Cenografia Brasileira Do Sec XXI

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  • MIRIAM ABY COHEN

    CENOGRAFIA BRASILEIRA SCULO XXI: DILOGOS POSSVEIS ENTRE A PRTICA E O ENSINO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Artes, rea de Concentrao: Artes Cnicas, Linha de

    Pesquisa: Teatro e Educao, da Escola de Comunicaes e

    Artes da Universidade de So Paulo, como exigncia parcial

    para obteno do Ttulo de Mestre em Artes, sob a orientao

    da Profa. Dra. Maria Lcia de Souza Barros Pupo.

    SO PAULO 2007

  • CENOGRAFIA BRASILEIRA SCULO XXI: DILOGOS POSSVEIS ENTRE A PRTICA E O ENSINO

    Espao reservado para anotaes da banca

  • Mestrado

    Miriam Aby Cohen

    Artes Cnicas

    Teatro e Educao

    Prof Dr. Maria Lcia de Souza Barros Pupo

    nvel do projeto

    autor

    rea de conhecimento

    linha de pesquisa

    orientadora

  • Dedico esta dissertao

    minha filha Calen e ao meu companheiro Lee

    pela enorme compreenso, apoio e bom humor

    compartilhados durante esta aventura.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a todos aqueles que me motivaram a prosseguir com esta jornada e

    queles que colaboraram diretamente com esta pesquisa, sobretudo minha

    orientadora Prof Dr Maria Lcia de Souza Barros Pupo. Agradeo especialmente

    aos Professores: Luiz Fernando Ramos, Mrcio Tadeu, Helosa Cardoso Villaboim,

    Ronald Teixeira, Ldia Kosovski, Marcelo Denny, Fausto Poo Vianna e Jos Svio de

    Arajo. Agardeo tambm a colaborao da jornalista Jeanne de Castro, responsvel

    pela reviso do texto e, finalmente, aos alunos das universidades que participaram

    deste projeto de pesquisa: UNIRIO: Adriana, Ana, Bruna, Janana, Marieta e Simone; UFRJ: Alan, Julie, Lucas, Melina, Paula, Paula M, Renata, Isabela; USP: Ana Carolina, Ana Emlia, Ana Paula, Andr, Carol, Carolina, Dbora, Diogo, Fabola, Felipe,

    Fernando, Graciela, Hugo, Ivan, Jefferson, Joo, Ktia, Lgia, Maira, Marcelo, Marina,

    Marilia, Nzia, Paula, Paulo, Pedro, Ricardo e Solange.

  • RESUMO

    Os dilogos possveis entre a prtica e o ensino da Cenografia no Brasil aqui

    identificados so resultantes da investigao e da reflexo sobre a formao do

    cengrafo contemporneo a partir da perspectiva de experincias na prtica teatral. O

    cengrafo aqui tratado como artista, responsvel pela identidade visual do

    acontecimento teatral e colaborador no processo de sua criao. A Cenografia

    encarada como linguagem situada no contexto teatral sem, no entanto, excluir os seus

    desdobramentos na prtica atual, entendendo que, a partir da sua origem, que o

    Teatro, podemos transpor boa parte desta experincia para as demais reas.

    O desenvolvimento desta pesquisa baseia-se no acompanhamento in loco de

    processos vivenciados e metodologias aplicadas nas principais instituies brasileiras

    de ensino da Cenografia. Os procedimentos so analisados diante do objetivo de

    reconhecer e apontar caminhos produtivos para a formao do futuro artista

    cengrafo. Esta investigao busca indicar rumos que de fato contribuam para o

    desenvolvimento da qualidade artstica e tcnica do cengrafo, de forma que no o

    restrinja apenas a responder com segurana s suas atribuies, mas que o prepare

    para atuar e colaborar, efetivamente, como artista criador, nos processos e realizaes

    contemporneas, participando do desenvolvimento das Artes Cnicas.

    Teatro Contemporneo Cenografia Prtica Formao Processo Criativo

  • SUMMARY

    The possible dialogues between the practice and teaching of scenography in

    Brazil, identified herein, are the result of the investigation and reflection about the

    development of the contemporary scenographer originating from the perception from

    my experience in theatre practice. Here the scenographer is treated as an artist,

    responsible for the visual identity of the theatrical event and collaborator in the process

    of its creation. Scenography is taken as a language within the theatrical context, taking

    care to not ignore scenographys expansion into other areas, understanding that

    starting from its theatre origins we can carry a good part of this experience to these

    other related areas.

    The development of this research is based on the processes experienced and

    methodologies applied in major Brazilian academic institutions that offer bachelor

    degree level scenography courses. These proceedings are analysed with the objective

    of recognizing and appointing productive directions for the training of future

    scenographic artists. This investigation aims to indicate guidelines that contribute to the

    development of the artistic and technical qualities of the scenographer, not just the

    capacity to execute their acquired attributes, but to prepare an active collaborator, a

    creative artist in the process of contemporary productions, participating in the

    development of the Scenic Arts.

    Contemporary Theatre Scenography Practice Academic Formation Creative Process

  • ndice pg.

    CAMINHOS PERCORRIDOS na CENOGRAFIA A Cenografia, o Contexto e o Cengrafo ................................................................... 02

    A Tempestade, uma ilha da conscincia ..................................................................13

    Captulo 1 A PRTICA da CENOGRAFIA 1.1 Cenografia : ........................................................................................................ 23 1.1.2 Cenografia e Acontecimento Teatral

    1.1.3 Cenografia como Linguagem Artstica

    1.1.4 Cenografia e Tcnica

    1.1.5 Cenografia e Artes Plsticas

    1.1.6 Cenografia e Arquitetura

    1.1.7 Cenografia, Espao e Tempo

    - A Linguagem do Espao e do Tempo e o Teatro

    - Espao Cnico, Espao Teatral e Cena

    1.2 Na Prtica ............................................................................................................ 40 1.2.1 Processos vista

    1.2.2 Componentes da realizao teatral

    a) Argumento

    b) Pesquisa

    c) Ao e Recepo: a presena do Humano

    d) Espao

    e) Tempo

    f) Sistema Cnico

    Captulo 2 O ENSINO da CENOGRAFIA no BRASIL 2.1 Formao e regulamentao da Cenografia e de seu ensino no Brasil .............. 61 2.2 As Universidades ................................................................................................. 70 2.2.1 Interseces e contrastes .......................................................................................81

  • Capitulo 3 AS AVES: PROCESSO e METODOLOGIA na FORMAO do CENGRAFO 3.1 As Aves ............................................................................................................... 92 3.2. Processos de trabalho no contexto das universidades. O educador, o aluno e a Cenografia .................................................................. 95

    3.2.1 Argumento .......................................................................................................... 97 3.2.2 Pesquisa ..........................................................................................................111 3.2.3 Sistema Cnico................................................................ ............................... 118 3.2.4 Ao e Recepo: a presena do Humano .......................................................135 3.2.5 Espao e Tempo ..............................................................................................146 3.3 Cinco grupos, cinco criaes cenogrficas ....................................................... 158

    CAMINHOS A INVESTIGAR PRTICA e FORMAO em CENOGRAFIA...................................................................176

    BIBLIOGRAFIA ..........................................................................................................186 ANEXO As escolas de Artes Cnicas de nvel universitrio ...................................190

  • CAMINHOS PERCORRIDOS NA CENOGRAFIA

    1

  • A Cenografia, o Contexto e o Cengrafo

    Cenografia o tratamento do espao cnico. O cenrio o que se

    coloca neste espao. Assim, no h espetculo teatral sem

    cenografia, mas pode haver sem cenrio.1 Clvis Garcia

    A Cenografia parte integrante do fazer teatral desde sempre. parte da discusso sobre se os rituais tribais2 so ou no manifestao de qualidade teatral,

    neste contexto, podemos identificar elementos relevantes da cenografia: a

    organizao do espao, sua ocupao pela ao e pelo pblico, a indumentria, os

    objetos cnicos sua organizao e utilizao.

    Acompanhando a evoluo das proposies do fazer teatral, a Cenografia

    modificou-se ao longo de sua histria. Distintas qualidades e atribuies lhe foram

    conferidas: os elementos que organizam o espao e ilustram, no Teatro Grego; os

    mecanismos para a realizao dos Mistrios, na Idade Mdia; do carter decorativo ou

    pictrico perspectiva, no Renascimento; o cenrio que recria parcialmente a

    realidade, um ambiente levado ao limite, no Naturalismo, a exemplo de Les Bouchers,

    de Antoine; a representao visual que apenas sugere e estimula a imaginao do

    pblico, no Teatro Simbolista; o espao tridimensional e vivo de Appia; o conceito de

    unidade cnica, pautado sobre a qualidade visual do Teatro, por Craig; a ampliao de

    sua responsabilidade como espao cnico, a aproximao do pblico com a cena

    invadindo o espao teatral, a partir de Meininger e Meyerhold; as propostas de

    rompimento com a caixa italiana (caixa tica) por Max Reinhardt, que, na sua viso

    contempornea prope a busca por espao distintos, apropriados e especficos para

    receber cada espetculo, no Teatro Moderno. Este caminho percorrido pela

    Cenografia no contexto teatral transmite uma forte herana para a prtica cnica atual,

    que se apia em muitos dos preceitos do Teatro Moderno.

    1 Clovis Garcia , durante aula ministrada na USP em 2004. 2 O Rito um lugar de encontro entre os seres humanos, mas o rito uma encenao? O ritual tribal

    caracteriza-se pela presena de um determinado indivduo responsvel por fazer a comunicao entre os

    homens e os deuses. O Teatro faz isto? Qual a diferena? Das justificativas que encontrei at hoje, a que

    me parece aproximar o rito do Teatro : segundo Joseph Campbell, autor de O poder do Mito: a

    qualidade que o rito tem de transcender a dimenso temporal.

    2

  • As diversas manifestaes teatrais, em seus contextos, marcaram processos

    distintos do fazer cenogrfico. O naturalismo, por exemplo, teve papel fundamental

    para a Cenografia no que diz respeito motivao de uma nova relao entre o diretor

    e o cengrafo, que se fazia necessria para a criao e realizao de suas

    proposies, modificando at os processos de trabalho. A Cenografia encontrou nas

    renovaes cnicas do sculo XX, que surgiram em oposio ao naturalismo, muitas

    outras possibilidades para o desenvolvimento da sua linguagem inclusive a sua

    abstrao. O Teatro Moderno provoca para uma prtica no mais pautada apenas

    sobre o texto dramtico, mas onde os demais sistemas de signos - espao, luz, som,

    cor, imagem, movimento - passam a fazer sentido na interlocuo com o espectador.

