Candomblé. Fábio Lima

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Candombl: na encruzilhada da tradio e da modernidade.Fbio Lima.1 Irei tratar de forma esquemtica algumas consideraes sobre os candombls da Bahia, os mais variados candombls, aqueles chamados de casas tradicionais e os que esto fora desse eixo, dialogando com a categoria que manipulada pelo agentes religiosos que a categoria de tradio. A noo de campo a que mais contempla o estudo das religies afro-brasileiras, particularmente, no caso de Salvador, o candombl. O campo compreendido por Bourdieu como o espao social das relaes de fora mais ou menos desiguais, em que os protagonistas, agentes dotados de um domnio prtico do sistema, de esquemas de ao e de interpretao, se situam com posies bem demarcadas, levando consigo, em todo tempo e lugar, sua posio, presente e passada, na estrutura social sob a forma de habitus. Os agentes dos candombls travam uma luta pela distribuio de um capital especfico acumulado em lutas anteriores a formao desse campo minado por dissenses, que acaba por delinear como uma marca o campo cientifico do estudo de religies afrobrasileiras. O campo o espao do jogo e o habitus o social inscrito no corpo, no indivduo biolgico, permitindo a produo, reproduo e difuso de uma infinidade de atos de jogo que esto inscritos no jogo em estado de possibilidades e exigncias objetivas (Bourdieu; 1990:82). O habitus um conhecimento adquirido, consistindo em um sistema de disposies durveis e transmissveis, predisposto a funcionar como princpios geradores e organizadores de prticas e representaes de um estilo distintivo de vida, funcionado, a cada momento, "como uma matriz das percepes, apreciaes e aes, e torna possvel a realizao de tarefas infinitamente diferenciadas, graas s transferncias analgicas de esquemas, e s correes incessantes dos resultados obtidos" (Pinto; 2000: 65), sem que tenha por princpio a busca consciente do objetivo. O campo religioso organizado em um sistema de relaes entre os detentores do monoplio da gesto dos bens sagrados e os leigos, e se constitui pelas posies adquiridas entre o corpo de especialistas e fes, em lutas anteriores para a prpria consolidao do1

Mestre em Antropologia, Professor da UNEB

campo, tendo por excelncia um espao em que tem lugar um luta concorrencial pelo controle dos bens simblicos. A religio funciona como um princpio de estruturao que constri a experincia, ao mesmo tempo em que a expressa, pelo efeito da consagrao ou legitimao. A religio submete o sistema de disposies em relao ao mundo natural e ao mundo social a uma mudana na natureza em especial convertendo o ethos enquanto sistema de esquemas implcitos de ao e de apreciao em tica enquanto um conjunto sistematizado e racionalizado de normas explcitas. Por todas razes, a religio est predisposta a assumir a funo ideolgica, funo prtica e poltica de absolutizao do relativo e de legitimitimao do arbitrrio (1982:46). Neste sentido, a religio consiste no reforo do material e do simblico possvel de ser acionada por um grupo ou uma classe, garantindo legitimidade a tudo que define este grupo ou est classe. Logo, a religio permite a legitimao de todas as propriedades objetivas e subjetivas de um estilo de vida singular, por representar a religio a inculo de um habitus. A constituio do campo das religies afro- brasileiras. No campo das religies afro-brasileiras, o candombl se constitui em uma das vertentes mais destacadas na rea urbana do Brasil. Organizado em um sistema simblico, que funciona como um princpio de estruturao de uma experincia de ao intra-mudana e produz um ethos enquanto sistema de esquemas implcitos de ao e de apreciao (ibd; 146). Com base em Weber, Bourdieu argumenta que o processo de racionalizao religiosa envolve a transformao do ethos implcito em tica - conjunto sistemtico e racional de normas explicitas. A ao pedaggica do sistema de crena afro-brasileiro norteada pela tradio oral de transmisso e preservao dos preceitos sagrados. Entretanto, tambm podemos observar no candombl um trabalho crescente de racionalizao desenvolvido por uma camada de intelectuais interna prpria religio que orienta todo o pensamento do grupo. Constituindo cada vez mais para a transformao do ethos em tica, no sentido que Weber d ao termo. O campo religioso tem por funo especfica satisfazer um tipo particular de interesse, isto , o interesse religioso que leva os leigos a esperar de certas categorias de

agentes mediadores na experincia religiosa, que realizem aes mgicas ou religiosas, aes, fundamentalmente, mundanas e prticas, conduzidas com a finalidade de que tudo corra bem para o corpo de fieis, que aderem a um sistema de crenas e a um estilo de vida particular. As religies afro-brasileiras, em particular os candombls, se constituram como um empreendimento de diversos agentes religiosos, que resultou na formao de um corpo de sacerdotes responsveis pela sistematizao de um ethos religioso calcado nas diversas tradies africanas. Esse corpo de especialistas detentores de um capital religioso, com um domnio prtico dos esquemas de pensamento e normas e conhecimentos est incumbido de reproduzir o capital religioso. Os pais e mes-de-santo dos terreiros de candombl so reconhecidos como detentores exclusivos de um monoplio na gesto dos bens sagrados. Detentores de um domnio prtico de um conjunto de esquemas de pensamento, somados a presena de traos africanos, em maior ou menor intensidade, passaram esses traos diacrticos a funcionar como elementos definidores de suas legitimidades e competncias, necessrios produo e reproduo de um corpo deliberadamente organizado de conhecimentos esotricos e secretos. Suas autoridades so inquestionveis no mbito mtico-ritual, seus perfis de liderana so desenvolvidos na dinmica concreta dos seus terreiros, pela sua capacidade de manter a estabilidade, controlar os conflitos, de garantir o recrutamento contnuo e evitar a desero dos membros e da clientela, processo que consolida e a prova sua legitimidade pela competncia em administrar os bens sagrados. o pai ou me-de-santo que os fieis vem como a ncora ou o porto seguro contra os perigos do universo das aflies. Os seus sucessos e fracassos vo lhes conferindo uma identidade, atribuindo uma identidade aos terreiros que administram, enquanto uma entidade reconhecida no campo religioso, que revela o resultado de suas decises e aes, mediatizados pela rede de relaes e circunstncias que poucas vezes chegaro a controlar completamente. Desta maneira, o sacerdote e o terreiro se identificam, pois os destino de ambos esto interligados (Bruman & Martinez;1991:150). A constituio do campo religioso afro-brasileiro implica um primeiro corte entre os detentores do controle dos bens religiosos- iyalorixs e babalorixs e aqueles que lhes so subordinados: os abi, iaw, egbomi, ekedes e ogs e a clientela. Segundo Weber (1991),

