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Cul tura e aBl em 2015 Muito se comenta os fazeres e haveres da cultura carioca. E, não sem r azão, queixam-se os chamados agentes culturais, ou seja, aqueles que criam e r ealizam as obras do espírito, que vão de eventos (exposições, espetáculos, simpósios, para citar apenas alguns) a livros e à pesquisa artística. Penso que as instituições particulares funcionam, em seu geral, com mais elasticidade que a maioria dos organismos oficiais, embora (desde já cumpre sublinhar) haja repar tições governamentais que operam corretamente. Mas não cometo a insensatez de nomeá-las, até por respeito às outras que não são tão bem lubrificadas. Tud o isso – um preâmbulo talvez desnecessário e já alongado – par a celebrar  justamente um exemplo de b om funcionamento . A Academia Brasileira de Letras foi, uma vez mais em 2015, a organização estritamente privada que se abriu para a cidade com um projeto eficaz e que se enquadrou com vigor nas definições de seus objetivos. Vão longe os tempos – repito sempre esta observação – em que a imagem da Academia era estigmatizada por um comportamento caricatural, ou seja, a de velhinhos a sorverem o chá das quintas-feiras. Isso acabou há muitos anos. Claro que o chá tradicional existe, agora dinamizado e aberto a convidados, os amigos da Casa, personalidades da vida cultural do país. Claro, também, que a dinâmica da Academia faz dela uma usina de debates, de ciclos de simpósios em que se esgrimem as espadas do saber e do desafio intelectual, inclusive até a fruição da música e suas referências históricas, tanto a erudita quanto a popular. Eu mesmo tenho o prazer de conduzir recitais, um a cada mês, para honrar a memória dos vultos mais fundamentais de nosso cancioneiro. E devo testemunhar aqui que as apresentações, intituladas MPB na ABL, convergem tanto para a cultura (prestam-se informações históricas dos segmentos musicais exibidos), quanto para o prazer , o simples pr azer , de ouvir e ver peças e artistas fundamentais. Há pouco, presenciei a posse da nova diretoria da ACL, liderada pelo escritor Domício Proença Filho , o novo presidente, que f oi o secretário-geral em dois mandatos do embaixador Geraldo Holanda Cavalcanti. Domício é figura de ex - celência no culto à língua portuguesa, além de ensaísta e poeta. Homem afável e encantador, é até cantor (um bom tenor amador) nas pouquíssimas horas vagas. Fiquei impressionado com o relato do s feitos deste 2015. Dezenas de ações confirmavam a qualidade motriz da Academia. Que, a meu ver , bem pode ser avaliada, nestes tempos sombrios, como a provocadora de mais um Ano do Saber no Rio, especialmente nos seus 450 anos. Um templo de afirmação. Uma vereda de consolidação.    E    s    q    U    i    n    a      d    o     r    i    c    a    r     d    o

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Cultura e aBl em 2015

Muito se comenta os fazeres e haveres da cultura carioca. E, não sem razão,queixam-se os chamados agentes culturais, ou seja, aqueles que criam e realizamas obras do espírito, que vão de eventos (exposições, espetáculos, simpósios,para citar apenas alguns) a livros e à pesquisa artística.

Penso que as instituições particulares funcionam, em seu geral, com maiselasticidade que a maioria dos organismos oficiais, embora (desde já cumpresublinhar) haja repar tições governamentais que operam corretamente. Masnão cometo a insensatez de nomeá-las, até por respeito às outras que não sãotão bem lubrificadas.

Tudo isso – um preâmbulo talvez desnecessário e já alongado – para celebrar justamente um exemplo de bom funcionamento. A Academia Brasileira de Letrasfoi, uma vez mais em 2015, a organização estritamente privada que se abriu paraa cidade com um projeto eficaz e que se enquadrou com vigor nas definições deseus objetivos.

Vão longe os tempos – repito sempre esta observação – em que a imagemda Academia era estigmatizada por um comportamento caricatural, ou seja, ade velhinhos a sorverem o chá das quintas-feiras. Isso acabou há muitos anos.Claro que o chá tradicional existe, agora dinamizado e aberto a convidados, osamigos da Casa, personalidades da vida cultural do país.

Claro, também, que a dinâmica da Academia faz dela uma usina de debates,de ciclos de simpósios em que se esgrimem as espadas do saber e do desafiointelectual, inclusive até a fruição da música e suas referências históricas, tantoa erudita quanto a popular. Eu mesmo tenho o prazer de conduzir recitais, uma cada mês, para honrar a memória dos vultos mais fundamentais de nossocancioneiro. E devo testemunhar aqui que as apresentações, intituladas MPBna ABL, convergem tanto para a cultura (prestam-se informações históricas dossegmentos musicais exibidos), quanto para o prazer, o simples prazer, de ouvire ver peças e artistas fundamentais.

Há pouco, presenciei a posse da nova diretoria da ACL, liderada pelo escritorDomício Proença Filho, o novo presidente, que foi o secretário-geral em dois

mandatos do embaixador Geraldo Holanda Cavalcanti. Domício é figura de ex-celência no culto à língua portuguesa, além de ensaísta e poeta. Homem afávele encantador, é até cantor (um bom tenor amador) nas pouquíssimas horasvagas. Fiquei impressionado com o relato dos feitos deste 2015. Dezenas deações confirmavam a qualidade motriz da Academia. Que, a meu ver, bem podeser avaliada, nestes tempos sombrios, como a provocadora de mais um Ano doSaber no Rio, especialmente nos seus 450 anos. Um templo de afirmação. Umavereda de consolidação.

   E

   s   q   U   i   n   a 

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Nº 47 OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2015ISS 1981-6049

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DIRETORRicardo Cravo Albin

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EDITOR RESPONSÁVELLuiz Cesar Faro

EDITORA EXECUTIVAMônica Sinelli

REPÓRTERESJoão Penido

Kelly Nascimento

DESIGNERSMarcelo Pires Santana

Paula Barrenne de Artagão

FOTOGRAFIAAdriana Lorete & Marcelo Carnaval

PRODUÇÃO GRÁFICARuy Saraiva

REVISÃOGeraldo Rodrigues Pereira

Paulo Barros

CAPAAdriana Lorete

IMPRESSÃO

Primil

É som, é sal, é mar

  6 O rei da animação

 10 A modinha não parou de tocar

 16 Dulcíssima sapoti

 22 Nas asas do falcão

Magia do olhar28 O olho mágico do Rio

34 Fotografias a óleo

Do bem comer e melhor beber

42 Sotaque lusitano

Cidade Maravilhosa

46 Baú de joias

52 Apetite felino

Embaixador do Rio

 56 Yin e Yang são cariocas da gema  Por Candido Mendes

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7out/nov/Dez 2015Carioquice6

abelardo Barbosa

o rei da animação

Gaúcho radicado no Rio de Janeiro

há mais de 15 anos, ele é sinônimo

de reverência aos artistas que

iluminam a canção popular. Há

quase três décadas, personifica

o homem por trás da maior

premiação da música brasileira,

que este ano homenageou Maria

Bethânia e festejará o compositor

Gonzaguinha em 2016. Produtor,

apresentador de TV e cantor

diletante, José Maurício Machline

merece, ele próprio, os louros por

sua extensa militância em prol da

cultura brasileira.

p o r  mônica Sinelli

O interesse pelo meio que timbraria sua tra- jetória profissional foi aflorando com o passar dotempo. “Em casa, ninguém tocava instrumento outinha algum sentimento artístico mais próximo.Isso aconteceu comigo aos poucos, fui gostandode música e enveredando por esse caminho semnenhum tipo de influência”, conta Zé Maurício,que na adolescência participou do Kennel Club e

atuou como juiz de cachorro em diversas váriaspartes do mundo: “Em vez de aprender a latir,comecei a falar várias línguas por causa dessespasseios atrás de exposições de cães.”

Já formado em administração de empresas,diretor de Marketing e vice-presidente da Sharp – grupo comandado por seu pai, Matias Machline,falecido em 1994 –, o herdeiro do gigante do

setor de eletroeletrônicos no Brasil cultivava emparalelo um grande envolvimento com a músicana década de 80. “Fiquei muito interessado pelomercado discográfico naquele momento. Primei-ramente, resolvi fazer um selo de gravação, oPointer, produzindo e lançando discos de váriosartistas, como Leny Andrade, Jane Duboc e CesarCamargo Mariano. Como diretor de Marketing daSharp – que fabricava televisores e aparelhosde som –, me inteirei que o meio musical brasi-leiro, na época, estava bem colocado em âmbitointernacional. E que não existia uma premiaçãoque representasse a força daquele mercado.Fizemos uma pesquisa de opinião e levamos aideia à empresa, que a aceitou, nascendo, assim,o Prêmio Sharp, em 1987”, reporta.

Parceiros de jornada

Um dos adeptos inaugurais da empreitada –concebida no intuito de valorizar e incentivar adiversidade da música emanada de norte a suldo país e prestigiar o talento de seus criadores,entre cantores, músicos, arranjadores e produto-res – foi o ex-ministro Mário Henrique Simonsen.Zé Maurício contextualiza: “Ele era uma pessoa

muito próxima à minha família e um amante damúsica, principalmente de ópera. Ao me ouvircomentar sobre o projeto, disse que tambémqueria participar. Enquanto viveu, foi presidentedo Conselho do prêmio.”

