papel do Estado, que at

    ento era o maior agente de mudanas. A partir dos anos 1990, com as polticas neoliberais e a

    abertura dos mercados, o papel do Estado no mais o mesmo, compartilhando com outros

    agentes, do mercado e da sociedade civil organizada, a responsabilidade pelas principais decises

    econmicas, polticas e sociais e, portanto, pelo ordenamento territorial1.

    caracterstica do momento atual o embate entre a transnacionalizao do territrio e o

    Estado territorial, considerado por alguns como ultrapassado. Essas mudanas ocorridas nas

    ltimas duas dcadas alteram totalmente as condies de uso, organizao e regulao do

    territrio brasileiro.

    Os agentes externos, as empresas transnacionais, o poder econmico internacional,

    colaboram na criao de espaos onde a solidariedade substituda pela competitividade e

    eficincia. Com a globalizao, os atores hegemnicos servem-se de todas as redes e se utilizam

    de todos os territrios, transformando o territrio nacional num espao nacional da economia

    internacional (SANTOS, 2002a, p. 244).

    Nesse processo de globalizao, uma das principais mudanas ocorridas no Brasil foi a

    reativao do sistema ferrovirio para atender, principalmente, ao escoamento da produo dos

    novos fronts agrcolas. O sistema ferrovirio no Brasil est recebendo novamente as atenes dos

    governos e das empresas nacionais e internacionais, a infra-estrutura ferroviria atual est sendo

    modernizada, outras esto sendo construdas e normas e leis esto sendo institudas.

    1 O ordenamento territorial pode ser entendido como um modelo de gesto do territrio utilizado para garantir um padro de desenvolvimento para o Pas, os estados e as regies. De uma maneira racionalista, polticas pblicas passam a organizar o espao de forma integrada para atender alguns objetivos, como o desenvolvimento regional, o uso do territrio e a melhora das condies de vida da populao. Diferentemente do verificado na Europa, o Brasil ainda no dispe de uma lei nacional de ordenamento do territrio (DUARTE, 2002).

  • 2

    A partir dos anos 1970, a emergncia e a consolidao de regies funcionais (SANTOS,

    1994) nos novos fronts agrcolas (Cerrados), apoiados por vultosos incentivos fiscais e pela

    adoo de uma nova base tecnolgica, criou uma nova demanda por fluidez territorial

    (ARROYO, 2001, p. 206) atravs de novas infra-estruturas de transportes. Duas razes bsicas

    substantivam essa demanda: a) a distncia dessas regies em relao aos portos exportadores e b)

    as caractersticas da produo (commodities agrcolas), exigentes de uma logstica capaz de

    armazenar, controlar e movimentar produtos de grande volume e baixo valor agregado. Os

    modais hidrovirio e, sobretudo, ferrovirio surgem como alternativas de fluidez a uma poro do

    territrio brasileiro at ento desprovida de boas condies de transporte.

    As regies dos novos fronts agrcolas, que por muitos sculos estiveram quase intactas,

    foram transformadas pela ao do homem. Esse uso efetivo do territrio ocorreu principalmente

    atravs da adoo das polticas agrcolas do governo e do pacote tecnolgico que permitiu o

    plantio em solo de baixa fertilidade. Os resultados dessas polticas so demonstrados pelas safras

    recordes de soja e pela competitividade deste produto no mercado internacional. Mas, por

    estarem distante dos portos e possurem baixa densidade de transportes, os novos fronts buscam

    constantemente, para no dizer ferozmente, por mais fluidez atravs de novas infra-estruturas de

    transportes.

    A retomada dos investimentos em ferrovias, voltados principalmente para o escoamento

    dos produtos agrcolas, implica em uma nova organizao e um novo uso do territrio. So

    necessrias novas normas e objetos tcnicos para o funcionamento eficiente dessas regies e para

    a regulao das relaes polticas, econmicas e sociais entre os diversos agentes. So justamente

    essas mudanas, essas novidades, que determinam um novo perodo da histria, o incio de um

    novo acontecer, de novas possibilidades e realizaes.

    Tanto a privatizao do sistema ferrovirio como a produo agrcola dos novos fronts

    so eventos que implicam na transformao das prticas e na mudana da lgica que preside a

    organizao do espao (BECKER, 2000, p. 11).

    No se coloca em discusso a importncia dos sistemas de transporte para a organizao

    de um territrio. Nossa preocupao volta-se para as implicaes que as atuais polticas de

    modernizao e expanso do sistema ferrovirio no Brasil podem trazer para a sociedade e o

    territrio. Trata-se de refletir sobre uma noo de desenvolvimento que no acarrete em mais

    excluso social, desigualdade e pobreza.

  • 3

    Na tentativa de melhor entender a organizao do territrio brasileiro atual, este trabalho

    pretende analisar a situao das ferrovias no Brasil, verificar o seu uso no transporte de produtos

    agrcolas e aportar uma modesta contribuio para o planejamento territorial.

    ESTRUTURA DO TRABALHO

    Este trabalho est organizado de maneira a permitir compreender a organizao e o uso do

    territrio brasileiro a partir da retomada do sistema ferrovirio brasileiro e da expanso da

    produo nos novos fronts agrcolas. Por ser um produto importante na agricultura brasileira e na

    composio das cargas das ferrovias, a soja ser utilizada com maior destaque no trabalho.

    Na primeira parte do trabalho, A Ferrovia como elemento constitutivo do espao

    geogrfico, sero discutidas as novas possibilidades de organizao do territrio surgidas a partir

    da criao das ferrovias. Esse novo perodo, que teve incio com as ferrovias, conhecido como a

    Primeira Revoluo Chandleriana. Nesse perodo, as ferrovias foram fundamentais para a

    organizao do territrio brasileiro e de outros paises no mundo ao reduzir, drasticamente, a

    distncia-tempo e a distncia-custo, nas aes sociais de maneira geral e econmicas em

    particular, unificando mercados regionais e integrando territrios nacionais. Muitas tcnicas e

    normas novas foram introduzidas, possibilitando aumentar a fluidez territorial e valorizar partes

    do territrio, que passaram a ser mais competitivas em relao a outras.

    Ao longo dos ltimos 150 anos, as ferrovias participaram da organizao do territrio

    brasileiro de diferentes maneiras e de acordo com os diferentes interesses dos agentes. No item

    Abordagem diacrnica das ferrovias no Brasil: uma proposta de periodizao, procura-se

    delinear pedaos coerentes de tempo de maneira a descrever os principais eventos que

    possibilitam compreender melhor a organizao espacial da atualidade. Para avaliar esses

    eventos, sero analisadas tambm as polticas pblicas definidas nos planos governamentais,

    como os Planos Nacionais de Desenvolvimento e PPAs, que ora indicavam a necessidade de

    promover a integrao internacional do territrio, ora a integrao regional.

    No terceiro item do trabalho, Abordagem sincrnica das ferrovias no Brasil: uma anlise

    da situao atual, ser feita uma anlise do atual sistema temporal. Como ser apresentado, o

    recm privatizado sistema ferrovirio foi transferido a empresas que, com novos objetivos e

    intenes, esto redirecionando os usos das ferrovias e os investimentos e, conseqentemente,

  • 4

    promovendo uma reorganizao espacial do territrio. Essa retomada das ferrovias representa

    tambm uma reorientao da matriz de transportes que tem a rodovia como o modal mais

    utilizado. Neste item ser feita uma comparao entre os modais ferrovirio, hidrovirio e

    rodovirio para tentar compreender como estes contribuem para o ordenamento territorial e

    porque a ferrovia est sendo privilegiada para o transporte de produtos agrcolas dos novos fronts.

    Neste item sero analisados, tambm, o processo de privatizao do sistema ferrovirio, que foi

    norteado pelas polticas neoliberais, os contratos estabelecidos entre a Unio e as empresas

    concessionrias e os investimentos realizados para a readequao das ferrovias. Como ser

    apresentado, o investimento para reativar o sistema ferrovirio tem como objetivo principal

    promover a integrao internacional do territrio brasileiro, ligando determinadas regies aos

    mercados internacionais.

    A caracterizao dos novos fronts agrcolas e dos corredores de exportao, descritos no

    item O Transporte ferrovirio de produtos agrcolas, importante para o entendimento da

    organizao do territrio brasileiro promovida pelos agentes. Os novos fronts so regies onde a

    presena de tcnicas e normas hegemnicas e exgenas significativa e muito diferente de outras

    regies agrcolas do Brasil, como o Sul. So regies que, por estarem distantes dos portos

    exportadores, se utilizam dos corredores para multiplicar a movimentao dos produtos agrcolas.

