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1 Consolidação da leitura e da escrita: uma experiência com a elaboração de diários e ensino de História no Ensino Fundamental Manoel José Ávila da Silva * RESUMO O artigo apresenta uma discussão teórica dos limites e exigências para que conceitos como multiletramentos e o alfabetismo orientem as práticas pedagógicas e contribuam para a consolidação da leitura e da escrita nas aulas de História no Ensino Fundamental, através de uma experiência com a elaboração de diários. Palavras-chave: multiletramentos, alfabetismo, diários, consolidação da leitura e da escrita, ensino de história. ABSTRACT The article presents a theoretical discussion of the limits and requirements for concepts such as multiliteracy and alfabetismo to guide pedagogical practices and contribute to the consolidation of reading and writing in History classes in Elementary School through an experience with the elaboration of diaries. Keywords: multiliteracy, alfabetismo, diaries, consolidation of reading and writing, history teaching. 1. INTRODUÇÃO No presente artigo, a partir do relato da experiência de associar as aulas de História numa turma de 6º ano do Ensino Fundamental com as ações de ler e escrever através da elaboração de diários, observamos elementos referentes ao alfabetismo e problematizamos a questão dos letramentos no Ensino Fundamental. Além disso, também ressaltamos as dificuldades que, como professor especialista em uma área de conhecimento, a História, encontramos no tratamento das questões referentes à consolidação da leitura e da escrita ao longo dos Anos Finais do Ensino Fundamental. * Historiador, Especialista em Alfabetização e Letramento, professor da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre/RS. Atua nas Escolas Municipais de Ensino Fundamental Vereador Antônio Giúdice e Presidente João Belchior Maques Goulart.

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Consolidação da leitura e da escrita: uma experiência com a elaboração

de diários e ensino de História no Ensino Fundamental

Manoel José Ávila da Silva*

RESUMO

O artigo apresenta uma discussão teórica dos limites e exigências para que

conceitos como multiletramentos e o alfabetismo orientem as práticas pedagógicas e

contribuam para a consolidação da leitura e da escrita nas aulas de História no Ensino

Fundamental, através de uma experiência com a elaboração de diários.

Palavras-chave: multiletramentos, alfabetismo, diários, consolidação da leitura e

da escrita, ensino de história.

ABSTRACT

The article presents a theoretical discussion of the limits and requirements for

concepts such as multiliteracy and alfabetismo to guide pedagogical practices and contribute

to the consolidation of reading and writing in History classes in Elementary School through

an experience with the elaboration of diaries.

Keywords: multiliteracy, alfabetismo, diaries, consolidation of reading and

writing, history teaching.

1. INTRODUÇÃO

No presente artigo, a partir do relato da experiência de associar as aulas de

História numa turma de 6º ano do Ensino Fundamental com as ações de ler e escrever através

da elaboração de diários, observamos elementos referentes ao alfabetismo e problematizamos

a questão dos letramentos no Ensino Fundamental. Além disso, também ressaltamos as

dificuldades que, como professor especialista em uma área de conhecimento, a História,

encontramos no tratamento das questões referentes à consolidação da leitura e da escrita ao

longo dos Anos Finais do Ensino Fundamental.

* Historiador, Especialista em Alfabetização e Letramento, professor da Rede Municipal de Ensino de Porto

Alegre/RS. Atua nas Escolas Municipais de Ensino Fundamental Vereador Antônio Giúdice e Presidente João

Belchior Maques Goulart.

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Considerando que se produziu um contexto marcado pela interdidática que,

conforme Lerner, Aisenberg e Espinoza (2012), possibilitaria a criação de estratégias

combinadas e específicas para a promoção da leitura e da escrita entre diferentes áreas de

conhecimento, em conjunto com a perspectiva de que o processo de letramento, ou

multiletramentos, como refere Rojo (2010), que não se dá apenas nos anos iniciais do Ensino

Fundamental, e que tanto crianças, jovens e adultos estão envolvidos por ele ao longo da

existência, estabelecemos nosso caminho para uma breve análise. No artigo essa análise

abordará a questão dos níveis de alfabetismo como referência para os problemas a serem

superados no campo da leitura e da escrita na formação dos alunos e alunas no Ensino

Fundamental a partir de três momentos.

O primeiro momento diz respeito ao relato da elaboração dos diários por parte dos

alunos em uma atividade específica. Alunas e alunos de uma turma de sexto ano do Ensino

Fundamental prepararam-se para o estudo das civilizações da Antiguidade indo além da

leitura e interpretação de textos contidos nos livros didáticos. A partir de uma escolha

conjunta entre professor/alunas e alunos, foi proposto que trabalhássemos com a elaboração

de um mapa das civilizações da Antiguidade no espaço geográfico do Mar Mediterrâneo, ao

mesmo tempo em que desenvolvíamos um diário para o acompanhamento da atividade. Para

a dimensão didática estritamente histórica vale referir que uma das bases para a proposição do

trabalho com as civilizações da Antiguidade é a concepção do historiador francês Fernand

Braudel, notadamente aquela que aparece em seu já clássico texto A Gramática das

Civilizações. Aqui também aparecem as questões vinculadas com a perspectiva da

interdidática. Pannuti (2012), Larrosa (2011) e Lerner, Larramendy e Cohen (2012) nos

servem de referência tanto para entender as relações entre a experiência, a leitura e a escrita,

como para compreender a formação laços entre as diferentes disciplinas no desenvolvimento

da leitura e da escrita entre alunas e alunos do Ensino Fundamental.