os sacerdotes sistematizam o contedo da promessa proftica ou das tradies sagradas no sentido da estruturao racional-causustica e da adaptao destas aos costumes mentais ao estilo de vida de sua prpria camada e daquela dos leigos por eles dominados (1991:315), processo este que marcado por uma dinmica de poder envolvendo alianas e negociaes e por vezes conflitos abertos. Os responsveis pela formao e consolidao das roas foram uma camada religiosa, liderada pelas Iys (mes, zeladoras) e Babs (pais) auxiliados por uma confraria hierarquizada, constituindo um corpo de especialistas socialmente reconhecidos entre os escravos e libertos, nos meados do sculo XIX. Esses indivduos se destacaram pelo seu carisma e pela posio que alguns deles ocupavam na estrutura religiosa na frica; no Brasil passaram a ser reconhecidos como detentores exclusivos de uma competncia, necessria a produo/reproduo e difuso do sistema de crena africano, transformado em afro-brasileiro O campo das religies afro-brasileiras, em particular aquele conformado pelos terreiros de candombl foi organizado, inicialmente, de forma cooperativista, tecendo alianas entre as etnias, que muitas vezes eram rivais historicamente no continente africano, existindo no interior dessas comunidades uma permanente ajuda mtua, trocas de favores, mantendo-se assim uma solidariedade via teias de prestaes e contraprestaes que terminaram por engendrar relaes mais prximas, contatos mais efetivos e afetivos, muitas vezes consolidados pelo estabelecimento de laos religiosos duradouros (Braga;1995:60). Essas redes de relaes entre os agentes religiosos levaram a criao de organizaes conventuais, estruturadas em normas e padres tnicos, manipulando determinados sinais diacrticos (lngua, culinria, sistema mitolgico, rituais, etc.,), em oposio a outros sistemas de crenas, oriundos do continente africano e dos ndios brasileiros. Essas organizaes conventuais so os terreiros ou roas de candombl. So instituies resultantes da manipulao dos traos identitrios das civilizaes africanas que se organizaram em naes, aqui no Brasil. Desse modo, a nao no apenas a procedncia territorial (Costa Lima;1997: 77-8), mas sim todo um conjunto de padres ideolgicos e rituais.

Se o trfico de escravos foi um fator de desagregao tnica, paradoxalmente, foi tambm um componente da construo de novas identidades e novas tradies na Amrica. Essas identidades chamadas de nao adquiriram um uso suficientemente amplo para integrar diversas tradies, funcionando como uma rede, ou melhor, constituindo uma teia de alianas. O terreiro passou a condensar os valores de uma frica mtica. Isso significa dizer que os Orixs na frica pertenciam a localidades (grupos tnicos) diferentes e transplantados para o Brasil passam a se concentrar no mesmo territrio. O terreiro (egb) o espao fsico impregnado de signos que revelam a conscincia ancestral, no sendo apenas uma rea delimitada geometricamente. No terreiro esto presente as representaes do aiy (terra) e do orum (espao transcendental), representado nos assentamentos dos Orixs e Eguns, Exu e Caboclos. Decerto, o terreiro o lugar pertinente a manipulao de smbolos pelos fieis que partilham uma socializao calcada na herana, conjunto de bens simblicos que se recebeu dos ancestrais. E foi o terreiro o expediente mais eficaz na manuteno de uma tradio resemantizada e resimbolizada. Os terreiros de candombl organizados enquanto uma comunidade com caractersticas prprias de rea verde, representando a floresta sagrada, o barraco, salo principal das festas pblicas com espaos delimitados aos membros efetivos da casa e assistncia, as reas sagradas destinadas iniciao e recluso dos nefitos, as casas dos Orixs, como pode ser visto atualmente, se constituram como informa a literatura etnogrfica afro-brasileira (Carneiro, 1948; Costa Lima, 1977) no primeiro quartel do sculo XIX. Como nota Serra (1995:33) os cultos afros j eram realizados h bastante tempo e a indicao de uma faixa temporal, por certo, se refere criao de um modelo de culto dominante.

Importncia conferida a tradio nag. Na Bahia, os candombls almejavam o ideal de pureza de suas naes severamente exigido pelos sacerdotes e sacerdotisas, a exemplo de Martiniano Eliseu do Bonfim e Me Menininha do Gantois (Pierson; 1971, Landes; 1967) que endereavam as suas crticas especificamente aos sacerdotes que introduziam na prtica religiosa o culto dos Caboclos, e

que admitiam o transe nos homens (...) esto acabando com tudo, esto jogando fora nossas tradies. E permitem que homens dancem para os deuses(Martiniano Citado em Landes; 1967:38). Aos olhos severos dos sacerdotes da tradio dos candombls jeje-nag do incio do sculo passado (Pierson;1971 Landes;1967), os candombls que inseriam em suas prticas o culto dos Caboclos, tambm chamados de encantados (Carneiro;1991), estavam "deturpando" a tradio jeje-nag. Pierson (1971) aponta para uma quebra da pureza de alguns terreiros de candombl que j tomavam de emprstimo cerimnias de outras naes e inseriam os cultos de Caboclo, sendo alvo constante de desprezo pelos lderes ortodoxos da tradio nag. O paide-santo, Francisco da Roa Branca era questionado quanto a sua competncia e legitimidade frente a tradio, por um velho sacerdote a Donald Pierson:Quem so os seus avs, que que eles sabiam? Foram educados na seita? Ser que deixaria o cargo para ele? No . Ele veio do serto e quer fundar um candombl. Apreendeu um pouco de gege, um pouco de nag, um pouco de Congo, um pouco dessas coisas de ndio e assim por diante. Que mistura desgraada? (Pierson;1971:305).