 Além da votação, que também busca estimu-lar carreiras iniciantes, a cada ano é escolhidoum artista homenageado, montando-se, emtorno de sua obra, um espetáculo especial, pormeio de atrações inéditas e encontros entre osmaiores intérpretes brasileiros, de diferentesgerações. A primeira edição, em 1988, celebrouo poeta Vinicius de Moraes, seguido por DorivalCaymmi, Maysa, Elizeth Cardoso, Luiz Gonzaga, Ângela Maria & Cauby Peix oto, Gil ber to Gil, ElisRegina, Milton Nascimento, Rita Lee e Jacksondo Pandeiro.

Em 2003, agora sob os auspícios da TIM, aincensada foi a cantora Gal Costa e, na sequência, Ary Barroso, Lulu Santos, Baden Powell, Jair Rodri-gues, Zé Keti e Dominguinhos. Eis que cinco anosdepois, uma reviravolta ameaçou a realização doevento. “Perdi o patrocínio da TIM quando faltavamapenas três meses para a data programada e játínhamos 90% do material musical julgado. Achei

Ao lado de Camila Pitanga, com quem gravou oCD “Mania de vocês”

Com Fernanda Montenegro e João Bosco,o homenageado do prêmio de 2012

Fotos: D

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9out/nov/Dez 2015Carioquice8

abelardo Barbosa

que não poderia deixar de fazer o prêmio e decidibancá-lo, com a ajuda dos artistas e fornecedores.”Por toda a atitude conjunta da classe, esta 20ªedição, evocando Clara Nunes, marcaria a históriada maior festa da MPB. Em 2010, sob a bandeirada Vale e a nova designação de “Prêmio da MúsicaBrasileira”, foi a vez de Dona Ivone Lara recebertodas as honras, sendo sucedida por Noel Rosa,João Bosco e Tom Jobim. Em 2014, pela primeiravez, o tributo destinou-se a um gênero musical, osamba, assinalando, igualmente, a publicação dolivro “25 anos do Prêmio da Música Brasileira”,escrito pelo jornalista Antônio Carlos Miguel, comdesign de Gringo Cardia. E, em junho último, MariaBethânia, completando meio século de carreira,foi a grande homenageada no templo do TeatroMunicipal.

Passados tantos anos de intensas celebrações – em 12 categorias que incluem os segmentos deMPB, pop/rock/reggae/hip-hop/funk, regional einstrumental –, seu idealizador não faz distinçãoentre os rebentos. “Acredito que o momento maisemblemático tenha sido a execução do primeiroprêmio, com o formato que encontramos paraorganizá-lo à época e que se foi aprimorandono tempo. A cada ano, temos a sensação de

estarmos produzindo o melhor espetáculo dasérie, mas todos são muito emocionantes. Essaé a grande graça de continuarmos torcendo elutando pelo evento.”

Cantorias diletantes

Sobre a questão da mediunidade, manifestada já na infância e que o levaria a chefe espiritual doCentro Espírita do Zé do Bem – casa de umbandadedicada ao apoio e recuperação de enfermos edependentes químicos –, Machline se recusa hojea falar. O tema, porém, gerou seu livro “Eu nãoacredito em religião” (2000) e o álbum “Toquesde umbanda” (1999), no qual cantava pontos eque mereceu a seguinte declaração do mestreCarlos Heitor Cony: “A começar pelo título, o CDde José Maurício Machline é instigante, até mesmoprovocador. Na verdade, Zé Maurício não buscounenhuma religião. A espiritualidade é que o foibuscar, numa vivência pessoal que o levaria gra-dativamente ao espiritualismo, aqui entendido emsuas múltiplas formas, desde a paranormalidadepura e simples, até a integração neste blendedespiritual que se expressa no sincretismo culturalque forma e informa a espiritualidade básica dopovo brasileiro. Uma vez possuído não pela sua

verdade, mas pela sua vivência, José Maurício foifundo no colorido e musical universo dos cultospopulares que integram a formação da espiritu-alidade do povo brasileiro.”

Mas essa não representou a única incursãode Machline como intérprete. Ele também lan-çou outros CDs, com destaque para “Mania devocês” (2002), em que gravou somente com-positoras e teve a participação de cantoras eatrizes: Leny Andrade na faixa “Ouça” (Maysa);Ivete Sangalo em “Minha Nossa Senhora” (Fáti-ma Guedes); Camila Pitanga, “Desculpe o auê”(Rita Lee); e Cláudia Ohana, “E.C.T” (NandoReis, Marisa Monte e Carlinhos Brown). “Façoisso esporadicamente, por diletantismo, prazer.Não são discos de carreira, nunca pretendiseguir a carreira de cantor”, ressalva.

Joyce Moreno, uma das autoras presentesnaquele álbum com “Tema para Jobim (ao ladode Gerry Mulligan), comenta: “Louvo no Zé oamor genuíno que tem pela música brasileirae esse empenho em manter o Prêmio funcio-nando, com sol ou com chuva. O Prêmio é ummomento especial, em que a classe musical se

confraterniza, acho isso muito bacana. Bemantes, nos anos 1980, ele criou o Pointer, umdos primeiros selos independentes do Brasil,gravando música de alta qualidade. Tive oprazer de fazer um projeto pelo selo – o disco‘Saudade do futuro’, de 1985 –, e foi assim queele conheceu o ‘Tema para Jobim’, que graveiem dueto com Milton Nascimento e que depoiso Zé também interpretou. É um cantor bissexto,mas muito musical.”

 Além de canário eventual, Zé Maurício acumulano extenso currículo a função de apresentador doprograma de entrevistas televisivo “Por acaso”que, a partir de 1991, começou a ser exibido naManchete, passando por Bandeirantes e TVE. Aos 59 anos, o pai de Giulia, Giovana e Luiza,morador do Jardim Botânico, mantém o fôlegoem dia andando de bicicleta pela cidade, fazen-do ginástica e jogando beach tennis toda noitena praia do Leblon. Enquanto isso, comanda ospreparativos de mais uma grandiosa festa – a 27ªversão do Prêmio, agora sob a égide do Bancodo Brasil, que homenageará Luiz Gonzaga Jr., oGonzaguinha. Começará tudo outra vez.

Com Fernanda, Bethânia (homenageada deste ano) e Zéliachline com Gilberto Gil

Fotos: Divulgação

“Zé é um

cantor

bissexto, mas

muito musical”

Joyce

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11out/nov/Dez 2015Carioquice0

mujica

a modinhanão parou de tocar

Definido por Milton Nascimento como “o mais brasileiro dos uruguaios”,

Taiguara, morto em 1996, foi uma das inúmeras vítimas da ditadura:

constam no Arquivo Nacional 143 músicas do autor censuradas pelos

militares. Para celebrar vida e obra do artista, o Instituto Cultural Cravo Albin

(ICCA) promove a exposição “Taiguara 70 Anos de Amor e Resistência”, com

curadoria de Gheisa Paiva, viúva do compositor.

p o r  Kelly nascimento

 A mostra – que vai a té janeiro de 2016 – foiaberta em 14 de novembro, com o show dacantora Imyra, filha de Taiguara. “Eu tinha váriosplanos para comemorar os 70 anos de nascimen-to. Mas essa crise afetou todas as áreas, algunsplanos ficaram para o ano que vem. A exposiçãoé uma vitória importante. Ricardo Cravo Albinsugeriu que a fizéssemos e nos empenhamosmuito para sua concretização. Venho realizandouma série de shows em tributo a meu pai. Planejoconvidar artistas cuja trajetória se cruzou coma dele. Estou conversando com Beth Carvalho,sua companheira de luta. Tinham o mesmo idealpolítico: foi meu pai quem apresentou a ela LuizCarlos Prestes”, recorda Imyra.

O processo não foi menos emocionante paraa viúva Gheisa Paiva. A ela coube a preciosafunção de elaborar um mosaico, a partir de ob-

Fotos: Paulinho M

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13out/nov/Dez 2015Carioquice2

“Imagina o horror: todo

um disco proibido

porque Taiguara era de

esquerda!”

Ricardo Cravo Albin

mujica

 jetos pessoais, discos e jornais, que traduzisse aalma do criador de clássicos como “Hoje”, “Uni-verso no teu corpo”, “Helena, Helena, Helena”e “Teu sonho não acabou”. Ela relata: “Montaressa exposição foi um processo muito denso ecarregado de emoção. Os objetos incluídos vãodesde fotos, composições inéditas, capas dediscos, reportagens, entrevistas relacionadasao seu ativismo político até letras com comen-tários pessoais, reprovadas e carimbadas peloscensores. Destacam-se, também, algumas desuas reflexões sobre a perseguição da ditadurasofrida por ele, suas experiências em viagens

pelo mundo e o momento político em que estavavivendo. É muito difícil sintetizar a vida de umartista como Taiguara, que em seus breves 50anos se entregou com tanta intensidade e paixãoa todas as suas causas.”

