Direito Das Pessoas Com Transtorno Mental Autoras de Delitos

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Ludmila Cerqueira Correia Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima Vânia Sampaio Alves

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  • Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro, 23(9):1995-2012, set, 2007

    1995

    Direitos das pessoas com transtorno mental autoras de delitos

    The rights of criminally insane individuals

    1 Universidade Federal da Paraba, Joo Pessoa, Brasil.2 Faculdade de Direito, Universidade Catlica do Salvador, Salvador, Brasil.3 Instituto de Sade Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil.

    CorrespondnciaL. C. CorreiaUniversidade Federal da Paraba.Rua Rubem Berta, 195, Ed. Solar Dom Antonio L. Rodrigues, apto. 302, Salvador, BA 41810-045, [email protected]

    Ludmila Cerqueira Correia 1

    Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima 2

    Vnia Sampaio Alves 3

    Abstract

    The Psychiatric Reform Movement has support-ed proposals to reorient the hegemonic mental health care model. In Brazil, a facility for the criminally insane was created, called the Custo-dy and Psychiatric Treatment Hospital (CPTH). The maintenance of such a structure, known as total institutionalization, has reinforced in-dividual exclusion, limiting the patients social rehabilitation. This article discusses the right to health in the CPTH from a human rights per-spective. The advances achieved in Brazil under the National Mental Health Policy have failed to include reorientation of the care provided in such facilities for the criminally insane. The in-stitution has remained an isolationist asylum, reflecting a historical denial of human rights. Progress in policy, per se, does not guarantee the materialization of recent strides gained through the Psychiatric Reform, particularly in relation to criminals with mental disorders. The state, through shared responsibility with society, should promote the effective reorientation of the health care model for these individuals, whose criminal responsibility should be acknowledged, while providing simultaneously for specialized care. Respect for human rights is not synony-mous with impunity.

    Psychiatric Hospitals; Right to Health; Human Rights; Mental Health

    Introduo

    Entre os diversos segmentos populacionais que demandam ateno diferenciada, destaca-se o das pessoas com transtorno mental autoras de delitos. Este um tema cuja rea de interesse vai alm da Psiquiatria Forense e transborda os limi-tes de um campo que pode ser definido de forma ampla e genrica como o da Psiquiatria a servio da Justia 1. A necessria interdisciplinaridade que o tema envolve exige uma interlocuo efe-tiva com o Direito, a Psicologia, a Sade Pblica, as Cincias Sociais, o Servio Social, a Jus-Filoso-fia, entre outros. A articulao entre sade men-tal e direitos humanos interessa sociedade, aos profissionais, aos pacientes e s respectivas fa-mlias 2. J no se justifica a dicotomia do bin-mio indivduo/sociedade, pois a discusso sobre a dignidade da pessoa, independentemente de ser paciente ou autor de delitos, plasma conte-dos de Cincias da Sade, das Cincias Jurdicas e das Cincias Sociais.

    Embora a interao com diferentes campos do saber e da prtica se configure relevante para a abordagem de vrios fenmenos humanos, no que diz respeito s pessoas com transtorno mental autoras de delitos, encontra um vrtice muito pe-culiar que o da discusso de um dos direitos hu-manos: o direito sade. Este trabalho objetiva, portanto, discutir o direito sade dos internos nos Hospitais de Custdia e Tratamento Psiqui-trico (HCTP) na perspectiva dos direitos humanos.

    DEBATE DEBATE

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    Aspectos histricos

    O modelo assistencial psiquitrico hegemnico passou a ser discutido a partir do final da dca-da de 1940. As crticas se fundamentam no ana-cronismo e na ineficcia do modelo 3,4. As de-nncias recorrentes de violncia nas instituies psiquitricas tm sido objeto de mobilizaes da sociedade civil e de profissionais de sade. O crescente clamor social contra as diversas formas de desrespeito aos direitos humanos tem fortale-cido uma conscincia acerca da importncia da luta pelo direito singularidade, subjetivida-de e diferena. A ampliao da compreenso a respeito da natureza discriminatria dos esta-belecimentos psiquitricos envolveu familiares, comunidade e outros atores sociais na discusso da cidadania dos internos nos manicmios ju-dicirios.