    A modernidade foi, para o Teatro e, conseqentemente, para a Cenografia,

    assim como nas Artes Plsticas, um movimento de criao e de rompimento

    constantes. No ps-guerra, as artes em geral se voltaram para um desvelar dos

    processos e dos bastidores, revelando o que antes parecia estar por detrs daquilo

    que era apresentado. No havia mais mscaras ou vitrines, a realidade era

    apresentada como tal, havendo o rompimento definitivo com qualquer tipo de iluso.

    Diante das diversas manifestaes de ruptura da Modernidade e do acesso

    aos processos do fazer, a contemporaneidade recolhe, restaura e reordena

    fragmentos que se aglutinam e ou se chocam, contestam a si mesmos, no precisam

    mais ser contrapostos, parece que j vm imbudos de uma auto-degenerao, sem

    expectativa de longa vida, provisrios, em constante transformao, criando e

    recriando imagens, fragmentos de imagens, fugidias, rpidas, volteis... Elementos

    organizados ou meramente colocados em espaos, espaos estes que, no entanto,

    permanecem, no se modificam assim to rapidamente.

    O espao, como um dos elementos fundamentais e diferenciais do Teatro -

    responsvel por demarcar fisicamente o ponto para um encontro eventual entre os

    seres humanos, parece ser, por vezes, o responsvel pela suspenso deste processo

    de transformao. A exemplo do que j propunha Reinhardt, o artista contemporneo

    sai em busca de um espao teatral que dialogue verdadeiramente com o seu

    enunciado, com aquilo que ele quer dizer. Os espaos ditos inusitados, que na

    verdade sempre existiram em toda histria do Teatro, usados agora para libertar-se da

    relao proposta pelo formato do palco italiano, procurando uma outra aproximao

    com o pblico, propondo novas relaes. Esta busca por um espao ideal permite ao

    artista, inclusive, retornar ao teatro italiano e modific-lo em prol de seus objetivos,

    como vemos fazer, por exemplo, Peter Brook.

    3

  • Dos cenrios naturalistas s representaes mais minimalistas, vivemos em

    um momento no qual j no importa quo sofisticados eles podem ser, mas se podem

    surpreender, indicar, conter e, ainda, serem economicamente realizveis. No espao

    cnico, o sublime hoje est, no necessariamente no uso de efeitos tecnolgicos, mas

    mais freqentemente, na capacidade de tornar um espao nico para um evento

    teatral, conferindo-lhe alguma energia, uma alma, tornando o espao vivo e

    participativo deste acontecimento. Na prtica exploramos correspondncias entre o

    espao, a imagem e a sua percepo, por parte no apenas do espectador, mas

    tambm do ator, do diretor e dos demais artistas e profissionais responsveis pela

    evento teatral.

    Ao Contexto est diretamente relacionado o fazer artstico e a realizao

    tcnica deste fazer. Na medida em que o Teatro se prope a dialogar verdadeiramente

    com o seu tempo, torna-se necessrio analisar aspectos histricos, conceituais,

    estticos e tcnicos, para que possamos assimilar a sua real evoluo. Ao longo do

    sculo XX, de tantas transformaes, o homem coloca-se diante do questionamento

    sobre desenvolvimento e repetio. A contemporaneidade o contexto sobre o qual

    este projeto de pesquisa est focado, assim importa, sobretudo, neste trabalho, a

    reflexo de artistas da prtica do Teatro na atualidade e o pensamento deixado por

    artistas e pensadores que influenciam as condutas presentes.

    Neste nosso tempo deveramos fazer uma pausa, olhar para trs,

    reconectar.3 Esta frase de Jean-Franoise Lyotard ilustra o momento em que vivemos, um ponto de mudana, de redirecionamento, deflagrada pela inquietude das

    ltimas dcadas, momento este no qual os modelos, inclusive para o Teatro, esto

    sendo colocados em questo e conseqentemente so gerados outros esboos,

    outros pensamentos. Estamos diante de um panorama teatral que, mais uma vez,

    busca modificar-se ou pelo menos, no est estanque. Parar, olhar para trs, refletir

    sobre a prtica at este momento e buscar novos estmulos, so movimentos e

    reflexes que motivaram esta pesquisa e conduziram a investigao nos campos da

    prtica e do ensino.

    3 Jean- Franoise Lyotard, filsofo francs, doutor em letras lecionou na Frana, EUA e Brasil, na Universidade de So Paulo, em 1979, autor da publicao A Condio ps-moderna 1979.

    4

  • O Teatro essencialmente baseia-se em um jogo entre o esconder e o revelar,

    conferir sentido ou abstra-lo; um jogo que modifica suas regras de acordo com o seu

    contexto, e principalmente, de acordo sobre como propomos nos colocar em relao a

    ele. O Teatro desde sempre busca interlocuo com o seu pblico, e na atualidade

    seu desafio est em formar seus espectadores. O caminho do fazer em relao

    audincia modificou-se, e diferentemente do sculo XIX, quando fortemente marcado

    pelo teatro de boulevard (que em alguns casos podemos ainda identificar em nosso

    tempo), j no necessariamente a burguesia quem sustenta a produo teatral na

    atualidade, talvez no diretamente, principalmente em relao ao teatro de pesquisa.

    O artista teatral exime-se assim da necessidade de agradar aquele segmento da

    sociedade. Para o artista visual cnico, no entanto, ainda um contexto no qual

    desenvolve sua obra, diante do qual muitas vezes ainda reluta em render-se a um

    gosto no provocador.

    H uma lacuna de dilogo entre o Teatro e a crtica especializada impressa, no

    Brasil, que tambm se reflete no seu desenvolvimento. Muito se fala sobre a

    dificuldade de interlocuo do Teatro com a crtica e sobre o fato de que esta no d

    conta dos inmeros eventos teatrais simultneos que tomam lugar nos grandes

    centros. Dificuldade a partir da qual se identifica uma mudana no comportamento e

    na expectativa do Teatro em relao mesma. O que poderia ser aparentemente

    desestimulante, apresenta-se, entretanto, como um elemento motivador de uma busca

    por novos caminhos a percorrer. As leituras dramticas, os debates ao final do

    espetculo, o pblico cadastrado (aquele que acompanha o processo de

    desenvolvimento da produo), entre outros procedimentos, tornaram-se instrumentos

    para uma aferio do evento teatral diante de seu pblico e conseqentemente para

    uma possvel construo de parmetros que no se apiam mais, necessariamente,

    em conceitos e filosofias, mas na apreenso deste evento por parte do espectador.

    Assim, o pblico, nem sempre treinado para ler o Teatro, tornou-se um dos principais

    responsveis por esta resposta. No campo das artes visuais cnicas4 esta relao, ou

    resposta, quase inexistente, fica diretamente relacionada referncia de mundo-

    imagem que a audincia desenvolve a partir daquilo que recebe como informao

    visual do universo que a rodeia. Torna-se um desafio fazer com que o pblico

    transcenda a sua prpria imagem de mundo atravs da proposio de imagens e

    4 artes visuais cnicas, termo desenvolvido pelo grupo CenografiaBrasil para tratar de forma abrangente

    os aspectos visuais do teatro que no se restringem apenas cenografia, que abarcam a indumentria,

    os objetos cnicos, adereos e inclusive a iluminao.

    5

  • espaos configurados a partir da linguagem teatral, mas no se pode ficar preso a esta

    dificuldade ou simplesmente acomodar-se em atender s expectativas de um

    determinado pblico.

    O mundo-imagem a superfcie da globalizao. o nosso mundo compartilhado. Empobrecida,

    obscura, superficial, esta imagem-superfcie representa toda nossa experincia compartilhada. No

    compartilhamos o mundo de outro modo. O objetivo no est em alcanar o que est por baixo da

    superfcie da imagem, mas em ampli-la, enriquec-la, conferir-lhe definio, tempo. Neste ponto emerge

    uma nova cultura.5 Felipe Ehrenberg

    Neste momento, alm de olharmos para a realidade atual, preciso retomar os

    aspectos primordiais que norteiam a prtica e a reflexo artstica. As transformaes

    requerem uma reviso de conceitos, uma busca ao seu estgio inicial antes de suas

    tantas releituras e interpretaes. preciso inverter a lgica limitada colocando o

    passado frente como algo que se pode enxergar, algo conhecido, vivenciado e, ao

    mesmo tempo, pensar no futuro como algo que nos persegue, que percebido, mas

    que no se consegue ver claramente, algo que surpreenda. Comear a pensar em um

    futuro inimaginado, lanando mo das referncias que sempre acompanham o

    processo criativo, colocando-as frente, em um plano visvel, cuidando para que no

    se sobreponham tela ainda branca do que ainda est por ser criado. Assim com uma

    outra postura, estaremos, quem sabe, mais libertos para apresentar espaos, criar

    novas imagens, e no apenas represent-los.

    O Cengrafo descrito segundo o Ministrio do Trabalho, como o

    profissional que: formula o conceito artstico da cenografia, pesquisando a obra

    artstica, seu contexto histrico, perfil das personagens, autor e contedo,

    possibilitando a compreenso do texto; responsvel por dar corpo s palavras no

    espao e no tempo e criar ambientes e atmosferas que valorizam e enfatizam a

    concepo cnica; elabora projeto cenogrfico a partir de estudos preliminares do

    espao cnico; da viabilidade na utilizao de materiais e de ajustes com equipes

    (artstica, tcnica e de produo) que acompanham sua concretizao, coordenando e

    5 Felipe Ehrenberg cita Susan Buck-Morss. Felipe Ehrenberg foi o curador do Mxico para a 5 Bienal do Mercosul. Susan Buck-Morss professora de Filosofia Poltica e Teoria Social, na Universidade de

    Cornell, Nova York, EUA. Texto do catlogo da mostra: Rosa-dos-Ventos, Histrias da Arte e do Espao; Posies e Direes na Arte Contempornea. Fundao Bienal do Mercosul - Porto Alegre, 2005. p. 58.

    6

  • supervisionando equipes de cenotcnica, produo cenogrfica e outras equipes

    envolvidas na montagem da cenografia; elaboram projeto cenogrfico para adaptar

    cenografia a novos lugares e espaos. (definio da CBO 2002)6.

    Embora esta descrio paute-se essencialmente no contexto cnico7,

    considerando a evoluo histrica da cenografia e a sua estreita relao com o evento

    teatral, a realidade atualmente, no Brasil, apresenta-nos um profissional denominado

    cengrafo que atua em reas distintas de expresses artsticas e tcnicas especficas.

    reas que tm em comum o componente espao: Teatro, pera, Cinema, Televiso, Show, Carnaval, Exposio, Evento (das mais diversas naturezas), Parques

    Temticos, Restaurantes, entre outros.