Para Gheisa, a mostra constitui mais um resul-tado da luta pela preservação da memória culturalbrasileira, missão que não costuma ser nada fácilnum país sem essa tradição. “Contamos com al-

gumas colaborações importantíssimas – caso denosso embaixador da MPB, Ricardo Cravo Albin,que nos tem dado todo o apoio na divulgação eno resguardo da memória de Taiguara.”

album emblemático

Outra grande vitória remete ao relançamentodo CD Imyra Tayra Ipy-Taiguara, considerado otrabalho mais emblemático do artista, no finalde 2013. Isso foi possível devido à adesão dagravadora Kuarup que, por intermédio de seuproprietário Alcides Ferreira, assinou com osherdeiros a curadoria da obra de Taiguara por

Montar essa

exposição foi umprocesso denso e

carregado de emoção,

segundo a filha Imyra

e a viúva Gheisa

iguara com Roberto Carlos

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15out/nov/Dez 2015Carioquice4

mujica

cinco anos. O CD contou com a participação danata dos músicos brasileiros, entre eles, Herme-to Pascoal, Wagner Tiso, Jaques Morelenbaum,Toninho Horta, Nivaldo Ornelas, Paulo Braga,Mauro Senise, Ubirajara Silva e uma orquestrade 80 instrumentistas.

“Além da mensagem que transmite, é umdisco belíssimo e de altíssima qualidade – afirmaGheisa. Só existiu graças à astúcia de Taiguarapara driblar a repressão. Como qualquer com-posição assinada por ele era automaticamentevetada – os censores nem se davam ao trabalhode analisar a letra –, usou o artifício de reenviarquatro músicas, antes proibidas, assinadas pormim à censura. Prova maior da perseguiçãoimplacável está em que as mesmas quatrocanções, com o mesmo título, passaram semnenhuma restrição. Quando se deram conta do

equívoco, mandaram recolher os LPs das lojas48 horas depois. Junto a isso, proibiram o showde lançamento do LP, que aconteceria nas Ruínasde São Miguel das Missões, no Rio Grande doSul. Ele se sentia completamente cerceado e sema menor condição de exercer a sua ar te. Anos

após, sua filha Imyra, já adulta e inconformadacom a situação, sabendo que o disco haviasido lançado no Japão, criou um site com umacampanha para o repatriamento do álbum pelainternet, alcançando a marca de quase cem milassinaturas, o que culminou no relançamentodo CD no Brasil. Cabe dizer que, recentemente,constatou-se que Taiguara foi o compositor maiscensurado da história do país.”

anos de chumbo

Taiguara começou a chamar a atenção daditadura militar em 1971, por meio das cançõesdo LP “Ilha”. Dois anos depois, teve 11 músicasproibidas e se exilou na Inglaterra, indo em se-guida para França, Tanzânia e Etiópia. Durantea estada em Londres, gravou o disco “Let thechildren hear the music”, cujo lançamento pelagravadora EMI foi vetado por decisão da PolíciaFederal brasileira.

O compositor recorreu ao Conselho Superiorde Censura para tentar colocá-lo na praça em

1982, como recorda Ricardo Cravo Albin: “Fuimuito amigo de Taiguara, de quem guardo lem-branças muito interessantes. A primeira, quandoapresentou àquele Conselho o conjunto de mú-sicas do LP londrino, que havia sido proibido naprimeira instância pelo temível Departamento deCensura e Diversões Públicas (DCDP), terror dosanos 70 e 80. Lembro bem que a defesa dentrodo Conselho foi atribuída a mim. E é claro queescrevi duas a três laudas expressamente paraliberar aquele horror que a primeira instânciahavia imposto a Taiguara. O veto se devia não àsmúsicas em si, mas à questão de que ele era umapessoa notoriamente de esquerda, rotulando-se asi próprio de comunista – o que, evidentemente,aos olhos da censura da época, representava uminsulto ao país. A partir do meu parecer é queo conjunto de canções foi aceito e, finalmente,liberado. Agora, imagina o horror: todo um LPproibido porque Taiguara era de esquerda!”

Daí a importância da preservação de suamemória, tanto para Gheisa quanto para Imyra.“Tenho o sonho de um dia estar numa rodinhade jovens músicos, e que eles não só conheçamcomo saibam tocar Taiguara, que deixou umtrabalho importante”, diz a filha.

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17out/nov/Dez 2015Carioquice6

Dalva de oliveira

Dulcíssima sapoti

Abelim Maria da Cunha, nascida em 1929, era neta de escrava e a décimafilha de um casal paupérrimo, que morava em chão de terra batida nas

cercanias de uma fazenda no distrito fluminense de Conceição de Macabu.

Tinha tudo para não conseguir romper a renitente fronteira da miséria. Mas

sua reviravolta estava escrita nas estrelas: trazia um diamante na garganta,

que cedo começou a ser lapidado no coro da Igreja Batista do bairro carioca

do Estácio, onde a família veio morar, em meados de 1940.

p o r  mônica Sinelli

 A meteórica trajetóri a da adolescente corista Abelim até se tor nar a maior intérpr ete nacionalda década de 50 é narrada em detalhes nabiografia “Ângela Maria – A eterna cantora doBrasil” (Editora Record), do jornalista e produtormusical Rodrigo Faour. Para turbinar as alentadas840 páginas do livro, ele pesquisou nada menosque cinco mil documentos, entre matérias e notaspublicadas na imprensa. Pelo fato de Ângela nãogostar de falar do passado, foi um processo difícilconquistar a confiança dela e do marido, tambémseu empresário, Daniel D’Ângelo, conforme reca-pitula o autor:

 – Das questões delicadas mais emblemáticasnão tive como fugir, até porque saíram maciça-mente notícias envolvendo os dramas com osex-maridos – que a roubavam –, chegando à

capa de jornal sua tentativa de suicídio. Muitoalardeadas na época, pude confirmar todas essashistórias, inclusive com parentes, o que só faz opersonagem ficar mais forte. Porque uma dasgrandes qualidades de Ângela Maria é o poderde superação, nunca vi nada igual. Uma mulherque passou por tudo que ela passou – desde ascondições mais duras da infância –, está quasecega, mas continua aí, aos 86 anos, feliz, can -tando e encantando o público quase todos osdias, é realmente um fenômeno impressionante.

 A bele za da voz eman ada por Abeli m sedestacava entre o coral dos cultos religiososna igreja em que seu pai se tornou pastor. Porvolta de 1947, já sonhando com dias de glória,começou, às escondidas, a se inscrever nos fa-mosos programas de calouros. Primeiro, sob o

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19out/nov/Dez 2015Carioquice8

Dalva de oliveira

pseudônimo de Marina Cunha – logo identificadopela mãe por causa do sobrenome verdadeiro –, substituído então pelo de Ângela (nome deuma sobrinha) Maria. Para total indignação dosrigorosos progenitores evangélicos, que consi-deravam o desejo da filha um pecado mortal. Obiógrafo pontua: “A ignorância era tanta que, aodescobrirem que ela fugia da igreja para cantarno rádio – um ambiente degradante, na cabeçadeles –, se mudaram par a um subúrbio longínquo,só para afastá-la do meio artístico.”

Na época, a garota convicta de que ia ser fa-mosa e ganhar muito dinheiro para dar uma casaaos pais (o que se concretizaria com a comprade uma mansão na Penha) por meio, justamente,do ofício que eles execravam, trabalhava comoinspetora de lâmpadas na General Eletric. Eembevecia a fábrica inteira ao cantar para oscolegas. A ponto de causar queda na produti-vidade de seu departamento e levar o própriochefe a incentivá-la a participar dos programasde rádio populares.

ascensão meteórica

Decidida a realmente seguir a carreira, passoua morar na casa de uma irmã em Bonsucesso,para fugir ao controle dos pais. Em 1948, con-seguiu um emprego como crooner no Dancing Avenida, onde foi descoberta pela Rádio MayrinkVeiga e pela gravadora RCA Victor. Em 1951 gra-vou o primeiro disco e, já no segundo, estourou

os dois lados do vinil, que trazia o bolero “Sabesmentir”, de Othon Russo. No ano seguinte, fezshow ao lado de Dorival Caymmi na boate Casa-blanca. Aos 22 anos, era uma estrela.

“É muito rápida a ascensão de Ângela, quecomeça a empilhar uma música atrás da outranas paradas de sucesso. Em quatro anos, jádesbanca Dalva de Oliveira e Emilinha Borba,as grandes estrelas da época. Foi eleita melhorcantora de 1953, 1954 e 1955 – ano em que“Adeus querido” (Eduardo Patané e FlorianoFaissal) se torna a canção mais tocada no paísinteiro –, Princesa do Rádio de 1953 e Rainha doRádio de 1954. Nesse período, ela era o maiorsalário do rádio brasileiro.”

Rodrigo Faour enfatiza que Ângela Maria foiigualmente uma importante cantora de televisão.

“Talvez por ter essa fome de sair da miséria, debrilhar, ia acumulando um volume de trabalhocompletamente louco. Chegou a protagonizarcinco programas simultâneos: três de rádio(Record de São Paulo e as concorrentes Mayrinke Nacional) e dois de televisão – TV Record e,alternadamente, TV Tupi e TV Rio.” Paralelamenteà façanha, emplacava um sucesso atrás do outro,estampando mais de 250 capas de revistas entreas décadas de 50 e 60. Um fenômeno de mídia,a menina pobre de Conceição de Macabu, a bai-xinha de 1,50m de altura que calçava 34, usavavaselina no cabelo e esmalte Dorothy Gray, estavarica. Entretanto, se a parte financeira corria às milmaravilhas, o mesmo não se podia dizer da vidapessoal. Ângela – que hoje, aos 86 anos, segueem plena forma gravando e fazendo shows, tendo

Em 1948, ela conseguiu

um emprego como crooner

no Dancing Avenida, onde

foi descoberta pela Rádio

Mayrink Veiga e pela

gravadora RCA Victor

Ângela Maria no filme“Carnaval Barra Limpa”, de 1967

Rodrigo Faour: na contramão das biografias chapas-brancas

Thiago Antunes

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Dalva de oliveira

lançado este ano o álbum “Ângela à Vontade emVoz e Violão” – foi, segundo Faour, ludibriadaem sua boa-fé por namorados, empresários efalsos amigos.