    Como ser apresentado, as ferrovias passam a contribuir para o aumento da fluidez territorial.

    Para finalizar o trabalho sero apresentadas algumas concluses que possam indicar

    algumas contribuies do sistema ferrovirio para a sociedade e para a organizao do territrio

    brasileiro.

    Informaes complementares sobre este trabalho esto disponveis nos anexos e na

    bibliografia utilizada.

  • 5

    1.

    A FERROVIA COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DO ESPAO GEOGRFICO

  • 6

    A Primeira Revoluo Chandleriana e a nova concepo espao-temporal da

    sociedade

    A ferrovia, que surgiu no incio do sculo XIX, contribuiu para o incio de uma nova

    sociedade, de uma nova relao entre agentes, pases e regies e para uma formao espacial

    muito mais complexa.

    Esta nova realidade alterou profundamente as relaes econmicas entre diferentes

    localidades, reduziu a distncia medida em tempo e custo e formou grande parte das cidades que

    conhecemos atualmente. Com as ferrovias foi o comeo do fim do isolamento das pessoas e das

    regies.

    As trocas mercantis aumentaram e contriburam para o surgimento de regies

    especializadas em determinado tipo de produto. As empresas, at ento de abrangncia local,

    passaram a atuar nas escalas nacional e internacional, necessitando, portanto, de novas tcnicas e

    normas para gerir os recursos materiais e imateriais. A organizao das empresas foi possvel

    tambm graas ao surgimento do telgrafo, que evoluiu junto com as ferrovias.

    Com o surgimento das empresas ferrovirias, um novo ambiente normativo foi sendo

    institudo para regular o funcionamento das ferrovias e da dinmica do sistema. As normas

    definiram tambm grande parte do funcionamento da sociedade e das regies, que passaram a ter

    como parmetro de organizao e de circulao os horrios e os traados das ferrovias.

    Esse novo perodo, compreendido entre o incio do sculo XIX e incio do sculo XX,

    ficou conhecido como a Primeira Revoluo Chandleriana, proposta pelos autores Bressand &

    Distler, em 1995, e que teve como referncia a obra de Alfred Chandler The Visible Hand, The

    Managerial Revolution in American Business. Nesse perodo, com o surgimento das ferrovias e

    do telgrafo, verificou-se uma nova organizao do mundo e das relaes econmicas baseada

    numa crescente diminuio da frico do espao (Bressand & Distler, Apud CASTILLO, 2001,

    p. 239).

    O emprego dessas novas tcnicas, a ferrovia e o telgrafo, permitiu a acelerao do

    fluxo de pessoas e de bens materiais e imateriais, como informao, relatrios e cotaes de

    preos. Utilizada primeiramente pelas empresas e organizaes, essas tcnicas permitiram as

    primeiras percepes da instantaneidade e da possibilidade da ao distncia quase que de

  • 7

    forma imediata. Foi o incio da convergncia dos momentos2, e de um novo uso do tempo e do

    espao (SANTOS, 2002a, p. 186).

    Os avanos foram tremendos, porm a instantaneidade percebida no era completa,

    total, como a do perodo atual, pois ainda o tempo era estabelecido por intermedirios que tinham

    seus horrios de funcionamento e atrasos de distribuio dos sinais3.

    Foi o perodo que deu incio emergncia de espaos mais racionais e ao processo de

    transportar o nacional, e depois o universal, ao local; ou, ainda, configurao de espaos de um

    mundo em processo de internacionalizao. As ferrovias no s ligavam os lugares ao mundo,

    como ligavam o mundo aos lugares. E isso se dava atravs da troca de mercadorias, de idias, de

    informaes, de normas e de experincias.

    As ferrovias ajudaram tambm na origem de um complexo sistema de diviso

    internacional do trabalho, devido ao incremento de produtividade nos transportes4.

    Contriburam, tambm, para modificar o tempo e o movimento dos homens (ELLUL, 1968, p.

    335, 337) e reduzir o lapso de tempo que permitiu instalar uma ponte entre lugares distantes,

    tornando-os virtualmente aproximados (DIAS, 2002, p. 141).

    Os sistemas de transporte evoluram consideravelmente aps o surgimento das ferrovias e,

    na mesma direo, foram a organizao das empresas e dos pases. As escalas de planejamento

    das empresas e do Estado mudaram, possibilitando a unificao das aes e a

    especializao/diferenciao das regies. A valorizao e desvalorizao dos espaos marcante

    nesse perodo e as dinmicas das regies, dos pases e da sociedade se transformaram. O poderio

    mercantil, que estava restrito principalmente aos portos, agora avana sobre o interior dos

    territrios com grande velocidade.

    O surgimento das ferrovias no incio do sculo XIX na Inglaterra e na metade do mesmo

    sculo no Brasil, contribuiu para a organizao das relaes comerciais e sociais entre regies,

    2 As ferrovias deram incio convergncia dos momentos. A histria das tcnicas , realmente, a histria da convergncia dos momentos e a partir da estrada de ferro esse processo de unificao marcha a galope (SANTOS, 2002a, p. 186). 3 Hoje, a simultaneidade percebida no apenas a que era trazida, no incio do sculo, pelo telgrafo, pelo cabo submarino ou pelo telefone, que transportavam sinais e vozes sem outra defasagem que os horrios de funcionamento preestabelecidos ou os atrasos na distribuio. Hoje, as mensagens e os dados chegam aos escritrios e lares diretamente, praticamente sem intermedirios (SANTOS, 2002a, p. 200). 4 o efeito combinado do incremento de produtividade nos transportes reduo dos fretes a longa distncia e da insero no comrcio de um fluxo de novos produtos originrios da indstria, deu origem a um complexo sistema de diviso internacional do trabalho, o qual acarretaria importantes modificaes na utilizao dos recursos em escala mundial. (FURTADO, 1974, p. 77).

  • 8

    pases e continentes. Modificaram, tambm, a configurao territorial de muitos pases, como foi

    o caso dos Estados Unidos que, na segunda metade do sculo XIX, conseguiram integrar o pas e

    transformar a atuao das empresas de regional para nacional e depois para internacional

    (CHANDLER, 1998, p. 19).

    Para ANDRADE (1970, p. 64) a expanso das ferrovias na segunda metade do sculo

    XIX foi fundamental para a integrao dos territrios francs e norte americano, permitindo o

    crescimento dos plos principais de expanso de sua rea de influncia, pela formao de 'ns de

    trfego' e de 'zonas de desenvolvimento'.

    Na virada do sculo XIX, a chave da dominao mundial passou a ser exercida pela

    hipertrofia do poder terrestre, condicionado este ao desenvolvimento das vias frreas (FORTES,

    1956, p. 26). Graas s ferrovias, grandes potncias, como os Estados Unidos e a Rssia,

    consolidaram a integrao de seus territrios.

    No Brasil, as ferrovias tiveram um papel importante na organizao da regio oeste do

    estado de So Paulo. Elas foram construdas para atender ao escoamento da produo do caf

    destinada s exportaes, mas contriburam tambm para a criao de muitas cidades do interior

    paulista. Segundo MONBEIG (1984, p. 385), sobre o oeste paulista mais exato falar em

    regies ferrovirias, que de regies geogrficas ou econmicas. Novas cidades foram criadas e

    muitas outras ganharam uma importncia regional.

    O surgimento das ferrovias foi to marcante que SILVA (1949, p. 71) props uma

    periodizao dos transportes e subdividiu a circulao interna em primitiva, para o perodo

    anterior ao advento das ferrovias, e atual, para o perodo que compreende o uso das ferrovias e

    rodovias modernas. At ento, a circulao interna estava restrita s tcnicas de navegao fluvial

    e por canal, que tinham uma topologia mais rgida, pouco flexvel, proporcionando velocidades

    reduzidas. Com as ferrovias, o territrio pde ser integrado e os tempos de viagem encurtados

    tremendamente.

    A convergncia tempo-espao possibilitada, aps 1850, em regies servidas pelas

    ferrovias e pelo telgrafo.

    Todas as transformaes sociais e territoriais ocorridas na Primeira Revoluo

    Chandleriana se devem, principalmente, evoluo e ao emprego das tcnicas e das normas, que,

    como ser apresentado a seguir, tiveram como principal caracterstica a sua abrangncia global,

    porm desigual.

