DESIGN & KITSCH NA CENOGRAFIA DE...

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DESIGN & KITSCH NA CENOGRAFIA DE ALMODÓVAR Ligia Cristina Battezzati * Luciane Cristina Dias ** Marilda Queluz *** Resumo - O presente trabalho teve como principal objetivo analisar o kitsch na cenografia em filmes do consagrado diretor espanhol Pedro Almodóvar. A metodologia da pesquisa envolveu a fundamentação teórica de assuntos diretamente relacionados ao tema, como conhecimentos sobre a cenografia cinematográfica, a cultura espanhola, a biografia e filmografia do diretor e o conceito de kitsch a partir dos estudos de Abraham Moles. Além disso, foram selecionadas as obras de Almodóvar que continham explícitas as características compatíveis ao que se considera kitsch, carregadas de elementos e cores intensas. Destas obras, se destacaram algumas cenas que foram analisadas profundamente. Constatou-se, então, a presença de objetos, móveis e detalhes relacionados a diversas tipologias kitsch, que compõem os ambientes, além de revelar diferentes influências de movimentos artísticos e culturais. Os resultados diagnosticaram que, de fato, o kitsch está presente na cenografia de várias obras de Almodóvar, mostrando como os artefatos e o mobiliário interagem com as pessoas, o ambiente, com a criação dos personagens e traduzem emoções, conceitos e posturas ideológicas. Palavras-chave: Cenografia. Pedro Almodóvar. Kitsch. Abstract - This study aimed to analyze the kitsch on scenery in films of renowned Spanish director Pedro Almodovar. The research methodology involved the theoretical basis of matters directly related to the subject, as knowledge about the set film, the Spanish culture, biography and filmography of the director and the concept of kitsch from the studies of Abraham Moles. In addition, we selected the works of Almodovar containing explicit characteristics compatible to what is considered kitsch-laden elements and intense colors. These works, some scenes that stood out were analyzed deeply. It was found, then the presence of objects, furniture and details related to various types kitsch that make up the environments, and reveal different influences of artistic and cultural movements. The results diagnosed that, in fact, kitsch is present in the staging of various works of Almodovar, showing how the artifacts and furniture interact with people, the environment, creating new characters and translate emotions, concepts and ideological positions. Key-words: Set design. Pedro Almodovar. Kitsch. INTRODUÇÃO O objetivo deste texto é refletir sobre o efeito kitsch na obra de Almodóvar, * Graduada em Tecnologia em Design de Móveis pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR, [email protected] ** Graduada em Tecnologia em Design de Móveis pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR, [email protected] *** Doutora em Comunicação e Semiótica, professora do Departamento de Desenho Industrial e do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), [email protected]

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DESIGN & KITSCH NA CENOGRAFIA DE ALMODÓVAR

Ligia Cristina Battezzati* Luciane Cristina Dias**

Marilda Queluz***

Resumo - O presente trabalho teve como principal objetivo analisar o kitsch na cenografia em filmes do consagrado diretor espanhol Pedro Almodóvar. A metodologia da pesquisa envolveu a fundamentação teórica de assuntos diretamente relacionados ao tema, como conhecimentos sobre a cenografia cinematográfica, a cultura espanhola, a biografia e filmografia do diretor e o conceito de kitsch a partir dos estudos de Abraham Moles. Além disso, foram selecionadas as obras de Almodóvar que continham explícitas as características compatíveis ao que se considera kitsch, carregadas de elementos e cores intensas. Destas obras, se destacaram algumas cenas que foram analisadas profundamente. Constatou-se, então, a presença de objetos, móveis e detalhes relacionados a diversas tipologias kitsch, que compõem os ambientes, além de revelar diferentes influências de movimentos artísticos e culturais. Os resultados diagnosticaram que, de fato, o kitsch está presente na cenografia de várias obras de Almodóvar, mostrando como os artefatos e o mobiliário interagem com as pessoas, o ambiente, com a criação dos personagens e traduzem emoções, conceitos e posturas ideológicas. Palavras-chave: Cenografia. Pedro Almodóvar. Kitsch. Abstract - This study aimed to analyze the kitsch on scenery in films of renowned Spanish director Pedro Almodovar. The research methodology involved the theoretical basis of matters directly related to the subject, as knowledge about the set film, the Spanish culture, biography and filmography of the director and the concept of kitsch from the studies of Abraham Moles. In addition, we selected the works of Almodovar containing explicit characteristics compatible to what is considered kitsch-laden elements and intense colors. These works, some scenes that stood out were analyzed deeply. It was found, then the presence of objects, furniture and details related to various types kitsch that make up the environments, and reveal different influences of artistic and cultural movements. The results diagnosed that, in fact, kitsch is present in the staging of various works of Almodovar, showing how the artifacts and furniture interact with people, the environment, creating new characters and translate emotions, concepts and ideological positions. Key-words: Set design. Pedro Almodovar. Kitsch. INTRODUÇÃO