Em setembro de 1965, uma tentativa desuicídio ganharia manchete de primeira página. A gloriosa intérpre te de “Babalú” (mambo deMargarita Lecuona, seu carro-chefe) e “Vida debailarina” (Américo Seixas e Dorival Silva) haviacortado o pulso esquerdo com gilete – o quena sua versão virara um fortuito acidente porlâmina quando desmanchava a bainha de umasaia. Como se não bastasse, a imprensa tambémnoticiava que sobre seu companheiro pesava asuspeita de emitir cheques sem fundo. “Boa parteda fortuna de Ângela foi saqueada pelos homens,que pintaram e bordaram, s ujando seu nome poraí. A ponto de chegar a hotel e não conseguir sehospedar.”

Informações de bastidores como essas, a pro-pósito, Ângela (que, após “quatro experiênciasdesastrosas”, na definição do autor, casou-seaos 50 anos com Daniel, de 18, seu empresário emarido até hoje) preferiria que tivessem ficado defora de seu perfil, como ela mesma admite. Faour,porém – agora em seu sexto livro, incluindo asbiografias de Cauby Peixoto e Dolores Duran e a“História sexual da MPB” –, não segue a escoladas narrativas chapas-brancas. “Não gosto defazer trabalhos superficiais, só para incensarartista. Nunca fiz livro de fã. Tenho admiração porquem escrevo, claro, mas sou bastante criterioso.Não passo a mão na cabeça da Ângela. Acho quegravou muita coisa medíocre, descartável, nosanos 60 e 70, levada por produtores de maugosto e inescrupulosos, que só visavam ao lucr o.Lançava, então, dois discos por ano, às vezescom repertório de versões e baladas de quinta

categoria. Por mais que quisesse ser popular,poderia ter feito escolhas melhores, como asmúsicas românticas de Evaldo Gouveia e Jair Amorim. Ela própria j á recon heceu que gravoudemais, e coisas que não eram boas.” Tanto quea requintada intérprete de numerosos clássicos(como “Feitiço da Vila”, de Vadico e Noel Rosa;“Dora”, de Dorival Caymmi; “Carinhoso”; dePixinguinha e João de Barro; “Na Baixa do Sa-pateiro”, de Ary Barroso; “Pra dizer adeus”, deEdu Lobo e Torquato Neto; e “Gente humilde”,de Garoto, Vinicius de Moraes e Chico Buar-

que), grande influência de Elis Regina, acaboucoroada “Rainha da cafonália” por Chacrinhana década de 70.

retrato de uma época

 Ao me rgulhar fundo na longeva carreira de Ângela Maria, o livro faz um recorte em to rnode usos e costumes da sociedade brasileira noséculo 20, radiografando a evolução da indústriacultural, notadamente a fonográfica, que começaa se firmar a partir da década de 50, quandosurgem publicações específicas sobre rádio etelevisão. “A música vai ocupando um espaçomaior nos jornais, e os grandes cantores passama sair com frequência nas capas de revistas, o queaté então era uma coisa pontual. Falo tambémsobre a evolução da imprensa e da crítica musical,o tipo de gosto médio dos jornalistas da época”,reconstitui Faour.

Os relatos têm como pano de fundo o cenário

político do período, envolvendo casos pitorescos.Em 1954, por exemplo, quando ocorre uma ten-tativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschekna Presidência, os artistas e radialistas elabo-raram um documento em defesa da legalidadepara entregar a Café Filho, então no governoprovisório, após a morte de Vargas. E de quem

era a primeira assinatura do documento? Sim, denossa intrépida Ângela. “Não que fosse politizada,mas tinha um prestígio enorme. JK a chamavapara cantar exclusivamente para ele. Foi Getúlioque a apelidou de Sapoti (devido à voz doce a eà cor da fruta). Seu ministro do Trabalho, JoãoGoulart, foi quem a elegeu Rainha do Rádio de1954. A reunião de adesão à candidatura deJânio Quadros, em 1960, aconteceu na casa dela,no Humaitá. Esteve em contato, portanto, comfiguras emblemáticas da República.”

 Ângela participou, também, de mais de 20

filmes. Em tempos que ainda não conheciam aTV via satélite, os “videoclipes” dos cantores sedesenrolavam nas chanchadas exibidas na telagrande. Embora ela realizasse muitas excursõespor outros estados, acabava se concentrandomais no eixo Rio-São Paulo. E o cinema tinha opoder de chegar ao Brasil inteiro, representandoum meio de o povo assistir à atuação de seusartistas favoritos.

O fato é que de lá para cá, transcorridos 65anos, o fidelíssimo fã-clube de Ângela Maria seguefirme e forte, lotando as apresentações de suamajestosa rainha país afora. Trata-se, realmente,de um caso excepcional no contexto de um paísavesso à preservação de sua memória e adeptode modismos e celebridades fabricados em ritmoandywarholiano. “Ângela participou de todos osgrandes programas de variedades de todas asdécadas. É um massacre. Foi considerada peloIbope a cantora mais popular do Brasil até 1978,

quando brilhavam Bethânia e Elis. Ela e Cauby sãoícones, os grandes e únicos sobreviventes da Erado Rádio. Em plena atividade, conseguiram umasobrevida inédita no Brasil, ainda gravando efazendo shows de casa cheia. Souberam mantero glamour e a empatia com a plateia.” Palavrade especialista.

Com Cauby Peixoto, em 1982:obreviventes da Era do Rádio

O autor ao lado de Ângela: “Trata-se de um caso excepcional no contextode um país avesso à preservação de sua memória"

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nonato Buzar

nas asas do Falcão

Ele se define como “um pouco over, um narcisista light, que se ama

profundamente”. Admite que fala demais e que por vezes beira o chato,

“mas não mala”. Confessa, com orgulho, que tem TOC (Transtorno

Obsessivo Compulsivo) “em último grau”. Chega a cultivar a obsessão,

que considera fundamental para alguém ter sucesso como artista. Para

 justificar-se, cita trechos de “Cartas a um jovem poeta”, de Rainer Maria

Rilke. Aos 78 anos, sua memória é prodigiosa.

p o r  João Penido

O nome dele é Frederico Guilherme do RêgoFalcão, o Fred Falcão. Pouco conhecido forado meio musical, provavelmente você já tenhaouvido alguma de suas canções, como “ShirleySexy”, sucesso da trilha da novela “O cafona”(TV Globo), de 1971, na voz de Marília Pêra. A música foi grav ada por nada menos que 150intérpretes, entre os quais Christiane Legrand,que atuava no conjunto vocal Swingle Singers.O pai de Christiane, Michel Legrand, famoso porsuas composições para filmes, também gravouobras de Falcão.

O autor, porém, considera que seu grande hitfoi “Namorada” (“Luz da madrugada/Alvorada/Risonha dimensão da vida/Linda, primaverade um amor/Teu sorriso, acalanto de uma flor/

Namorada, todo o meu amor”), uma das classi-ficadas no Festival Internacional da Canção de1970, defendida pelo então casal Antônio Mar cose Vanusa. “Essa toca até hoje e me rende umdinheirinho”, declara. Maysa, Os Cariocas, LuizGonzaga, Wilson Simonal, Clara Nunes, Beth Car-valho, Leny Andrade e Golden Boys estão entreos que já deixaram sua marca no repertório deFalcão.

Ele diz que o compositor é um eterno desco-nhecido. “As melodias que aparecem nas vozesde outros cantores são anexadas a el es, a menosque você seja antológico, como Caetano, Gil e IvanLins. Eu não sou antológico, não sou conhecido,não dou autógrafo na rua”. No entanto, elepróprio também canta, embora pouco. “Canto

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apenas as músicas fáceis, sabendo que não souessencialmente cantor. Minha voz se aproximada do Tom Jobim”. A limitação não o incomoda.“Nelson Cavaquinho, aquele gênio, era horrívelcantando. E Zé Kéti nem caixa de fósforo tocava.Não sabia uma nota.”

Ele não esconde a mágoa ao ouvir alguémalegar “ah, esta música não é do meu tempo” – segundo di z, uma prov a de ignorânci a. “NoelRosa e Ary Barroso não são ´do meu tempo´,mas eu conhecia suas músicas desde garoto”.O consolo de Falcão é desfrutar de fama comocompositor. “Sou a alegria dos arranjadores;quando a música é boa, eles adoram.” E sem-pre foi autodidata como instrumentista. Aoscinco anos, já tocava gaita, aos dez acordeão

e, depois, violão e piano. Não lê partitura e seconsidera “um cego musical, mas o cego quemais enxerga”.