No segundo momento apresentamos os conceitos de multiletramentos e de

alfabetismo (e níveis de alfabetismo). Estabelecemos brevemente uma referência teórica para

o reconhecimento da conexão entre o ensino de História, o processo que envolve os

letramentos, as características do alfabetismo. Buscamos construir vínculos que apontem

alternativas para o aprimoramento da leitura e da escrita durante o segmento dos Anos Finais

do Ensino Fundamental. O suporte para tal entendimento advém das abordagens e

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perspectivas de Rojo (2004 e 2010), Ribeiro (1997) e dos estudos e relatórios que estabelecem

o Índice Nacional de Alfabetismo Funcional - INAF (2016).

Na conclusão, trabalhando com a generalização, e sem a pretensão de estabelecer

uma resposta definitiva, apontamos para exigências das práticas para a consolidação de leitura

e da escrita no Ensino Fundamental e apresentamos alguns pontos que nos permitiriam pensar

sobre a criação de estratégias recorrentes nos diferentes anos do Ensino Fundamental, na

disciplina de História. Pontos esses que, pensamos, contribuiriam para a elevação dos níveis

de alfabetismo, em combinação com desenvolvimento dos multiletramentos pelas alunas e

alunos.

2. A EXPERIÊNCIA COM OS DIÁRIOS

A perspectiva da atividade de História projetada com o trabalho acerca das

civilizações da Antiguidade no espaço do Mar Mediterrâneo está fundamentada em uma

apreciação do historiador francês Fernand Braudel. A saber:

Sempre preconizei, para as crianças, uma narração simples, imagens,

séries de televisão, cinema (…). Falo com conhecimento de causa. Fui durante

muito tempo, como todos os universitários de minha geração, professor do

secundário e sempre exigi, junto com as classes de terceiro colegial ou de concurso

que me eram confiadas, uma classe de quinta série, ou seja, crianças de dez a doze

anos. É um público delicioso, espontaneamente maravilhado, perante o qual se pode

fazer desfilar a história como com uma lanterna mágica. O grande problema é, de

passagem, fazê-lo descobrir a perspectiva, a realidade do tempo vivido, as direções e

significações que ele implica, as sucessões que, marcando-o, o balizam e lhe dão

uma primeira fisionomia reconhecível. (…) Que o tempo, pouco a pouco

reconhecido, se preste pois o menos possível à confusão! Mas que a narrativa fácil

se abra como que por si mesma para espetáculos, paisagens, vistas de conjunto! (…)

Ao lado da aprendizagem do tempo, impõe-se igualmente a aprendizagem do

vocabulário: aprender a jogar com as palavras de maneira precisa, as abstratas e as

concretas... Com as noções chave: uma sociedade, um Estado, uma economia, uma

civilização. (BRAUDEL, 2004, p. 14)

Ao propormos, com alunos e alunas de uma turma do sexto ano de uma escola de

Ensino Fundamental da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre essa atividade de estudo

buscamos associar o ensino de História com o exercício de aprimoramento e consolidação da

leitura e da escrita.

Do mesmo autor recuperamos a compreensão dos grandes espaços geográficos

como molduras para a compreensão da História, numa conexão secundária, mas não menos

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importante, com a Geografia (BRAUDEL, 1983). Essa relação não vai ser explorada aqui,

ainda que ela complemente e amplie um dos aspectos que paralelamente intentamos abordar,

que é a noção de interdidática.

Desse modo, tempo e espaço são estudados juntamente com o desenvolvimento da

leitura e da escrita em uma mesma atividade de História.

Para levarmos a efeito o objetivo conjunto de estudar História e aprimorar a

leitura e a escrita durante o percurso do Ensino Fundamental, para além do estudo dos

conceitos de tempo e espaço ou dos episódios históricos, estabelecemos como um elemento

para a vinculação desses dois aspectos a elaboração dos diários por parte dos alunos e alunas.

A atividade de História se desenvolveu em uma turma de sexto ano, com meninas

e meninos com idades entre 11 e 14 anos, de uma escola da Rede Municipal de Ensino de

Porto Alegre, localizada em um bairro da periferia da cidade. A composição social da turma

reflete a mesma que há na escola. Há crianças oriundas de uma região muito vulnerabilizada

do entorno da escola, onde os serviços urbanos praticamente não existem (água, luz, esgoto,

coleta de resíduos orgânicos e secos). Temos crianças que residem em condomínios mais

antigos, localizados em um espaço do bairro que foi urbanizado entre os anos 80 e 90.

Existem crianças que provêm de uma região de ocupação muito antiga no bairro, com

urbanização consolidada, mas com pouca atenção, do ponto de vista dos equipamentos e

serviços urbanos. Por fim, e em número menor que os outros grupos, temos crianças que

pertencem a famílias que chegaram recentemente no bairro e que habitam em condomínios de

casas ou apartamentos construídos com a urbanização muito recente desse espaço da cidade

(especialmente depois dos investimentos feitos a partir de 2012/2014). À época da atividade a

turma era composta por 28 crianças, 17 meninos e 11 meninas.

Como professor de História, dispunha de três períodos semanais, de cinquenta

minutos cada um, com a turma. Dois eram geminados e o terceiro isolado. No mês de junho,

depois de estudarmos as características do conhecimento histórico, a hominização, os avanços

civilizatórios na Pré-história e a Revolução Urbana, e ao iniciarmos o estudo das civilizações

do Crescente Fértil, pareceu-nos oportuno (e aqui não se trata apenas de um recurso

linguístico para tratar da situação, e o que houve foi, de fato, uma decisão coletiva, do

professor e dos alunos e alunas) promover uma nova estratégia de aprendizagem na e com a

turma do sexto ano. À ideia do trabalho em grupo somou-se a opção por escolher, para cada

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grupo, uma civilização da Antiguidade na região do Mar Mediterrâneo. Os conteúdos a serem

estudados foram uma indicação do professor, pois que todos reconheciam que a ele

correspondia tal prerrogativa. O como estudar gerou um discussão que só foi concluída

quando a turma chegou ao consenso de que um modo de fazê-lo era, além da divisão por

grupos, produzir maquetes de cada civilização e, após, compor um mapa do Mar

Mediterrâneo indicando os locais de cada civilização no período histórico conhecido como

Antiguidade.