O objetivo deste texto é refletir sobre o efeito kitsch na obra de Almodóvar,

* Graduada em Tecnologia em Design de Móveis pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR, [email protected] ** Graduada em Tecnologia em Design de Móveis pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR, [email protected] *** Doutora em Comunicação e Semiótica, professora do Departamento de Desenho Industrial e do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), [email protected]

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especificamente em um dos ambientes do filme Ata-me. O conceito de kitsch que usamos aqui

é o dos estudos de Abraham Moles (1971), bem como suas categorias e classificações.

Os filmes de Pedro Almodóvar, um dos diretores espanhóis mais destacados na

história do cinema contemporâneo, apresentam uma multiplicidade de referências em relação

ao uso das cores e harmonias cromáticas, aos móveis e ícones da história do design, ao uso de

texturas diversas, de objetos artesanais e industriais, artefatos em diferentes contextos para os

quais foram projetados.

A importância desta pesquisa é dada pela contribuição à cultura pop e ao design de

interiores pelo fato do kitsch fazer parte da sociedade de consumo, estar presente em todos os

setores e classes, com a tentativa de traduzir emoções, tradições culturais e locais e apresentar

ecletismo. Há necessidade dos designers discutirem mais os conceitos de kitsch e as suas

manifestações nas mídias e nos ambientes para conhecerem melhor suas possibilidades de

uso, de releitura, seus estilos, composições e sua importância na sociedade contemporânea.

É necessário enfatizar que o estudo dos cenários é um modo de perceber as relações entre as

pessoas e os objetos, entre o design e a cultura nas representações de usos e de consumo dos

artefatos, entre a arte e a indústria de massas.

ALMODOVAR E O KITSCH

O conceito de cenografia revela a importância da mesma em uma composição de

ambientes. A cenografia deve ser um instrumento reflexivo, dando significado à ação em uma

cena, seja ela teatral, cinematográfica ou televisiva. É um item que deve estar integrado ao

espetáculo, portanto o cenógrafo, além de seu conhecimento técnico-cultural, precisa ter

envolvimento no texto e compreensão do mesmo, concebendo plasticamente a temática do

espetáculo. Não se pode separar cenário, figurino, movimentação dos atores e adereços.

Após o período de estagnação do cinema, devido à censura ditatorial, a Espanha, já em

transição política, iniciou um estilo de cinema sobre a Guerra Civil, o pós-guerra e a vida

durante o franquismo, no qual se misturam a sátira e a nostalgia. La movida madrileña foi o

marco de transição para a nova vida social e política. A Espanha passava por um

renascimento criativo através das artes visuais, da música, da fotografia, da pintura, do teatro

e do cinema, após 40 anos de ditadura.

A partir de então, surge um cinema novo e provocador, no qual se destacou Pedro

Almodóvar (1951-). Todos os seus filmes desenvolvem narrativas sinuosas em que o amor e o

desejo se perdem e se aventuram com total liberdade. O diretor moldou uma linguagem que é

um dialeto único: narrativas prismáticas, repuxos de melodrama, iconografia pop, canções

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bregas num contexto intelectual, com humor debochado, cores intensas e cenários

espalhafatosos. O kitsch em sua obra é inspirado pelo exagero da própria cultura espanhola,

pela celebração do desejo e da liberdade como sentimentos supremos, por ícones da

comunicação de massa, religião, movimento punk e a Pop Art.

O kitsch não é uma estética ou um movimento artístico, muito menos uma forma

negativa de se referir a alguma coisa para depreciá-la. É definido como uma atitude. A

primeira fase é representada pela ascensão da sociedade burguesa (MOLES, 1971). Os

burgueses, em posse de elevado poder aquisitivo, desejavam os objetos de arte que a

aristocracia tanto ostentava, mas a um preço mais justo. Nesta fase, cada objeto revestia-se de

um grande valor sentimental (BELTRÃO, 2005).