 Apesar da idade, nem pensa em parar de com-por. “Pretendo ir até os 100, com boa qualidadede vida. Senão, peço a papai do céu para r escindirmeu contrato.” Como prova de vitalidade, lançou,em agosto passado, o CD “Premonições”, com aparticipação da cantora Clarisse Grova e arranjos

de Cristóvão Bastos. Trata-se, explica, de umatrilogia que começou com “Voando na canção”,de 2011, e “Nas asas dos bordões”, de 2014. Ea movimentação não parou por aí. Seu “Sambailuminado” abre o disco gravado por Leny Andra-de, em duo com o guitarrista israelense RonnieBen Hur, que saiu em Nova York no mês passado.“É algo bastante significativo para minha carreirade compositor”, destaca.

nonato Buzar

lara Nunes e o jornalista musical João Victorino Entre os Golden Boys e Paulinho Tapajós, no Festival deMar del Plata (Chile), em 1970

Foto oficial do Festival Internacional da Canção de 1969

Fred é descoberto como modelo pelolendário John Casablancas

Como prova de

vitalidade, lançou

em agosto o CD

“Premonições”, com

a cantora Clarisse

Grova e arranjos de

Cristóvão Bastos

Vida em livro

Graças à fantástica memória de Fred Falcão,sua vida vai virar livro, em fase de finalização porDenílson Monteiro, pesquisador musical e autorde “Dez! Nota Dez! Eu sou Carlos Imperial” e “Abossa do Lobo: Ronaldo Bôscoli”. A pitoresca his-tória de “Vem cá, menina”, composta em 1966 esua primeira música registrada em disco, dá inícioao livro. Para conseguir a façanha, Falcão, entãocom vinte e poucos anos, literalmente invadiu umensaio de “Os cariocas”.

O autor rememora: “Queria gravar com ogrupo – que imitava conjuntos vocais americanos

maravilhosos –, porque os escutava em “Ela écarioca”, de Tom e Vinícius, na rádio JB AM. Então,fiz uma música especialmente para eles. Soubeque ensaiavam no apartamento do maestro elíder Severino Filho, no Leblon, e fui direto paralá. Ao chegar à porta, escutei o som do grupoe titubeei. Fiquei em dúvida se tocava ou não acampainha. Acabei tocando. Demorou um pouco,e pararam o ensaio. Veio o Severino, que abriuCom Pery Ribeiro, Leny Andrade e Miele

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nonato Buzar

a porta de cara feia. Balbuciei que era um com-positor novo e queria mostrar uma música paraeles.” A reação foi péssima, mas Falcão insistiu,como sempre. “Sou tinhoso. Gosto de morder aspessoas. Provavelmente com o propósito de selivrar logo daquele chato, o Jorge Quartarone,percussionista e intérprete, disse para o Severinome deixar tocar. Eles acabaram cantando a músicae prometeram incluí-la no próximo disco.”

O livro abordará também outras facetas deFalcão, que é advogado aposentado e atuoucomo modelo a partir dos 50 anos de idade.“Fui descoberto, casualmente, numa festa blacktie no Copacabana Palace, pelo Johnny Casablan-cas, dono da agência Elite, a melhor do mundo.Ele veio ao Rio para visitar a filial carioca e meperguntou: Você é modelo? Respondi que não, eele: Então vai ser.” Permaneceu na Elite até os 65anos – fazendo papel de pai de adolescente –,

“antes que me escalassem para avô”. O inusitadoconvite para trabalhar como modelo decorreudo fato de Fred ser “boa pinta”. Sua mãe, conta,era belíssima, parecida com Margaret Lindsay,atriz americana que fez sucesso no cinema nasdécadas de 1930 e 1940. “Meu pai também eralindíssimo. Minha mãe me dizia: Você não é tãobonito quanto ele, mas é mais alto e muito maischarmoso.”

Fred não conheceu o progenitor. Tinha acaba-do de nascer quando ele morreu, numa mesa deoperação, aos 23 anos – a mãe, com apenas 19.Essa, afirma, foi “uma tragédia grega ambienta-da em Pernambuco há 78 anos”. Mais de umadécada depois, o restante da família pegou umIta no Norte e veio pro Rio morar, como cantavaCaymmi. Mais precisamente, na Rua ProfessoraEstelita Lins, em Laranjeiras. “Sou do Recife, mascarioca honorário”, declara-se.

Em primeiro plano, Da esquerda para a direita: PauloSérgio Vale, Fred Falcão, Marcos Vale, Erasmo Carlos eNonato Buzar.

A biografia de Fred

Falcão está em fase

de finalização pelo

pesquisador musical

Denílson Monteiro

O compositor e a cantora Clarisse Grova

   M  a   í  r  a   C  a  s  s  e   l

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leica

Do terraço de seu apartamento, no bairro do Flamengo, todas as manhãs, o

fotógrafo Custódio Coimbra acompanha a revoada de fragatas em direçãoao mar. “À tarde, elas retornam para a terra. Viver nesta cidade, tão ligada à

natureza, é um privilégio”, afirma o carioca de Quintino, que se especializou

em retratar a exuberância e as singularidades do Rio de Janeiro. Seu foco

sensível o faz mestre em converter símbolos da metrópole em imagens

únicas, filtradas por uma assinatura inconfundível.

o olho mágico da cidade

p o r  Olga de mello

 A pass agem das fra gata s deix a algu masmarcas no piso de pedra do pátio, mas Custódionão se incomoda. “Elas sobrevoam e vão sujandotudo, com seus dejetos. Faz parte da vida. A gentelimpa depois”, comenta. A serenidade veio como amadurecimento, ele afirma, embora sempretenha procurado manter-se “tranquilo e lúcido”no trabalho. “Fotógrafo precisa de paciência ouperde o momento exato de um bom registro”,explica.

Depois de 35 anos de carreira, CustódioCoimbra continua saindo diariamente do jornalO Globo para coberturas de assuntos variados.Tem em torno de 400 mil fotos arquivadas, rece-beu diversas premiações, entre elas um PrêmioEsso de Contribuição ao Jornalismo, e se referea seu trabalho com modéstia. “Ganhei prêmiosporque fazia parte de uma equipe, não foi nadasozinho. Publiquei livro, montei exposições, masisso não me encanta. O fotojornalismo me abriu

o conhecimento do mundo real. Hoje, entendomelhor a cidade, sua ocupação desordenada e adegradação do meio ambiente”, diz.

Entre Quintino e o Méier, ele cresceu junto a“celebridades”. A irmã mais velha, Cecília, militan-

Custódio com a mulher, Cristina, e os filhos Joana,Júlia, Alexandre e Bárbara

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te política durante a ditadura, está há trinta anosna coordenação do grupo Tortura Nunca Mais,um dos expoentes na luta pela redemocratizaçãodo país. Em criança, Custódio integrava o timede peladeiros da família, capitaneado pelo primomais velho, Edu, que já era reconhecido comoum dos maiores atacantes do América. A seulado, disputando a bola, o irmão caçula de Edu,Zico. “Até eu fazer nove anos, vivíamos em casas

coladas e brincávamos no quintal. Mas o talentoera deles, eu só fazia número”, conta.

Filho temporão do imigrante portuguêsEmygdio, que teve diferentes profissões desdeque chegou ao Brasil, aos 14 anos, Custódio jánasceu com a casa cheia. Além dos cinco filhos,Emygdio e a mulher, Maria, criaram três sobri-nhos. Nos anos 1970, a prisão de Cecília, queabrigara Fernando Gabeira, depois do sequestro

do embaixador americano, levou à detenção deboa parte da família. “Meu pai já tinha morridoe nós morávamos, então, no Méier. Meus irmãose minhas cunhadas queriam dar apoio à minhamãe, procurar advogado para Cecília. De repente,policiais invadiram a casa, à cata de comunistas.Eu, ainda menor de idade, só não fui presoporque minha mãe passou muito mal. Ninguémali participava da resistência ao golpe militar, no

outro dia estavam todos liberados”, lembra.Fora esse susto, Custódio aproveitou uma

 juventude sem grandes incidentes como aluno doColégio Metropolitano, no Méier, e participandode clubes de fotógrafos amadores. O fascínioinicial pelo trabalho laboratorial, observando asimagens surgirem nas tigelas com reveladoresem quartos escuros, tornou-se paixão. “Eu saíaregistrando o que encontrava – carros de polícia,

operários trabalhando nas escavações do metrô.Só fazíamos fotos em preto e branco, materialmais barato. Havia um intercâmbio cultural comoutros clubes amadores em todo o país, atravésdo projeto Pagode Amarelo, que consistia noenvio, entre eles, de fotos, poemas e filmes emsuper-8 dentro de um envelope de papel pardo.Tinha muita gente participando dessas iniciativas,como o ator Jorge Fernando, que estudava noColégio Visconde de Cairu”, rememora.

 A profissionalização demorou. Fez diferentescursos universitários – engenharia, música, belasartes e ciências sociais –, sem concluir nenhum. A fotografia permanecia como atividade de lazere prática artística. “Eu realmente não sabia oque ia fazer. Passei em quatro vestibulares parafaculdades públicas, mas desistia. Ganhei umfestival de música no Metropolitano, tocava violão.Gostava de desenhar, entrei para belas artes.Nessa época, arranjei um emprego de ilustrador

leica

stódio, o menor do clã, rodeado pelo pai Emygdio, a mãe Maria e

rmãos Cecília, Emídio e Delfim

Grande Otelo

“Fotógrafo precisa de paciência

ou perde o momento exato

de um bom registro”

no Jornal do Brasil, criava pequenas vinhetas paraa página de programação do Caderno B. Ingresseino semanário O Repórter e passei por jornaissindicais até ir para o Última Hora, já encarandoa fotografia como profissional”.