    Em relao s aes necessrias para a ga-rantia dos direitos humanos dessas pessoas, Cos-ta 5 (p. 143) reitera o carter segregador desses estabelecimentos afirmando que o hospital psi-quitrico tornou-se um emblema da excluso e seqestro da cidadania, considerando, ademais, sua repercusso na vida dos padecentes de trans-tornos mentais ao longo dos ltimos duzentos anos.

    O incio da assistncia psiquitrica pblica no Brasil data da segunda metade do sculo XIX. As pessoas que enlouqueciam e eram provenien-tes das camadas sociais desfavorecidas eram recolhidas aos asilos, onde padeciam de maus-tratos. Sobre isso, Costa 5 (p. 148) comenta, fi-cavam presas por correntes em pores imundos passando frio e fome, convivendo com insetos e roedores, dormindo na pedra nua sobre dejetos, sem nenhuma esperana de liberdade.

    Sem muita diferena dos tempos atuais, a so-ciedade do sculo XIX via no louco uma ameaa segurana pblica, sendo o recolhimento aos asilos a nica maneira de lidar com a pessoa com transtorno psiquitrico. Esse recolhimento, au-torizado e legitimado pelo Estado por meio de textos legais editados pelo Imperador, pretendia oferecer proteo sociedade.

    A crescente presso da populao para o re-colhimento dos alienados inoportunos/as a um lugar de isolamento e o questionamento de alguns mdicos e intelectuais frente s condies subumanas das instituies asilares, fizeram com que o Estado Imperial determinasse a cons-truo de um lugar especfico com o objetivo de trat-los. Nesse contexto foi criado o Hospcio Pedro II, inaugurado em 1852, na cidade do Rio de Janeiro. De forma gradativa, esse modelo as-sistencial se desenvolveu e se ampliou em todo o territrio nacional, consolidando e reproduzindo

    no solo brasileiro o hospital psiquitrico euro-peu como o espao socialmente legitimado para a loucura. Entre as unidades hospitalares criadas com o cunho segregacionista, encontram-se os HCTP para as pessoas com transtornos mentais que cometeram delitos. A nfase dessa institui-o hospitalar estava no processo de apartao social descomprometida com o cuidado sade e com a reinsero psicossocial.

    O modelo assistencial asilar/carcerrio para o tratamento das pessoas com transtornos men-tais o de excluso, tanto nos hospitais psiqui-tricos para loucos no infratores como naqueles para loucos infratores, onde a excluso mais incisiva. As prticas exercidas nos hospitais psi-quitricos brasileiros demonstram que o trata-mento dispensado tem legitimado a segregao. Tais instituies configuram-se como espaos de estigmatizao e de obscuridade.

    O manicmio judicirio

    Os hospitais especficos para acolher os loucos infratores foram institudos no Brasil a partir da segunda dcada do sculo XX com a deno-minao de manicmios judicirios. A sua im-plementao foi precedida pela discusso acerca de qual seria o encaminhamento institucional que deveriam ter indivduos que eram conside-rados loucos e criminosos. Desse modo, alm dos hospitais psiquitricos para pessoas com trans-tornos mentais, comearam a funcionar no pas os espaos asilares para receber e tratar os ditos loucos criminosos.

    O manicmio judicirio pode ser caracteri-zado como uma instituio total, uma vez que refora a excluso individual e limita a interao com o mundo exterior 6. Nas instituies com essa configurao, as sociedades contempor-neas preservam suas pretenses de controle e de dominao. O manicmio judicirio passou a ser denominado como HCTP, conforme previso do Cdigo Penal brasileiro nos seus artigos 96 e 97 e na Lei de Execuo Penal 7 no artigo 99. A per-manncia do modelo manicomial tem acirrado a discusso sobre os direitos humanos de pessoas com transtorno mental autoras de delito e sobre o direito das famlias acompanharem e assisti-rem os seus entes internados.