  • 9

    Ferrovias: densidades tcnicas e normativas

    A implantao das ferrovias no mundo, iniciada no sculo XIX, ocorreu quase que

    simultaneamente. No Brasil, a assinatura do primeiro decreto e as primeiras concesses

    coincidem com a primeira fase do surto ferrovirio, verificado na Inglaterra entre 1835 e 1837

    (NAGAMIMI, 1994, p. 134). Como afirmou ELLUL (1968, p. 119), a tcnica alcana

    progressivamente pas aps pas e sua rea de ao identifica-se com o mundo. Porm, os

    resultados dessa implantao foram diferentes para cada pas, j que a tcnica efetivada em cada

    territrio tem suas leis e suas razes (ELLUL, 1968, p. 213).

    GEORGE (1970, p.293) chega a classificar a economia industrial dos pases de acordo

    com a densidade das linhas ferrovirias. Segundo esse autor, pases com densidades superiores a

    10 km/100 km2 possuem complexos industriais macios, com base em indstrias pesadas; pases

    com densidades entre 5 e 10 km/100km2 possuem conjuntos regionais que associam zonas ou

    focos industriais a regies agrcolas em economias industriais de mercado nacional e importante

    comrcio internacional; com densidade menor que 5 km/100km2 so pases subdesenvolvidos,

    onde o trem geralmente importado, no quadro de sistemas de explotao colonial ou semi-

    colonial. Por traz dessas densidades tcnicas est a lgica de implantao e utilizao das linhas,

    que ora realiza integraes intra e inter-regionais e ora realiza integraes internacionais, ligando

    a produo aos portos exportadores.

    Nos pases centrais, as linhas ferrovirias alcanaram, at o ano de 1900, quase que a sua

    extenso total, permitindo integrar os territrios e ligar as principais cidades (BARKE, 1986, p.

    70). O desenvolvimento dos meios de transporte est apresentado no GRFICO 1.1.

    Uma das principais caractersticas do desenvolvimento das ferrovias da primeira

    Revoluo Chandleriana foi a difuso desigual das tcnicas e das normas que, juntas,

    constituram o sistema ferrovirio. A construo das ferrovias se deu de forma seletiva sobre o

    espao e teve como base definidora a busca de regies j competitivas ou com potencial de serem

    competitivas, acelerando e acentuando, desse modo, a diferenciao das regies. Esta

    diferenciao estava, portanto, diretamente relacionada com as tcnicas e as normas empregadas.

  • 10

    Alm de transportar bens materiais e imateriais, as ferrovias contribuem diretamente,

    tambm, para a difuso da tcnica a todos os lugares servidos pelas linhas ferrovirias. As regies

    servidas pelas ferrovias so valorizadas duplamente, uma vez pela prpria possibilidade de acesso

    a outros mercados, de escoamento de produtos, por exemplo, e a segunda pelo prprio acesso a

    novas tcnicas que trafegam pela ferrovia.

    E esse acrscimo constante e acelerado de tcnicas um processo irreversvel. Como

    analisou ISNARD (1982, p. 191), o espao geogrfico no tem a capacidade de auto-adaptao,

    como o espao natural, portanto, somente com mais tcnica possvel controlar e reduzir os

    desequilbrios decorrentes da ao do homem.

    As tcnicas e as normas das ferrovias determinam como o uso do espao ser realizado,

    ou seja, como as regies sero organizadas e quem sero os beneficiados. O uso do espao a

    transformao de matria prima pela ao do homem para assegurar a sua existncia. J o uso

    1700 1750 1800 1850 1900 1950

    50

    100 __

    1650

    % da extenso final

    Rio

    estradas

    CanalFerrovia

    Carros por 1000 habitantes

    | | | | | |

    Fonte: BARKE (1986, p. 70)

    GRFICO 1.1 DESENVOLVIMENTO DOS MEIOS DE TRANSPORTES

  • 11

    privado do espao pode ser aquele a assegurar a existncia de particulares, de poucas empresas,

    dos agentes hegemnicos.

    O conjunto de tcnicas e normas pode determinar o grau de tecnicidade da sociedade e

    das empresas. Essa tecnicidade, que pode ser definida como o conjunto de relaes que o homem

    mantm com as matrias, ou seja, a relao de transformao do espao geogrfico, nos conduz

    diretamente na esfera do poder (RAFFESTIN, 1993, p. 227). As ferrovias, portanto, conferiram

    s empresas maior capacidade de organizar o espao geogrfico de acordo com seus objetivos

    particulares.

    Foi tambm atravs dessas tcnicas, as ferrovias, que pores dos territrios passaram a

    ser organizados em forma reticular ou, como sugeria Saint-Simon, como organismo rede. Saint-

    Simon partia da idia de que o corpo humano se solidifica e morre quando a circulao

    suspensa. Graas a essa analogia de organismo rede, Saint-Simon disps de uma ferramenta de

    anlise para conceber uma cincia poltica e formular um projeto de melhoria geral do territrio

    da Frana. O projeto consistia em traar sobre o territrio (organismo) as redes para assegurar a

    circulao de todos os fluxos, enriquecendo o pas e melhorando as condies de vida de todas as

    classes sociais (DIAS, 2005, p. 16). O problema dessa teoria, alm da analogia organicista que a

    estrutura, a de afirmar uma relao mecanicista entre a expanso de rede e a emancipao social

    e econmica. No raro encontrar, ainda hoje, heranas de pensamento sansimonista, sobretudo

    entre os planejadores.

    Mais aderente realidade nos parece o caminho que considera o conjunto das tcnicas e

    das normas, das formas e dos contedos, de maneira indissocivel (SANTOS, 2002a, p. 337), e

    sua contribuio para a construo de um espao artificial, racional, sendo indispensvel para que

    as grandes empresas possam se utilizar plenamente do territrio5. Alm da desigual difuso dos

    sistemas ferrovirios pelos territrios, a forma e o contedo das linhas no so

    homogneas. Estas formas condicionam totalmente o contedo do sistema, ou seja, a

    maneira como os fluxos materiais e imateriais so definidos. E, por outro lado, a forma e o

    contedo das ferrovias esto diretamente relacionados com a competitividade regional e a

    fluidez territorial.

    5 O espao racional supe uma resposta pronta e adequada s demandas dos agentes, de modo a permitir que o encontro entre a ao pretendida e o objeto disponvel se d com o mximo de eficcia (SANTOS, 2002a, p. 300).

  • 12

    Competitividade regional e fluidez territorial

    A competitividade das regies e a maior ou menor fluidez territorial (ARROYO, 2001, p.

    105), que so sempre relativas, esto diretamente ligadas com a densidade tcnica e normativa

    inerentes aos sistemas de transporte. Quanto maior a densidade das ferrovias, por exemplo, maior

    a possibilidade de circulao e de realizao de trocas entre regies diferentes e de uma delas se

    tornar competitiva, ou melhor, se valorizar.

    Essa fluidez territorial pode ser compreendida como sendo a maior ou menor capacidade

    de realizao de trocas entre diferentes localidades. Quanto maior a fluidez, maior a capacidade

    de troca e da possibilidade das regies se tornarem mais competitivas. A fluidez pode ser

    classificada em virtual, quando considerada apenas a densidade tcnica dos meios de

    transporte, como quantidade de terminais e portos, quilmetros de rodovias, ferrovias e hidrovias,

    e efetiva, quando considerado a freqncia e o uso efetivo dos sistemas de transporte, ou seja, a

    quantidade de produtos transportados (SANTOS & SILVEIRA, 2001, p. 262).

    Quando a fluidez efetiva maior que a virtual, o sistema de transporte pode entrar em

    colapso e as trocas podem no ser efetivadas. Numa situao extrema, quando a fluidez nula as

    trocas no se realizam e as regies permanecem isoladas, no competitivas.

    A fluidez territorial , ao mesmo tempo, uma causa, uma condio e um resultado

    (SANTOS, 2002a, p. 374). uma causa porque o aumento das trocas resulta em mais fluidez

    territorial; uma condio porque sem ela no h a possibilidade de competitividade e

    valorizao das regies; e resultado porque as prprias regies, para se valorizarem, buscam

    mais fluidez. Est baseada nas redes tcnicas, animadas por fluxos, que so um dos suportes da

    competitividade, da a busca voraz de mais fluidez e de mais tcnicas (SANTOS, 2002a, p. 274).

    A possibilidade de valorizao, do aumento da competitividade regional, requer um

    sistema de transporte que movimente a produo, j que esta s se torna til ou se torna uma

    mais valia, quando seu valor percebido distncia, quando esta possui mobilidade. Com o

    surgimento das ferrovias, essa circulao passa, ento, a comandar as mudanas de valor dos

    espaos6, do territrio, promovendo a fragmentao e a diviso territorial do trabalho.

    As vantagens locacionais, como os estoques de recursos naturais, por exemplo, no

    bastam para que as regies sejam competitivas. necessrio que esses recursos sejam 6 O prprio padro geogrfico definido pela circulao, j que esta, mais numerosa, mais densa, mais extensa, detm o comando das mudanas de valor no espao (SANTOS, 2002a, p. 268).