Cotidiano de surpresas

De cada veículo em que trabalhou, Custódioguarda impressões marcantes. Uma das maisfortes se refere ao Comício das Diretas Já, em1984. Só o Última Hora publicou a imagem damultidão de um milhão de pessoas, captadapor Custódio do alto de um edifício na AvenidaPresidente Vargas. “Os outros fotógrafos esta-vam concentrados em registrar os políticos quesubiram ao palanque. Fizeram fotos do início damanifestação, no fim da tarde. Mas foi à noite queas pessoas se aglomeraram. Tive paciência e deisorte. Repórter fotográfico precisa ser tranquiloe exercitar sua lucidez em qualquer situação, ou

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perde o momento em que as coisas acontecem”,acredita.

Em 1985, já no Jornal do Brasil, foi o únicofotógrafo a ter imagens do velório de TancredoNeves em Belo Horizonte, escapando de serpisoteado num tumulto que acabou com setemortos e quase 300 feridos. “O corpo veio deSão Paulo para o Palácio da Liberdade. Começoua juntar gente na praça, até que a grade desabou.Consegui ajudar algumas pessoas a se levantar,fotografando o tempo todo. O material saiu em

sete mil jornais no mundo inteiro. Recebi uma car-ta do diretor da Associated Press, que distribuiu afoto, dizendo que em cada dez publicações, seteganharam a primeira página”.

 Aos 61 anos, com quatro filhos – Joana, Júlia e Alexandre, do primeiro casamento, e Bárbara, dosegundo – e três netos, Custódio ainda não fazplanos para a aposentadoria. “É bom entrar na

redação e só então descobrir o que se vai fazer.Todo dia tenho surpresas.” Os projetos para2016 incluem a publicação de um livro sobre aBaía de Guanabara, com textos de sua mulher,a jornalista Cristina Chacel, mãe da caçula, Bár-bara – cujo nascimento não pôde acompanhar,pois estava na Itália, cobrindo a Copa do Mundo.

Sem lamentar os ossos do ofício, ele se en-tusiasma com a disputa dos Jogos Olímpicos noRio. “Esporte sempre rende boas imagens. Desdeamador, eu ia ao Maracanã fotograf ar – e não só

o Zico”, recorda Custódio, que não teme o fim dofotojornalismo profissional. “Este é um momentode transformações. Tudo evolui. Há muito amadorfazendo fotos, mas a sensibilidade e a experiênciado fotógrafo ainda contam. Hoje, tenho trabalhosnegociados por galerias de arte, mas continuoatrás da notícia, daquele instante perfeito querelata uma história. Isso nunca vai acabar.”

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ensai o f ot ográf i co de

custódio coimbra

Fotografias a óleo

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O local é simples e o espaço, pequeno. Como há poucas mesinhas

espalhadas na calçada em frente, os frequentadores lotam o botequimbebendo chope e saboreando seus petiscos em pé. O Pavão Azul, em

Copacabana, tem como carro-chefe as pataniscas, um bolinho à base apenas

de bacalhau desfiado, sem batata. Mas serve também comida caseira. Tudo

preparado artesanalmente, na hora, sem lugar para congelados.

Estremadura

sotaque lusitano

p o r  João Penido

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Estremadura

4

O boteco-restaurante fica na Rua Hilário deGouveia, em frente a uma Delegacia de Polícia,o que garante a tranquilidade dos fregueses.Existe desde 1957, mas somente em 2001começou a ser administrado pelas irmãs Vera eBete Afonso, portuguesas com certeza. As duasvieram para o Rio quando tinham quatro e doisanos, respectivamente. São cariocas de coraçãohá seis décadas. Desde meninas, ajudavam o

pai em seu comércio. Primeiro, em uma loja deroupas, depois, em um bar-mercearia que vendiacomidas, salgados e doces.

No Pavão Azul, elas se revezam na supervisãodo preparo dos alimentos e no atendimento aosclientes, de meio-dia à meia-noite. Não é mole. A casa abre de domingo a domingo. Bete saidiariamente do Recreio, onde mora. Chega porvolta das 19 horas – às vezes, leva mais de duas

no trânsito, só na ida. Vera vem mais cedo e maisrápido, de Laranjeiras.

Foram as irmãs que introduziram as pata-niscas no cardápio. A iguaria, que em Portugalconsiste num tipo de omelete, ganhou aqui aforma de um delicioso bolinho, que derrete naboca. Graças às pataniscas, fritas sempre na horae à vista do freguês, o Pavão começou a abrir suaexuberante cauda. Em pouco tempo, foi notado

por Juarez Becoza, jornalista de gastronomia doGlobo que assina a coluna Pé Sujo (sem descuidardos limpos), e passou a ficar conhecido entre oscariocas.

O próprio colunista escreveu recentemente:“Dez anos atrás, este hoje clássico da Zona Sulpassava por momentos de desânimo. Mas o po-der de suas pataniscas não o deixou esmorecer.Hoje, famoso de doer, o bar (sic) já virou dois.

 Abriu o “Pavãozinh o”, do outro lado da r ua, eé unanimidade para quem gosta de comer ebeber informalmente, muitas vez de pé, semfrescuras.”

De fato, o “Pavão Azul 2”, aberto em 2009e carinhosamente chamado de “Pavãozinho”pelos frequentadores, marcou o sucesso da casa.Colado à Delegacia e com maior espaço, ajusta-semelhor aos que preferem comer sentados. Maso balcão de frente para a rua fica, igualmente,apinhado de gente que adora curtir o local deolho no movimento. “Nas quintas e sextas, opessoal gosta mesmo é de beber em pé”, contaBete. O “Pavãozinho”, ao contrário da estruturaprincipal, fecha às segundas-feiras.

Em setembro passado, a casa-mãe gerou umnovo filhote, dessa vez ocupando a área de um

restaurante vizinho, na esquina da Avenida NossaSenhora de Copacabana. Porém, não haverá maisexpansões, diz Vera, soltando um compreensívele sonoro “chega!”. As irmãs pretendem continuartocando o negócio “enquanto a gente puder, e aspernas e a cabeça aguentarem”.

 A frequência, contam as prop rietárias, é bemfamiliar. Senhoras e senhores vêm com os netospara almoçar ou comemorar aniversários. No fim

da tarde, predomina o público de meia-idade, quechega para a happy hour. À noite, predominamos mais jovens. Naturalmente, aparecem tambémturistas que se hospedam nos inúmeros hotéis ehostels do bairro.

 A maioria dos fregueses – entre 60% e 70% – é composta por clientes habituais, que as irmãschamam pelo nome. Durante a entrevista, umamoça que voltava da praia explicou que deixar a acarteira em casa e pediu para pagar a conta nodia seguinte. Como era conhecida, Bete e Veraconcordaram. Elas ressaltam que a camaradagem

decorre de quase 50 anos de convivência nocomércio de Copacabana.

 A cozinha pequena – e aparente – não permi-te grandes diversificações no cardápio, que poucomuda. Mesmo assim, saem refeições variadasna hora do almoço, assinala Bete. Sexta-feira édia, sobretudo, de feijoada; sábado e domingo,reinam os risotos de camarão ou polvo e a rabadacom agrião.

Entre os salgados, destacam-se, após aspataniscas, os pastéis de camarão, os croquetes“do alemão”, comprados fora, e o sanduíche decarne assada com queijo minas. No quesito doces,imperam os portugueses – pastel de Belém, pas-tel de Santa Clara e toucinho do céu. Para beber,além do chope da Brahma, cervejas, caipirinhase caipiroscas, cachaças mineiras, vinhos chilenose portugueses e uísques.

Os preços camaradas explicam parte dosucesso do Pavão Azul. As irmãs dizem que pre-

ferem ganhar na quantidade e que sofrem parareajustar quaisquer vinte centavos no preço dosquitutes. Além disso, claro, há a excelência dacomida, a simpatia no atendimento e a segurançapropiciada pela proximidade da Delegacia. Soma-dos, esses fatores já renderam vários prêmiosao bar-restaurante, inclusive o tricampeonatono Rio Show Gastronomia e a cotação máximano Rio Botequim.

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alexandria

Quem passa apressado pelo campo de Santana em direção à caótica

Central do Brasil pode não reparar no prédio imponente, em estilo

neoclássico, erguido na Praça da República. Mas é lá, no Arquivo Nacional,

que estão relíquias da história brasileira, como a Lei Áurea, a legislação

sobre a abertura dos Portos, Tratados de Paz e Amizade e todos os originais

das Constituições do país, desde a de 1824.

Baú de joias

p o r  Kelly nascimento

Nascida “Arquivo do Império”, em 1838, a ins-tituição, rebatizada de “Arquivo Nacional”, só viriaa ocupar o prédio atual, que até então sediava aCasa da Moeda, em 1985. Suas funções, porém,sempre foram mantidas à risca. “Nossa missãoé promover o recolhimento dos documentos deguarda permanente para tratamento técnico, pre-servação e divulgação, garantindo pleno acesso àinformação em apoio às decisões governamentaisde caráter político-administrativo e ao cidadão nadefesa de seus direitos, incentivando a produçãode conhecimento científico e cultural. Tambémsomos responsáveis pelo acompanhamento eimplementação da política nacional de arquivos”,lista Jaime Antunes da Silva, diretor-geral do Arquivo Nacional.