Outra me-de-santo ortodoxa vangloriava-se de seu candombl ser nag puro, apontando para a mistura nos terreiros de ento, os novos, com a bobagem de caboclo. Continua a me-de-santo: Ora, les no sabem nada do jeito de fazer estas coisas da frica. (Pierson;1971:305) Acredita Donald Pierson que as disputas e mexericos a respeito das prticas no ortodoxas se dava em grande medida pelo decrscimo do nmero de africanos, aumentando assim a competio entre os terreiros. Os terreiros tendiam a romantizar o prestgio dos velhos africanos como Bambox, Adet, Ialode Erelu e outros. Da mesma maneira, detinham prestgio os lderes mais velhos ainda vivos no culto, como o babala Martiniano, Me Aninha e a velha Maria Bad, todos considerados representantes legtimos da mais pura tradio africana (ibd;339-340). Landes efetivou uma pesquisa de campo nos candombls baianos nos anos de 1938 e19392. Ela destaca o culto de Caboclo na roa de Me Sabina. Iniciada no culto por2

A obra de Ruth Landes, Cidade das Mulheres, cuja abordagem a vida dos candombls baianos da dcada de trinta, do sculo XX, e o destacado papel das mulheres negras dentro dos terreiros e na vida fora deles. O livro permaneceu por algumas dcadas empoeirado nas estantes, ficando apenas circulando entre os leitores especializados nos estudos afro-brasileiros, mesmo assim visto com uma certa complacncia. No obstante, o

Silvana, com quem rompera laos, Me Sabina mostra-se frente a Landes mais preocupada em expandir seus servios religiosos no mercado dos bens simblicos do que em manter o ideal normativo da tradio. Usava vestidos bem talhados em vez das habituais saias rodadas, maquiava-se moda da poca, com o rouge to censurado por Menininha no que toca a apresentao de sua filha Cleusa. Sabina ainda alisava os cabelos a ferro quente, sendo alvo constante de severas crticas pelas "grandes mes", que interditavam em suas filhas-de-santo o uso do ferro quente sobre as cabeas, moradas dos Orixs. Do mesmo modo, o babala Martiniano Elizeu do Bonfim expressava seu preconceito aos Caboclos: acreditava que os cultos de Caboclos viriam a deturpar a tradio nag. Alm do mais, os cultos de Caboclos permitiam a insero do transe masculino, considerado e associado aos homens com comportamento homoertico (Birman:1995). Segundo Martiniano a possesso pelos Orixs nos candombls iorubs tinha um carter feminino, conforme se observava nos candombls de Aninha (Ax Op Afonj), de tia Massi (Casa Branca) e de Menininha (Gantois). Do ponto de vista de Martiniano os terreiros que cultuavam o Caboclo se proliferavam por toda parte em grupos de cultos sem tradio. A penetrao do culto dos Caboclos se deu inicialmente, nos terreiros da nao Angola, apesar de que atualmente a maioria dos terreiros de nao keto realizam uma festa anual para os Caboclos, excetuando os candombls do Engenho Velho, a Casa Branca, o Gantois 3 e o Ax op Afonj, 4 como no tempo de Martiniano. Contudo, os filhos-de-santolivro era apresentado como uma reminiscncia de sua passagem pelo Brasil do que propriamente o resultado de sua pesquisa. O livro recebeu pouca ateno favorvel saindo logo de circulao, contrariamente a outros trabalhos de autores estrangeiros (Fraizer, Melville Herskovits, Donald Pierson), que estiveram no pas neste mesmo perodo. Foi com a publicao da segunda edio de Cidade das Mulheres, em 1996, nos Estados Unidos, que o livro comeou a recapturar ateno acadmica, pelas antroplogas feministas norte-americanas que passavam a rever a histria da antropologia, despertando um interesse sobre a tica das relaes entre gnero e raa. Uma das razes pela qual seu livro foi excludo dos circuitos acadmicos. Landes foi vitima de uma perseguio masculina a uma mulher que tinha a pretenso de afirmar existir uma cidade das mulheres num mundo dos homens. Landes acabou por ingressar num campo j minado por dissenses polticas e metodolgicas. Segundo Corra, as crticas de Artur Ramos quanto s de Melville Heskovits se assentam em trs pontos; o primeiro pelo fato j mencionado o seu ingresso num campo objetivado pelos homens, ao passo que mantinha uma relao amorosa com seu colaborador Edson Carneiro2, segundo a sua nfase nas relaes raciais, num momento que se enfatizava as explicaes dos fenmenos sociais por explicaes culturais, terceiro por sua descrio, destoante das descries cannicas, a respeito que as mulheres tinham no candombl2. Segundo Healey, a resistncia que Landes encontrou se assentava na questo de gnero: primeiro a resistncia que ela havia encontrado para realizar a pesquisa de campo e depois para publicar seu trabalho. 3 Segundo dson Carneiro, em seu tempo, nas cassas tradicionais do modelo Keto, era possvel ver cantar e danar para os encantados Caboclos (1961:62).