A segunda grande fase é impulsionada pelo surgimento das grandes lojas de

departamento. É o momento dos grandes centros comerciais, onde os preços são padronizados

e os produtos são adquiridos pelo simples prazer do consumo. O grande momento do kitsch

coincide com a expansão do mercado e com a emergência da sociedade de massa (MOLES,

1971). O estudo do kitsch é o estudo dos reflexos mais visíveis da sociedade contemporânea

em sua alienação ao objeto. “O kitsch é a arte da felicidade e qualquer chantagem à felicidade

da civilização será também uma chantagem ao kitsch”(MOLES, 1971).

Moles propôs várias categorias que compõem uma tipologia do kitsch. As avaliações

tipológicas dos objetos revelam ou não a qualidade de kitsch. Este é um fenômeno de difícil

captação, que não tem teoria a ser seguida. São muitas as tipologias conceituadas pelo autor.

Algumas delas serão vistas mais adiante, na análise do filme Ata-me!

O movimento funcionalista propõe uma ‘reação sócio-cultural’ ao kitsch e um dos

elementos ‘constitutivos essenciais’ que determinaram o estilo, forma e organização dos

produtos e dos objetos, no segundo desenvolvimento histórico a ser avaliado: o neokitsch. O

desenvolvimento e expansão do funcionalismo relacionam-se à ‘Loja Gigante’ e a um

mercado que requer um estudo sobre o que o público pode desejar. Aí surge o designer:

personagem de uma nova profissão da arte social intimamente ligada a uma psicologia social

aplicada à estética. O designer não pretende ser um grande artista, “não porque o

supermercado não possa pagá-lo, mas pelo fato de que o grande artista está à frente de sua

época, sendo percebido apenas por um micromeio, enquanto a massa do público está atrasada

em relação a ele.” (MOLES, 1971).

A arte pop surge como uma reação ao funcionalismo e teve sua responsabilidade

incumbida ao espectador. O artista pop produz, “enquanto o público interpreta e dá sentido ao

que sente e vê. Pluralizam-se os significados, aumentam as incertezas e as dúvidas”

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(CAUDURO, 2010). A estética da Pop Art também influenciou o design. “A cultura kitsch e

trivial do cotidiano, móveis montados pelo próprio usuário e entulho adquiriram status social

e passaram a integrar a cultura habitacional” (SCHNEIDER, 2010). O design pop se volta

para a ênfase social, que se torna sinônimo de bom design e realizam-se estudos de

ergonomia, semiótica e agregam-se valores simbólicos aos produtos. Os novos temas deste

caráter lúdico, ícone da Pop Art, dão início ao pós-modernismo. (CAUDURO, 2000)

O pós-modernismo é consumista, alegre e descontraído. No design pós-moderno a

principal função dos produtos era a emocional e sua pluralidade que aproxima o design das

artes resulta no simulacro e no ecletismo, onde há a mistura de vários estilos e tendências, o

supérfluo é exaltado. O design assim tornou-se mediador de sentimentos, ideias e conceitos. A

base do design pós-moderno sustentou-se no poder dos meios de comunicação aliados à

industrialização de produtos de massa e a democratização do luxo.

ANÁLISE Para análise dos filmes de acordo com as tipologias kitsch de Moles, foi elaborada

uma ficha para avaliação através do cruzamento quantitativo dos dados, que foi aplicada a

todos os nove filmes pré-selecionados. O resultado desta primeira estimativa foi a noção de

que muitas das tipologias se repetiam na maioria dos filmes. Este fato levou a uma nova

seleção de obras, priorizando as imagens que continham um agrupamento das mais variadas

tipologias em um mesmo ambiente. Foram cinco as obras selecionadas para análise detalhada:

Que fiz eu para merecer isto? (1984), Mulheres à beira de um ataque de nervos (1987), Ata-

me! (1989), De salto alto (1990) e Kika (1993).

Ata-me! (1989) foi o filme escolhido para discussão neste texto. Marina Osorio

(Victoria Abril), uma ex-viciada em heroína e ex-atriz pornô, é aprisionada por Ricky

(Antonio Banderas), um homem amoral e delinqüente que nutre por ela um amor doentio.

Ata-me! (¡Átame!) é um filme espanhol de 1989, do gênero drama, dirigido por Pedro

Almodóvar.

Estrelado por Victoria Abril, Antonio Banderas, Loles León, Julieta Serrano, María

Barranco, Rossy de Palma, Francisco Rabal, Lola Cardona, Montse G. Romeu, Emiliano

Redondo, Oswaldo Delgado, Concha Rabal.