 Além da sede no Rio, a instituição tambémconta com um braço em Brasília. Juntas, as uni-

dades abrigam mais de 55 km de documentostextuais, cerca de 1,74 milhão de fotografias enegativos, 200 álbuns fotográficos, 15 mil diapo-sitivos, quatro mil caricaturas e charges, três milcartazes, mil cartões postais, 300 desenhos, 300gravuras e 20 mil ilustrações, além de mapas,filmes, registros sonoros e uma coleção de livrosraros que supera oito mil títulos.

Não é à toa que Jaime gosta de lembrar opapel desempenhado na preservação da me-mória do país: “O Arquivo Nacional representaa principal instituição arquivística pública doBrasil. E, como gestora do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), tem se de stacado em suasCâmaras Técnicas e Setoriais. Traça padrões enormas para orientação de órgãos e entidadesdo poder público, visando à implementação deboas práticas de gestão de documentos físicos

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alexandria

e digitais, de tratamento da informação e dedifusão e acesso aos documentos que integramo patrimônio documental do Brasil”.

Projetos e premiação

Nesse sentido, o diretor-geral cita as principaisatividades desenvolvidas em 2015: “Iniciamosdois projetos com recursos do Banco Nacionalde Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES):‘Informação sob controle: ações de preservação eacesso a acervos de memória política e social sobguarda do Arquivo Nacional’ e o projeto ‘Entradade passageiros no Porto do Rio de Janeiro – Con-trolar para disponibilizar’, além de uma parceriacom a Universidade Estadual de Campinas (Uni-camp): ‘Organização dos processos referentes à

série Apelação Cível do fundo Relação do Rio deJaneiro’. Essas iniciativas atraíram, até outubro,um público de 6.835 pessoas interessadas emconsultar o acervo e/ou os instrumentos depesquisa.” O canal majoritário de contato com apopulação é o site www.arquivonacional.gov.br,que registrou quase um milhão de acessos noperíodo. “Ainda recebemos visitas técnicas deestudantes universitários e grupos escolares, as-sim como cidadãos e pesquisadores interessadosem conhecer o prédio e as atividades técnicas

aqui realizadas, somando 954 visitantes de 45instituições”, pontua Jaime.

Outro feito marcante foi o recebimento doGrande Prêmio do Cinema Brasileiro, o maisimportante do setor, na categoria “Especial dePreservação 2015”, pelas atividades de gestão,

recolhimento, tratamento técnico, preservação edivulgação do segundo maior acervo documentalde imagens em movimento do Brasil. São cerca de35 mil títulos, em aproximadamente 60 mil rolosde filmes, e mais de cinco mil fitas videomagnéti-cas de diversos formatos. O acervo é compostopor cinejornais, documentários, obras de ficção,peças publicitárias, gravações de eventos, vinhe-tas, produções institucionais, registros familiares

“Recebemos visitas técnicas

de estudantes universitários e

grupos escolares, assim como

cidadãos e pesquisadores

interessados em conhecer o

prédio e as atividades técnicas

aqui realizadas”

Jaime Antunes da Silva, diretor-geral do

Arquivo Nacional

e cortes de filmes censurados durante a ditaduramilitar (1964-1985). “Esse prêmio significa oreconhecimento, pela classe cinematográfica, dotrabalho que o Arquivo Nacional vem desenvol-vendo no sentido da preservação e do acessoaos documentos audiovisuais produzidos pelo

Estado brasileiro. Além disso, desde 2002, temospromovido encontros, seminários e workshops,discutindo as questões pertinentes ao tema”,destaca Jaime.

novidades

 A atualização das coleções do Arquivo Na-cional é constante. Em julho, por exemplo, ainstituição recebeu o acervo da Comissão Na-

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alexandria

cional da Verdade. O material reúne milhares dedocumentos, testemunhos de vítimas e familiares,depoimentos de agentes da repressão política,47 mil fotografias, vídeos de audiências públicas,diligências e depoimentos, laudos periciais, livros,entre outros. Os itens estão em fase de catalo-gação e tratamento técnico. Na sequência, serãodisponibilizados ao público.

Segundo Jaime, a equipe técnica do órgão semantém em permanente aperfeiçoamento, parti-cipando de seminários nacionais e internacionais,além de organizar treinamentos para outrasinstituições. No tocante a 2016, existe um pro jeto

 já elaborado, em fase de captação de r ecursos,objetivando a construção de um edifício voltadoexclusivamente à preservação por longo prazo dedocumentos audiovisuais, iconográficos e sono-ros, com parâmetros ambientais utilizados pelasprincipais congêneres do mundo. “O ArquivoNacional já possui uma sala-cofre com todos osrequisitos de segurança destinados à preserva-ção digital. E, no próximo ano, iniciaremos, pormeio de parcerias, discussões técnicas que possi-bilitem o estabelecimento de recomendação paraa preservação por longo prazo de documentosaudiovisuais em formatos digitais.”

O projeto de um

edifício voltado

exclusivamente à

preservação por longo

prazo de documentos

audiovisuais,

iconográficos e

sonoros está em

fase de captação

de recursos

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Don Juan de marco

Elegantes, sedutores, gentis. Atraentes como regra geral, bonitos nemsempre. Cariocas por nascimento ou adoção, alguns homens fizeram

da cidade o cenário perfeito para encantar suas musas. Há nem tanto

tempo assim, sabiam chegar de mansinho, como quem pisa em cristais,

arrebatando corações femininos por seus gestos e palavras finamente

embalados. E, assim, se tornaram figuras inesquecíveis no envolvente

território da conquista.

apetite felino

p o r  Olga de mello

Entretanto, são cavalheiros em extinção. “Essetipo de homem, essa geração de galanteadoresficou para trás. Acabou na década de 80, juntocom o colunismo social”, atesta Anna Ramalho,ela própria uma ex-colunista que por muito tempoacompanhou as peripécias e aventuras românti-cas no Rio de Janeiro. A noite se esvaziou. Quemsaía para dançar no Regine’s e no Hippopotamusse recolheu nos anos 90, por medo de seques-tros, adotando um comportamento mais discreto,distante dos holofotes. As celebridades ocuparamo espaço deles nos noticiários”, observa Anna.

Na era da informação imediata, o fim decasamentos é divulgado diretamente pelos ex--cônjuges nas redes sociais. Os novos romancesde interesse do público se restringem a artistasou quem aparece em televisão. “É outra época,sem tanto charme. Os costumes mudaram, não

existe mais corte. Músicas falam explicitamente desexo, a intimidade é exposta por quem faz de tudopara virar notícia. O glamour ficou no passado, foiassassinado pelas redes sociais”, diz a jornalista.

Mas nada como recordar os ares de antanho.E, nessa viagem no túnel do tempo, a figura maislembrada entre os maiores namoradores do Rio deJaneiro é sempre a do playboy Jorginho Guinle. Rico,culto, amante de jazz, ele, que se afirmava socialista, jamais trabalhou durante toda a vida. Sobrevivia deuma vultosa pensão do pai e declarava que namorarestrelas de cinema lhe abria as por tas de qualquerambiente no mundo inteiro. Um dos fundadores dofamoso Clube dos Cafajestes, grupo que misturavaoutros playboys, como Baby Pignatari, a cerca detrinta homens “bem-nascidos”, entre eles o jogadorde futebol Heleno de Freitas, o jornalista IbrahimSued e o cinegrafista Carlinhos Niemeyer, nos anos

Jorge Guinle com Kim Novak

A cantora Maysa e Bôscoli

“Jorginho Guinle encantava

a todos por sua gentileza e

simpatia. Conseguia fazer

qualquer pessoa se sentir

prestigiada, importante

por estar recebendo suas

atenções. E as mulheres caíam

por seu charme”

Marco Rodrigues, fotógrafo

40/50, Jorginho participava das festas promovidaspela turma irreverente, sempre em busca de foliae belas moças.

“Ele encantava a todos por sua gentileza esimpatia. Conseguia fazer qualquer pessoa sesentir prestigiada, importante por estar receben-do suas atenções. E as mulheres caíam por seucharme”, conta o fotógrafo Marco Rodrigues, queconviveu por quase vinte anos com Jorginho: era

o companheiro do filho mais velho do playboy, opintor Jorge Guinle Filho. Apesar da predileção porestrelas de cinema – teve envolvimentos com JayneMansfield, Hedy Lamarr, Romy Schneider e até umbreve caso com Marilyn Monroe – Jorginho nuncase casou (oficialmente) com alguma artista. Dolo-res Sherwood, Ionita Salles Pinto e Maria Helenalhe deram três filhos – além de Jorge, que mor reuem 1987, Georgina e Gabriel, um com cada mulher.

Os astros de primeira grandeza de Hollywoodvinham ao Rio a convite de Jorginho, que teve Er-rol Flynn como padrinho de núpcias, nos EstadosUnidos, com Dolores. Durante dez anos, a natahollywoodiana circulou na cidade, hospedada noCopacabana Palace, o hotel de seu tio, OctávioGuinle. A partir das iniciativas de Jorginho Guinle,o carnaval carioca passou a atrair a atenção daimprensa mundial. Baixinho, com pouco mais que1,60m, tinha por princípio jamais dar em cima dasmulheres dos amigos. Mas revelou seus amoresnuma autobiografia, detalhando as paixões porRita Hayworth e Kim Novak.