Um breve comentário sobre o quanto essa escolha reproduz um dos aspectos mais

tradicionais da História, que é sua divisão racionalista e eurocêntrica. Mas dadas as

características da atividade, esse elemento tradicional seria compensado com a concepção

temporal que o estudo produzia, baseada na percepção da sincronia do tempo histórico e na

simultaneidade dos desenvolvimentos das diferentes formações históricas, com suas

semelhanças e diferenças.

Foram treze encontros, entre os meses de junho e julho de 2017, em que a turma,

dividida em grupos, estudou civilizações como a Mesopotâmia, o Egito, Pérsia, Grécia,

Roma, a Judeia e a Fenícia.

Como fonte para os trabalhos os alunos e alunas foram instados a fazer as leituras

do livro didático destinado à turma pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD),

Projeto Teláris: história, ensino fundamental 2, de Gislaine Azevedo e Reinaldo Seriacopi

(AZEVEDO e SERIACOPI, 2015), além de pesquisas em material bibliográfico e em meios

eletrônicos.

Decidimos trabalhar em grupos. Sobre a possibilidade de estudar História

valendo-se do recurso da montagem de objetos acerca dos temas estudados ocorreu uma

grande surpresa, pois já estavam associando apenas a leitura e a escrita a essa área de

conhecimento. No momento de formar os grupos as afinidades que as alunas e alunos têm

entre si determinou as escolhas, e a curiosidade que foi despertada serviu de estímulo para o

trabalho, mesmo entre aqueles que não têm muito vínculo com a área de conhecimento

representada pela História.

A proposta de trabalho trouxe para a sala de aula certa distensão, no que se refere

ao ato de estudar e colocou em pauta a ludicidade, expressada no manuseio dos materiais e na

criatividade, que por vezes já não fazia mais parte das expectativas que as meninas e os

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meninos da turma tinham em relação à escola e, especialmente, em relação às aulas e ao

estudo da História.

Das duas direções tomadas na atividade, nos interessa aquela que resultou na

escrita do diário.

Junto com o material distribuído aos alunos e alunas da turma do sexto ano do

Ensino Fundamental foi anexado um caderno, igual para todos e todas. Esse caderno,

inicialmente, serviria para que fizessem o registro das atividades realizadas no estudo das

civilizações da Antiguidade. Tratava-se de um registro que, ao mesmo tempo no qual se

desenrolaria o trabalho coletivo do grupo, acarretaria em uma ação individual de cada aluna e

aluno. Nesse primeiro momento a possibilidade de ter um diário mobilizou bastante a turma

toda. Mais que a relação direta com a atividade de História, o diário despertou o vínculo com

a escrita.

Dessa forma, o diário tornou-se comum a todos os alunos e alunas, mas também

se transformou num elemento que distinguia cada um e cada uma na sua individualidade e

diversidade. Os diários eram iguais e diferentes ao mesmo tempo.

A finalidade declarada do diário era proporcionar um espaço individual para o

registro das ações que cada aluna e aluno naquilo que se referia ao trabalho de construção das

maquetes das civilizações da Antiguidade na disciplina de História. O diário serviria,

portanto, para que se produzisse um passo a passo da elaboração da atividade de História. Ela

ocorreria coletivamente, mas seu registro se daria de forma individual, permitindo que cada

aluno e aluna expressassem a sua perspectiva.

Essa foi a proposição original do uso do diário. Outra finalidade do diário,

complementar à primeira, foi possibilitar a experiência da compreensão da descrição ao longo

do tempo, ou seja, vincular as anotações com o estabelecimento de um passar do tempo. Os

registros colocariam os alunos e as alunas em contato com a necessidade de pensar não

somente no registro, mas também em ordená-lo no tempo, vivenciando a complexidade que

liga as condições objetivas e convencionais do calendário às descrições que emergem

subjetivadas pela carga emocional, específica e que podemos considerar própria de crianças

nessa etapa de desenvolvimento cognitivo. Um diário que juntava razão e emoção,

contribuindo para a elaboração deliberada de uma memória. Esses elementos todos

contribuem, de modo permanente, para a efetivação de uma das competências desejadas e

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projetadas para o sexto ano na disciplina de História, que é a compreensão do tempo em geral,

e do tempo histórico em particular.

Mas essas finalidades evidentes vinham acompanhadas de outra, menos aparente e

mais constante: a do exercício da leitura e da escrita. Nos diários uma das primeiras sensações

enunciadas, antes mesmo de qualquer descrição, é o prazer de ter um, de fazer registros, de

anotar questões sobre o seu dia na escola.

O diário cumpria o papel estratégico de estimulador da leitura e da escrita. A

fruição da escrita, em companhia da subjetividade que podia ser liberada nela, fazia do diário

um espaço que todas e todos queriam, inicialmente e com muito entusiasmo, ocupar. A

declarada resistência que surge quando a escrita tem um caráter compulsório, era substituída

pela ansiedade de escrever suas impressões pessoais. E o diário, que parecia ser um frio

registro das atividades na escola, foi sendo transformado numa anotação do cotidiano nos

mais diversos lugares.