    A Cenografia, por seu carter efmero e provisrio, parece ser o termo

    encontrado para explicar algo que no ser to definitivo como se pressupe a

    arquitetura. Tomando como parmetro a configurao da cena, ou a atribuio de

    cnico, conseguimos identificar claramente a obra realizada como Cenografia em

    algumas reas de atuao, como o caso, por exemplo, do cinema no qual estamos

    diante de uma cena que vista por um determinado olhar, olhar recortado por uma

    lente e registrado por uma cmera, e assim como no Teatro, dialoga com um

    enunciado. Existe, entretanto, um desmedido emprego da nomenclatura Cenografia

    para determinar, diferenciar ou valorizar o que muitas vezes , na verdade, um

    trabalho de design de interiores, de decorao ou de arquitetura de interiores. No

    podemos ignorar este quadro que assim se apresenta na prtica, mas por mais que

    nos esforcemos, raramente identificamos o carter cnico em um estande de vendas

    de um produto da empresa X ou na festa de aniversrio, ou de casamento de Y.

    A discusso sobre se uma determinada criao Cenografia, decorao,

    instalao ou outro termo, recorrente no Brasil, trazendo tona uma variedade de

    reas de atuao do cengrafo, assim compreendidas. Esta proximidade de definies

    pode ser resultante de alguns fatores, tais como: (1) em nossa cultura a descrio de

    Cenografia at h pouco tempo baseava-se na definio francesa decorateur;

    contexto no qual o cengrafo considerado de certa forma um tcnico; (2) reflexo do

    nosso prprio mercado de trabalho, que permite ao profissional transitar de um campo 6 CBO Classificao Brasileira de Ocupaes documento que norteia normaliza e regulamenta as profisses. Este documento gerado pelo Ministrio do Trabalho. Em 2002, a CBO foi inteiramente

    reeditada, atualizando descries de todas as ocupaes. A anterior datava da dcada de 1970. 7 Cnico: que se presta expresso teatral,,Patrice Pavis, Dicionrio de Teatro, Perspectiva, 1999, p.44

    7

  • de linguagem para outro: do Teatro para o cinema, para publicidade, para o evento,

    para cerimnia de casamento, e assim por diante.

    De fato, na prtica, Cenografia no mais exclusiva do contexto teatral, seus

    horizontes se ampliaram como linguagem artstica e para mercados comerciais. No

    se discute aqui a valorizao ou no do trabalho ou obra do cengrafo em um campo

    mais do que em outro, mas o foco recai sobre a Cenografia como linguagem artstica

    atravs da qual pode-se expressar, artisticamente. Este emprego talvez um pouco

    exagerado do termo cenografia/cengrafo ocorre, talvez, porque de fato remeta

    qualidade de linguagem artstica, conferindo algum status.

    Procuro entender esse movimento migratrio, essa qualidade que a Cenografia

    tem de transitar de uma rea a outra de linguagem, como um ponto de ebulio

    favorvel no apenas vivncia profissional, mas tambm reflexo, que talvez nos

    impulsione a outras condutas, mantendo-nos em movimento. O que me parece, no

    entanto, pouco motivadora a compreenso sobre esta prtica, pois deparamos-nos

    ainda com um infeliz conceito, que se tornou, digamos assim, popular, de que tudo

    que de mentira, fake, Cenografia. S piora quando algum nos solicita um

    trabalho utilizando a seguinte expresso: dar uma cenografada. Ao ouvir esta frase,

    percebe-se de imediato qual a expectativa que o indivduo que a props tem sobre o

    que ver. O que ele busca com dar uma cenografada, limita-se, na maioria das vezes,

    reproduo do mundo real, sem interpretaes, sem qualquer inteno de expresso

    artstica, a expectativa por um tratamento de espao desprovido de qualquer

    possibilidade de surpreender e muito menos de transformar.

    Apenas para efeito de ordenao dos pensamentos, proponho a utilizao dos

    conceitos: cenografia para as atividades relacionadas s reas de expresso artstica e cenografia aplicada8, para as atividades que atendem a uma solicitao

    mercadolgica, a um cliente. Para o desenvolvimento desta pesquisa preciso que

    fique claro que o foco , nestes termos, a cenografia. O que por sua vez no

    desqualifica ou exclui a cenografia aplicada; considerando a possibilidade de que os

    conceitos e investigaes aqui propostos sejam observados tambm por este ponto de

    vista. Para a leitura do texto que se segue, os termos cenografia e cengrafo sero aqui utilizados considerando os conceitos e referncias histricas que reforam o

    8 Cenografia Aplicada um termo aqui utilizado que empresto do Prof. Mrcio Tadeu, da UNICAMP.

    8

  • contexto cnico inerente Cenografia. Procuro sustentar esta relao a partir do

    conceito de cena, da forma como enfatizada por Patrice Pavis:

    a cena (skene) - que junto com a orchestra (palco) e o thetaron (platia), formavam os trs elementos cenogrficos que definiam o espao teatral, no Teatro Grego atravs dos tempos evoluiu para o conceito de cenrio; posteriormente rea de ao, local da ao, segmento temporrio no ato e,

    finalmente, o sentido metafsico de acontecimento brutal e espetacular.9 Patrice Pavis Em alguns pases onde a especializao marcante, torna-se muito difcil

    transitar de uma rea para outra como se faz no Brasil. O que ocorre tambm que o

    termo, melhor empregado, design10 se presta a uma localizao mais correta de uma

    rea de atuao profissional. Ironicamente, a denominao cengrafo, que usamos no

    Brasil, vem sendo recentemente utilizada na Frana, Inglaterra e outros pases, em

    substituio a decorateur e theatre design, respectivamente. Estes conceitos e seus

    desdobramentos, entretanto, devem ser compreendidos levando-se em conta a cultura

    e o histrico desta linguagem artstica em cada pas. O ponto de convergncia entre

    as diversas culturas e suas fronteiras reside justamente na discusso acerca do papel

    do cengrafo na realizao teatral contempornea. Exemplo disto a publicao

    What is Scenography?, de Pamela Howard11, na qual a autora deixa claro o desejo

    de criar denominaes diferenciadas para distinguir o designer de teatro - aquele que,

    digamos assim, presta um servio a um espetculo, criando a Cenografia, e o

    cengrafo aquele que participa efetivamente da criao e das decises sobre o

    evento em parceria com o diretor e com o produtor. Trata-se de uma provocao,

    atravs da qual a autora busca reforar os distintos processos e resultados aos quais

    estas relaes podem conduzir. A primeira definio ainda apresenta uma relao

    hierarquizada, na qual o cengrafo figura como uma personagem mais submissa, de 9 Patrice Pavis, Dicionrio de Teatro, Perspectiva, 1999, p. 42. 10 Design, diante dos conceitos aqui lanados poderamos refletir sobre estas nomenclaturas e equvocos; pensando at na possibilidade de rebatiz-los! Tomando como exemplo o que acontece em

    outros pases, veremos que existem diversas especificaes na formao em DESIGN (desenho/ projeto/

    criao): costume design (desenho de figurinos), theatre design (desenho de cenografia teatral), set

    design (desenho de cenrio), production design (cenografia de tv ou cinema); interior design (desenho de

    interiores), graphic design (desenho grfico), fashion&txtile design (desenho de moda e tecnologia em

    txtil),... 11 Pamela Howard, cengrafa, diretora e professora na Central Saint Martins School of London. What is Scenography?, London, Routledge, 2002.

    9

  • quem se espera atenda a uma solicitao e, de outro lado, uma relao horizontal de

    criao e participao inclusive sobre o que ser proposto como acontecimento teatral.

    Estes questionamentos e novas proposies conceituais resultam da evoluo

    da linguagem cenogrfica e de sua trajetria. Neste percurso at os nossos dias, se

    por um lado, o trabalho do cengrafo: os cenrios, figurinos e objetos cnicos,

    explorou o seu potencial ao mximo, chegando a uma certa exausto, de outro, foi

    conduzido possibilidade de modificar, ampliar e fortalecer o seu dilogo com a

    direo, a iluminao e com as demais disciplinas da realizao teatral. Quando este

    dilogo de fato acontece no campo das relaes profissionais e artsticas, estes

    indivduos passam juntos a criar um acontecimento que ser provido de atmosfera.

    Assim como as fronteiras no mundo esto desaparecendo, podemos tambm

    dizer que as demarcaes restritas entre as disciplinas de teatro: a arte, o espao, a

    luz, a direo, a dramaturgia, a audincia, tambm esto se diluindo e dando lugar a

    uma diferente maneira de criao onde o cengrafo assume enorme responsabilidade.

    Ao considerarmos a Cenografia como co-responsvel pela elaborao da atmosfera

    ou da unidade cnica, amplia-se a rea de ao do cengrafo, que deixa de colocar

    elementos sobre o palco ou no espao de encenao para trat-lo como um corpo

    nico, conferindo sentido ao todo de sua obra e esta por sua vez adquirindo um

    sentido prprio no evento. O papel do cengrafo sem dvida modificou-se no contexto

    da realizao teatral contempornea. Ser cengrafo hoje, significa mais do que

    decorar um fundo ou ter uma idia visual para a performance dos atores. A idia

    contempornea de Cenografia exige do profissional uma ao abrangente, que inclui

    todos os aspectos visuais da realizao teatral, amplia sua responsabilidade sobre o

    todo do espao cnico e por vezes, sobre o espao teatral, demandando afinidade

    entre criadores que possuem, por sua vez, processos, responsabilidades e talentos

    individuais. O cengrafo assim levado a refletir sobre sua prpria capacidade em

    responder estas atribuies. Para alm desta possibilidade, ele deveria sentir-se

    apto no apenas a atender a uma exigncia ou responsabilidade que lhe conferida,

    mas possibilidade de conceber proposies artsticas que o leve, e a outros

    colaboradores, a deflagrar processos criativos.

    Na prtica, o cengrafo se depara com experincias diversas, algumas bem

    sucedidas que colaboram para firmar parcerias com diretores e outros profissionais de

    teatro. Outras, tambm positivas, mas que reforam as relaes verticais de criao.

    Existem ainda, algumas no to bem sucedidas, que resultam muitas vezes de

    10

  • despreparo profissional, da aceitao de uma responsabilidade que est alm da sua

    capacitao, provocando o distanciamento entre profissionais e a perda de confiana

    pelo diretor no cengrafo em geral. Evidentemente, h outros aspectos que podem

    levar a experincias mal sucedidas, como simplesmente a incompatibilidade artstica,

    que no causam necessariamente ruptura definitiva, mas novas buscas. Um processo

    criativo conjunto, quando deflagrado de fato, torna-se to fundamental e valorizado

    porque permite que a crtica e a reflexo, inclusive de ordem esttica visual,

    contribuam para o desenvolvimento do projeto em questo e, especificamente ao fazer

    cenogrfico, permita vivenciar em etapas, o processo criativo e, assim como em um

    moto-contnuo, conduza a uma real transformao.