  • 13

    movimentados, que a fluidez territorial seja adequada para o deslocamento dos produtos. Essa

    possibilidade de movimentao foi marcante com o surgimento das ferrovias. Como afirmou

    SANTOS, No basta, pois, produzir. indispensvel pr a produo em movimento. Em

    realidade, no mais a produo que preside circulao, mas esta que conforma a produo

    (SANTOS, 2002a, p. 275). Ou ainda, que a produtividade e a competitividade deixam de ser

    definidos devido apenas estrutura interna de cada corporao e passam, tambm, a ser um

    atributo dos lugares (SANTOS, 2002b, p. 88).

    A competitividade regional, que estava restrita s regies prximas aos portos martimos

    e fluviais, pode ser efetivada em regies localizadas no interior dos territrios, ou seja, para

    praticamente qualquer lugar de alcance das ferrovias. As ferrovias tornaram-se um elemento

    importante na definio das regies que seriam favorecidas e que passariam a ser mais

    competitivas nacional e internacionalmente.

    Esse processo de valorizao e desvalorizao das regies, que tem os sistemas de

    transporte como principal condicionador, pode ser o incio do que se convencionou chamar de

    guerra dos lugares (SANTOS, 2002a, p. 268-269). Para que as regies se tornem competitivas

    frente s demais, elas necessitam de mais fluidez, de mais trocas e, com o aumento dessas trocas,

    a fluidez ainda mais necessria.

    No Brasil, com o surgimento das ferrovias a fluidez de pores do territrio brasileiro

    aumentou significativamente, principalmente no Oeste Paulista. As regies servidas pelas

    ferrovias passaram, ento, a ser competitivas para os mercados internacionais.

    Esse aumento da fluidez territorial e da competitividade regional verificado a partir da

    Primeira Revoluo Chandleriana foi definido, em grande parte, por polticas pblicas e privadas

    que visavam valorizar determinadas regies. Essas polticas foram definidas para atender

    diversos interesses e planos governamentais, permitindo, assim, constituir uma periodizao para

    o sistema ferrovirio no Brasil.

  • 14

    2.

    ABORDAGEM DIACRNICA DAS FERROVIAS NO BRASIL: UMA PROPOSTA DE PERIODIZAO

  • 15

    O territrio como componente da periodizao

    Uma periodizao pode ser observada quando um determinado evento, que a princpio

    uma novidade, um desvio, uma anormalidade frente aos eventos de um sistema temporal

    (SANTOS, 2002c, p. 249-260), se torna, em seguida, num evento regular, que se mantm, que se

    reproduz uniformemente e que substitui ou se torna mais significativo que os do momento de sua

    emergncia. Aquilo que a princpio era uma novidade, um desvio, se torna um padro (SANTOS,

    2002a, p. 146).

    Porm, esses eventos no se realizam isoladamente mas, sim, de forma solidria,

    formando uma situao, um sistema de eventos, que pode variar de acordo com a sua escala de

    origem e de realizao. Esses diferentes eventos, por sua vez, so caracterizados pelas tcnicas

    utilizadas pela sociedade para construir a histria do uso do territrio7.

    O uso do territrio pode ser verificado atravs da implantao de infra-estruturas, da

    dinmica da economia e da sociedade, das polticas dos governos e das empresas, das normas e

    leis utilizadas na regulao, das regras de financiamento e da agricultura (SANTOS &

    SILVEIRA, 2001, p. 21).

    As polticas de transporte no Brasil, por exemplo, no foram as mesmas ao longo dos

    ltimos 150 anos. O Estado se preocupava, num determinado momento, com a ocupao do

    territrio brasileiro, num segundo momento, com a modernizao e, num terceiro, com a insero

    internacional (QUADRO 2.1). As polticas econmicas ora estavam preocupadas com a

    integrao voltada para o mercado externo, atravs das exportaes, ora para o mercado interno.

    Os prprios produtos transportados e as formas de investimentos foram bem diferentes para cada

    momento. Para acompanhar essas mudanas, os sistemas de transportes foram sendo

    readequados, refuncionalizados, reaparelhados.

    Analisando os sistemas de eventos, possvel definir, ento, a periodizao do sistema

    ferrovirio brasileiro em trs momentos distintos: a) criao e expanso; b) estatizao e

    readequao e c) desestatizao e recuperao (para o transporte de carga).

    7 Por intermdio de suas tcnicas diversas no tempo e nos lugares, a sociedade foi construindo uma histria dos usos do territrio nacional (SANTOS & SILVEIRA, 2001, p. 27).

  • 16

    QUADRO 2.1 PERIODIZAO DAS FERROVIAS NO BRASIL

    Caractersticas\Momento Criao e expanso Estatizao e readequao

    Desestatizao e recuperao

    Perodo aproximado 1835-1957 1957-1996 1996-atual

    Plano nacional do governo brasileiro relativo aos transportes

    Ocupao Modernizao do territrio, era

    desenvolvimentista, segurana nacional

    Insero internacional,

    globalizao, ocupao dos

    cerrados

    Caracterstica do sistema ferrovirio

    Desenvolvimento Readequao Reestruturao

    Extenso da linha (Km) 30 mil 30 mil 29 mil

    Prioridade econmica do governo Exportao Integrao do territrio/exportao

    Exportao

    Controle das ferrovias Privado Estatal Privado

    Investimentos em novas linhas Privado Estatal Estatal/Privado

    Investimentos na operao Privado Estatal Privado

    Caractersticas dos principais fluxos

    Vrios produtos e passageiros

    Commodities e passageiros

    Commodities e containers

    Principais produtos Caf Minrio Minrio e soja

    Prioridade dos investimentos em transporte

    ferrovias rodovias ferrovias e rodovias

    Objetivos dos investimentos Construo de novas linhas

    Saneamento das empresas

    Melhoria da eficincia

    operacional

    Relao entre expanso agrcola e ferrovias

    A agricultura segue a expanso

    das linhas

    - As ferrovias seguem a expanso da

    agricultura

    Fontes consultadas: TELLES (1984), VARGAS (1994) e ANTT (www.antt.gov.br). Organizado pelo autor.

  • 17

    Momento 1 - Criao e expanso do sistema ferrovirio

    O primeiro momento da periodizao das ferrovias no Brasil vai de 1835, com as

    primeiras tentativas de criao de empresas ferrovirias, at 1957, quando o sistema ferrovirio

    foi estatizado com a criao da RFFSA Rede Ferroviria Federal S.A.

    Nesse primeiro momento, o territrio brasileiro, segundo BARAT (1978, p. 89), estava

    organizado mais como um arquiplago do que como um continente.

    A organizao do territrio brasileiro no incio deste momento da periodizao do sistema

    ferrovirio muito bem caracterizada, tambm, por Golbery do Couto e Silva (COUTO E

    SILVA, 2003, p. 35, 36, 562). Para esse autor, do ponto de vista da circulao, o territrio

    brasileiro um vasto arquiplago, formado por um ncleo central (So Paulo, Belo Horizonte e

    Rio de Janeiro), trs grandes pennsulas (regies Nordeste, Sul e Centro-Oeste) e uma grande

    ilha perdida (Amaznia). Para a integrao e valorizao do territrio brasileiro, o autor prope

    a revitalizao de trs stimos de circulao, entre o ncleo central e as trs pennsulas, e, a partir

    de ento, a aproximao do Centro-Oeste com a Amaznia (ver representao no ANEXO 1).

    J para Wilson Cano, o territrio brasileiro estava organizado em regies isoladas

    economicamente devido, principalmente, configurao dos sistemas de transportes, j que as

    grandes distncias causavam margens naturais de proteo s industriais locais (CANO, 1998,

    p. 60). Antes de 1940, a nica integrao entre os plos exportadores no Brasil era realizada

    atravs da navegao de cabotagem (BARAT, 1978, p. 91).

    O que se verificava nesse momento que a economia nacional no era integrada, j que

    cada uma das regies havia tido uma histria e uma trajetria especfica (CANO, 1998, p. 312),

    ou seja, eram independentes.

    Para FURTADO (1959, p. 110), no final do sculo XVIII, a economia brasileira se

    apresentava como uma constelao de sistemas em que alguns se articulavam entre si e outros

    permaneciam praticamente isolados. A integrao territorial era algo pouco realista, j que na

    primeira metade do sculo XIX os interesses regionais constituam uma realidade muito mais

    palpvel que a unidade nacional (FURTADO, 1959, p. 115).