Há, ainda, a questão do exercício da escrita de acordo com a norma culta, em

todos os seus aspectos. Mas, agora, passamos ao conteúdo dos diários.

A leitura dos diários permitiu o reconhecimento de cinco características nos seus

textos, que serviram para tipificar o conteúdo dos registros. Encontramos registros que

trataram do próprio diário, registro que se referiam à organização do trabalho que ia sendo

desenvolvido, registros que enfatizavam o cotidiano, registros que faziam referências ao

cotidiano, e ainda mais, que transbordavam do espaço da sala de aula e da própria escola e,

por fim, diários em que o registro serviu para reportar o conteúdo histórico estudado.

Este trecho faz referência ao próprio diário, destacando o estímulo que ele

representou no estudo da História e na vinculação com a própria escola:

13/06/17

Hoje na aula do sor Manoel nois fizemos esse diario que eu estou

escrevendo ganhamos materiais hoje a aula foi incrível adorei a aula de Historia e eu

também gosto das aulas do professor manoel eu adoro as aulas dele e adoro Historia.

(J. L., 12 anos)

Já nesse excerto encontramos a organização da atividade referida:

06/07/17

Hoje agente fez nossa maquete mas já faz tempinho só que eu não

escrevi no diario então hoje eu tou escrevendo no trabalho cada grupo ia contar

sobre o que ia ser a maquete o profº manoel fez um sorteio eu e as gurias que são R.

J. J. O. e J. nos caimos com roma e nois vamos fazer a maquete de roma mas

inssima da maquete vai ter o coliseu vai ficar muito legal. (A. T., 12 anos)

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O registro do cotidiano foi feito no diário na mesma medida em que ele se

confundia com a escola, permitindo que a vida das alunas e dos alunos contaminasse o ritmo

das atividades escolares...

Dia: 19/06/2017 Segunda-feira

No dia 19/06/2017 e meu aniversario e na sala meus colegas cantaram

parabéns para mim com a professora D..

Eu ganhei uma festinha surpresa da minha mãe que morra em E. veio

ela e minha cunhada e meu irmão mais novo e minhas primas. (J. E., 12 anos)

E muitas vezes essa relação com o cotidiano passava a ser mais relevante que o

registro das ocorrências na escola. O diário assumia a função de local para o registro da vida

na sua compreensão mais ampla, com a construção de uma memória das coisas (boas)

acontecidas:

Dia: 16/06/17

Sexta feira

Hoje é sexta-feira hoje fui na aula depois fui para casa e a minha

colega R. me mandou um Whas falando:

J. não vou consiguir ir aula mas eu vou te buscar as 18:15 e já toma banho. Então

tomei banho fui na minha vó e esperei passou uma meia hora e deci depois fui na

casa dela, me arrumei lá para a festa da sobrinha dela m. então me arrumei fui na

festa tava muito legal a gente comeu brincou saimos uma hora da manha do aniver

depois fomos dormir (J. M., 12 anos)

E há nos diários da turma B33 também o registro do conteúdo histórico estudado,

sem deixar de lado o registro igualmente importante do estado de espírito de que registra e de

seus colegas:

22/06/17

Hoje a gente soltou cedo e todo mundo ancioso e com medo de tirar

nota ruim no boletim.

E na aula do professor Manuel, e os grupos escolheram uma parte do

estado terrestre, e eu e o meu grupo ficamos com a Mesopotamia, e no meu grupo

está o P., E. e o d., e a gente descobriu que na Mesopotamia o povo que mora lá é os

Sumerios. (G. F., 12 anos)

Os diários, para além da caracterização dos registros e suas distinções, e também

graças a elas, apresentam questões especificamente ligadas à escrita, mas também à leitura. A

informalidade e as regras fluídas do gênero textual do diário permitiu aos alunos e às alunas

certa tranquilidade na escrita, o que serviu para que o ato de escrever não se tornasse uma

obrigação penosa. Como apareceu em muitos registros, o diário constituiu-se numa ação

prazerosa, uma escrita que se fazia com naturalidade e como consequência não só da leitura,

mas também do que fora experimentado e vivido pelos alunos e alunas.

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Pela outra mão, essa tranquilidade na escrita deixou que se evidenciassem os

problemas da escrita, no que se refere ao uso da norma culta e da correção gramatical e

ortográfica, nos níveis desejáveis para alunas e alunos do sexto ano do Ensino Fundamental.

Os diários apontaram para questões da consolidação da leitura e da escrita. Neste

ponto as proposições da interdidática ganham sentido e permitem estabelecer os limites de

nossa prática como professor especialista que se depara com a necessidade de estabelecer

estratégias para o aprimoramento dos letramentos (ou multiletramentos, conceito que

discutiremos em seguida) e para uma análise dos níveis de alfabetismo que a turma, e cada

aluno e aluna em particular, apresentam.

A título de recurso para a conexão entre os limites de nossa formação específica

com as demandas de consolidação da leitura e da escrita do Ensino Fundamental, brevemente

trataremos das indicações que a interdidática aponta e tenta resolver.

A produção dos diários pelos alunos e alunas da turma B33 pode ser entendida

como uma estratégia para o desenvolvimento e consolidação da aquisição da leitura e,

principalmente, da escrita por diferentes motivos. Além da evidente possibilidade de criar um

objeto de aprendizagem para a manutenção de um diagnóstico permanente do

desenvolvimento da escrita para cada aluno e aluna, inicialmente podemos destacar também a

relação com a leitura de mundo que o diário carrega – o que já é denotado na própria natureza

do registro pessoal que o diário contém.