    Conforme Carrara 8 (p. 148), a idia central de que loucos perigosos ou que estivessem en-volvidos com a justia ou polcia deveriam ser separados dos alienados comuns, constituindo-se em objeto institucional distinto. Configurava-se, assim, uma nova categoria, a dos loucos-crimi-nosos, cujo destino deveria estar absolutamente desvinculado do Hospcio Dom Pedro II. Emer-

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    gia a compreenso a respeito da necessidade de construir uma nova instituio para recolhimento asilar desse segmento populacional. Forjava-se, dessa maneira, a demanda por um manicmio criminal. Essa nova instituio emergia, pois, correspondendo convergncia dos interesses da rea de sade e do mbito jurdico, atendendo necessidade de zelar pela segurana da socie-dade. A iniciativa, compatvel com o pensamento da poca e o poder-dever do Estado, exclua a possibilidade de qualquer integrao scio-fa-miliar do denominado louco-criminoso.

    O primeiro manicmio judicirio do Brasil e da Amrica Latina foi inaugurado na cidade do Rio de Janeiro, em 1923. Em relao a esse even-to, Carrara 8 (p. 194) comenta que coroava-se ento um processo muito mais amplo que, atin-gindo as prticas jurdico-penais como um todo, fez com que nossos tribunais, como bem apontou Foucault, passassem, a partir de finais do sculo XIX, a no julgar mais atos criminosos, mas a pr-pria alma do criminoso.

    Com a implementao do manicmio judici-rio vislumbrava-se uma soluo de interesse da sociedade cujo tecido fora agredido pelo delito da pessoa com transtorno mental. Ao apresen-tar-se como instituio prisional, sustentava-se na premissa de que o indivduo, ainda que com transtorno mental, deveria pagar pelos crimes cometidos. Enquanto instituio de custdia, guardava uma natureza diferenciada, a de satis-fazer as interpretaes patologizantes e biodeter-minantes do indivduo 8. O manicmio judicirio se caracterizava, portanto, como um lugar social especfico para o encontro entre crime e loucura. Desse modo, essa instituio apresenta, desde a sua origem, uma estrutura ambgua e contradi-tria. Enquanto instituio predominantemente custodial, revela, com grades e intervenes psi-quitricas, a dupla excluso que sofrem as pesso-as com transtorno mental autoras de delitos.

    No que tange legislao brasileira, o Cdigo Penal de 1890 dispunha que no so criminosos os que por imbecilidade nativa ou enfraqueci-mento senil forem absolutamente incapazes de imputao e os que se acharem em estado de completa privao dos sentidos e da inteligncia no ato de cometer o crime. E ainda preceituava que os indivduos isentos de culpabilidade em re-sultado de afeco mental sero entregues s suas famlias ou recolhidos a hospitais de alienados, se o seu estado mental assim exigir para a segurana do pblico.

    Cinqenta anos depois, o Cdigo Penal de 1940 instituiu o chamado sistema do duplo bi-nrio, que apresentava dois tipos de reao pe-nal: de um lado, a pena, medida segundo o grau de culpabilidade do sujeito e a gravidade de seu

    ato; e, de outro, a medida de segurana, fundada na avaliao do grau de periculosidade do acu-sado. A medida de segurana deveria atingir os loucos criminosos e algumas outras classes de delinqentes no-alienados. Assim, configura-va-se a aplicao dupla de pena e medida de se-gurana.

    Com a Reforma Penal de 1984, foi adotado o sistema vicariante: o fundamento da pena passa a ser exclusivamente a culpabilidade, enquanto a medida de segurana encontra justificativa so-mente na periculosidade aliada incapacidade penal do agente 7,9. A partir da, a medida de se-gurana passou a ser aplicada apenas aos inim-putveis, tendo tal instituto a natureza preventi-va e no a punitiva. Com tal Reforma, portanto, as medidas de segurana, que visavam a garantir a proteo tanto do indivduo com transtorno mental quanto da sociedade, so alteradas no artigo 96 do Cdigo Penal e passam a significar obrigatrio tratamento psiquitrico; seja em in-ternao em HCTP ou, falta de outro estabe-lecimento adequado, a sujeio ao tratamento ambulatorial.