dessas casas-de-santo podem vir a receber seus Caboclos, com a interdio de no receberem essas entidades nos terreiros em que foram iniciados. Os primeiros estudos antropolgicos sobre o universo das religies afro-brasileiras foram realizados sobre os candombls nags. Edson Carneiro foi o primeiro a mostrar interesse pelos candombls tidos como no puros ou poucos ortodoxos conforme avaliava serem os candombls bantos e os de Caboclo. Pertencente a escola baiana dos estudos afro-brasileiros, fundada por Nina Rodrigues, Carneiro tem sua obra eivada do etnocentrismo em vigor na poca. Entretanto, ainda nos serve de ponto de partida para o estudo dos Caboclos, pela minuciosa descrio das cantigas e nomes dos Caboclos cultuados outrora na Bahia5. Contudo, a noo de pureza dos cultos afro-brasileiros facilmente, reconhecvel na analise da literatura antropolgica do inicio do sculo XX, nas obras de Nina Rodrigues, Artur Ramos, Edson Carneiro, Ruth Landes, Roger Bastide at a dcada de setenta do sculo passado. Os intelectuais buscaram uma correspondncia entre a valorizao da tradio africana e a valorizao de uma tradio anti-sincretica, pura, que remetia tanto a uma perspectiva intelectual de pensar o afro-brasileiro, quanto a uma prtica religiosa mantida pelas casas-de-santo tradicionais na Bahia. A concepo de pureza foi discutida por Dantas (1988) que imputa o ideal normativo de puro do modelo jeje-nag ao papel constitutivo dos intelectuais nas suas configuraes analticas de uma valorizao da frica. A disputa pelo monoplio dos bens religiosos ente os praticantes das religies afrobrasileiras, tendo como capital a tradio africana acabou tendo uma ressonncia no campo cientifico que a estudava.Alguns autores, como Carneiro afirmam ter presenciado cnticos e danas aos caboclos nos terreiros do Engenho Velho e Gantois (1978:54). Alejandro. Frigerio (1983) citado por Teles dos Santos (1995) afirma a existncia do culto de Caboclos no Ax Op Afonj embora na forma de um culto privado. Tomei como surpresa essa informao por ter um contato com esse terreiro. Sabemos que em uma das festas ao Orix Oxossi h a presena de muitas frutas, talvez o fato de Oxossi ser o dono das matas, habitat dos caboclos e a presena de frutas levou ao pesquisador identificar equivocadamente a festa como um ritual de Caboclo. 5 Teles (1995), se preocupou em analisar o culto dos excludos Caboclos pela ortodoxia do povo-de-santo como pelos intelectuais que sempre privilegiaram as casas nags. Teles dos Santos postula que nos dias atuais existe um reconhecimento da importncia dos Caboclos nos candombls baianos pelos pais e mes-de-santo dos terreiros ortodoxos, que no mais fazem as severas crticas como nos tempos de outrora, presena do Caboclo no candombl nag, entretanto, insistem sobre a pureza de suas casas. (Teles dos Santos, 1995:23).4

Escreve Dantas:a pureza nag, assim como a etnicidade seria uma categoria nativa utilizada pelos terreiros para marcar suas diferenas e expressar suas rivalidades que se acentuam na medida em que as diferentes formas religiosas se organizam como agncias concorrncias no mercado de bens simblicos (Dantas; 1988:148).

Dantas acredita que a construo ideal tpica jeje-nag teve grande influncia dos intelectuais que realizaram suas pesquisas nas casas-de-santo tradicionais baianas da nao keto. Para ela os intelectuais transformaram a "pureza nag" de categoria nativa em categoria analtica, atravs do modelo nag, tido como o mais puro, original para cristalizao de traos culturais que passaram a serem tomados como expresso mxima de africanidade. Desde o incio dos estudos cientficos sobre o candombl, os pesquisadores das religies afro-brasileiras, com tendncias a explicaes em termos de gentica cultural classificaram os terreiros de suposta origem iorub como sendo, de algum modo, mais puros que os de origem banto. Desse modo foram classificados de impuros os que no tinham absorvido as prticas iorub (Fry; 1982:50). Para Ferreti (1997) a crtica ao que se convencionou chamar tanto nos circuitos acadmicos como entre o povo-de-santo de pureza nag no pode ignorar a tradio preservada em muitos grupos de Candombls baianos e Xangs pernambucanos e a Casa das Minas em So Lus, como vem fazendo alguns autores que a consideram uma inveno intelectual. Tem-se em mente que este um problema que diz respeito s disputas de poder e prestgio tanto no campo acadmico quanto no campo religioso (Ferreti;1997:70-1). A idia de pureza foi idealizada pelos pesquisadores concomitante com a idia de tradio, relacionada com a histria de cada casa-de-santo na preservao dos costumes e valores dos ancestrais africanos. A partir da dcada de setenta, do sculo XX, inaugura-se uma srie de anlises mais atentas para as transformaes das religies afro-brasileiras, identificando uma nova morfologia social dos terreiros de candombl. Passando a valorizar a descontinuidade, no mais presas a uma postura metodolgica preocupada com pureza, origens e equilbrio, essas anlises chamaram ateno para o fato de que fazer cincia social estar atento para qualquer forma de viso de mundo empreendida pelos atores sociais.

Como assegura Birman a dimenso sistmica que pode, portanto, ser encontrada em qualquer lugar, inclusive (sobretudo) nas formas chamadas de sincrticas (Birman;1997:82), candombls de naes misturadas, candombls da nao Angola, candombls de Caboclo e umbandas. O papel dos intelectuais de dentro. Na histria do campo afro-brasileiro a importncia conferida aos elementos da tradio nag encontra seu marco na figura de Martiniano.6

Ele um personagem

importante na memria coletiva do povo-de-santo, mas importante tambm no processo de uma reafricanizao dos candombls da Bahia, vale ressaltar que foi um dos principais informante de Nina Rodrigues, que lhe pagava regularmente pelas suas informaes, o prprio Martiniano revela a Landes e a Edson Carneiro. Nascido sob a escravido, fora enviado frica pelo pai, aproximadamente aos 14 anos, para estudar as tradies dos seus antepassados, tendo l aprendido ingls nas escolas missionrias (Landes; 1967: 28-30). Martiniano, Ojelad condenava a mistura de elementos de diferentes tradies e a camuflagem dos traos negros, como espichar os cabelos. Denunciava a indiferena pelas lnguas africanas e censurava, com paixo, os terreiros que, liderados por mulheres, buscavam uma comunicao com os mortos. Ressentia a falta de Me Aninha do Il Ax Op Afonj, onde participou ativamente, com o cargo de Ajimuda na casa de Omolu. Foi o presidente da Unio das Seitas AfroBrasileiras da Bahia, cujos objetivos eram a imposio dos altos padres tradicionais de conduta, assim como a defesa do culto contra a polcia que tanto atormentava os candombls (Braga, 1995; Landes 1967). Os velhos pais e mes-de-santo, em seu tempo, detinham um capital de autoridade. Bastide acredita que a razo dos velhos chefes dos candombls tradicionais se oporem aos babalorixs feitos do p para a mo (Bastide;1978:247), os sacerdotes que no passaram pelos rigores da norma introdutria das casas nags, chamados de

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Sobre a vida do professor e Babala Martiniano Eliseu do Bonfim, Ojelade ver Costa Lima, Vivaldo. O candombl da Bahia na dcada de trinta. In: Oliveira, Waldir Freitas de & Costa Lima (orgs.). Cartas de Edson Carneiro a Arthur Ramos: de 4 de janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938. So Paulo: Corrupio, 1987. Ver tambm Braga, Jlio. Na gamela do feitio. Salvador. Edufba. 1995.