Daniela Pannuti destaca que uma das finalidades da escola – e aqui estendemos

essa compreensão para a nossa experiência com os diários – é possibilitar, através da leitura e

da escrita, a construção de uma competência em ler, mais que os signos específicos da

linguagem escrita, o próprio mundo que nos cerca e do qual fazemos parte:

Ao entendermos a escola como espaço coletivo, que apresenta e ao

mesmo tempo prepara a criança para o mundo, a concepção que temos de sujeito

alfabetizado vai além de conhecer e utilizar as letras. Ser alfabetizado, nesse

contexto, pressupõe apropriar-se de um lugar de autonomia, ser capaz de ler e falar o

mundo, compreender seus signos e códigos, interpretar a realidade e interagir com

ela. (PANNUTI, 2012, p. 17)

A conexão entre os diários e a concepção mais ampla da autora acerca da escola e

da alfabetização é possível por uma compreensão de que os diários portam consigo uma

narrativa da vida, que se baseia nos princípios elementares da escrita, quais sejam “narrar a

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vida e comunicar ao outro o que vivemos, sentimos e pensamos” (PANNUTI, 2012, p. 25). E

isso ocorre no diário de cada aluna e aluno (seja através dos registros daquilo que se passou

exclusivamente na escola, seja através dos registros com uma perspectiva mais larga,

envolvente do cotidiano extraescolar).

Trata-se, ainda tendo como referência as ideias de PANNUTI, da constituição de

uma metacognição, que é...

a condição de debruçar-se sobre o próprio pensamento, enquanto sujeito

epistemológico, isto é, construtor de saberes. O foco central da metacognição é o

conhecimento dos processos de conhecimento do sujeito pelo próprio sujeito. O

exercício de pensar sobre o próprio processo de pensar permite identificar lugares de

aprendizagem, movimentos do pensamento para ressignificá-los e integrar o pensar

e o aprender. (PANNUTI, 2012, p. 19)

Essas perspectivas teóricas preenchem o significado dos diários, tanto na sua

proposição – a ação do professor – como na sua realização – a ação dos alunos e alunas. A

escrita sobre o que ocorria na realização da atividade proposta e no cotidiano cumpriu duas

funções. A primeira ligada ao próprio exercício de escrever. A segunda, decorrente desta e

mais ampla, provocava, com a elaboração de o quê escrever, o ato metacognitivo de pensar

sobre a escola, sobre o trabalho realizado, sobre os conteúdos envolvidos e sobre as

circunstâncias nas quais estão inseridas estas dimensões e outras, como as relações com as e

os colegas e o cotidiano. E ainda mais, a provocação de pensar sobre os esforços para a

elaboração de uma escrita que exponha tudo isso.

Nesse ponto os diários comportam o que podemos de chamar de enunciação da

experiência. Eles possibilitaram que as alunas e alunos, através da escrita, explicitassem o

estágio de desenvolvimento e domínio da mesma, e também se envolvessem com o pensar

sobre suas próprias experiências. Por vezes de modo explícito, quando seus textos, ainda que

breves, relatam o que ocorreu de uma forma muito direta (a entrega de materiais, o inusitado

do trabalho manual, a organização em grupos). Outras vezes de modo um pouco mais difuso,

quando relacionam a escrita do diário com o que ocorre fora da escola e o tomam como que

um local de registro de sua história particular e privada. Em ambas as situações os diários

evidenciam para os autores e autoras, mas também para o leitor dos diários (o professor, que

os solicita com muitos objetivos), a experiência que estão fruindo com a atividade.

Os diários, através de sua escrita, mesmo de um modo muito simplificado,

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promoveram a reflexão sobre a existência (mesmo no espaço-tempo restrito da atividade

desenvolvida na escola, nas aulas de História) e exigiram a sua tradução para a escrita.

Ajudaram a fazer emergir a experiência exclusiva que determina o processo de aprendizagem

de cada aluna e cada aluno que se envolveu com a escrita. Os diários, ao serem colocados

como espaço para que se escrevesse sobre o que acontece na escola, provocaram, na

expressão de Jorge Larrosa, a emergência do pensar a relação conhecimento histórico-escrita-

aprendizagem-existência:

A primeira nota sobre o saber da experiência sublinha, então, sua

qualidade existencial, isto é, sua relação com a existência, com a vida singular e

concreta de um existente singular e concreto. A experiência e o saber que dela deriva

são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida. (LARROSA, 2002, p. 27)

Se os diários contribuíram para a percepção e reafirmação das experiências

individuais de aprendizagem vivenciadas pelos alunos e alunas, de outra parte eles também

evidenciaram o quanto há de comum e relacional nas práticas pedagógicas desenvolvidas na

escola. Os relatos tomam o coletivo da turma como referência, ou ao menos, aquelas e aqueles

colegas mais próximos. Mesmo quando a perspectiva do relato é individual, e a narrativa

segue sempre em primeira pessoa (afinal é um diário), o texto remete a um espaço coletivo –

a turma, a escola, a aula – que se vê reforçado pela atividade em grupo. Essa dupla mirada dos

alunos e alunas escritoras/autoras vem acompanhada da exigência de uma igualmente dupla

visão pedagógica do professor.

E é a partir dessa exigência que se afirma mais uma característica presente na

atividade com os diários, que é o trabalho com um posicionamento ou uma postura

interdidática.

Nos anos iniciais do Ensino Fundamental as exigências para a aquisição da leitura

e da escrita parecem se assentar em procedimentos, práticas, exercícios, metodologias e

esforços baseados em concepções didáticas exclusivas e fundadas na centralidade da

alfabetização/letramento. Para os fins da discussão proposta neste artigo, não vamos

aprofundar esta questão, mas vale dizer que essa é uma visão simplista, ainda que carregue

muito de verdade quando olhamos para as práticas recorrentes em muitas de nossas escolas.