    Assim, conceitos de culpabilidade, de im-putabilidade e periculosidade emergem plas-mando a terminologia jurdica da Psiquiatria. A imputabilidade definida como a capacidade de entendimento psquico do carter ilcito do comportamento delituoso, de acordo com o que prev o artigo 26 do Cdigo Penal brasileiro 10. O conceito de periculosidade tem sido objeto de muitos debates nas reas mdica e jurdica, constituindo-se relevante desde o sculo XIX. Se-gundo Foucault 11 (p. 85): a grande noo da cri-minologia e da penalidade em fins do sculo XIX foi a escandalosa noo, em termos de teoria pe-nal, de periculosidade. A noo de periculosidade significa que o indivduo deve ser considerado pe-la sociedade ao nvel de suas virtualidades e no ao nvel de seus atos; no ao nvel das infraes efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam.

    Assim, o conceito da periculosidade presu-mida justificou a criao e a manuteno do ins-tituto da medida de segurana como forma de proteger a sociedade daquele que perigoso a priori. Dessa forma, quando se suspeita que o indivduo que praticou ato delituoso apresenta algum transtorno mental, deve ser feita uma soli-citao de exame mdico-legal para que se avalie a imputabilidade com vistas formao do pro-cesso de Incidente de Insanidade Mental 12. Aps a finalizao do exame de insanidade mental, es-te remetido ao juiz, que poder acatar ou no o parecer dos peritos. Caso a insanidade mental te-nha sido argida e o juiz acate o parecer, absolve-r o acusado e aplicar a medida de segurana. O

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    juiz, com a competncia jurisdicional especfica, uma vez observado o devido processo legal, deve aplicar a medida de segurana, que tem tempo indeterminado em face da situao considera-da de periculosidade do indivduo e dever ser cumprida num HCTP, sendo que o internamento do indivduo em tal instituio se destina ao tra-tamento psiquitrico 13.

    Destacando a natureza reducionista da com-preenso do ser humano quando se elege a peri-culosidade como a nica expresso possvel do sujeito, Barros 14 afirma a inobservncia do equa-cionamento de suas necessidades. Esse reducio-nismo compromete o cuidado integral sade da pessoa com transtorno mental e a garantia dos seus respectivos direitos.

    A medida de segurana surge como sendo uma pena de carter aflitivo. Em que pese cons-tituir-se em um processo teraputico, a estabi-lizao do quadro patolgico diagnosticado an-teriormente no marca o trmino da medida de segurana, configurando, assim, uma situao de desrespeito aos princpios dos direitos humanos pela circunstncia de perpetuar a restrio de ir e vir de uma pessoa. Nessa perspectiva crtica das medidas de segurana, Corra 15 (p. 147) acres-centa que elas continuam sobre conceitos incer-tos e ambguos, e espelham um tipo de conceito indeterminado.

    Baseando-se, portanto, no potencial de pe-riculosidade do infrator, a medida de segurana possibilita uma segregao indeterminada, pois se o laudo psiquitrico concluir que no cessou a periculosidade do paciente, este dever per-manecer internado. Resta ao juiz da Vara de Exe-cuo Penal acatar esta circunstncia de carter mdico-psiquitrico. A medida de segurana configura, para o interno, a falta de perspecti-va do seu retorno ao convvio comunitrio. Este potencial rompimento dos laos scio-familia-res constitui uma das dimenses pelas quais os direitos humanos repelem a indeterminao do tempo de internao no HCTP.

    Segundo Corra 15, a assistncia psiquitrica custodial encontra respaldo na legislao penal vigente e na organizao do Estado. Ambas, pre-tendendo proteger as pessoas com transtorno mental autoras de delito, acabam propiciando situaes de desrespeito aos direitos individuais previstos pela Constituio, seja pelo isolamento nos HCTP, seja pela no garantia das condies mnimas de vida.

    A partir de uma nova concepo da doena mental e da situao em que vivem as pessoas internadas, argumenta-se sobre a pertinncia, tanto para a pessoa com transtorno mental auto-ra de delito quanto para a prpria sociedade, no ser aquela considerada irresponsvel. Prope-se

    que ela venha a ser julgada e, se condenada, rece-ber uma pena pelo ato praticado. Assim, confi-gurando-se necessrio o seu tratamento psiqui-trico, a pessoa autora de delito deve ter acesso ao mesmo, de acordo com as suas caractersticas e necessidades individuais.