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FIGURA 01 - Capa do filme Ata-me

Fonte: CLUB CULTURA, 2010

Em Ata-me! Ricky (Antonio Banderas) é um homem amoral e delinqüente. Quando sai

de um hospital psiquiátrico, sem amigos e órfão, ele objetiva um futuro “normal”: fundar uma

família e ter filhos. Para sua esposa, ele escolhe a rainha do cinema “B“1, a atriz Marina

Osorio (Victoria Abril), uma ex-viciada em heroína e ex-atriz pornô que ele já conhecia de

um bordel, em uma de suas fugas do manicômio, e que está filmando um filme de terror "B",

dirigido por Máximo Espejo (Francisco Rabal), um diretor conhecido que tenta se recuperar

após ter tido um forte derrame que o deixou preso a uma cadeira de rodas. Entretanto, Rick

usa métodos nem um pouco convencionais para alcançar seus objetivos. Ele segue Marina até

seu apartamento, onde entra à força e, como ela resiste, bate nela, amordaça-a e ata-a à cama

para lhe explicar suas intenções, que não mudaram: fundar uma família com ela e ter filhos.

Lola fica chocada com tanta violência diante desta situação atroz e indigna-se mais ainda por

seu raptor dizer que a ama e que deseja formar, com ela, uma família. Ricky mantém Marina

presa primeiramente em seu apartamento e depois no apartamento vizinho, em seu próprio

edifício, amarrando-a. Ao mesmo tempo em que usa de violência, Ricky procura manter o

bem-estar de Marina ao sair para comprar remédio para a sua dor de dente. A amarração do

corpo de Marina sofre uma transição durante o filme. Inicialmente, contra sua vontade, ao atá-

la, Ricky pretende fazer com que Marina aceite seus planos, conheça-o melhor e aceite a sua 1 Cinema “B” - Classificados em geral como ruins, os filmes de cinema “B” são filmes de baixo orçamento. Os filmes “B” tiveram seu auge durante os anos trinta e quarenta através dos seriados exibidos antes dos filmes principais, por assim dizer. Em sua maioria eram séries de faroeste, ficção científica, ação e suspense, já que a idéia principal era manter a tensão no final de cada um dos curtos episódios, para fazer o público retornar na semana seguinte para conferir o desfecho.

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proposta de casamento e família. Em meio aos acontecimentos, ela então acaba sendo uma

prisioneira voluntária deste amor, interpretando a amarração como um ato de afeto e assim

atando seu coração ao de Ricky.

O apartamento de Pepe (Emiliano Redondo), vizinho de Marina, é o lugar onde Ricky

a esconde, pois ele está viajando de férias. A sala de Pepe, objeto desta análise, apresenta uma

combinação de diferentes estilos, apontando para o que o kitsch representa: a ausência de um

estilo delimitado. Porém, pode-se dizer que a composição deste espaço não resulta em falta de

estilo, muito pelo contrário, ela traduz um repertório carregado de referências estéticas,

resultando num ecletismo.

FIGURA 02 – Sala de Pepe

Fonte: Ata-me! (1989)

Na figura 01 há duas cadeiras de piscina, que representam o “princípio de

inadequação”, já que estas cadeiras são apropriadas para utilização em ambientes externos. Na

lareira, há duas esculturas de atlantes que caracterizam situações kitsch de “épocas de

civilização”, pois fazem referência ao classicismo. Acima, há uma televisão que caracteriza

objetos kitsch “permanentes, fadados a uma eternidade provisória”. Há também brinquedos,

que representam “objetos doces” e “heroísmo ou despojamento de conto de fadas”, e dois

vasos de vidro com espanadores de pó, que caracterizam também o “princípio de

inadequação”. O conjunto destes objetos caracteriza “critério de heterogeneidade”, “critério

de antifuncionalidade” e “critério de autenticidade kitsch” (MOLES, 1971).

Na figura 02, observam-se as duas cadeiras de piscina vistas de frente e, no piso, um

tapete verde que imita grama, reiterando o efeito nonsense e de artificialidade.

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FIGURA 03 – Sala de Pepe Fonte: Ata-me! (1989)

As cores aplicadas no ambiente representam a tipologia de “contraste de cores”,

característica frequentemente identificada nos filmes de Almodóvar. A composição de cores

intensas utilizadas em seus cenários expressa o turbilhão de sentimentos vividos por seus

personagens. Com isso, a atenção do espectador é despertada tanto no visual como no

emocional, o que pode caracterizar também o “princípio da percepção sinestésica”.