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Don Juan de marco

“Ele sabia brincar e dominava os jogos de sedu-

ção. Teve também longos relacionamentos com asatrizes Tânia Caldas e Tamara Taxman. Era filhinhode papai e gastou todo o dinheiro que recebeu deherança. Muito divertido, dizia que havia calculadomal seu tempo de vida. Pensava que morreria aos 75anos, mas chegou aos 88. E saiu do hospital diretopara o Copacabana Palace, onde morreu sem pagara conta”, lembra Marco Rodrigues.

homens que amavam as mulheres

É, de fato, imponente a lista de namoradoresinveterados que arrebataram os corações femi-ninos numa época de ouro do Rio. Dos tambémfalecidos Tarso de Castro, Ronaldo Bôscoli (porseus braços, só de cantoras, passaram Maysa,Nara Leão e Elis Regina), Darcy Ribeiro e Mar-cos Paulo (ex-Malu Mader, Vera Fisher, RenataSorrah, Lúcia Veríssimo e Flávia Alessandra) atéos vivíssimos Paulo Marinho (que namorou OdileRubirosa e Maitê Proença) e Paulo Fernando

Marcondes Ferraz, cuja discrição transformaantigas mulheres em atuais amigas – a ponto deRegina Marcondes Ferraz, por exemplo, continuarusando o sobrenome do presidente da Federaçãodas Câmaras de Comércio Exterior.

Na conta de “cachos” de Tarso, figuram bel -dades como Leila Diniz, Tônia Carrero, NormaBenguell, Duda Cavalcante, Sílvia Amélia, NoelzaGuimarães, Danuza Leão, Ana Maria Magalhães,

Marisa Urban e Regina Rosemburgo. E, entre

todas, sobressai a conquista da estonteante Can-dice Bergen, rendida a ele em variadas versões,nenhuma até hoje comprovada como a definitiva.Há os que afirmam tê-lo visto abordar a atriznorte-americana no Antônio´s do Leblon (antoló-gico reduto dos boêmios da Zona Sul), com floresnas mãos e meia dúzia de palavras em inglês naponta da língua – o que haveria sido o suficientepara arrebatar a estrela. Outros afirmam queBergen até se interessou, sim, pelo jornalista,mas que só se apaixonou perdidamente ao vera foto do latin lover ao lado do guerrilheiro CheGuevara, durante Conferência das Organizaçõesdos Estados Americanos (OEA) em Punta DelLeste, no ano de 1961.

E, como prova de que reis não perdem amajestade, a exposição “Antônio Guerreiro – Ohomem que amava as mulheres”, montada em julho na Cidade Maravilho sa, espelhou bem aaura de glamour que envolvia seu autor, um dos

homens mais invejados da década de 80. Não erapara menos: em seu estúdio fotográfico posavamas mais deslumbrantes atrizes, modelos e perso-nagens da vida cultural do Rio. Entre elas, VeraFisher, Tônia Carrero, Odete Lara, Zezé Motta,Marina Montini (musa do pintor Di Cavalcanti),Dina Sfat e as estrelíssimas Sandra Bréa e SôniaBraga, que não resistiram ao cortejo do hojesenhor de 68 anos.

Eterno enquanto durou

Mas, sem sombra de dúvida, os galanteiosmais cantados no século 20 foram concebidos porum carioca que acreditava piamente na instituiçãodo casamento. Marcus Vinícius da Cruz de MeloMoraes, poeta e ex-diplomata, estava longe dospadrões de beleza – que considerava fundamen-tal nas mulheres. Foi sentado no Bar Veloso, naRua Montenegro, em Ipanema, que ele, ao ladodo compositor Tom Jobim, observava a jovem nor-malista Heloísa Pinheiro, inspiradora dos versos“olha que coisa mais linda, mais cheia de graça”.

Helô ficou famosa como a “Garota de Ipanema”sem sucumbir à lábia de Vinícius de Moraes, quese casou nove vezes e teve cinco filhos.

 Ar reb atad o pel as pai xões, entr ega va- seàs mulheres, montava casa, constituía família.Para Carlos Drummond de Andrade, foi o únicopoeta verdadeiro, por ousar viver “a poesia, emestado natural”. A Tom Jobim, que perguntouquantas vezes pretendia ainda se casar, Viníciusrespondeu: “Quantas forem necessárias”. Agra-dar as companheiras era parte de seu dia a dia.Deixava flores perto da xícara de café, bilhetesromânticos e poemas para serem encontradospor toda a casa. Com a primeira mulher, Tati deMoraes, vivenciou o mais longo dos matrimô-nios – 12 anos –, que gerou os filhos Suzana ePedro. Paralelamente, envolveu-se com ReginaPederneiras, mas acabou voltando para Tati. Aolado da terceira companheira, Lila Bôscoli, teveas filhas Georgiana e Luciana. A quarta mulher,

Maria Lúcia Proença, deixou o marido por Vinícius,que a trocou por Nelita de Abreu, uma jovemde 18 anos – a união durou de 1963 a 1969.Seguiu-se um breve e tumultuado relacionamentocom Cristina Gurjão, mãe de Maria, a filha maismoça do poeta. Ainda em 1969, conheceu GesseGessy, com quem foi morar na Bahia até se se-pararem, em 1976. Daí até 1978, esteve junto aargentina Marta Regina Santamaria. Sua última

mulher foi Gilda Mattoso, 39 anos mais nova queo marido, morto em 1980. Para ela, escreveu:“Nos abismos do infinito / Uma estrela apareceu/ E da terra ouviu-se um grito: Gilda, Gilda / Eraeu maravilhado / Ante a sua aparição / Que aospoucos fui levado / Nos véus de um bailado /Pela imensidão / Aos caprichos de seu rastro /Como um pobre astro/ Morto de paixão / Gilda,Gilda / Gilda e eu.

 Anna Rama lho, que conheceu Viníci us aoentrevistá-lo nos anos 70, rememora: “Ele nãofoi inconveniente em nenhum momento. Só disseque eu lembrava muito uma vizinha dele. Desco-bri que tinha morado ao lado de minha mãe na juventude. Foi afetuoso e simpático. Essa era uma

característica desses grandes românticos, comoVinícius, Jorginho, Darcy Ribeiro. Todos homenscultos, interessantes, charmosos, que gostavamde mulheres pela companhia delas, não para segabar das conquistas. Nem sempre eram bonitos,mas tinham um olhar atencioso que hipnotizavaas mulheres”, afirma a jornalista, evocando assaudades deixadas por um Rio em tudo maiscortesão e sedutor.

Jorginho com Romy Schnider

Ronaldo Bôscoli e Nara Leão Tarso de Castro e Candice Bergen

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ra Passos, com a monumentalidade da Avenida RioBranco, e dos primeiros arranha-céus do continente.O perfil metropolitano continuou, no que a abertura

da Presidente Vargas ampliou-lhe a perspectiva,com a preservação cuidadosa, ao mesmo tempo,do nicho único do barroco das igrejas coloniais emtorno desse Centro, assentado dentro da audáciados desmontes, começados com o abate do Morrodo Castelo.

Não há, hoje, metrópole que, no seu alastrar,conviva com a praia como o Rio de Janeiro. Refletesua arquitetura coleante, que, a partir de Copaca-bana, debruça-se sobre o mar, ignora as praças e

impõe-se à sucessão das montanhas, guardadas nocontraponto da pedra com a gula do verde, invasor eintocado. A cidade foge toda à declinatória do tecidourbano das dársenas ou dos tabuleiros de Buenos

 Aires ou São Paulo. A peregrinação litorânea, poroutro lado, envolvendo lagoas e restingas, desdo-bra, mas não deixa de se remeter, sempre, a seucentro histórico, assentado no marco monumentaldo Paço, e do seu Largo, deixado, de sempre, comoum espaço canônico para o referencial, no imaginário

das instituições, no Império. Acompanham-no, nosouteiros circundantes, as Igrejas de São Bento eSanto Antônio.

Esse passado de uma figuração social, sempresuperconcentrada, seria a raiz da repetição con-tínua das procissões, das batas das irmandades,numa cultura da cerimônia que se dissociava dafesta. E, nesta, no que vê surgirem o préstito e adisciplina inédita do Carnaval e do desfile, deixadoao mais implacável ritual minudente e hierárquico

das escolas de samba. Nessa mesma interpenetra-ção permanente, não tem, o Rio, o feudalismo dobairro, mas a cultura da deambulação, mais do quedas vizinhanças clássicas. A força da socializaçãoda praia cria uma presença do lazer, destacadoda moradia ou da esquina. Nela surge um novoencontro, no que é o botequim carioca, nessa mi-litância da convivência para além da facilidade ouda preguiça da calçada mais próxima.

EmBaIXadOr do rio

 A cidade surge com o equívoco de seu nome,entendido como a foz inequívoca de um rio porten-toso. Formou-se em diversos implantes, na contendaentre a França Equinocial e a empreitada de Estáciode Sá. Foi ungida, logo, megalópole, na sequência deSalvador, em todo o desenho urbano do princípio doséculo XX, desdobrado no planejamento da Prefeitu-

Candido MendesMembro do Conselho das Nações Unidas para a Alian-

ça das Civilizações, da Academia Brasileira de Letras

e da Comissão Brasileira Justiça e Paz

yin e yang são

cariocas da gema