    Poltica de sade mental contempornea

    Ao longo do sculo XX, foram empreendidos es-foros para alterar a realidade asilar mediante o desenvolvimento de outros modelos de ateno, capazes de promover um maior grau de intera-o e de democracia nas relaes existentes entre os profissionais e os internos da instituio psi-quitrica. O advento do Movimento da Reforma Psiquitrica marca um novo perodo, a partir do final da dcada de 1990, propondo a superao do modelo hegemnico de carter excludente e discriminatrio.

    Diversos setores das reas de sade pblica e dos direitos humanos convergiram esforos na tentativa de ruptura, construindo, como propos-ta alternativa, a estruturao de uma rede de ser-vios de ateno diria em sade mental de base territorial, correspondente ao modelo dos Cen-tros de Ateno Psicossocial (CAPS), cujo projeto integra os usurios s suas respectivas famlias e comunidade 16.

    Esse processo de superao da centralidade do hospital psiquitrico tem sido contempor-neo da dinmica de descentralizao das aes e dos servios de sade, inaugurada formalmente na Constituio Federal de 1988, artigos 1o e 204, juntamente com as Leis Orgnicas de Sade Lei n. 8.080/90 e Lei n. 8.142/90 e as Normas Ope-racionais do Sistema nico de Sade (SUS). A consolidao normativa do Estado Democrtico de Direito refletiu, portanto, tambm na esfera dos interesses dos cidados, inclusive daqueles com transtorno mental.

    A Poltica Nacional de Sade Mental foi obje-to de recentes reformulaes: uma nova perspec-tiva no ordenamento jurdico do pas em relao pessoa com transtorno mental ensejou, com a sano presidencial, a Lei n. 10.216, em 6 de abril de 2001 17. Essa legislao especial dispe sobre a proteo e os direitos das pessoas com transtor-nos mentais e sobre a reformulao do modelo assistencial em sade mental, refletindo, assim, os princpios da Reforma Psiquitrica.

    Essa Reforma visa, entre outros aspectos, a criar uma rede de servios diversificados, regio-nalizados e hierarquizados que promova a efe-tiva contextualizao e reabilitao psicossocial da pessoa com transtorno mental. Nessa pers-pectiva, a Reforma apresenta como princpios: a

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    centralidade da proteo dos direitos humanos e de cidadania das pessoas com transtornos men-tais, a necessidade de construir redes de servi-os que substituam o modelo hospitalocntrico e a pactuao de aes por parte dos diferentes atores sociais 18. Contemplando mudanas sig-nificativas no modelo de ateno psiquitrico, o advento dessa nova poltica se identifica com o paradigma da co-responsabilidade da sociedade e do Estado, com evidente perspectiva da des-centralizao administrativa que j fora inaugu-rada em normas anteriores relativas ao segmento infanto-juvenil, em 1990, sade, por meio das Leis Orgnicas de Sade e da prpria Lei Orgnica da Assistncia Social.

    As orientaes dispostas no texto da Lei n. 10.216/2001 subvertem a lgica das instituies totais, inovando em diversos procedimentos e estabelecendo os direitos das pessoas com trans-tornos mentais. Essa lei afirma o direito ao tra-tamento respeitoso e humanizado das pessoas com transtorno mental, preferencialmente em servios substitutivos, estruturados segundo os princpios da territorialidade e da integralidade do cuidado. De acordo com essa legislao, a in-ternao psiquitrica configura-se como ltimo recurso teraputico a ser adotado, sendo a sua concretizao condicionada emisso de pa-recer mdico com a devida explicitao de seus motivos. Embora a lei no mencione explicita-mente a circunstncia de internao na even-tualidade de autoria de delito por pessoa com transtorno mental, trata da internao compul-sria em geral, ou seja, quando for judicialmente determinada.

    De acordo com a norma, independentemen-te das circunstncias que precipitaram a inter-nao psiquitrica, esta deve se configurar como um recurso teraputico compromissado com a reintegrao social dos internos. Nesse compro-misso situa-se a garantia do direito sade de toda pessoa com transtorno mental. No caso par-ticular daquela autora de delito, prope-se que a internao compulsria em HCTP mantenha-se coerente com os mesmos princpios ticos de ga-rantia de direitos humanos, de forma que a pena-lizao da pessoa no se sobreponha ao direito de uma ateno integral s suas necessidades de sade. Ademais, a penalizao legal da pessoa com transtorno mental autora de delito deve ob-servar o princpio da definio temporal da pe-na, cujo final implica a reinsero do apenado ao convvio familiar e comunitrio.