    Durante o processo criativo, o cengrafo, ou o artista visual cnico, v-se

    diante do momento no qual se faz necessrio apresentar suas propostas, submeter o

    seu trabalho a uma apreciao do diretor apenas, ou, s vezes, de todo o grupo de

    pessoas que participam da produo. Esta apresentao normalmente realizada

    atravs de croquis, maquetes volumtricas, ilustraes, imagens de referncia, cores,

    elementos reais para experimentao, enfim, utiliza-se dos sistemas de representao

    dos quais dispe. A partir da produo deste material e sua exposio, a

    comunicao, a troca, o trabalhar junto, o dilogo, e principalmente a colaborao, que

    a palavra chave no contexto contemporneo, iro conduzir para a reflexo sobre o

    seu processo e dos demais colaboradores, cada um em sua rea, e

    conseqentemente para o resultado. Para tanto, cada artista colaborador deve estar

    solidamente preparado para oferecer a sua melhor contribuio artstica neste

    processo, deve estar seguro daquilo que representa a sua obra, deve conhecer bem

    seus objetos de trabalho e dominar suas tcnicas, deve, portanto, estar bem formado.

    ...Para o cengrafo conquistar uma dimenso autocrtica ele deve primeiramente acreditar na sua prpria

    capacidade artstica. quando eu afirmo que o cengrafo muito solitrio, e que a anlise final e

    decisiva dele. A qualidade e capacidade do cengrafo depende disto. A dificuldade recai na capacidade

    de reconhecer a deciso correta 12 Ralph Koltai.

    12 BACKEMEYER, Silvia. Ralph Koltai: designer for the stage. London, Lund Humphries Publishers, 1997, p.6

    11

  • Cengrafos e educadores precisam estar conscientes de suas

    responsabilidade e possibilidades como artistas, ao mesmo tempo, tornar a arte e os

    limites de suas responsabilidades melhores compreendidos. Os futuros cengrafos,

    hoje estudantes, devem ser estimulados no apenas prtica da cenografia, mas ao

    entendimento e convvio da prtica do teatro como um todo. Esta proposio deveria

    valer em todas as direes, no apenas da Cenografia, mas da interpretao, da

    produo, da encenao e da teoria. Essa pesquisa conduzida por duas questes

    centrais que norteiam a investigao e a reflexo sobre este campo e que poderiam

    ser tambm aplicadas s demais disciplinas do fazer teatral, a saber:

    O que realmente importante para a formao do futuro cengrafo, que garanta a ele

    o desenvolvimento como artista criador e da capacidade de desempenhar com

    segurana o seu papel diante da cena contempornea?

    Qual ser o caminho para uma relao produtiva entre os estudantes de Cenografia,

    seus mestres e o Teatro contemporneo, para que evoluam artisticamente e

    conseqentemente possam contribuir para o desenvolvimento deste Teatro?

    12

  • A TEMPESTADE Uma ilha da Conscincia

    Estamos nas pesquisas quase sempre a coletar impresses, opinies e

    depoimentos acerca de experincias e processos. Achei pertinente, neste caso,

    comear pelo meu percurso, propulsor para a realizao desta pesquisa. Discorro, em

    poucas pginas, sobre os caminhos que me levaram prtica da Cenografia e sobre

    algumas influncias e reflexes que me motivaram a retornar universidade a fim de

    investigar sobre procedimentos de ensino e aprendizado no campo artstico,

    especificamente, da Cenografia teatral.

    Ser um artista no ter uma tcnica, ter algo a dizer Jean Guy-Lecat13

    As impresses e informaes, os conhecimentos de natureza sensvel e

    consciente que coletamos ao longo de nosso percurso so alimento para nossas

    reflexes. As reflexes quando latentes se transformam e podem vir a provocar

    alguma necessidade de exteriorizao. Esta capacidade, ou necessidade, de

    transformar e externar , ao meu entender, uma qualidade do artista, e a expresso

    artstica o fio condutor pelo qual buscamos compreender e dialogar com o mundo e

    com o outro. A presena de vrias pessoas em um processo criativo, de maneira to

    intensa como se d em uma equipe de produo teatral, conduz para a possibilidade

    desta vivncia. Ao longo de nossa jornada, quando nos deparamos com outros artistas

    que comungam nossos pensamentos mais intrnsecos e percepes do mundo ainda

    no revelados por ns mesmos, que adiantam verbalmente aquelas que parecem ser

    reflexes particulares, ou esboos de percepes em processo de clarificao, seu

    discurso ressoa como uma segunda voz em nossos pensamentos que, de alguma

    forma, colabora ou interfere, modificando nosso olhar. Assim estes encontros com o

    humano so de grande valia, e o Teatro tem esta especificidade; para alm do

    espetacular, o encontro com aqueles que praticam o Teatro pode ser to

    transformador quanto o prprio evento teatral para o qual colaboram.

    13 Jean Guy-Lecat durante o evento Scenofest, na 10 Quadrienal de Praga, Junho de 2003, Praga, Rep. Tcheca. J. Guy-Lecat cengrafo, arquiteto, diretor tcnico trabalhou com Peter Brook por cerca de trinta

    anos, alm de outros diretores e grupos como Jean Vilar, Jorge Lavelli, La MaMa, Jean-Marie Serreau,

    Luca Ronconi, Jean-Louis Barrault, Dario Fo, Roger Blin, Samuel Beckett. E pesquisador sobre a

    comunicao cnica, estimulado pelo questionamento do espao teatral contemporneo e a reflexo

    sobre a relao espectador/ator.

    13

  • Encontrar Jean Guy-Lecat encontrar com algum que compreende e rene

    na sua prtica importantes influncias deixadas pelas renovaes cnicas do nosso

    tempo, uma espcie de elo, inspirado por Adolphe Appia, Gordon Graig e Meyerhold,

    fala com propriedade sobre a vida que o espao tem e, a vida que conferimos ao espao. Preocupa-se com a relao entre o espao da performance e o espao da audincia, apia seu processo de trabalho na idia de um espao para alm da

    Cenografia, o espao teatral, o que justifica sua longa parceria com o diretor Peter Brook e os demais diretores com quem trabalhou. A ressonncia de suas palavras,

    assim como de outros artistas e pensadores nesta rea, quando os encontramos

    presencialmente e no apenas atravs de pginas escritas, torna-se uma vivncia,

    mais do que uma informao e ser processada como tal, inesquecvel,

    transformadora.

    Conheci Jean Guy-Lecat em 2003, durante a 10 Quadrienal de Cenografia de

    Praga, minha terceira participao neste evento 1995, 1999, 2003. Pode parecer

    pouco relevante esta referncia a um evento externo ao contexto brasileiro, mas

    infelizmente desde que o Teatro, e principalmente, as Artes Visuais Cnicas perderam

    seu espao na Bienal de Artes de So Paulo, a Quadrienal de Praga tornou-se uma

    importante baliza para essa arte na contemporaneidade, sobretudo de alguns anos

    para c, por promover tambm um espao de reflexo, de encontros e de dilogos

    possveis nesse campo.

    A PQ14 assim abreviada, que at 1995 apresentava-se mais como uma

    vitrine, sem dvida riqussima por apresentar as produes e criaes sempre

    atualizadas ampliou-se, talvez um pouco demoradamente, atendendo aos movimentos

    e anseios que presenciamos na cena contempornea. Desde a edio de 1999,

    passou a implantar um programa paralelo, atualmente nomeado Scenofest, um grande

    ponto de encontro entre profissionais, educadores e estudantes. Nestas incurses tive

    a oportunidade de conhecer pessoalmente Joseph Svoboda, debater com Ralph Koltai

    sobre a essncia de A Tempestade, de W. Shakespeare, e conhecer a obra de

    consagrados e emergentes artistas do panorama teatral do mundo inteiro nas reas

    14 Quadrienal de Praga PQ a criao da Quadrienal de Praga, em 1967, foi conseqncia de um intercmbio instaurado entre o Instituto de Teatro de Praga e a Bienal de Artes de So Paulo, como

    resposta ao desejo pela realizao de uma exibio especfica para Cenografia e Arquitetura Cnica, a

    cada quadro anos. Atualmente a PQ organizada pelo Instituto de Teatro de Praga e pela OISTAT

    Organizao Internacional de Cengrafos, Arquitetos Teatrais e Tcnicos.

    14

  • das visualidades cnicas. Um universo incontestvel de ricas e sucessivas

    experincias que realimentam o nosso fazer.

    Tendo em vista este contexto, o que mais me interessa trazer tona a

    importncia da interao, a disponibilidade para o encontro e para o estabelecimento

    de relaes de intercmbio, atravs das quais surgem caminhos para o

    desenvolvimento artstico e profissional. Uma das conseqncias que estas

    experincias deflagram em mim o desejo por identificar e refletir sobre possveis

    espaos para dilogos desta natureza em nosso contexto, no Brasil, entre

    profissionais j estabelecidos e em formao na rea das visualidades cnicas. Diante

    do contexto da prtica e do mergulho no campo do ensino deparei-me, ao longo

    destes anos, com possibilidades concretas para constituir este tipo de dilogo.

    Meu caminho inicial foi em direo s Artes Plsticas, e posteriormente ao

    Design; demorei algum tempo para chegar ao Teatro, freqentava desde cedo as

    Bienais, mas na poca pouco sabia sobre Cenografia. Aos dezesseis anos, quando

    ingressei na universidade, havia assistido Macunama, de Antunes Filho, que ficou

    para mim como uma marcante experincia. Minha incurso primeira no processo de

    criao teatral, cerca de oito anos mais tarde, resultou em um impacto de sucessivas

    emoes: a empolgao, o xtase, algum constrangimento, muita incerteza,

    satisfao, insatisfao e ao final, o esvaziamento. Estes sentimentos no parecem

    distantes daqueles que vivenciamos no dia-a-dia da criao em nosso fazer teatral,

    apenas a medida deles que modifica a cada experincia. Este primeiro desafio para

    com o Teatro ocorreu quando j estava formada, em 1990. Reunimo-nos, um grupo

    variado de profissionais atores, bailarinos, cartunistas, escritores, artistas plsticos,

    designers; todos muito motivados pela proposta de desenvolver um projeto para o

    programa Jornada SESC de Teatro, hoje extinto, cujo tema naquele ano era

    Shakespeare. Depois de pesquisarmos sua obra e lermos algumas peas, escolhemos

    15

  • o texto A Tempestade. Com energia fizemos vrias leituras do texto escolhido e

    realizamos reunies de criao; era de fato um grupo teatral iniciante em pesquisa.