clandestinos, estava no fato de que os seus poderes no dispunham de base alguma, ou seja referindo-se a uma ligao formal com uma casa-de-santo, atravs dos ritos iniciaticos. Da mesma forma que os antigos chefes dos terreiros, os atuais, so movidos pelo seu prestgio e os seus interesses religiosos; ou seja, a necessidade de legitimao das suas propriedades materiais e simblicos associados as suas posies de prestgio, frente aos cultuadores da tradio dos Orixs. A posio de destaque desses sacerdotes com suas mensagens religiosas foi, e ainda, capaz de satisfazer os seus interesses religiosos, que tinham como capital a tradio frente a um grupo de seguidores constituindo o campo religioso das religies afro- brasileiras (Bourdieu; 1974:51). Elemento importante na histria do campo religioso afro-brasileiro a consolidao de uma camada intelectualizada proveniente dos prprios guardies do candombl, desde Martiniano-Ojelad. Com a consolidao dessa camada de intelectuais de dentro verificase um movimento explcito de reflexo em torno de questes relativas tradio e as mudanas nos procedimentos religiosos. Esse movimento ganhou fora a partir da dcada de setenta do sculo XX. Em 1974, um grupo de religiosos, sob a liderana de Mestre Didi, fundou a Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil; em 1981 o CEAO organizou o I Encontro de Naes de Candombl, com a participao de acadmicos e o povo-de-santo. Algumas Iyalorixs baianas das casas consideradas como as mais tradicionais, em 1983, assinaram um manifesto da dessincretizao, ou descatolizao, na Conferncia Mundial da Tradio e Cultura dos Orixs (CONTOC)7. Para essa camada de intelectuais do candombl, entretanto, seguir a tradio no uma recusa a modernidade conforme transparece nas observaes feitas pelo Pai Cido de Oxum no seu livro A panela do segredo (2000):Nenhuma religio sobrevive se no acompanhar as mudanas que acontecem no mundo, seja no campo social, tecnolgico, cientifico etc. O Candombl, para sobreviver ao longo desses anos, teve que se modificar, e essa uma realidade, embora alguns prefiram negar.(...). Manter uma mentalidade arcaica no sinnimo de seguir a tradio. A tradio do Candombl no reza que se deve ralar feijo-fradinho na pedra; alis, esse recurso nada mais do que tecnologia7A

CONTOC foi um movimento organizado por lideranas religiosas da frica dos Estados Unidos, do Caribe e da Amrica do Sul, cujos objetivos era a unificao da tradio dos Orixs. Sendo realizado a primeira em Il-If, na Nigria, a Segunda no Brasil, a terceira em Nova York e outra em Il If, ambas em 1986. Em 1987 ocorreu no Il Ax Op Afonj o preparatria para a Quarta, no qual se criou o INTECAB (Instituto Nacional da Tradio e Cultura Afro-Brasileira) e a quarta ocorreu em Nova York em 1988 e 1990 em So Paulo ( Gonalves;1995:269).

de determinada poca. Atualmente, outros aparelhos, o moedor ou liqidificador, por exemplo, ajudam a cumprir essa tarefa mais rapidamente e de forma mais eficaz. A maquina que faz a massa do acaraj8 no muda a dedicao nem o amor do filho ou filha-de-santo.(2000:68)

Os sacerdotes dos candombls baianos esto sempre lanando mo de um discurso de autoridade, em suas mensagens religiosas de fidelidade as tradies, como estratgia poltica de afirmao dos seus terreiros na concorrncia pelo monoplio dos bens simblicos. crescente o nmero de publicaes escritas pelas pessoas de dentro do candombl, como observa Gonalves (1998), etnografias domsticas. Estas publicaes so uma das estratgias utilizadas pelos sacerdotes para consolidar seus pontos de vista. Pai Cido enfatiza (2000) que todo terreiro de Candombl deve ter um site, para divulgar suas celebraes, contar sua histria e convidar o mundo para conhecer o Candombl (ibd;70). sabido da existncia de sites de candombl, cujo contedo varia da informao sobre a religio a servios mgicos ofertados por essas agncias. O primeiro site sobre o candombl foi o do Il Ax Op Afonj, elaborado pela filha-de-santo do referido terreiro Vera Felicidade - Oni Koi. O site do terreiro do Op Afonj apresenta-se com o objetivo educativo de contar a histria da casa, das suas Iyalorixs, da implantao do museu, voltado preservao da memria da comunidade do terreiro. Conta ainda com as atividades educacionais desenvolvidas sob a liderana da Iyalorix Stella Azevedo, que tambm, autora de dois livros sobre o candombl.9 Do mesmo modo, na busca de uma sistematizao racional do candombl em formas explcitas de reflexo, filhos-de-santo de classe mdia, ou vinculados a diversas entidades do movimento negro, ingressam nos cursos de ps-graduao, e tm escrito dissertaes e teses sobre diversos aspectos do candombl, desenvolvendo uma postura metodolgica que enfatizam ser de dentro para fora, em oposio aos intelectuais de fora, cujo olhar, estaria contaminado pelas idiossincrasias ocidentais.

Rodrigu nos informa que o acaraj comida de Oy-Ians, rainha dos ventos e dos movimentos rpidos, representa os filhos gerados por ela e no criados, me dos mortos, me de Egungun. Fala do feto ainda em estado de formao, ainda envolvido no sangue (Rodrigu;2001:96) 9 Os seus livros so Meu tempo agora, Dai aconteceu o encanto esse ltimo em co-autoria com sua filha-desanto Clo Martins- Agbeni Xng. Clo Martins organizou o livro comemorativo dos sessenta anos de iniciao de Me Stella, Faraimar - O caador traz alegria (1999) e publicou os livros Ewa: Senhora das Possibilidades (2001), Iroco: O Orix da rvore e a rvore do Orix (2002).8