    A construo de uma proposta inovadora na ateno sade mental, de acordo com Costa 5 (p. 173), almeja a cidadania e a recuperao das garantias e direitos fundamentais dos portadores de Transtornos Mentais. O autor reconhece, ain-

    da, que torna-se cada vez mais relevante a atu-ao dos organismos da sociedade responsveis por essa proteo e garantias constitucionalmente asseguradas.

    Nessa perspectiva, a experincia acumulada h cinco anos pelo Tribunal de Justia de Minas Gerais, por meio do Programa de Ateno Inte-gral ao Paciente Judicirio (PAI-PJ), aponta al-gumas possibilidades concretas de reorientao da ateno sade das pessoas com transtorno mental autoras de delito. O PAI-PJ promove o tratamento em sade mental na rede pblica de sade, atravs do acompanhamento da aplica-o das medidas de segurana ao agente infrator, oferecendo ao juiz subsdios para deciso nos in-cidentes de insanidade mental. Estruturado de forma multidisciplinar, esse programa, pioneiro no pas, sugere a aplicao a cada caso de uma medida singular, tensionada pelos princpios normativos universais 19,20. O PAI-PJ inaugura, assim, uma ruptura com o processo histrico e dogmtico, instaurando, segundo Barros 19 (p. 3), o conceito da insero no cerne de sua ao, atu-ando em qualquer processo criminal onde um portador de sofrimento mental esteja na condio de ru.

    Uma das questes centrais trazidas por esse programa est no fato de possibilitar a convo-cao da pessoa com transtorno mental autora de delito a responder pelo seu ato: respondendo publicamente por sua ao atravs dos estabe-lecimentos das penas substitutivas e, ao mesmo tempo, tendo o acompanhamento de sade ne-cessrio.

    A experincia do PAI-PJ, diferenciando-se das prticas tradicionalmente exercidas em relao aos loucos infratores, revela que a responsabi-lidade pelo crime cometido restaura a dignidade perdida quando foi decretada a inimputabilida-de. O seu diferencial percebido na realizao da mediao entre a clnica, o ato jurdico e o social.

    Vislumbra-se, assim, a possibilidade de ope-racionalizar uma dinmica que assimile tanto o princpio da Integralidade quanto o da Eqidade, na perspectiva do SUS e dos Direitos Humanos. Essa lgica, centrada na singularidade do ser hu-mano e na cidadania da pessoa, supera o modelo assistencial hegemnico, inspirado na presuno de periculosidade, que faz com que tais pessoas sejam segregadas no HCTP at que cesse o perigo que anunciam.

    Consideraes finais

    A Reforma Psiquitrica no tem contemplado a reorientao das prticas assistenciais desen-

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    volvidas no mbito dos HCTP. A manuteno do modelo hegemnico de ateno psiquitrica aos loucos infratores tem favorecido uma assistncia custodial, impossibilitando mudanas que ve-nham a integrar a pessoa sua comunidade e, especialmente, o respeito aos direitos individuais previstos pela Constituio de 1988. Considera-se que os dispositivos do Cdigo Penal que criaram a inimputabilidade e a medida de segurana es-to ultrapassados e inadequados, necessitando de mudanas que passem a considerar todas as pessoas como efetivamente iguais perante a lei, sem a inimputabilidade ou irresponsabilidade e a medida de segurana.