    Empolgada, parti a pesquisar simbologias e trazer tona o repertrio de Bruegel e

    Bosh aos demais colegas, sem conhecer, no entanto, os sistemas especficos das

    Artes Cnicas... Formatvamos o projeto para sua apresentao, quando, um dia,

    acordei e me deparei com uma matria de jornal sobre Peter Brook, que acabara de

    estrear em Paris... um espetculo sobre a mesma obra de Shakespeare. Foi um balde

    de gua fria... Emergiram da a insegurana, a autocrtica e ento pensei: est tudo

    errado! Estamos completamente equivocados! Para constar, a encenao de Peter

    Brook dispunha de recursos visuais cnicos de forma hiper essencial, limpa e

    despojada. A montagem utilizava, por exemplo, um pau-de-chuva para apresentar a

    tempestade e a maquete de um navio sobre a cabea de um ator apresentando o

    espao da cena do naufrgio. O minimalismo assim nomeado porque era um termo

    muito em voga nesta poca, veio a se chocar com o nosso tratamento ilustrativo,

    que buscava representar um mundo imagtico para a mesma A Tempestade.

    Desistimos do projeto e, naquele momento, sinceramente, achei que nunca mais

    chegaria perto do Teatro.

    A Bienal15 de 1991, um ano depois, me levou ao reencontro com a Cenografia.

    Lembro-me ainda hoje das reprodues e fotos dos cenrios de Josef Svoboda, seu

    cenrio de cortinas de tiras com projees e imagens fragmentadas; a instalao

    sobre o Teatro de Revista de Luiz Fernando Ramos, a sublime transposio para o

    espao cnico de A Potica do Espao, de Gaston Bachelard, livro que eu acabara de

    ler e que naturalmente ficou como a obra que mais me chamou a ateno, apesar de

    suas reduzidas propores naquele gigantesco espao do edifcio da Bienal. A Bienal

    de Artes de So Paulo, nas edies XX 1989 e XXI 1991 devolvia s artes visuais

    cnicas um espao importantssimo para sua difuso. Ali estavam obras de Rosa

    Magalhes, Daniela Thomas, Robert Wilson, Serban, Lasar Segal, Teatro Unio e

    Olho Vivo, Peter Stein, Naum Alves de Souza, entre outros.

    15 Bienal - refere-se a Bienal de Artes de So Paulo. Em 1959, a Bienal recebeu uma exposio especial criada por Frantiek Trster, da Tcheco-Eslovquia, que ilustrava o desenvolvimento da Cenografia e da

    Arquitetura Cnica em seu pas no perodo de 1914-1959; exposio que foi premiada e cujo sucesso se

    repetiria nas trs edies seguintes da Bienal. A Bienal de Artes de So Paulo at a dcada de 1960

    apresentava projetos relacionados s Artes Visuais Cnicas e foi a percussora da Quadrienal de Praga.

    Infelizmente, durante muito tempo temos sido privados desta participao, lembrando que somente em

    1989 e 1991, sob a curadoria de Joo Cndido Galvo, pudemos reviver um pouco esta experincia.

    16

  • A TEMPESTADE por Peter Brook, 1990-91

    17

  • No ano seguinte, 1992, ingressava no Centro de Pesquisa Teatral, dirigido por

    Antunes Filho, como aluna do departamento de Cenografia e Indumentria. Integrei o

    ncleo at 1998, perodo que foi de grande importncia para uma aproximao com a

    linguagem teatral e de desenvolvimento tcnico e profissional em Cenografia e

    Indumentria. Desde ento, o Teatro passou a ser meu territrio e, paralelamente

    tambm, os campos do Cinema e Exposies. Sendo a minha formao em Design e

    j com uma boa experincia na prtica Teatral, senti a necessidade de complementar

    algumas lacunas em minha formao em relao s Artes Cnicas. Enveredei, ento,

    pelo campo de pesquisa motivada justamente pela discusso acerca da formao do

    profissional cengrafo.

    Este percurso pessoal tambm o percurso de muitos profissionais da

    Cenografia, Indumentria, Iluminao e das reas tcnicas do Teatro. Existe de fato

    uma escassa oferta de cursos de formao profissional nestes campos no Brasil e,

    conseqentemente, uma grande informalidade desta capacitao e falta de

    interlocuo com pensadores da rea e ainda, uma conscincia profissional. Muitas

    vezes o prprio cengrafo nada sabe sobre a abrangncia ou limites de seu papel.

    Como resultante desta realidade, muitas vezes nos vemos, ou a colegas, diante de um

    conflito bastante comum, sobre como os outros profissionais vem o Cengrafo e

    como estabelecida a relao de parceria. necessrio um tcnico para realizar uma

    idia cenogrfica ou um artista poder colaborar com a criao da encenao? Um

    dos aspectos que norteiam desde o princpio a conduo desta pesquisa o de

    considerar o cengrafo, a priori, um artista, que, para alm de seu papel como

    colaborador no desenvolvimento de um projeto, deve ser motivado inclusive a atuar

    como o provocador do acontecimento teatral.

    A relevncia em apontar a Bienal ou a Quadrienal, nesse trabalho, reside na

    importncia deste tipo de evento como meio de difuso, encontro e reflexo das

    linguagens artsticas. A participao das artes visuais cnicas colabora para refor-

    las como tal, assim talvez seriam menos confundidas, a Cenografia, a Indumentria e

    a Iluminao como atividades relacionadas tcnica, e passariam a ser mais

    identificadas como linguagens. Embora a PQ parea um tanto distante de nossa

    realidade, so incomensurveis as experincias e o aprendizado que nos oferece.

    Profissionais, educadores, estudantes, pessoas de Teatro reunidas em um espao-

    tempo concentrado, trocam impresses, palavras, imagens, expresses e tambm

    tcnicas. A cada edio uma surpresa, a possibilidade de sublimao, algo novo a

    aprender, a praticar e a aprimorar atravs do dilogo.

    18

  • A PQ, na edio de 1999 levou-me ao reencontro com A Tempestade, e como

    um ciclo que se completa, curiosamente ao mesmo tempo em que eu comeava a

    assinar meus trabalhos de modo independente, encontrei o cengrafo Ralph Koltai,

    em exposio individual, paralela ao evento. Chamou-me a ateno, evidentemente,

    sua obra para A Tempestade, encenada em 1978 e, por uma breve, mas inesquecvel

    hora, Koltai discorreu sobre seu processo criativo e de realizao da Cenografia, sobre

    o conceito que partiu da leitura da obra escrita de Shakespeare. O cerne da obra,

    segundo ele, reside na discusso sobre a natureza do homem, na qual conflitam o

    selvagem e o intelectual e refere-se ao estado de equilbrio destas virtudes como o

    que denominou: Uma Ilha da Conscincia. Assim confrontam-se o instinto apoiado na

    personagem do selvagem Calib e o intelecto, a capacidade de formular o

    pensamento, o raciocnio, presente supostamente nas demais personagens

    humanizadas. Estes dois aspectos acabam por se demonstrarem complementares,

    inerentes ao selvagem e ao ser racional, e assim como no processo criativo estamos a

    aprender a lidar com ambos, no necessariamente equilibr-los, neste contexto. A

    faculdade latente do instintivo, que apura nossa percepo e deixa emergir aquilo que

    no necessariamente sabemos codificar ou justificar, mas que toca os sentidos ou

    alma, e a faculdade do raciocnio, que reflete sobre aquilo que percebemos e formula

    compreenses. A reunio destas faculdades permite-nos, segundo Kant16, na sua

    Crtica da Razo Pura, desenvolver nossa capacidade para o conhecimento, tornar

    consciente uma dada situao ou objeto percebido.

    No mundo de hoje, em galopante desenvolvimento tecnolgico, constatar que

    ser um artista mais do que simplesmente desenvolver uma tcnica pode parecer

    bvio, mas ao ouvir esta frase sinto-me acometida de uma espcie de acordar; so

    palavras que tm o efeito de acionar uma espcie de chave da conscincia.

    Paralelamente, ao reler Kant reencontro o conceito sobre a qualidade daquilo que

    fazemos como artistas visuais: sobre criar ou ver atravs de um objeto um outro

    significado, no simplesmente se limitar imagem do objeto, mas transcend-lo.

    Percebo que estes conceitos j esto intrnsecos ao tratamento conferido ao trabalho

    artstico, manifestados naturalmente no decorrer do processo criativo. So conceitos j

    conhecidos, que permanecem em um estado que no consciente, no ficamos o

    tempo todo pensando isto, algo que conhecemos e retoma, passando a um estado

    intuitivo, adquirindo o sentido de algo que foi aprendido de fato.

    16 Immanuel Kant, filsofo alemo do sc. XVIII, sua obra Critica da Razo Pura, 1781 uma espcie de marco divisor de duas eras no pensamento moderno.

    19

  • Maquete da cenografia: A Tempestade, Ralph Koltai, 1978,

    Encenado pela Royal Shakespeare Company, Reino Unido.

    20

  • Nosso conhecimento surge de duas fontes principais da mente,

    cuja primeira a de receber as representaes e a segunda

    a faculdade de conhecer um objeto por estas representaes(..).

    A nossa natureza tal que a intuio no pode ser seno sensvel,

    isto , contm somente o modo como somos afetados por objetos.

    Contrariamente a faculdade de pensar o objeto da intuio

    sensvel o entendimento. Nenhuma dessas propriedades deve ser

    preferida outra. Sem sensibilidade nenhum objeto

    nos seria dado, e sem entendimento nenhum seria pensado.

    Pensamentos sem contedo so vazios,

    intuies sem conceito so cegas.

    Portanto, tanto necessrio tornar os conceitos sensveis,

    quanto tornar as suas intuies compreensveis.

    Estas duas faculdades ou capacidades tambm no podem trocar as

    suas funes. O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada

    pensar. O conhecimento s pode surgir da sua reunio.

    Por isso, no se deve confundir a contribuio de ambos, mas h

    boas razes para separar e distinguir cuidadosamente um do outro.

    Conseqentemente, distinguimos:

    a cincia das regras da sensibilidade em geral, isto , a ESTTICA,

    da cincia das regras do entendimento em geral, isto , a LGICA.

    Crtica da Razo Pura17 - Immanuel Kant

    17 Crtica da Razo Pura, Immanuel Kant. Traduo de Valria Rohden e Udo Baldur Moosburguer, inclui vida e obra de Kant, So Paulo, Nova Cultural, 1987.pgs 55 e 56.

    21

  • A PRTICA DA CENOGRAFIA

    22

  • Proponho uma aproximao com o campo da prtica cenogrfica a partir de

    um exerccio de desconstruo dos conceitos relacionados Cenografia, e da

    identificao destes com os principais aspectos que constituem o seu fazer. Convido

    a uma reflexo sobre a proximidade da Cenografia com outras linguagens, ou reas.