    O crescimento da economia cafeeira, verificada entre 1880 e 1930 e ajudada pelas

    ferrovias, criou fortes discrepncias regionais mas, por outro lado, dotou o Brasil de um slido

  • 18

    ncleo em torno do qual as demais regies tiveram necessariamente de articular-se (FURTADO,

    1959, p. 273).

    Por ser um grande produtor de produtos tropicais, isso logo aps a independncia, o Brasil

    estava intimamente integrado s economias europias, das quais dependia. No era constitudo,

    portanto, num sistema autnomo, mas sim um prolongamento de outros sistemas maiores

    (FURTADO, 1959, p. 116).

    Apesar dos vrios surtos de crescimento industrial entre 1885 e 1930, a economia

    brasileira se manteve fundamentalmente com a caracterstica de exportadora de produtos

    primrios (BARAT, 1978, p. 8), tendo a infra-estrutura de transportes, as ferrovias, voltadas para

    o escoamento dos fluxos de produo do interior ao litoral (BARAT, 1978, p. 9). A organizao

    das atividades econmicas no Brasil podia ser definida, tambm, como uma sociedade agro-

    exportadora (NAGAMIMI, 1994, p. 131). Esse padro de acumulao primrio-exportador s

    comeou a ser modificado com a crise de 1929 (CANO, 1998, p. 285).

    No final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, com a decadncia das atividades de

    extrao do ouro, o territrio brasileiro passa a se organizar novamente na atividade econmica

    da produo agrcola. Por estar voltada ao exterior, essa produo se fixa na faixa litornea de

    norte a sul, prxima aos portos de embarque e exportao (PRADO JNIOR, 2004, p. 85). As

    ferrovias vm participar exatamente desta organizao produtiva interior-portos-exterior.

    Essa dependncia externa dos sistemas ferrovirios nesse primeiro momento promoveu

    uma catstrofe para a Ferrovia Madeira-Mamor, no estado de Rondnia. Construda com o

    objetivo de exportar borracha, sua utilizao j estava invivel em 1912, ano de sua inaugurao,

    quando os preos internacionais da borracha despencaram.

    Nesse momento, a Inglaterra tinha interesse em investir e operar ferrovias e portos, pois

    era uma garantia de maior eficincia no transporte de produtos a ela destinado, assim como

    tambm permitia a absoro dos seus bens de capital e da sua tecnologia (BARAT, 1978, p. 10).

    At a primeira metade do sculo XX, mais precisamente s vsperas da Segunda Guerra, os

    investimentos estrangeiros no Brasil provinham predominantemente da Inglaterra (55% do total).

    Os americanos participavam com 28% e os canadenses com 9%. Aps a Segunda Guerra, a

    situao se inverteu. Os americanos e os canadenses participavam com 54% e os ingleses com

    29% (MONBEIG, 1971, p. 122-123).

  • 19

    O incio da implantao das ferrovias pode ser organizado em alguns eventos: a) tentativa

    de instalao das ferrovias, em 1835; b) inaugurao da Estrada de Ferro D. Pedro II, em 1854; c)

    transferncia das atenes para o Oeste paulista, com a inaugurao da Estrada de Ferro Santos-

    Jundia (NAGAMIMI, 1994, p. 136).

    O modelo adotado para a implantao das ferrovias, que inclua os incentivos para atrair

    os investidores, era: a) garantia de juros de 5% a 7%; b) criao da zona de privilgios de 30 km

    para cada lado das linhas (NAGAMIMI, 1994, p. 138). Alm da prpria atividade de transporte,

    as empresas ferrovirias podiam explorar as margens das ferrovias.

    No primeiro momento da histria das ferrovias, as leis formuladas provocaram grandes

    problemas para os dois momentos subseqentes. Na Lei 641, 26 de junho de 1852, a garantia de

    juros de at 5% a.a. sobre o capital empregado na construo das estradas de ferro foi um

    incentivo ineficincia na construo e operao das ferrovias, j que as tarifas pouco

    importavam e o lucro era garantido pelo governo (TELLES, 1994, p. 233). Numa tentativa de

    desenvolver ainda mais as estradas de ferro no Brasil, foi decretada a Lei 2.450 de 24 de

    setembro de 1873 que tratava das subvenes quilomtricas.

    A criao das subvenes quilomtricas, em que o governo arcaria com 30 contos por

    quilmetro construdo, fez com que as estradas fossem as mais baratas possveis, sem recortes,

    tneis e pontes, conseqentemente com muitos desvios e curvas. O que deveria ser um incentivo,

    foi responsvel pela construo de pssimas estradas, com efeitos desastrosos e srios entraves

    para as ferrovias e para o territrio nacional. Estas leis foram extintas em 1903.

    A construo das linhas, segundo A. B. Fortes, obedeceu quase que exclusivamente a

    injunes polticas. As ferrovias, debruadas todas elas sobre o litoral, esto longe ainda de

    proporcionar um grau aceitvel de integrao social (FORTES, 1956, p. 27-28).

    A construo das ferrovias brasileiras, por no se enquadrar em objetivos nacionais

    mais amplos, gerou uma heterogeneidade de tecnologias e bitolas (mais de 10 medidas

    diferentes) (CAIXETA-FILHO, 2001b, p. 82). Essas diferenas de carter tcnico entre as

    empresas ferrovirias no eram to percebidas, pois funcionavam como sistemas isolados.

    Logo no incio das construes ferrovirias, a produo do caf foi deslocada para os

    estados de So Paulo e Paran, fazendo com que a ferrovia perdesse o sentido no Rio de Janeiro

    por falta de cargas (LAMBERT, 1972, p. 167). A ferrovia monofuncional, dependente quase que

  • 20

    exclusivamente de um nico produto, o caf, comprometeu a organizao do territrio do Rio de

    Janeiro.

    A relao entre produtores de caf e ferrovias explicada por FURTADO (1959, p. 116)

    ao descrever quem foram os governantes aps a independncia do Brasil. Para esse autor

    no existia na colnia sequer uma classe comerciante importante - o grande comrcio era

    monoplio da Metrpole - resultava que a nica classe com expresso era a dos grandes

    senhores agrcolas. Qualquer que fosse a forma como se processasse a independncia,

    seria essa classe a que ocuparia o poder, como na verdade ocorreu, particularmente a

    partir de 1831.

    No mapa A regio vital do Brasil, MONBEIG (1971, p. 120) mostra a relao muito

    prxima entre as culturas de caf, no estado de So Paulo, e a ferrovia (MAPA 2.1). O interior do

    Estado de So Paulo servido por linhas ferrovirias na busca do caf, que seguia, ento, aos

    portos exportadores.

    MAPA 2.1 FERROVIAS E O CAF MOMENTO 1

    Fonte: MONBEIG (1971, p. 120-121)

  • 21

    A lgica de funcionamento da rede ferroviria podia ser verificada tambm pelos tipos de

    vages empregados para o transporte. Em 1951, dos mais de 65 mil composies existentes,

    quase 7 mil eram do tipo carro (passageiros, dormitrios, restaurante, bagagens, correio) e 5 mil

    especficos para transporte de gado (GORDILHO, 1956, p. 158-159).

    A evoluo do sistema ferrovirio (FORTES, 1956, p. 29) nesse primeiro momento foi

    enorme, atingindo mais de 34 mil quilmetros de linhas ou 400 km por ano de mdia (QUADRO

    2.2).

    Nesse momento, a tcnica importada, fornea, ou seja, a locomotiva a vapor, foi adaptada

    no Brasil para usar carvo nacional e lenha como fontes de energia, possuindo poder calorfico

    inferior ao carvo importado (LAMBERT, 1972, p. 166). A gua utilizada nas caldeiras tambm

    no era adequada ou de mesma qualidade. So adaptaes que comprometeram o territrio, seja

    pela fluidez reduzida, pelos custos envolvidos ou pelas florestas destrudas.

    QUADRO 2.2 - EVOLUO DAS LINHAS FERROVIRIAS - 1845 1939

    Ano Construdo (km) Evoluo (km) 1854 14,5 14,5 1860 208,2 222,7 1865 275,7 498,4 1870 246,5 744,9 1875 1.055,1 1.800 1880 1.597,9 3.397,9 1885 3.532,4 6.930,3 1890 3.042,8 9.973,1 1895 2.994 12.967,1 1900 2.349,3 15.316,4 1905 1.464,4 16.780,8 1910 4.544,7 21.325,5 1915 4.736,5 26.062 1920 2.238 28.300 1925 2.431,5 30.731,5 1930 1.746,5 32.478 1935 628 33.106 1939 1.098,2 34.204,2

    Fonte: BARAT, 1991, p. 10

  • 22

    A pulverizao da rede ferroviria em pequenas empresas, que deveriam ter recursos

    prprios de administrao, oficinas e estoques de reposio, agravou a situao financeira das

    empresas. Em 1952, segundo LOPES e SOBRINHO (1951, p. 55), existiam 40 empresas

    deficitrias de um total de 44. Esta situao s foi resolvida com a criao da RFFSA, em 1957,

    consolidando as 18 ferrovias regionais, e da FEPASA, em 1971.