À medida que as crianças avançam no Ensino Fundamental, e aqui também nos

permitimos ter esta outra visão simplificadora da questão, a emergência de conteúdos

específicos, de áreas de conhecimentos específicas, vai competindo e mesmo tomando o lugar

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da consolidação da aquisição da leitura e da escrita. Fruto de uma visão equivocada, que isola

as etapas do desenvolvimento cognitivo da criança, essa situação cria áreas de conhecimento

estanques nos Anos Finais do Ensino Fundamental.

Uma das explicações para que isso ocorra é a formação inicial que nós,

professores, recebemos. Os conhecimentos pedagógicos são subsumidos em face dos

conhecimentos específicos de nossas diversas áreas de conhecimento. Os conteúdos da

História, da Geografia, das Ciências da Natureza, das Artes, da Matemática, das Línguas

Adicionais e mesmo do Português, em casos extremos, descolam-se da questão da aquisição e

consolidação da leitura e da escrita. Não é raro encontrarmos programas que listam conteúdos

e que não os vinculam, separando-os por áreas de conhecimento e pressupondo uma caminha

específica e exclusiva dos alunos e alunas em cada área de conhecimento, todas

desconectadas umas das outras. A aquisição da leitura e da escrita fica circunscrita aos anos

iniciais, e deveria estar resolvida, de acordo com uma concepção conservadora, até o terceiro

ano do Ensino Fundamental (ou na pior das hipóteses até o quinto ano).

Nossa experiência (e nossos estudos) têm nos mostrado duas coisas. Primeiro: que

a consolidação da leitura e da escrita se dá ao longo de todo o ensino fundamental, e mesmo

ao longo de toda vida, embora haja a necessidade da adoção de práticas e didáticas específicas

nos anos iniciais para que as questões linguísticas e fonológicas da aquisição da leitura e da

escrita sejam tratadas (cf. SOARES, 2004). Segundo: que são necessários procedimentos

específicos e combinados para se tratar da questão da consolidação da leitura e da escrita ao

longo do Ensino Fundamental. Não é possível continuar reafirmando as especificidades das

diversas áreas de conhecimento e ignorando as necessidades de trabalhos específicos, com

intencionalidade manifesta, para a consolidação da leitura e da escrita.

Aqui chegamos ao ponto de virada de nosso trabalho. Como trabalhar com o que

Lerner define como interdidática? Como estabelecer estratégias combinadas e específicas

para a promoção da leitura e da escrita entre diferentes áreas de conhecimento, quando nossa

formação de especialista não nos faculta tal competência? Como historiadores deixamos a

desejar, no que tange a estabelecer vínculos que apontem alternativas para a discussão entre

dominar conhecimentos específicos e consolidar a leitura e a escrita no Ensino Fundamental.

Ainda através da referência de Lerner et alli sobre interdidática, percebemos os

nossos limites:

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… la lectura y la escritura en las áreas disciplinares son concebidas como objetos

complejos, no recortables desde las didácticas específicas en forma aislada ni desde

la integración de sus saberes preexistentes. Hemos construido así una línea de

investigación interdidáctica que entabla un diálogo con los problemas teóricos y

metodológicos que es preciso abordar. (LERNER; LARRAMENDY; COHEN, 2012,

p. 107)

Os problemas a serem abordados pela relação dialógica de didáticas, a

interdidática, que no caso específico de nosso estudo, estão ligados à História e à

consolidação da escrita, são identificados, pela mesma autora, como aqueles vinculados às

operações e recursos envolvidos no processo de escrever, como o planejamento, a produção

mesmo do texto e a revisão, e aqueles em que o reconhecimento da distinção entre escritores

novatos, que “dizem o conhecimento”, e escritores que já possuem certa expertise, e que na

sua escrita se permitem “transformar o conhecimento”, possibilita “pensar a escrita como

ferramenta de construção do conhecimento” (LERNER; AISENBERG; ESPINOZA, 2011, p.

530-1).

De acordo com a perspectiva proposta pela interdidática, os diários são apenas o

suporte para o exercício da escrita, em associação com as respectivas práticas leitoras

associadas. Por si só não se tornam objetos de ensino, ferramentas de aprendizagem de

conteúdos de uma outra área (no nosso caso, da História). Para que pudessem se constituir

como tal precisariam ser acompanhados de um conjunto de ações e procedimentos didáticos

específicos do ensino dos conhecimentos linguísticos. E, em decorrência disso, seriam

ferramentas para o desenvolvimento permanente dos multiletramentos e do reconhecimento

dos níveis de alfabetismo, e se constituiriam como referências para a nossa interferência.

Eis o limite de nossos conhecimentos!

3. MULTILETRAMENTOS E ALFABETISMO

Os diários são uma referência prática para as questões teóricas que definem os

nossos limites. Pelo modo como foram exercitados e pelo seu aproveiamento pedagógico, não

são mais que isso. Sua aplicação se complementaria, para uma ação sistemática e conjunta na

direção de práticas pedagógicas que contribuam, de modo equivalente e concomitante, para o

fortalecimento dos conhecimentos históricos na mesma proporção que consolidam a leitura e

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a escrita, ao longo do Ensino Fundamental, com a implementação de dois conceitos

particularmente importantes: multiletramentos (ou letramentos múltiplos) e alfabetismo. Isso

antes mesmo da elaboração das práticas, estratégias e programas de ensino, pois que são eles

que fundamentam teoricamente uma perspectiva capaz de criar expectativas de solução para

as questões da leitura e da escrita. E tudo isso ainda considerando a estrutura de pluridocência

que preside a organização do nosso Ensino Fundamental.