Nos seus terreiros esse grupo de filhos-de-santo, muitas vezes, no visto com bons olhos pelos mais velhos sofrendo toda uma srie de restries, pois esses ltimos no acreditam na tradio das teses. Mesmo assim os intelectuais orgnicos passam a constituir nos terreiros a qual so filiados uma camada de prestgio. Os textos apresentados nos congressos e os livros que so editados por autores religiosos apresentam em muitos casos uma semelhana com as etnografias produzidas na academia, com as regras metodolgicas de citao e referncias bibliogrficas, assim como a descrio etnogrfica, a histria dos terreiros, o esquema do panteo cultuado, os rituais, calendrios de festas e em alguns casos no faltam nem mesmo o desenho da planta do terreiro com designao dos diversos cmodos, semelhantes quelas vistas nos livros de Roger Bastide e Edison Carneiro (Gonalves;1995:260). Os sacerdotes autores que visam o estilo etnogrfico acadmico acabam supervalorizando esse estilo. Gonalves (1998) observa que essa tendncia dos intelectuais orgnicos do candombl ao fazerem uso do estilo etnogrfico acadmico acaba por colocar em segundo plano outras formas alternativas do grupo de auto-representar atravs da escrita (ibd;198). Entretanto, pode-se observar alguns exemplos significativos na voz autorizada dos de dentro, e que no imputam ao leitor um estilo acadmico. Autores sacerdotes procuram expor a sua viso de mundo, particular da sua experincia do candombl, atravs da inscrio dos mitos da tradio dos seus terreiros. Essa preocupao mantida nas obras de Mestre Didi Histria de um terreiro nag, Caroo de dend de Me Beata de Iemanj, filha do terreiro do Alaketo, Meu Tempo Agora da Iya Stella Azevedo, que diz:

A tradio somente oral difcil. Os Olrs tem que se alfabetizar, adquirir instruo, para no passar pelo dissabor de dizer sim prpria sentena. A essncia no se modifica, o alicerce de tudo. S pode passar Ase quem o recebeu. Ningum ignora a avalanche de livros sobre o jogo de bzios, receitas de eb, iniciao e por a adiante. Tiram-se fotografias de tutu, Oris manifestados e demais awo. Isso profanao, involuo, destruio da religio; o jogo do inimigo. E ponto final (Santos.Maria Stella de A, 1995:22 apud Gonalves;1998:199).

As etnografias realizadas por essa camada de intelectuais de dentro se tornam, ento, um desafio: por um lado a tradio oral considerada como elemento central do aprendizado religioso10

por outro a produo escrita acaba representando um sinal de

valorizao positiva das representaes e prticas do candombl. Neste sentido tendem a demarcar a autoridade de suas mensagens. Essa camada religiosa de intelectuais busca empreender uma sistematizao da doutrina, atravs tambm de iniciativas como a proposta das Conferncias Mundiais da Tradio e Cultura dos Orixs, em 1983, do fim do sincretismo religioso 11, e nos recentes debates do Alaiand Xir (festival de msica afroreligiosa), que rene lderes dos candombls do Brasil e de Cuba, acompanhado de seminrios e feira, organizados nas dependncias internas do Il Ax Op Afonj. Vale salientar, tambm, a existncia de uma literatura religiosa empenhada em fornecer uma srie de informaes religiosas bsicas, a exemplo da revista Orixs que pode ser encontrada em qualquer banca das grandes cidades brasileiras. Trata-se de informaes que buscam orientar o leitor em praticas mgicas, jogo de bzios e despachos. Essa literatura tem as mais variadas fontes desde as fontes orais quanto escritas, sendo muitas vezes reprodues de trechos de etnografias, sem nenhuma referncia bibliogrfica, o que certamente requer uma ateno maior para novas pesquisas (Gonalves; 1995:260). Essa sistematizao racional efetivada pelo corpo de sacerdotes intelectuais do candombl, por um lado, cria laos de aliana e reciprocidade com os intelectuais

transmisso do saber no candombl obedece lgica da palavra falada, boca ouvida , nos momentos especficos a cada filho-de-santo. A palavra por si s detentora de fora vital, o ax. O conhecimento veiculado na observao sistemtica e nunca na lgica de perguntas e respostas, preciso estar atento a tudo, e nunca perguntar mas esperar que venha lhe explicar. A oralidade constitui um universo concreto revelador das principais proposies histricas de uma dada comunidade de terreiro, capaz de explicar a organizao do mundo e da realidade, bem como, prticas sociais globais, a captao, exerccio, acmulo, e transmisso do conhecimento, segundo valores civilizatrios prprios nascidos de sua identidade profunda. Assim, cada evento decisivo na comunidade de terreiro de candombl e nela perpetuado sob a forma de valor decisivo constitui o som de uma palavra cantada ou proferida boca ouvida nos estgios de iniciao e na vida cotidiana dentro do terreiro. Designa-se dessa forma sob o termo geral da palavra proferida ou cantada o conjunto de foras vitais existentes e que a explica no tempo e no espao. Diante desses pressupostos, de se considerar que a oralidade com a utilizao da voz com maior ou menor freqncia de vez que no rara a pausa, o silncio, adquire um grande significado dentro da estrutura candombl. A suposio de que a oralidade pode exercer uma influncia sobre o alvo de sua ateno o qual, por sua vez possuiria sua prpria palavra ou energia vital e reagiria diante dela. um processo dinmico, portanto, que supe interao (Leite; 1986). 11Postura assumida e mantida isoladamente pela Iyalorix Stella Azevedo, entre as outras signatrias Iyalorixs que assinaram o documento (Consorte;1999).