    A infra-estrutura, utilizada at ento para o escoamento de produtos aos portos

    exportadores, passou a ser, no momento subseqente, um obstculo ao crescimento econmico,

    principalmente por dois fatores: a) deteriorao do sistema ferrovirio e porturio devido ao

    declnio dos fluxos de exportao e de restries de importao de peas de reposio e b) a

    incapacidade das ferrovias de promover a unificao dos mercados, em virtude do isolamento dos

    sistemas e das restries dos traados (BARAT, 1978, p. 13).

    Comea, ento, o segundo momento da periodizao do sistema ferrovirio, que tem o

    Estado como principal agente centralizador das decises.

    Momento 2 - Estatizao e readequao do sistema ferrovirio

    O segundo momento da periodizao, que vai de 1957, com a criao da RFFSA, at

    1996, com a privatizao do sistema ferrovirio, tem como principal caracterstica o controle

    estatal do sistema ferrovirio.

    A nacionalizao das ferrovias no Brasil, com a criao da RFFSA e da FEPASA,

    colocou sobre os ombros da Unio ou de certos Estados uma carga pesada. O nmero de

    passageiros decresce e o trfego de mercadorias no assinala um progresso seno graas ao

    minrio de ferro (MONBEIG, 1971, p. 117).

    Na primeira metade do sculo XX j se verificava uma progressiva emergncia de um

    sistema cujo principal centro dinmico era o mercado interno (FURTADO, 1959, p. 267). As

    ferrovias, implantadas para atender o escoamento de produtos primrios em direo aos portos,

    revelaram-se inadequadas para responder aos estmulos do intenso processo de industrializao

    iniciado a partir da dcada de 1930 (BARAT, 1978, p. 23). Os sistemas ferrovirios regionais

    contriburam pouco para a unificao dos mercados. Este redirecionamento das polticas

    econmicas, agora preocupadas com o mercado interno, requeria meios de transporte que

    ligassem as regies do Brasil. Surge, ento, o rodoviarismo.

  • 23

    Na dcada de 1950, FORTES (1956, p. 29) j previa que, com o apogeu da poltica

    rodoviria, iniciada em 1930 com o Presidente Washington Lus, as ferrovias existentes, com

    rarssimas excees, entrariam em franca degresso. Quanto ao rodoviarismo, FORTES (1956, p.

    44) salienta, ainda, que houve uma indiscriminada utilizao das rodovias quanto s cargas

    transportadas e uma forte dependncia externa devido importao de combustveis, veculos,

    asfalto. Importaes onerosas para o pas e um abandono das ferrovias j constitudas.

    Para CAIXETA-FILHO (2001b, p. 76-77), as ferrovias perderam competitividade para as

    rodovias devido, principalmente, aos seguintes fatores: a) o transporte ferrovirio era mais

    regulado pelo Estado do que o sistema rodovirio; b) o sistema ferrovirio tinha menor liberdade

    para definir tarifas; c) o sistema ferrovirio tinha custos e tempo elevados de construo; d) o

    sistema ferrovirio estava voltado aos portos, no atendendo nova ordem de integrao

    nacional.

    Com a chegada do rodoviarismo, o territrio brasileiro estava organizado em torno de

    ferrovias locais, voltadas aos portos. Diferentemente do Brasil, na Europa e nos Estados Unidos,

    quando o automvel se imps, j estava terminada a era da construo ferroviria, ou seja, j

    existia uma rede coesa de estradas de ferro (LAMBERT, 1972, p. 162,163).

    Neste segundo momento da periodizao do sistema ferrovirio, o desenvolvimento e a

    segurana do territrio passam a ser de fundamental importncia para a problemtica dos

    transportes (VALENTE, 1971, p. 24). FORTES (1956, p. 7) destaca, ainda, que o Brasil necessita

    de um amplo sistema transportador para atender as exigncias no apenas de carter scio-

    econmico, mas ainda de carter poltico-militar. A preocupao com a segurana nacional nas

    polticas de transportes visvel neste segundo momento. Para LOPES e SOBRINHO (1951, p.

    8), as polticas de transportes devem considerar, em sntese, parmetros como o econmico, o

    social, o poltico e o militar.

    A integrao do mercado nacional, promovida pelo rodoviarismo, foi possvel, segundo

    CANO (1998, p. 178-181), pelas polticas do Estado, pelos investimentos pblicos e pela

    eliminao de algumas barreiras protecionistas: a) a crise de 1929 eliminou as barreiras na

    rbita da competio; b) reduo gradativa (completada em 1943) de impostos interestaduais

    que incidiam sobre o comrcio de mercadorias entre os estados; c) criao e melhoria dos

    transportes inter-regionais. A integrao proporcionou, segundo esse autor, efeitos de estmulo,

    de inibio ou bloqueio e, at mesmo, de destruio.

  • 24

    Com essa integrao, foi verificado um aumento do grau inter-regional de

    complementaridade (CANO , 1998, p. 181), principalmente do estado de So Paulo. Entre 1955

    e 1968, enquanto as exportaes de So Paulo para o exterior aumentaram 58%, suas vendas para

    o resto do Brasil aumentaram 505%; as importaes do exterior cresceram 98% ao passo que as

    importaes vindas do resto do Brasil aumentaram 176%. As ferrovias, voltadas para os portos

    como sistemas independentes, no poderiam atender as necessidades de ligao das regies

    brasileiras, ou seja, no poderiam contribuir para o aumento do grau de complementaridade.

    A evoluo do trfego de mercadorias no Brasil entre 1950 e 1970 confirma que houve

    um aumento substancial do transporte rodovirio e um declnio muito grande do transporte

    ferrovirio (TABELA 2.1). Nesse perodo, enquanto a taxa de crescimento anual do transporte

    rodovirio foi de 13,7%, o ferrovirio foi de 6,7%, o martimo 4,4% e o areo 3,5%. Para o

    transporte de passageiros, a taxa de crescimento das rodovias foi de 12,3%, j as ferrovias

    tiveram um decrscimo de -0,1%.

    TABELA 2.1 - EVOLUO DO TRFEGO DE MERCADORIAS 1950 - 1970 - BILHES DE TON.KM

    Ano Rodovias Ferrovias Martimo Areo 1950 38 29,2 32,4 0,4 1955 52,7 21,2 25,8 0,2 1960 60,5 18,7 20,6 0,1 1965 67,5 17,6 14,6 0,2 1970 73 15,7 11,2 0,1

    Taxa de crescimento anual 1950- 1970 13,7 6,7 4,4 3,5

    Taxa de crescimento anual de passageiros 1950- 1970 12,3 -0,1 - 3,8

    Fonte: BARAT, 1978, p. 16

    A evoluo do rodoviarismo pode ser observada, tambm, pelo aumento expressivo da

    quantidade de carros de passeio entre 1950 e 1970, mais de 600%, e de rodovias construdas,

    mais de 200% (TABELA 2.2).

  • 25

    TABELA 2.2 - EVOLUO DO RODOVIARISMO NO BRASIL - 1950-1970

    Ano Carros de passeio Total Extenso da rede rodoviria estadual e federal (km)

    1950 254.187 425.938 55.900

    1955 428.577 679.832 76.298

    1960 639.781 9.876.230 108.277

    1965 1.415.521 1.875.457 129.430

    1970 2.464.285 3.126.559 181.011 Fonte: BARAT, 1978, p. 58

    Nesse segundo momento, o desequilbrio do sistema de transportes ferrovirios era

    evidente, como pode ser verificado pela TABELA 2.3. Apesar dos mais de 30 mil quilmetros de

    linhas existentes no Brasil, boa parte das cargas transportadas e da eficincia verificada estava

    concentrada em quatro sistemas independentes. Os sistemas federal e estadual (So Paulo) tinham

    uma participao no transporte de cagas muito inferior mdia global.