O multiletramento, ou letramentos múltiplos, é referido em Rojo quando ela

sugere que devemos diversificar as práticas de letramento em todas as disciplinas da educação

básica, ou seja, que através de procedimentos e a implementação de capacidades, todos nós,

professores da educação básica, preparássemos os nossos alunos e alunas para uma “leitura

cidadã, inclusive na escola” (ROJO, 2004, p. 2). Para operarmos com esses procedimentos e

capacidades, professores especializados que somos, é importante que conheçamos e saibamos

aplicar um conjunto de “capacidades de leitura envolvidas nas práticas letradas”: de

decodificação, de compreensão/estratégias e de apreciação e réplica do leitor em relação ao

texto/interpretação e interação (ROJO, 2004, p. 4-7). A dimensão de nosso trabalho não nos

permite expandir a sua descrição, mas podemos dizer que elas representam fases de

complexificação que desempenham a função de desenvolver capacidades discursivas e

linguísticas nas diferentes etapas e dimensões do letramento. Da compreensão de que há

diferentes dimensões em que ocorre o letramento decorre a afirmação de que não há apenas

um letramento, mas múltiplos letramentos, inclusive um que se dá no âmbito mais estrito da

escola. E com os quais a própria escola deve operar para o desenvolvimento da capacidade

leitora/escritora dos alunos e alunas.

Esse processo desemboca na questão da consolidação da competência em Língua

Portuguesa. Para que se desenvolva a competência são necessários “eventos” em associação

com os múltiplos espaços em que se desenvolve a cultura letrada. É ainda Rojo que nos

referencia a este respeito:

Como são muito variados os contextos, as comunidades, as culturas,

são também muito variadas as práticas e os eventos letrados que neles circulam.

Assim é que o conceito de letramento passa ao plural: deixamos de falar em

“letramento” e passamos a falar em “letramentos”.

Assim, trabalhar com os letramentos na escola, letrar, consiste em

criar eventos (atividades de leitura e escrita – leitura e produção de textos, de mapas,

por exemplo – ou que envolvam o trato prévio com textos escritos, como é o caso de

telejornais, seminários e apresentações teatrais) que possam integrar os alunos a

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práticas de leitura e escrita socialmente relevantes que estes ainda não dominam.

(ROJO, 2010, p. 27)

Os diários de nossa prática evidenciaram minimamente o grau de competência no

trato com a Língua Portuguesa no contexto das aulas de História. Como professor especialista

poderíamos nos abster de considerar este aspecto e ater-nos exclusivamente às questões

históricas. Mas dois elementos interferem e exigem uma outra mirada sobre o assunto. Um é

que a competência linguística interfere na decodificação, interpretação e expressão dos

conhecimentos históricos. O segundo são as exigências elementares dos Ensino Fundamental

no que se refere ao nível geral de domínio da leitura e da escrita, e esta responsabilidadde não

é somente dos professores de Língua Portuguesa. Mesmo nas aulas de História no Ensino

Fundamental é importante o compromisso com os múltiplos letramentos.

Depois da etapa escolar destinada à alfabetização, entendida como o período dos

Anos Iniciais ou Primeiro Ciclo do Ensino Fundamental, no qual o centro das atividades está

na decodificação do código e a associação grafema/fonema, segue-se a etapa em que os

múltiplos letramentos ganham evidência. Nos Anos Finais do Ensino Fundamental espera-se

que as questões referentes à alfabetização já estejam equacionadas (espera-se que o código já

seja dominado pelos alunos e alunas). Com o código adquirido, no Anos Finais

complexificam-se as exigências em relação às capacidades linguísticas. É nesse momento que

os múltiplos letramentos ganham o primeiro plano. A sua importância está diretamente ligada

à crescente expansão do acesso à educação no Brasil. Com quase a universalização do acesso

à escola (ao menos no Ensino Fundamental) nas últimas décadas, cresceram a diversidade e as

exigências de atendimento de alunas e alunos oriundos de situações sociais de maior

vulnerabilidade. Daí advém um conjunto de fatores que fazem com que a implementação das

capacidades linguísticas ocorra de modo menos eficiente, com os resultados observados em

avaliações nacionais, como a Prova Brasil, mostrando a necessidade de implementarmos os

multiletramentos :

Portanto, o que temos no Brasil é um problema com os letramentos do

alunado e não com sua alfabetização. E nenhum método de alfabetização – fônico ou

global – pode dar jeito nisso, mas, sim, eventos escolares de letramento que

provoquem a inserção do alunado em práticas letradas contemporâneas e, com isso,

desenvolvam as competências/capacidades de leitura e escrita requeridas na

atualidade. Temos, isso sim, indicadores da insuficiência dos letramentos escolares,

em especial na escola pública, para a inserção da população em práticas letradas

exigidas na contemporaneidade. (ROJO, 2010, p. 22-3)

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Tal situação confirma a pertinência de nossa preocupação em associarmos aos

conhecimentos históricos as estratégias de promoção dos letramentos nos Anos Finais do

Ensino Fundamental, com a intenção de interferir positivamente na consolidação da leitura e

da escrita.