Na segunda parte da sala a ser analisada (figura 3) há um quadro ao centro com uma

fotografia de uma paisagem de litoral, caracterizando situações kitsch de “lugares”. Existem

duas poltronas de papelão, a “Grandpa Beaver” chair, do arquiteto Frank O. Gehry2 com

destaque na figura 4. A presença destes móveis de assinatura simboliza a tipologia de atos

kitsch “Desenho Industrial”(MOLES, 1971).

2 Frank O. Gehry nasceu em Toronto, mas mudou-se para Los Angeles em 1947. Estudou arquitetura na

Faculdade do Sul da Califórnia e especializou-se em design na Universidade de Harvard. Em 1972, Gehry desenhou uma série de peças de mobiliário chamadas "Easy Edges", utilizando madeira. Essas peças fizeram grande sucesso, mas foram tiradas de circulação três meses depois do lançamento, pois Gehry temia que seu reconhecimento como designer de móveis populares afetasse seu prestígio como arquiteto. Como um dos principais expoentes do Desconstrutivismo, Gehry ganhou muitos prêmios, incluindo o Pritzker Prize em 1989. Sua obra mais conhecida é o Museu Guggenheim, em Bilbao, na Espanha, recoberto de titânio, de 1997 (EDUCAÇÃO UOL, 2010).

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FIGURA 04 – Sala de Pepe Fonte: Ata-me! (1989)

Entre as poltronas (figura 3) observam-se uma mesa de fibra natural e, ao lado delas,

dois vasos de cerâmica com plantas, ambos caracterizando atos kitsch de “artesanato”. A cor

do quadro em composição com a cor da parede representa “contraste de cores”. O conjunto

destes objetos caracteriza “critério de heterogeneidade”, já que estes não têm relação entre si.

FIGURA 4 – “Grandpa Beaver” chair, de Frank O. Gehry. Fonte: CONTEMPORIST, 2010

Nos arranjos cenográficos evidencia-se a multiplicidade referências culturais, de

estilos e propostas decorativas, justapondo peças clássicas, barrocas, ícones do design

contemporâneo, objetos com usos inesperados – como os espanadores – , rompendo

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classificações e hierarquias, numa linguagem plural que descondiciona o olhar.

CONSIDERAÇÕES

O kitsch de Almodóvar é autêntico, único e criativo. Exerce uma função simbólica na

cultura e na sociedade. Cada indivíduo imagina uma forma diferente de se relacionar com

aquilo que possui, reinventa funções, ou até mesmo deixa de se importar com elas. A

aproximação da ambientação de espaços cenográficos dos filmes do diretor com o kitsch se dá

pelo fato de a obra de Almodóvar ser categorizada como objeto de valor estético distorcido ou

exagerado, com presença de cores quentes e intensas e riqueza de detalhes. Almodóvar utiliza

o kitsch nas suas variadas formas de aplicação e sobretudo na composição estética de seus

cenários. O diretor direciona a composição dos ambientes de modo que ela reflita a

personalidade de seus personagens. Percebe-se a importância de estudar o kitsch para

compreender o cotidiano das pessoas, o uso das coisas e os modos de colocação no ambiente,

a responsabilidade de um projeto para traduzir não só questões técnicas, mas também desejos,

sonhos, sentimentos que transformam o cotidiano, valorizam as experiências vividas e

permitem reapropriações e reinvenções de arranjos por parte dos usuários.

REFERÊNCIAS

BATTEZZATI, Ligia; DIAS, Luciane. O kitsch na cenografia de Almodóvar. 169 f. Trabalho de Conclusão de Curso. Tecnologia em Design de Móveis. Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, 2010. MOLES, Abraham. O Kitsch: a arte da felicidade. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1971. BELTRÃO, Hallina. Eu amo kitsch: Uma análise da atitude kitsch na obra de Pedro Almodóvar. 84 f. Trabalho de Conclusão de Curso. Bacharel em Design – Programação Visual. Universidade Federal de Pernambuco, 2005. Disponível em: <http://sdogma.uclm.es/uclm/html/tesis/descarga/Eu%20amo%20kitsch.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2010, 20:13. CAUDURO, Flávio V. André. Design gráfico & pós-modernidade. Revista Famecos, Porto Alegre, n.13, 2000. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revista famecos/article/viewFile/3088/2364>. Acesso em: 01 set. 2010. SCHNEIDER, Beat. Design – uma introdução: o design no contexto social, cultural e econômico. 1. ed. São Paulo: Editora Blücher, 2010.