    TABELA 2.3 - DESEQUILBRIO DAS FERROVIAS NO BRASIL - 1965 - 1970

    km tkm (106) Empregados Densidade

    103 tkm/km/ano 103 tkm/empreg/anoSistema Qtde 1965 1970 1965 1970 1965 1970

    1965 1970 1965 1970 Federal 13 25.747 25.101 8.806 12.057 145.004 123.862 342 480 61 97 Estado de So Paulo 6 6.851 5.344 3.160 3.151 44.045 38.037 461 590 72 83 Independentes 4 1.265 1.657 6.293 15.047 8.344 7.815 4.975 9.081 757 1.925 Total 23 33.863 32.102 18.259 30.255 197.393 169.714 539 942 93 178 Fonte: BARAT, 1978, p. 38 Nota: tkm tonelada x quilmetro

    Na dcada de 1990 apenas 8% das linhas ferrovirias era responsvel por 80% de todo o

    transporte sobre trilhos no Brasil (MARQUES, 1996, p. 7). Em 1993 a RFFSA possua 76,7% de

    toda a malha e transportava apenas 31,8% das cargas, a FEPASA 14,9% e 5,6%, a EFVM 3,1% e

    35,8% e a EFC 3,8% e 26,2%. Um ndice que podia mostrar a eficincia econmica, e at mesmo

    organizacional, das empresas na poca a quantidade de carga transportada (TKU8) por

    8 TKU - Tonelada Quilmetro til - quantidade de toneladas teis transportadas multiplicadas pela quilometragem percorrida pelas mesmas.

  • 26

    empregado. A EFC tinha o melhor ndice, com 18,18 milhes de TKU por empregado, a EFVM

    vinha em segundo com 8,9, depois a RFFSA com 0,86 e por ltimo a FEPASA com 0,41. Havia

    um desbalanceamento do sistema ferrovirio brasileiro, j que as empresas EFVM e EFC

    apresentavam um rendimento muito superior e favorvel se comparado com as demais.

    Foi nesse momento crtico do setor ferrovirio, e das novas polticas neoliberais impostas

    pelos pases centrais, que a RFFSA foi includa, atravs do Decreto Lei n 473/92, no PND

    Programa Nacional de Desestatizao9. verificado, ento, a constituio de um novo momento.

    Momento 3 - Desestatizao e recuperao

    No terceiro momento da periodizao do sistema ferrovirio, que iniciou em 1996 e se

    estende at os dias atuais, h uma srie de mudanas estruturais e institucionais no Brasil

    balizadas, principalmente, pela globalizao e pelas prticas neoliberais vigentes a partir da

    dcada de 1990.

    Para Wilson Cano, essa poltica neoliberal de abertura, desregulamentao e privatizao

    potencializa ainda mais os efeitos perversos da Terceira Revoluo Industrial, j que as

    polticas pblicas passam a privilegiar a eficincia e no a equidade (CANO, 1998, p. 349, 351).

    Essa desregulao do setor ferrovirio, que na verdade uma nova regulao, um

    fenmeno mundial. Nos Estados Unidos, a desregulamentao do setor iniciada em 1980 fez com

    que as linhas fossem diminudas em um tero (para 315.500 Km), os empregados cortados pela

    metade (280 mil) e a capacidade dos vages dobrada. Isso possibilitou carregar 40% mais

    mercadorias com 40% menos vages. As atuais 535 ferrovias so todas lucrativas (CAIXETA-

    FILHO, 2001b, p. 79).

    No momento atual possvel verificar um aumento da porosidade territorial, considerada

    por ARROYO (2001, p. 143) como uma qualidade dos territrios nacionais em facilitar a sua

    relao com o exterior, a partir de uma base institucional incumbida da regulao do movimento.

    uma ao poltica exercida em diferentes nveis (federal, estadual e municipal) tanto por

    governos quanto por empresas. Este aumento pode ser verificado pelos incentivos fiscais

    exportao, principalmente de commodities agrcolas, financiamentos e programas voltados

    modernizao da produo agrcola e fortalecimento dos corredores de transportes.

    9 Ver reproduo do decreto no ANEXO 2.

  • 27

    Nesse terceiro momento da periodizao verificada, tambm, a consolidao do meio

    tcnico-cientfico-informacional, j que os objetos tcnicos tendem a ser ao mesmo tempo

    tcnicos e informacionais graas extrema intencionalidade de sua produo e de sua

    localizao (SANTOS, 2002a, p. 238). As polticas pblicas passam a incorporar prticas de

    carter estritamente geoeconmicas, criando e requalificando espaos para atender,

    principalmente, aos interesses dos agentes hegemnicos e suas lgicas globais.

    A recuperao do sistema ferrovirio nesse momento foi realizada atravs da privatizao

    das empresas ferrovirias estatais, que passaram a ser controladas pelo setor privado. Os

    investimentos realizados pelas concessionrias, principalmente para fortalecer os corredores de

    exportao, intensificaram ainda mais a insero internacional do territrio brasileiro. Alm do

    minrio de ferro, que o principal produto transportado pelas ferrovias atualmente, a soja dos

    novos fronts surge como uma nova alternativa.

    A integrao territorial promovida pelas ferrovias, e definidas nos principais planos de

    desenvolvimento dos governos, como os Planos Nacionais de Desenvolvimento e Planos

    Plurianuais, ser apresentada a seguir.

    O papel das ferrovias no processo de integrao do territrio brasileiro

    Apesar da importncia dos sistemas de transporte para a integrao do territrio, a sua

    implantao no Brasil no ocorreu de uma forma regular e uniforme. O resultado foi a

    constituio de um territrio com uma distribuio muito desigual de densidades rodovirias,

    ferrovirias e hidrovirias e com fluidez insuficiente para promover o desenvolvimento

    econmico e social de vrias regies e a organizao adequada do territrio.

    A evoluo e a periodizao do sistema ferrovirio mostram, tambm, que seus usos

    estiveram, em grande parte, apoiados na necessidade de transportar a produo aos portos

    exportadores, promovendo a integrao internacional do territrio brasileiro. Estes usos podem

    ser explicados, em parte, pelos planos governamentais institudos ao longo do sculo XX.

  • 28

    Sistema ferrovirio nacional ou integraes regionais?

    Em 1835, as propostas do governo para a construo das ferrovias sugeriam algum tipo de

    integrao do territrio brasileiro. O regente Diogo Antnio Feij e Antnio Limpo de Abreu

    assinam um decreto que autorizava a concesso para a construo de uma estrada de ferro que

    ligasse a capital s provncias de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia (NAGAMIMI, 1994,

    p. 134). Seria, talvez, o nico indcio do governo de promover a integrao das regies brasileiras

    utilizando as ferrovias. A partir de ento, as linhas foram construdas praticamente apenas para

    ligar as regies produtoras aos portos exportadores.

    A organizao do territrio brasileiro, em forma de ilhas regionais ou arquiplago10,

    apresentado no perodo entre a segunda metade do sculo XIX e incio do sculo XX, requeria,

    para atender s atividades econmicas, dependentes do mercado externo, a construo de

    sistemas de transporte voltados ao exterior. Foi nesse perodo que as ferrovias foram construdas.

    Na atualidade, o papel de integrao inter-regional ficou restrito s rodovias, j que as ferrovias

    atendem, em grande parte, exportao de commodities e integrao do Brasil aos mercados

    internacionais.

    No incio, as ferrovias foram construdas para atender s exportaes de produtos

    primrios (BARAT, 1978, p. 23), atendendo necessidades locais imediatas, sem prever o futuro

    (LAMBERT, 1972, p. 165). Para FORTES (1956, p. 26), os ciclos econmicos acarretaram

    linhas de transporte que eram relegadas a segundo plano logo que as razes de ordem econmica

    se inclinavam noutro sentido.

    Para MONBEIG (1971, p. 117), o traado das estradas de ferro brasileiras no reflete

    nem um plano de conjunto, nem uma adaptao aos interesses coletivos. Ele foi concebido sob a

    influncia de preocupaes locais e polticas, nas zonas de antigo povoamento [...] interesses dos

    agricultores [...] ligando os centros de agricultura aos portos. Ainda para DIAS (2002, p. 142),

    a participao dos plantadores de caf nas sociedades de estradas de ferro demonstra o poder

    social conquistado pela burguesia paulista que, decidindo sobre a configurao espacial da rede

    ferroviria e assim sobre a circulao, comandava de uma forma quase completa o processo

    produtivo.

    10 "Tnhamos, assim, ilhas regionais, bem localizadas, com dinmicas autnomas que, juntas, constituam o arquiplago brasileiro, para usar a imagem de Francisco de Oliveira." (ARAJO, 2000, p. 73).

  • 29

    A implantao das ferrovias coincide com a formao dos corredores de transporte

    conhecidos atualmente. Seu traado j uma norma definidora de seus usos. E, uma vez definido

    este traado, e devido principalmente sua rigidez, o sistema pouco flexvel para novos usos.