10A

acadmicos

12

, (Gonalves;1998:202), por outro acaba criando uma nova luta

concorrencial, agora pelo monoplio de falar de si, instaurando um conflito com os intelectuais acadmicos, em alguns momentos velados, em outro aberto (como nos seminrios promovidos pelo povo-de-santo, em que so feitas as crticas aos cientistas sociais). Assim, os chamados nativos passam a questionar a voz autorizada dos pesquisadores, insurgindo-se contra a condio de meros colaboradores, informantes valorizados/privilegiados, tradutores do seu sistema cultural para o antroplogo. Os sacerdotes intelectuais acabam delineando novas linhas de ao no campo da pesquisa sobre as religies afro-brasileiras, com a sua produo literria, sendo referncia obrigatria nos novos estudos das religies afro-brasileiras. Muitos desses sacerdotes autores acusam alguns cientistas sociais de terem efetivado suas pesquisas sobre o candombl para vantagem em benefcio prprio, promovendo-se no meio acadmico, e no proporcionando benefcio algum as casas a que fizeram de laboratrio, deturpando muito do que lhes foi informado, ou equivocando-se nas suas interpretaes e muitas vezes revelando os segredos a que tiveram acesso 13. Em suma, estes sacerdotes intelectuais dos candombls baianos consolidam uma camada religiosa que repensa a tradio afro14

, exercendo uma liderana importante na

mobilizao contra a intolerncia religiosa que o candombl ainda vivencia, e contribuindo12Esse dialogo entre antroplogos e acadmicos, mediado pela escrita, tem possibilitado muitos sacerdotes na participao efetiva nas pesquisas etnogrficas sobre o candombl, seja na elaborao de prefcios, ou na avaliao que faz o sacerdote, para autorizar o uso de determinadas informaes. Na minha pesquisa sobre o Orix Exu submeti o texto final tanto ao Pai Beto quanto a minha Iyalorix, para ambos fazerem correes de certas informaes que pudessem vir a ser consideradas como aw (segredo), assim como opinarem em certas alteraes. Sobre esse assunto ver Gonalves que dedica um capitulo de sua tese o Antroplogo e sua magia (2000) a essa temtica. 13Neste debate Gonalves (1998) parte do suposto que cada grupo tem uma noo diferente do que seja o retorno, muitas vezes pode ser adeso do antroplogo a casa, para outros pode ser a contribuio financeira, a divulgao do terreiro ou a participao nos projetos sociais e polticos do grupo (ibd;55) 14Nesse sentido, surgem outras formas de sistematizao racional do candombl para se auto-representar, a exemplo da criao do CEPTOB (Centro de Estudo e Pesquisas das Tradies de Origem Banto) pelo Tata de Inquice, Larcio Sacramento, cuja finalidade do centro resgatar e difundir a tradio banto, desvalorizadas pelo domnio nag. Prope o pai-de-santo uma reao ao nagocentrismo. Fato curioso foi celebrao do sacramento do casamento aos moldes de uma tradio criada em seu terreiro Manso Kilembekweta Lemba Furaman, em Jau, na Estrada do Coco, no dia sete de novembro de dois mil e hum (nas palavras do pai-de-santo o adepto do candombl , tem de procurar o templo de sua prpria religio para se batizar, casar ...14). Surgiu, tambm, em Salvador o ACBANTU Associao Cultural e Preservao do Patrimnio Bantu-, cujo objetivo o estudo e transmisso da cultura bantofone, atravs de oficinas, palestras tanto nos terreiros de candombl, quanto nos espaos acadmicos Essa temtica da reao nativa ao nagocentrismo criando por sua vez um bantocentrismo, certamente requerer uma analise mais detalhada no futuro.

na sistematizao da mensagem religiosa. Neste sentido, podemos dizer que o processo de sistematizao do candombl o resultado de uma luta concorrencial no campo religioso, dando-se em parte como estratgia de defesa contra diversos concorrentes, tanto no mbito interno (processo que desqualifica terreiros distantes do modelo dominante) quanto no mbito externo (a exemplo das igrejas evanglicas e o catolicismo). Assim, embora a oralidade (Hampt Ba;1982, Vansina; 1982, Leite;1986, Santos;1977) ainda seja norteadora dos modos de aprendizado e transmisso do saber, a produo escrita, na medida em que garante maior visibilidade ao candombl, ou melhor, dos terreiros empenhados na sistematizao do corpo mstico e ritual uma estratgia cada vez mais valorizada. Estratgias de desqualificao e qualificao do campo afro-brasileiro. O processo de consolidao do campo religioso afro-brasileiro envolveu uma srie de disputas que se processaram e ainda se processam tanto a nvel externo entre as casasde-santo quanto a nvel interno - entre os diferentes grupos de um terreiro. Essas disputas se cristalizam nas rivalidades entre os grupos de um terreiro que almejam a confiana do pai ou da me-de-santo, e so acirradas nas disputas pelos cargos honorficos. As rivalidades so muitas vezes marcadas por confrontos verbais entre seus pares, criando uma atitude desafiadora (Birman; 1995:99) cuja tnica dada pela tentativa de comprovar que o outro (irmo-de-santo, ou , um indivduo pertencente a outro terreiro) est errado, isto , no est realizando os preceitos como reza a tradio, no atentando para o modo correto de agir, seja no uso de expresses adequadas, proferimento de formulas mgicas, conhecimento das cantigas, das folhas sagradas, etc. Em suma, esses traos que so, constantemente, apontados nas acusaes e ofensas, como marmotagem ou eke, acabam por delinear uma forma ideal tpica a qual devem estar atentos os membros dos candombls baianos de olhos e ouvidos bem abertos para no carem nas ms lngua, na indaka de kafurungonga, nas lnguas-de-trapos, que falam pelos cotovelos; o famoso ej15.

15 O povo-de-santo vive, a todo instante, vigilante para no carem no ej, a fofoca, ou como prefere Braga a crnica da novidade. Eles se esforam como dizem: para no terem os seus nomes na bandeira de Tempo. Referem-se a bandeira branca que nos candombls da nao Angola tem como emblema do Inkisse Tempo.