    Na administrao do HCTP, o Estado incor-pora a demanda punitivo-segregacionista pro-duzida socialmente, voltando-se para os internos com uma estrutura alicerada na violncia, am-parada pelo medo, controladora e reprodutora da desconfiana. Assim, o que se evidencia a presena de uma tradio fundada na negao dos direitos humanos dos pacientes psiquitri-cos que no contam com uma rede de servios de ateno sade mental estruturada, capaz de prestar assistncia de forma contnua e integral. So escassas as polticas pblicas de promoo sade mental, de promoo convivncia fa-miliar e de preveno aos transtornos mentais. Mesmo o Programa Sade da Famlia (PSF), implementado a partir de 1994, como propos-ta de reorientao da ateno bsica, no tem propiciado, de forma sistemtica, uma ateno sade mental nas comunidades assistidas. Evi-dencia-se, assim, a pertinncia da discusso e da integrao de aes entre o Ministrio da Justia e o Ministrio da Sade, com participao, em todos os nveis, de representantes do Ministrio Pblico, do Poder Judicirio, da sociedade civil,

    dos profissionais de sade, entre outros. Justifi-ca-se, ademais, a incluso do tema na formao dos profissionais de sade, visando a potencia-lizar os contatos destes com as famlias, seja no mbito da unidade de sade ou nos espaos co-munitrios, para a identificao dos casos e pa-ra o desenvolvimento da cidadania por meio de uma abordagem dialgica 21. Salienta-se, sobre-tudo, a importncia de trazer para a instncia de formao dos operadores jurdicos a perspectiva do direito sade 22.

    Embora o direito sade tenha sido assimi-lado de diferentes formas ao longo do sculo XX, entende-se que a poltica de sade mental deve ser baseada em princpios mais equnimes, ob-servando-se a promoo da sade dentro do es-pectro de polticas econmicas e sociais. Assim, o tema do direito sade das pessoas com trans-torno mental autoras de delitos corresponde a um direito social a ser perseguido 22.

    Cabe aos agentes do Estado a materializao da responsabilidade no cumprimento da funo social a ele destinada. Nesse sentido, o Estado, em co-responsabilidade com a sociedade, de-ve promover a efetiva reorientao do modelo de ateno sade das pessoas com transtorno mental autoras de delitos.

    Dentre os instrumentos de proteo e defesa dos direitos humanos das pessoas com transtor-nos mentais encontra-se a Lei n. 10.216/2001, a qual assimilou os princpios e os objetivos da Re-forma Psiquitrica. Nesse sentido, considera-se fundamental estender os benefcios dessa legis-lao aos internos e egressos de HCTP, de forma a promover a integralidade e a humanizao dos servios prestados a essas pessoas, o respeito a seus direitos e a melhoria da qualidade de suas vidas, na perspectiva dos direitos humanos.

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    Resumo

    O Movimento pela Reforma Psiquitrica tem subsidia-do propostas de reorientao do modelo assistencial hegemnico em sade mental. Para a assistncia s pessoas com transtorno mental autoras de delitos ins-tituiu-se o manicmio judicirio, atualmente denomi-nado Hospital de Custdia e Tratamento Psiquitrico (HCTP). A manuteno dessa estrutura, reconhecida como instituio total, tem reforado a excluso indi-vidual, limitando a reinsero social dos internos. Este artigo discute o direito sade nos HCTP na perspec-tiva dos direitos humanos. Os avanos conferidos pela Poltica Nacional de Sade Mental no tm contem-plado a reorientao da prtica assistencial desenvol-vida no mbito do HCTP. Essa instituio tem preser-vado o seu carter asilar/segregacionista, evidencian-do uma tradio fundada na negao dos direitos humanos. O avano normativo no consolida, de per si, a materializao das recentes conquistas advindas a partir da Reforma Psiquitrica, particularmente quanto ao segmento das pessoas com transtorno men-tal autoras de delitos. O Estado, em co-responsabilida-de com a sociedade, deve promover a efetiva reorien-tao do modelo de ateno sade dessas pessoas, cuja responsabilidade penal dever ser reconhecida ao tempo em que se propicie o tratamento especializado. O respeito aos direitos humanos no implica a inim-putabilidade.

    Hospitais Psiquitricos; Direito Sade; Direitos Hu-manos; Sade Mental

    Colaboradores

    L. C. Correia participou da reviso bibliogrfica e re-dao do texto. I. M. S. O. Lima e V. S. Alves contriburam com a reviso bibliogrfica e redao do texto.

    Referncias

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    Recebido em 02/Mai/2006Verso final reapresentada em 17/Out/2006Aprovado em 08/Jan/2007