    A lgica de integrao promovida com a construo das ferrovias estava relacionada aos

    interesses dos cafeicultores do estado de So Paulo. Estes associavam seus capitais para

    construo das linhas, cujo traado era feito em funo da distribuio de suas fazendas, a fim de

    ficar assegurado o escoamento das colheitas para Campinas, Jundia e Santos. Ou seja, a relao

    capital do caf e ferrovias foi muito estreita, permitindo considerar a relao do interior de So

    Paulo e o caf como a moderna expanso territorial do Brasil (MONBEIG, 1971, p. 56-57).

    Para esse autor, s existia uma verdadeira rede ferroviria no Estado de So Paulo (MONBEIG,

    p. 117).

    O entrelaamento das atividades ferrovirias e porturias navegao deu origem a

    sistemas ferrovirios isolados e com caractersticas fundamentalmente regionais. A integrao no

    sentido longitudinal do territrio era, portanto, rarefeita (BARAT, 1978, p. 9).

    Por ter suas ferrovias voltadas aos portos, o plo internacional em torno do qual girava a

    economia brasileira era situada na Inglaterra (BARAT, 1978, p. 97).

    A integrao do territrio brasileiro ocorreu somente aps o surgimento das grandes

    rodovias, principalmente aps 1950, fazendo com que o Brasil deixasse de ser um conjunto de

    'ilhas culturais e econmicas' dispersas para se tornar um continente a gravitar economicamente

    em torno de um plo (BARAT, 1978, p. 73), ou seja, em torno de So Paulo.

    Parte dessa integrao do territrio brasileiro viabilizada pelas ferrovias pode ser melhor

    entendida nos diversos planos governamentais apresentados a seguir.

    Planos de desenvolvimento do Brasil

    O planejamento utilizado pelos governos como um instrumento indicativo dos caminhos

    a serem seguidos para o desenvolvimento do pas, tendo como objetivo, segundo o discurso

    oficial, o homem brasileiro, nas suas diferentes dimenses e aspiraes (BRASIL, 1980, p. 28).

    Indica, tambm, as possibilidades de organizao futura do territrio, as possibilidades de

    valorizao e desvalorizao de regies, a incluso ou excluso de cidades e de atividades

  • 30

    econmicas, a integrao ou a desintegrao. O territrio organizado, principalmente, pelas

    polticas relacionadas s infra-estruturas de transporte, comunicao e energia.

    Os planos governamentais passam a determinar as possibilidades de ordenamento do

    espao, que so determinados de acordo com os projetos dos diversos agentes11. Ou como

    descreve ARAJO12, os planos permitem apenas esboar tendncias referentes futura

    distribuio espacial das atividades no Pas.

    No Brasil, o planejamento relacionado aos transportes uma prtica recente. Em 1934 o

    Brasil teve seu 1 Plano Nacional de Viao e em 1944 o 1 Plano Nacional propriamente

    rodovirio (LOPES e SOBRINHO, 1951, p. 157). Verifica-se, portanto, que grande parte dos

    investimentos realizados no sistema ferrovirio, iniciado na segunda metade do sculo XIX, foi

    anterior a esses planos de viao. Foram, na verdade, planos independentes, de carter regional,

    sem a preocupao nacional.

    Outros planos anteriores a 1934 foram apresentados por engenheiros e polticos, porm

    no foram aprovados ou utilizados oficialmente (QUADRO 2.3). Em 1964 foi criado o II PNV-

    Plano Nacional de Viao e em 1973 o III PNV.

    11 Na origem do ordenamento do espao existe, j o dissemos, a vontade de realizar um projeto de vida: projeto coletivo da pequena comunidade ou do grande Estado que determinam e escolhem seu destino, segundo uma ttica emprica ou prospectiva, projeto do grupo detentor dos meios de produo, o qual imposto ao conjunto da sociedade (ISNARD, 1982, p. 57). 12 As informaes disponveis sobre os investimentos futuros no permitem mais que esboar tendncias referentes futura distribuio espacial da atividade no Pas (ARAJO, 2000, p. 80).

    QUADRO 2.3 - PLANOS DE VIAO ANTERIORES A 1934

    Nome Ano Objetivo principal do plano Plano Queiroz 1874 Transporte fluvial e ferrovirio

    Plano Rebouas 1874 Transporte Ferrovirio Plano Morais 1879 Transporte fluvial Plano Bicalho 1881 Transporte fluvial e ferrovirio Plano Bulhes 1882 Transporte fluvial e ferrovirio

    1 Plano Republicano 1890 Transporte fluvial e ferrovirio Plano Calgeras 1926 Transporte Ferrovirio

    Estudo de Paulo de Frontin 1927 Transporte ferrovirio Fonte: LOPES e SOBRINHO (1951, p. 156)

  • 31

    A partir de ento, diversos foram os planos de desenvolvimento que definiram a

    construo e os investimentos em transportes e, conseqentemente, na organizao do territrio

    brasileiro13.

    1) Plano da Comisso Mista Brasil-Estados Unidos (1951/1952): este plano estava

    voltado mais para reabilitar o sistema de transporte, j que houve um desequilbrio nos

    investimentos que ajudaram no trfego rodovirio e areo e prejudicaram o ferrovirio e

    cabotagem. Para a sua formulao, este plano considerou conceitos de germinao e

    estrangulamento.

    2) Programa de Metas (1956/1960): o objetivo do plano era promover a integrao

    vertical da estrutura industrial. Para o setor ferrovirio, foi dada prioridade a linhas com

    indiscutvel significao econmica e variantes para eliminar trechos onerosos. Com a criao

    da RFFSA foi possvel centralizar os programas de reaparelhamento e construo das ferrovias.

    Utilizou conceitos de pontos de crescimento e pontos de estrangulamento.

    3) Plano Trienal de Desenvolvimento Econmico-Social (1963/1965): tinha como

    objetivo corrigir as distores econmicas e sociais resultantes do acelerado esforo de

    industrializao dos anos precedentes. Os investimentos foram orientados para harmonizar a

    estrutura da produo demanda, permitindo a interligao das regies de grande potencial

    econmico.

    4) Programa de Ao Econmica do Governo PAEG (1964/1966): dentre alguns dos

    objetivos bsicos desse programa, possvel destacar a reativao do ritmo de desenvolvimento

    econmico, a reduo progressiva da inflao e a reduo das desigualdades regionais e setoriais.

    destacado tambm a necessidade de reduzir as despesas da Unio. Com relao aos transportes,

    o programa previa a racionalizao das operaes dos servios e a melhora na seleo de

    investimentos.

    5) Programa Estratgico de Desenvolvimento PED (1968/1970): o objetivo bsico do

    programa era o desenvolvimento econmico auto-sustentado. Quanto ao subsetor de transportes,

    os objetivos eram: a) garantir uma infra-estrutura adequada, eficiente e integrada das vrias

    modalidades de transportes; b) proporcionar do lado da demanda e do lado da oferta, condies

    13 Fontes consultadas sobre os planos: BRASIL (1972, 1980), BARAT (1978, p. 119-137), CARDOSO (1998), GARTENKRAUT (2002) e www.planejamento.gov.br.

  • 32

    para a expanso do PIB; c) orientar as empresas nacionais para o fortalecimento do poder

    competitivo, visando o aperfeioamento das polticas de investimentos e de tarifas.

    Os investimentos propostos pelos planos demonstram, claramente, as intenes de

    promover o sistema rodovirio, por conta da integrao do territrio, e desestimular o uso das

    ferrovias. Nesses planos apresentados, enquanto a previso dos investimentos para o sistema

    ferrovirio foi reduzida de 38% para 16% do total de investimentos, o rodovirio foi aumentado

    de 26% para 59% (TABELA 2.4).

    6) I Plano Nacional de Desenvolvimento (1972/1974): o modelo de desenvolvimento

    tinha como objetivo principal alterar o modo de organizao do Estado e das instituies para

    transformar o Brasil, atendendo alguns objetivos: a) colocar o Brasil na categoria das naes

    desenvolvidas; b) duplicar at 1980 a renda per capita; c) crescimento anual do PIB entre 8% e

    10% ao ano. Alguns programas de desenvolvimento regionais foram institudos, como o PIN -

    Programa de Integrao Nacional (rodovias Transamaznica e Cuiab-Santarm) e Proterra -

    Programa de Redistribuio de Terras e de Estmulos Agroindstria do Norte e do Nordeste. O

    investimento previsto no subsetor de transportes era de 9% do PIB (ver mais informaes sobre

    os investimentos nos ANEXOS 3 e 4).

    7) II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975/1979): o modelo de desenvolvimento

    adotado deveria considerar a influncia de fatores internacionais, principa