Para encaminhar alternativas de interferência, de construção de estratégias, e para

a criação de “eventos” que acionem os exercícios de letramentos múltiplos, o conceito de

alfabetismo (e a discussão dos níveis de alfabetismo) ganha relevância. Como afirma Rojo,

trata-se de reconhecer que...

a questão está em outro lugar que não na alfabetização: nas práticas de letramento

em que os brasileiros se envolvem (letramentos múltiplos) e nas capacidades de

leitura e escrita que o envolvimento nessas práticas acarreta (níveis de alfabetismo),

com as quais, parece, a escola não está conseguindo se confrontar. Mas, para

entender melhor como confrontá-los, seria interessante refletir um pouco mais sobre

os conceitos de alfabetização, alfabetismo (competência/capacidades de leitura e

escrita) e sobre os múltiplos letramentos. (ROJO, 2010, p. 23)

Ampliando o conceito de alfabetismo, dizemos que o termo pode ser aplicado

quando queremos...

designar a capacidade de utilizar a leitura e a escrita para fins pragmáticos, em

contextos cotidianos, domésticos ou de trabalho, muitas vezes colocado em

contraposição a uma concepção mais tradicional e acadêmica, fortemente referida a

práticas de leitura com fins estéticos e à erudição. (RIBEIRO, 1997, p. 145)

Mais que um critério funcional, ligado ao campo econômico, o conceito de

alfabetismo ganhou contornos mais abrangentes, e refere-se, hoje, ao conjunto de

compotências linguísticas e de resolução de problemas e sua aplicação pelos indivíduos em

diferentes situações, sejam elas cotidianas, escolares, no trabalho, nas relações comuitárias e

no mundo em geral. Apesar de problemática, a aferição do alfabetismo em uma determinada

população vem ganhando linhas mais claras, na mesma medida que as pesquisas tem sido

recorrentes, sistemáticas e com refinamentos metoodológicos. Isso possibilita que os

resultados estabelecidos orientem políticas públicas e escolares de elevação dos níveis de

alfabetismo. No Brasil a criação do INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional), pesquisado

em conjunto pelo Instituto Paulo Montenegro e pela Ação Educativa desde 2001, fornece

dados consistentes sobre a situação da população entre 15 e 64 anos. No último relatório a

interface com o mundo do trabalho aprimora a compreensão de como este se “constitui como

um espaço de múltiplas práticas de letramento e de numeramento, afetando diretamente as

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condições de alfabetismo de determinados segmentos populacionais inseridos nos mais

diferentes campos profissionais e de trabalho” (LIMA, RIBEIRO e CATELLI JÚNIOR,

2016, p. 2).

Para além das análises proporciondas pelos resultados do INAF, nos importa reter

a classificação dos níveis de alfabetismo estabelecidos (e as competências a eles atribuídas)

pelas pesquisas como indicadores para a formulação de estratégias de multiletramentos entre

nossos alunos e alunas. A metodologia de estabelecimento do INAF, a partir do relatório de

2016, estipula os seguintes níveis de alfabetismo:

I.analfabeto

II.nível rudimentar de alfabetismo

III.nível elementar de alfabetismo

IV.nível intermediário de alfabetismo

V.nível proficiente de alfabetismo

A cada nível desses corresponde um conjunto de “habilidades” relacionadas às

competências linguísticas e de resolução de problemas (letramento e numeramento) que vão

se acumulando de um grupo para o outro (LIMA, RIBEIRO e CATELLI JÚNIOR, 2016, p. 7-

8). Os níveis de alfabetismo têm uma relação direta com os multiletramentos.

Com a combinação destes conceitos, multiletramentos e alfabetismo (e os níveis

de alfabetismo), procuramos apontar um possível referencial teórico para a elaboração de

estratégias e “eventos” de letramentos, visando a consolidação da leitura e da escrita, nos

Anos Finais do Ensino Fundamental, em combinação com a produção do conhecimento

histórico, nas aulas de História.

4. CONCLUSÃO

Em uma discussão sobre o trabalho com gêneros textuais, Beth Marcuschi faz um

conjunto de sugestões e coloca questões teóricas em pauta para serem consideradas no Ensino

Fundamental, dentre elas a vinculação do estudo dos gêneros textuais com as relações sociais:

a aprendizagem de um gênero textual nos possibilita entendermos melhor as

situações em que nos encontramos. Nesse sentido, o ensino da produção textual com

base em gêneros disponibiliza as condições pedagógicas que podem levar o aluno a

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compreender como participar de modo ativo e crítico das ações de uma comunidade.

(MARCUSCHI, 2010, p. 77-8)

Já Delaine Cafeiro, tratando de letramento e leitura e a formação de leitores

críticos, apresenta uma planilha na qual o trabalho com diários como gêneros textuais é

indicado para ser executado no quarto e no sexto anos do Ensino Fundamental (CAFEIRO,

2010, p. 91). Ela defende que o ensino da leitura (e por extensão, da escrita e da oralidade

também) deve ser feito em todos os anos do Ensino Fundamental, e nos demais níveis

(CAFEIRO, 2010, p. 85).

Com essas duas referências, e mais a discussão teórica dos conceitos de

multiletramentos e alfabetismo, é possível pensar na construção de caminhos para a conexão

entre a consolidação da leitura e o desenvolvimento do conhecimento histórico.

A título de indicação, apontamos duas possibilidades: introduzir a elaboração de

estratégias de leitura para o tratamento dos textos históricos, por parte dos alunos e alunas,

conferindo aos mesmos a condição de construtores de sentidos para os textos lidos (e não

mais mais meros decifradores de um sentido que já vem pronto).

Uma outra possibilidade é o trabalho com a elaboração de textos de cunho

histórico em associação com os gêneros literários.

Nessas alternativas, e em todas as demais que podem surgir da continuação de

nossos estudos, fica manifesta a necessidade de um programa de ensino para a História, nos

Anos Finais do Ensino Fundamental, que inclua como questões de fundo os letramentos

múltiplos e a construção de estratégias para a elevação dos níveis de alfabetismo.

5. REFERÊNCIAS

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