    Fao uso inclusive de conceitos formulados por profissionais da Cenografia teatral

    contempornea na ilustrao destas abordagens.

    A Cenografia, a medida em que se confunde com o design de interiores, a

    decorao e a arquitetura de interiores, uma realidade brasileira na atualidade, v

    confundidos, ou poderamos dizer, ampliados, alguns de seus conceitos. A Cenografia,

    no Brasil, dependendo em qual contexto proposta, aparece muitas vezes reduzida a

    menos do que um conceito, a um adjetivo: falso, como algo que no real, que uma

    reproduo, uma mentira. Embora isto ocorra mais distante do Teatro, nota-se um

    reflexo deste equvoco inclusive nas Artes Cnicas. Novas geraes que esto

    emergindo, formal ou informalmente, confundem muitas vezes o cengrafo com

    cenotcnico, o figurinista com costureira, convidando-os a resolver uma idia que

    algum formulou. O cengrafo reduzido de algum que cria para algum que copia,

    representa, executa ou produz, desconsiderando a possibilidade de a Cenografia

    apresentar um espao, um conceito. Na prtica, muitas vezes, necessrio esclarecer que o cengrafo um artista e potencial colaborador.

    Se por um lado existe uma m compreenso sobre o papel do cengrafo, por

    outro nos deparamos com a evidente ampliao de sua responsabilidade. Este ampliar

    horizontes por sua vez conduz discusso sobre o que se configura como atribuio

    do cengrafo, na realidade da prtica. Conseqentemente ele, o cengrafo, levado a

    refletir sobre a sua capacidade em responder a estas atribuies, e tambm, a refletir

    sobre seu potencial como artista criador diante das diferentes reas de atuao e

    especficas exigncias de cada linguagem. No apenas no Brasil, mas no mundo,

    existe de fato uma reflexo, uma busca por uma redefinio para o que faz no

    apenas o cengrafo, mas tambm o diretor de arte, o set designer, o scenographer; o

    production designer. Estas discusses, como se v, no se limitam ao Teatro.

    23

  • Cenografia :

    Entre publicaes estrangeiras e nacionais, registros e depoimentos coletados

    de cengrafos brasileiros e estrangeiros, existem mais de uma centena de definies

    para responder O que Cenografia?. Tantas que permitiria escrever um livro

    comentado a partir delas. Afinal, qual a necessidade de criarmos tantos conceitos para

    definir Cenografia? Por que no sabemos explicar com clareza o que fazemos? Por

    que no h clareza sobre o papel do cengrafo? Por que as definies existentes no

    so suficientes, no exprimem verdadeiramente o que a cenografia hoje? Ou por

    que se trata de uma percepo artstica, e cada artista a v atravs de sua prpria

    subjetividade?

    Alguns conceitos sobrevivem atravs dos tempos porque tratam daquilo que

    essencial Cenografia. Por outro lado, s vezes um tanto abrangentes, ao serem

    descontextualizadas podem suscitar outras leituras. Enquanto outras definies, ao

    contrrio, carregam em si a referncia cena, ao lugar teatral, ao argumento, ao.

    Entre as definies que encontrei, a que mais me agrada porque toca em dimenses

    que determinam a questo do onde e do quando, do carter eventual, conceito to

    apropriado para o acontecimento teatral, e que definem a participao da linguagem

    cenogrfica neste contexto, :

    Cenografia a Arte do Tempo e do Espao18. In Suk Suh

    Ainda assim sinto alguma falta nesta definio. Falta que talvez resida na

    diferena cultural onde esta sntese no se faz to auto-suficiente... Dentre os diversos

    conceitos elaborados, muitos so formulados por profissionais do Teatro e, portanto,

    relacionados diretamente linguagem teatral. Podemos praticar o exerccio de aplicar

    conceitos existentes s diversas reas de atuao que utilizam o termo Cenografia e

    verificar se resistem verdadeiramente ou se a rea em questo demanda outra

    especificidade em relao responsabilidade, funo, expresso, ou linguagem.

    18 In Suk Suh citado por Pamela Howard, What is Scenography?, London, Routledge, 2002 ,pg.XV.

    24

  • Atravs da linguagem, tanto no que diz respeito s terminologias, quanto

    maneira que desenvolve o olhar e define os objetivos, possvel identificar grupos

    profissionais passveis ou no de interlocuo. Na realidade da formao tortuosa do

    cengrafo no Brasil, a linguagem especfica do Teatro, do Cinema, da pera, da

    Dana, etc., precisa ser aprendida neste movimento migratrio que nos permitido na

    prtica das artes visuais cnicas.

    A linguagem reflete o mundo e nossa interao com o mundo de diversas maneiras. Conseqentemente,

    h muitos tipos de diferentes palavras, com diferentes significados (funes) e diferentes modos de se

    relacionar com o mundo. A linguagem, segundo Wittgenstein determina os limites do meu mundo 19.

    Hans Reichenbach

    19 Hans Reichenbach, 1891 1953. Filsofo alemo, de contribuies importantes anlise do raciocnio probabilstico, lgica e filosofia da matemtica, mecnica quntica, espao, tempo, e teoria da

    relatividade. A Linguagem do Espao e do Tempo, Perspectiva, 1972, pg. 11.

    25

  • Cenografia e Acontecimento Teatral

    Cenografia o espao eleito para que acontea o drama ao

    qual queremos assistir. Portanto, falando de cenografia,

    poderemos entender tanto o que est contido em um espao

    quanto o prprio espao 20. Gianni Ratto

    A Cenografia, do ponto de vista dessa pesquisa, considerada como uma

    forma de expresso artstica que rene arte e tcnica na criao da espacialidade e de

    visualidade que prope, ou dialoga com, concepes de carter cnico. Busco reforar

    este contexto teatral da Cenografia recorrendo sua definio em algumas

    circunstncias histricas relevantes.

    A Cenografia na antigidade, para os gregos, assim denominada

    Skenographia, constitua-se como a arte de adornar o Teatro. No Renascimento

    passou a ser tratada como a tcnica de representar em um plano bidimensional, em

    um telo, uma imagem em perspectiva; imagem que serviria para situar a ao teatral

    em um determinado lugar representado de forma realista. J na passagem do sculo

    XIX para o sculo XX, ela ganha definio de escritura cnica, uma forma de explicar

    sua transposio de pintura bidimensional escultura ou arquitetura, de carter

    tridimensional. Diante da evoluo da encenao, a Cenografia deixa de ser um

    elemento meramente ilustrativo, ou decorativo, para tornar-se um dispositivo visual

    que ganha presena e participao na comunicao ao pblico do argumento21

    proposto pelo evento teatral, no apenas um lugar onde a ao se passa, mas como a

    relao proposta entre o texto, a ao e a recepo. No contexto do Teatro

    contemporneo, a Cenografia apresenta-se tambm como a arte de adaptar os

    espaos teatrais ou no convencionais aos processos desencadeados para a

    realizao de um acontecimento teatral.

    20 Gianni Ratto, Anti-tratado de Cenografia, Senac, 1999, pg. 22. 21 argumento, termo utilizado para definir o assunto ou o que se quer dizer; ser abordado adiante, na pg 52.

    26

  • Acontecimento teatral, por sua vez, adotando o termo pela definio, de Patrice

    Pavis, como a representao teatral, no apenas no ficcional de sua fbula, mas em sua realidade de

    prtica artstica que d origem a uma troca entre ator e espectador22. Constitui, portanto, a criao

    de uma situao que rena presencialmente seres humanos em uma relao de ao

    e recepo, situao que gera a necessidade de determinao de um espao-tempo.

    O acontecimento teatral rene os componentes de expresso verbal e no-

    verbal, criando uma inter-relao entre eles. A Cenografia responsvel por parte da

    expresso no-verbal da representao. Os elementos, uma vez reunidos, passam a

    fazer parte de um todo que ir dialogar, ou comunicar, com a audincia, mas

    continuam a manter alguma individualidade narrativa, complementando um ao outro.

    Cenografia como Linguagem Artstica

    Cenografia o trabalho de um artista que no pode

    ser expresso em palavras 23. Ezio Frigerio

    Na contemporaneidade estamos diante de questionamentos sobre at onde

    podemos ir, romper limites, recriar parmetros; discutimos a prtica do tudo pode,

    que no privilgio da Cenografia. Prtica que se apresenta como uma via de mo-

    dupla, podendo nos levar para vrios caminhos, adiante, na busca pela transformao,

    nos manter no mesmo lugar, estanques, ou ainda, remeter ao passado.

    Vivemos cercados por informaes, referncias e tendncias que recebemos

    ou acessamos permanentemente. O que fazemos com elas? Nem sempre sabemos

    selecionar os campos de informao; a curiosidade e acessibilidade s informaes

    nos lanam a labirintos. s vezes refletimos sobre estes dados, s vezes no. Ao

    refletirmos, o que faremos depois? Poderemos exterioriz-las ou no nossas

    reflexes. A Arte carrega em si a qualidade de manifestao que permite ao indivduo

    a exteriorizao de seus pensamentos de forma expressiva, assim o processo:

    recepo reflexo exteriorizao, para o artista, deve ser completo para que seja

    renovador.

    22 Patrice Pavis, Dicionrio de Teatro, Perspectiva, 1999, p.6. 23 Ezio Frigerio citado por Pamela Howard, What is Scenography?, London, Routledge, 2002 ,pg.XV.

    27

  • Na medida em que se esvazia o pote comea uma nova jornada, para qual o

    individuo j no mais o mesmo da jornada anterior, porque fez a transformao.

    Quando uma manifestao intelectual ou artstica apresenta-se desprovida de

    critrios, de parmetros, sem conceitos claros, sua comunicao torna-se difcil.

    como se no processo: recepo reflexo exteriorizao, a segunda etapa, da

    reflexo, fosse suprimida e, a partir da informao passssemos direto

    exteriorizao, sem processar os dados, sem, portanto, transform-los, empobrecendo

    o processo que finda por resultar em uma simples repetio.

    O cengrafo como artista vivencia este processo; seja ele completo ou no, e

    certamente transparecer no resultado de seu trabalho. Atravs da Cenografia

    enquanto linguagem artstica, podemos expressar nossos pensamentos, reflexes, e

    emoes, medida que deixamos aberto para que os elementos significantes

    presentes na Cenografia possam ser interpretados pela audincia, no apresentados

    de forma fechada, com uma leitura nica.

    Entender a Cenografia como linguagem artstica, permite identificar, a meu ver,

    o diferencial entre a cenografia e a cenografia aplicada. A cenografia aplicada, pode

    ser definida como o uso da linguagem cenogrfica para outros fins que no a

    expresso artstica, dirigida ao contexto mais comercial das reas da comunicao,

    como a publicidade, a exemplo de eventos de carter publicitrio: feiras, estandes, e

    afins. Neste caso, a Cenografia atende a um carter mais informativo,

    responsabilidade de levar ao publico um conceito preciso, um olhar, um ponto de vista

    pr-definido, fechado, definido pelo cliente..

    A arte distingue em geral a inteno de comunicar e a vontade de dizer algo preciso: pode-se querer

    comunicar, ainda que uma parte da mensagem no evidencie a intencionalidade. assim com o teatro e

    com outras formas de arte: a riqueza dos signos, a extenso e a complexidade dos sistemas que formam,

    vo infinitamente alm da inteno primeira de comunicar. Se h perda de informao no que respeita ao

    projeto inicial, h tambm ganhos imprevistos24. Anne Ubersfeld

    As acepes dos termos cenografia ou cenografia aplicada se configuram de

    acordo com a inteno para a qual so empregadas, ou ainda, pela funo que

    desempenham. Essencialmente definem-se pelo dilogo que ser estabelecido

    atravs dos componentes que integram sua criao e realizao.

    24 Anne Ubersfeld, Para Ler o Teatro. Perspectiva, So Paulo, 2005, pgs. 18 e 19.

    28

  • Cenografia e Tcnica necessrio que os artistas de toda natureza lembrem-

    se sempre que a Arte absoluta quando est no domnio

    do sentimento, mas que precisamente uma tcnica no

    instante de sua exteriorizao 25. Santa Rosa

    Santa Rosa resume claramente a fronteira entre o artstico e o tcnico na Arte

    e conseqentemente na Cenografia. Cada linguagem dispe de seus prprios e

    especficos dispositivos tcnicos para sua realizao. Estes sistemas se modificam

    tambm de acordo com o seu contexto, no apenas no que toca o desenvolvimento

    tecnolgico, mas a disponibilidade de recursos. A especificidade tcnica atende

    principalmente proposio do espao teatral, seja ele um edifcio teatral, um espao

    inusitado ou um espao especfico. Atende tambm s solicitaes do enunciado e da

    encenao, como por exemplo, na Grcia Antiga, deus-ex-Machina, uma espcie de

    grua, que tinha a funo de trazer ao palco um Deus para resolver um conflito que os

    homens comuns no conseguiam dissolver. Trata-se essencialmente de um conjunto

    de tcnicas relacionadas s propriedades dos materiais, ferramentas disponveis e s

    convenes da encenao em cada contexto.

    O artista que no domina e no conhece os detalhes dos dispositivos tcnicos

    para a realizao de sua obra restringe o seu prprio processo criativo. Na Cenografia

    contamos com o profissional cenotcnico para a realizao da obra, mas isto no nos

    isenta da necessidade de conhecer as propriedades dos materiais, ferramentas, seus

    limites, possibilidades de manipulao e principalmente a maquinaria do espao

    teatral. Se durante muito tempo o cengrafo ou seu correspondente no Teatro se

    viram aprisionados s formas pr-definidas de encenao e o rigor de utilizao de

    sistemas cnicos para fins especficos, hoje nos perguntamos se queremos utilizar os

    recursos tcnicos especficos da predominante caixa italiana. O quanto estes

    mecanismos ilusionistas nos interessam na criao de uma obra cenogrfica. Os

    sistemas cnicos de carter tcnico disponveis atualmente atendem s nossas

    necessidades? So acessveis? O que se pode dizer que a cada experincia

    configura-se uma realidade especfica para a realizao tcnica de uma criao que

    deve ser compreendida desde o incio do processo. A cada vivncia aprenderemos

    alguma tcnica nova e ao longo do nosso percurso precisamos estar abertos e atentos

    s exigncias tcnicas e dispostos a novos aprendizados.

    25 Santa Rosa, Teatro Realidade Mgica, Cadernos de Cultura, Ministrio Educao e Sade, s/data.

    29

  • Cenografia e Artes Plsticas

    Todas as Artes Plsticas so artes do espao (...) no existe

    arte plstica fora do espao e, quando o pensamento humano

    se exprime no espao, toma necessariamente forma plstica.

    (...) este territrio comum, o espao, pode ser tomado como o

    eixo de uma rosa-dos-ventos 26. Paulo Srgio Duarte

    A referncia rosa-dos-ventos nos conduz imagem da espacialidade, os

    360 da rosa-dos-ventos imaginada em progresso vertical configuram a imagem de

    um cilindro ou, se formos mais longe, uma esfera, que a exemplo de A Tempestade,

    de Ralph Kotai, pode ser a representao do inconsciente, ou simplesmente um

    espao vazio sem limites, espera do humano que o transforme atravs da

    exteriorizao de seus pensamentos. O espao sem dvida o ponto mais

    representativo em comum entre a Cenografia, as Artes Plsticas e a Arquitetura.

    A compreenso acerca de um espao, desenhar um espao, ocup-lo, a

    criao de elementos visuais neste espao, sua composio, cor, luz, so atribuies

    que integram o processo de criao do cengrafo, que os relaciona a partir de um

    argumento proposto realizao do acontecimento teatral. Estes componentes so

    tambm relacionados ao universo referencial do homem em seu contexto. A

    especificidade de criao da Cenografia teatral est vinculada e em constante dilogo

    com um projeto amplo, que trata, alm das visualidades, com o argumento, com a

    presena, a ao, o ator, um lugar, a recepo, o espectador.

    Em relao s Artes Plsticas podemos dizer que, esta a princpio, encerra nas

    visualidades o seu argumento, podendo utilizar outros elementos, mas no

    necessariamente. Nas Artes Plsticas, nem sempre temos o encontro presencial fsico

    do artista e do espectador, o que temos a sua obra que o representa, a qual nem

    sempre apresenta a possibilidade de se modificar atravs da presena do outro;

    quando isto acontece, a ela podemos pensar em atribuir a qualidade de performance.

    Nesta linguagem de expresso artstica iremos encontrar a maior proximidade da

    26 Paulo Sergio Duarte, curador geral da 5 Bienal do Mercosul. Texto extrado do catlogo da mostra: Rosa-dos-Ventos, Histrias da Arte e do Espao; Posies e Direes na Arte Contempornea.

    Fundao Bienal do Mercosul - Porto Alegre, Setembro de 2005.

    30

  • cenografia com as Artes Plsticas; reforo esta aproximao com a definio de

    Patrice Pavis:

    A Performance, ou performance art, expresso que poderia ser traduzida por teatro das artes visuais,

    associa, sem preconceber idias, artes visuais, teatro, dana, msica, poesia e cinema... O performer no

    tem que ser um ator desempenhando um papel, mas sucessivamente recitante, pintor, danarino, ..., um

    autobigrafo cnico que possui uma relao direta com os objetos e com a situao de enunciao27.

    A Performance28 no se utiliza, a priori, do edifcio teatral para sua

    apresentao, dando preferncia a galerias, museus, rua, etc. O teatro, por sua vez,

    tambm j no d necessariamente preferncia ao edifcio teatral, nem galeria, nem

    ao museu, podendo se valer de espaos e paisagens que sejam apropriados

    presena do artista e do espectador e, principalmente, ao desenvolvimento da

    encenao. Na Cenografia, assim como nas artes plsticas, utilizamo-nos de sistemas artsticos e sistemas tcnicos atravs dos quais expressamos nossas idias. No teatro

    estamos habituados a pensar que a metfora surge a partir de um argumento-texto;

    mas podemos ampliar nossa perspectiva para a possibilidade de que surja atravs de

    um argumento-ao, um argumento-sonoro, ou um argumento-imagem. Um exemplo

    de argumento imagem como ponto de partida pode ser identificado em alguns

    trabalhos do grupo XPTO nos processos desenvolvidos por seu diretor e cengrafo

    Osvaldo Gabrielli.

    A Cenografia, a meu ver, mantm alguma proximidade das Artes Plsticas, e

    muitas vezes confundida com Instalao, o que me leva a tomar a seguinte posio: a

    Cenografia no uma instalao, porque mesmo que o argumento seja um som ou

    uma imagem, h a priori a determinao da presena do humano em uma relao de

    ao e recepo; por outro lado, poderamos considerar que a instalao a

    ocupao de um espao ou paisagem, sua composio, aliada presena da

    performance - pode adotar qualidades de Cenografia.

    27 Patrice Pavis, Dicionrio de Teatro, Perspectiva, 1999, p.284. 28 Performance, ainda por Patrice Pavis, Dicionrio de Teatro, apresenta um resumo de um artigo de Andra Nouryeh, que distingue cinco modalidades de performance, dentre elas uma delas que

    pertinente ao trabalho: Explorao de espao e tempo atravs de deslocamentos, em cmera lenta, das

    figuras: como em Walking in na Exaggerated Manner Around the Perimeter of a Square, de Rinke(1968).

    31

  • Cenografia e Arquitetura

    Cenografia a soluo dramtica do espao; se a

    arquitetura uma gigantesca escultura tridimensional ao

    ar livre, ento a cenografia para mim, uma forma de

    transformar do avesso o interior de uma escultura em

    qualquer espao concreto29 Jaroslav Malina Tendo o componente espao, no trabalho do cengrafo, ampliado para alm

    dos limites da ao do ator; passando este profissional a preocupar-se com a maior

    amplitude de um espao dado, poderamos pensar que, nesta medida, o cengrafo

    assume um papel prximo ao de um arquiteto ao deparar-se com a elaborao de um

    todo espao. Da mesma forma, o arquiteto pode passar a acreditar que pode assumir

    o papel de cengrafo. Existem de fato diferenciais relevantes entre o papel do

    cengrafo e do arquiteto no que concerne criao de um espao.

    Isoladamente, pode-se pensar que no h diferenciais. No entanto, o espao

    para a Cenografia existe necessariamente como um espao de interlocuo entre o

    artista e a audincia, durante um acontecimento teatral; trata-se portanto, de espao

    que existe na durao de um acontecimento em um dado contexto pr-determinado

    para tal. A Arquitetura, por sua vez, organiza o espao que ser posteriormente

    utilizado pelo homem. Quando este espao j no for mais passvel de adaptaes,

    ento chega o momento para que o homem trate de estabelecer o seu dilogo com

    ele. O projeto arquitetnico, na maioria das vezes est submetido a um cliente, a uma

    condio scio-econmica.

    O argumento mais imediato, que colabora para uma discusso superficial na

    comparao entre as duas linguagens, o carter efmero do espao na Cenografia,

    e o carter de sua permanncia na arquitetura. Ao propormos uma locao como

    espao de ao: um prdio, uma vila, um hospital, um hospcio, uma rua, e at mesmo

    um edifcio teatral escolhido por sua tipologia, no temos a garantia de que faremos

    alguma modificao concreta nestes espaos. A arquitetura presente poder servir de

    cenrio, assim como o palco vazio. O que neste caso efmero? O espao? Ou a

    ocupao eventual deste espao durante um determinado tempo, com a presena do

    29 Jaroslav Malina citado por Pamela Howard, What is Scenography?, London, Routledge, 2002, pg.XIV.

    32

  • humano e da relao propagada neste espao-tempo? E afinal qual a atribuio do

    cengrafo neste evento? Poderamos dizer que ao recortar o olhar do espectador para

    uma determinada arquitetura ou para uma determinada organizao espacial do palco,

    ele, o cengrafo, estar responsvel por propor uma ou mais imagens que sero

    relacionadas visualmente quele evento especfico. O espao para o cengrafo,

    efmero e provisrio, s tem sentido quando da presena do humano, da ao e

    interlocuo que este prope em relao aos demais seres humanos, o que

    complementar sua existncia, sua organizao, conferindo-lhe sentido e vice-e-versa.

    A criao de um espao efmero, por sua vez, no d garantias de que se trata de

    uma Cenografia. A Cenografia trata do espao que tem qualidade efmera, provisria,

    mas que, anteriormente forma, configura-se como espao cnico, diante da

    presena de uma interlocuo entre seres humanos no contexto de um acontecimento

    teatral. O espao, para o cengrafo, est necessariamente relacionado a esta

    interlocuo.

    Cenografia, Espao e Tempo

    Cenografia o mundo da imaginao, o lugar onde eu posso

    viajar atravs do futuro e do passado e trazer meu prprio

    mundo para o palco30. Georgi Alexi-Meskhishvili

    Os conceitos de Espao e Tempo esto, desde sempre nesse projeto, sob

    investigao, por se tratarem no apenas de componentes do pensamento e da

    criao cenogrfica, mas tambm por serem fortes orientadores do processo do

    aprendizado, segundo Kant. O caminho que me levou melhor compreenso destes

    conceitos passou pela fsica, pela filosofia e me levou de volta arte. A intuio em

    associar a cincia arte me fez pesquisar e refletir sobre a influncia da fsica nuclear

    na Arte Moderna. A idia de transposio do tempo-espao pela matria, sua

    composio e seu estado mutvel, os conceitos de massa, energia, partculas,

    propondo uma nova ordem, e possibilitando conceitualmente o rompimento com a

    concretude da matria, com a realidade visvel. Como conseqncia das descobertas

    na fsica nuclear, por detrs deste mundo visvel emergiu, nas Artes Plsticas, a

    possibilidade de um mundo imaginrio - o Pontilhismo, a Arte Abstrata, o Surrealismo, 30 Georgi Alexi-Meskhishvilin citado por Pamela Howard, What is Scenography?, London, Routledge, 2002 ,pg.XVI..

    33

  • etc. Coincide tambm com a redescoberta do inconsciente, no campo da Psicanlise,

    proposto por Freud. Nas Artes Cnicas, o Teatro descortinou o teatro, trazendo vista

    do espectador o seu processo, revelando o que antes estava por trs do visvel - a

    maquinaria, infra-estrutura, equipamentos de iluminao, tudo vista, sem truques. O

    mundo representado pelo Teatro tornou-se realidade imaginada, carregada de

    simbolismos, contemplada pela abstrao. Neste contexto, a noo de espao-tempo

    contnuo tambm se modificou, dando lugar idia de dimenses e desdobramentos

    destas dimenses de espao e tempo. Os tratamentos conferidos ao espao e ao

    tempo libertam-se para uma reordenao: fragmentam, sobrepem espaos; invertem

    e suspendem o tempo. Ao mesmo tempo em que aproximam fisicamente os humanos

    presentes, rompem a quarta parede, criam um todo, uma unidade que abrange os

    espaos destinados ao e recepo.

    A Linguagem do Espao e do Tempo, e o Teatro Espao e Tempo so conceitos fundamentais no campo da fsica, onde no

    existe apenas um conceito para defini-los. Os conceitos so construdos ao longo da

    histria e da forma como as teorias os absorvem, ou seja, dependem essencialmente

    do contexto e do modo como nele se manifestam. Quando perguntamos: onde algo

    est? Ou onde algo aconteceu? Para onde algo/algum vai? De onde algo/algum veio? estamos evidentemente nos remetendo idia de espacialidade. A idia de

    tempo, por sua vez, aplica-se a qualquer objeto que contenha informao sobre, ou

    esteja situado em relao a alguma localizao temporal, algum evento, momento,

    data, etc. Neste caso perguntamos: Quando algo aconteceu? Com relao ao espao

    o que pode parecer contraditrio, na verdade uma questo de posicionamento, de

    ponto de vista; o tempo, ao contrrio, no dispe de recursos para impedir uma

    contradio. A diferena basicamente reside no fato de que o espao tem trs

    dimenses e o tempo apenas uma. Enquanto espaos distintos acontecem

    simultaneamente e um dado objeto pode mover-se entre eles, o tempo no est em

    relao a alguma outra coisa, a uma ou outra pessoa, o tempo nico, os diversos

    tempos acontecem sucessivamente, segundo Reichenbach:

    Se no h mudana, no existe tempo; esta dimenso do tempo, no trata de mutao, mas de

    movimento, uma questo de ordenao31.

    31 Hans Reichenbach, citado por Lacey, Hugh M. A Linguagem do Espao e do Tempo, traduo a partir do original Space and Time, Editora Perspectiva SP, 1972, pg. 24.

    34

  • Frase que pode ser ilustrada com o pensamento: uma causa nunca posterior

    ao seu efeito ou que um evento no pode ocorrer em dois instantes diferentes. Ainda

    do ponto de vista da fsica, temos a afirmao de que um objeto no ocupa dois

    espaos, pois mesmo que imaginemos um espao contido dentro de outro e o tal

    objeto relacionando-se com ambos, o que teremos ser um objeto em relao aos

    limites de um espao que ocupa em determinado momento. Suprimir o espao no

    parece possvel por este olhar; imaginemos que estamos diante de um espao repleto

    de coisas, como seria este espao vazio? Somos capazes de visualiz-lo vazio, sem

    todas as coisas, talvez faltem alguns detalhes, mas ainda sim, ser possvel inclusive

    estimar sua dimenso p-direito (altura), profundidade, largura. Se depois disto,

    tentarmos excluir o espao como um todo, conseguimos imagin-lo? E com relao

    ao Tempo, como seria suprimi-lo? A percepo que temos do espao provm de uma

    mesma natureza que a nossa percepo sobre o tempo?

    O Espao soa, para mim, como um elemento mutvel, capaz de ser

    transformado, o Tempo, por outro lado, ao qual percebemos passar na vida real no

    se transforma, no podemos aceler-lo ou suspend-lo, a no ser atravs da

    imaginao. Enquanto a fsica nos limita a definir o conceito de espao a partir de um

    evento concreto e no a eventos subjetivos como, por exemplo, percepes,

    lembranas, desejos, sensaes, experincias, as Artes Cnicas nos conferem a

    possibilidade de manipular, de certa forma, esta ordem, para dizer e mostrar ao

    espectador, ainda que aparentemente, que um mesmo elemento possa ocupar dois

    lugares distintos, ou dimenses distintas simultaneamente, apresentar espaos e

    elementos que suscitem lembranas, sensaes. Permite ainda situar um mesmo

    elemento em pocas tempos diferentes e mais, apresentar a conseqncia antes

    da sua causa, permite inclusive suspender o Tempo e suprimir o Espao.

    Espao e Tempo no contexto teatral so somados narrativa, ao e

    movimento, como componentes atravs dos quais podemos propor alguma

    transformao, ou seja, so elementos que permitem a transposio do argumento e

    da ao a uma outra localizao temporal e espacial. Consente inclusive a

    justaposio dos tempos e espaos propostos pela obra inicial e pela sua

    interpretao, desde, claro, que lhe sejam conferidos intenes e significados

    expressos na relao estabelecida para com o pblico. A Cenografia trata, portanto,

    de olhar atravs de diferentes janelas espaciais e temporais, para criar ou produzir

    sentido atravs dos componentes visuais que ir orquestrar, considerando possveis

    transformaes para os personagens/atores, como tambm para os espectadores.

    35

  • O Tempo e o Espao, no contexto teatral, no so restritos a quando e onde

    aconteceu. Importa alm da dimenso do espao e o tempo de durao do evento, o

    momento, a referncia que se faz a um determinado espao e tempo. O tempo assim

    se divide em: tempo real e tempo dramtico. A proposio sobre o tratamento do

    espao e do tempo pode ser construda pelo roteiro ou dramaturgia, pela direo,

    pelos elementos visuais da obra, pelo espao em si. Isso pode ser exemplificado

    considerando uma dada situao: um espao inusitado, uma rua, onde o

    acontecimento teatral ter lugar luz do dia, situao na qual no h controle sobre

    esta iluminao. Neste caso ser difcil propor a existncia de tempo dramtico, ou

    seja, levar o espectador a transcender a percepo de tempo, ficando assim ele, o

    espectador, retido na dimenso de tempo real, o que pode ser, em alguns casos, parte

    da inteno cnica. Mas ainda assim, o movimento que ter lugar neste espao

    poder colaborar para conduzir o espectador a distanciar-se por um momento da

    realidade.

    No espao, unidades de tempo so expressas pela sucesso de formas, portanto pelo movimento. No

    tempo, espao expresso pela sucesso de palavras e sons, ou seja, por duraes de tempo variados

    que prescrevem a extenso do movimento . Deste modo, tempo definido pelo movimento atravs do

    espao, e o espao definido pelo movimento atravs do tempo 32. Adolph Appia

    O espao teatral no se limita ao cenrio ou ao edifcio teatral. Ele um

    conjunto vivo e orgnico que resulta do dilogo com a luz, o som, o movimento, a

    presena humana, que se modifica porque se modificam as relaes e intenes

    atravs dos diferentes contextos culturais, temporais, histricos e polticos. O Tempo

    teatral por sua vez tambm no se limita a uma seqncia de unidades de tempo

    somadas que resultam em passado ou futuro. Ele , da mesma forma que o espao,

    um elemento vivo e orgnico, no qual as dimenses temporais se fundem, se

    sobrepem e o ritmo percebido atravs das imagens reveladas pelo espao. So

    fundamentalmente Espao e Tempo os aspectos que revelam nossa percepo que

    estamos diante de uma fbula, ou iluso.

    32 Jay M. King, Rets in Time and Space, tese de mestrado, Universidade da Flrida, Escola de Teatro, 2004, pg. 8 cita Adolph Appia. The Work of Living Art, 1960.

    36

  • Espao Cnico, Espao Teatral e Cena

    O espao dramtico possui as mesmas caractersticas que a

    imagem potica. Sua propriedade inseparvel o esp