Braga assevera que atravs da fofoca possvel chegar s tramas mais complexas dos candombls. Por um lado, fofoca apresenta-se como condenao de certos comportamentos via insultos e ofensas gratuitas, chegando mesmo a gerar conflitos mais srios, quando as acusaes so de feiticeira. Desta forma constitui uma prtica subliminar de preservao da tradio. Por outro lado, entretanto, os comentrios jocosos so tambm forte indicativos das inovaes processadas no mbito religioso: Na medida em que veicula e critica, na sua circunstncia aparentemente negativa, aqueles acontecimentos que no deveriam ocorrer, posto que ferem ou se chocam com os preceitos da tradio estabelecida, o ej termina sendo, de alguma forma, a crnica da novidade no espao comunidade terreiro, a prpria etnografia da dinmica que assinala as ocorrncias que se afastam da tradio fossilizada, do que estava cristalizado como herana religiosa imutvel e, assim, visualizado como indicador preciso da nova ordem que se estabelece ou que est em via de se estabelecer (Braga; 1998:25). No candombl o conhecimento transmitido oralmente em estgios especficos para cada filho-de-santo. Estes conhecimentos, ou fundamentos, so o marco principal da diferena, delimitam o lugar do indivduo na estrutura religiosa e sua distncia frente a outros. Desta forma, a competncia sempre reafirmada na acusao de que um certo agente religioso no tem autoridade, ou no tem domnio dos fundamentos, no um entendido nos preceitos, nos saberes litrgicos. Para que o indivduo venha a deter o saber que marca o seu diferencial faz-se necessrio observncia gradual dos preceitos em consonncia com o grau que ocupa na estrutura religiosa. A transgresso dessa regra religiosa pelo filho-de-santo que se esfora em dominar os segredos, antecipando, ou melhor, atropelando, o seu tempo de iniciao, estar ferindo as regras da estrutura dos candombls e o insolente (afojudi) ter seu comportamento reprovado pelo povo-de-santo mais ligado s tradies. Argumenta Braga que esse comportamento ainda pe em risco a prpria noo de poder vigente nos candombls apoiada na idia de deter os fundamentos (ibd;25). Tendo em vista que o conhecimento devera obedecer estgios iniciticos e a ruptura destes estgios culmina com um

Geralmente, a bandeira colocada numa vara de madeira bastante grande que a qualquer distncia possa identificar que ali um terreiro de candombl.

conhecimento fragilizado, aprendido em casas cuja tradio difere, pois cada casas constri as suas tradies. Da mesma forma, esse grupo de filhos-de-santo empenham-se no aprendizado ritual em livros, muitos escritos por sacerdotes, que acabam sendo uma fonte de obter informaes, antes tido com toda gama de restries, envolto em mistrios e segredos. Ao buscar o entendimento do processo de consolidao dos candombls baianos no se pode esquecer ou menosprezar as disputas internas a este universo religioso, pois estas constituem uma estratgia eficaz de demarcao de terreno na competio no mercado religioso, at mesmo em uma simples conversa entre alguns membros dos candombls percebe-se s vezes um tom ameaador. Salienta Birman que esse tom ameaador se constitui numa relao de desafio onde poder se instaurar um diferencial de competncia que ir colocar numa relao de falta em relao a esse saber absoluto (1995:100), travando desse modo uma luta simblica que tem como finalidade uma elaborao diferencial da identidade. A busca de uma dominao seja do tipo tradicional ou do tipo carismtico (em termos weberianos) nagocntista ganha contornos especiais nas rivalidades entre as casas-de-santo. Entre os expedientes reveladores dessas rivalidades esto as estratgias desenvolvidas por membros de alguns terreiros de candombl para desqualificar as prticas dos terreiros concorrentes, ou com as habituais expresses faciais baianas de desprezo, ou descaso no assunto a exemplo do simples gesto em balanar a cabea, como sinal de reprovao, da mesma maneira que torcer os lbios para o canto, arregalar os olhos par cima ou recorrendo no limite para a fofoca 16. A luta simblica travada historicamente no campo das religies afro-brasileiras cristalizou, ou melhor, sedimentou, uma hegemonia nag, mesmo em relao a outros candombls igualmente tradicionais e estruturalmente prximos as suas origens (Braga 1995: 38). Expediente eficaz so as crticas irnicas, ferozes, indiscretas e desmoralizantes, acionados pelo povo-de-santo, um tipo de zombamento conhecido como xoxao. Geralmente, as crticas ocorrem j no prprio espao do terreiro em que esta se dando uma festa, nos arredores do barraco, ou nos bares que ficam prximos aos terreiros, (atrativos

de uma grande clientela nos dias de festa). Birman (1995) observa que no candombl no h quem no seja objeto de xoxao 17, qualquer atitude frente aos ritos pode ser criticada severamente, por no se adequar aos rgidos padres idealmente concebidos. Por mais que todos efetivamente se cuidem para evitar os comentrios maliciosos, estes acabam sendo inevitveis, pois constituem um dos mecanismos bsicos para a reproduo do diferencial constitutivo da identidade (ibd.:100). Os alvos prediletos dos comentrios jocosos so os pais, mes e filhos-de-santo chamados de fura-ruc, aqueles indivduos que mostram uma assiduidade nos candombls da cidade, e que porventura acabam incorporando em seus terreiros prticas vistas em outras casas-de-santo (Braga; 1998). Estas incorporao de prticas no modos vivendos dos terreiros acabam por gerar tenses e disssenes na comunidade, haja visto que os filhosde-santo mais velhos foram sociabilizados com um conjunto simblico de representaes e prticas que habituaram a partilhar. Assim, como forma reprovatria a insero destas prticas surgem as diversas formas de agresses, por parte dos que se colocam como guardies da tradio. Estas agresses varia desde aquelas consideradas enquanto simblicas, as que ficam no campo da verbalizao com toda gama de insultos, at mesmo aquelas que acabam por culminar em alguns casos nas agresses fsicas. Essas agresses simblicas como xoxao, sotaque ou desafio ironia, brincadeiras maliciosas constituem-se como formas de construo da identidade no domnio da competncia no campo das religies afro-brasileiras. Destarte, na competio simblica entre os terreiros existem formas consentidas de escapar desse jogo de acusaes, muitas vezes cruel, a exemplo da alegao que fazem alguns sacerdotes mais novos,

Sobre o assunto: Ver Braga (1998: 25). Casos como esses so, certamente, muito comentados. Uma das atividades prediletas por muita gente-de-santo a crtica a outros terreiros, conforme j comentado, desde o comportamento do lder, sua vida pessoal confundida com sua funo de sacerdote, os ritos dos terreiros, a roupa dos Orixs, os toques e cantigas supostamente cantadas erradas, demonstrao de incompetncia, todos esses elementos e muitos outros so motivos para fazer crticas irnicas e ferozes. Segundo Pai Beto so vrios os casos de xoxao. Ele comenta que um dia estava em seu quarto, em uma das festas em sua casa, quando ouvia das gretas da janela amigos dele comentando sobre a ostentao das festas em sua casa. Outro caso de xoxao comentado por ele, chateado, ligava-se ao fato de uma pessoa de cargo inferior ao seu, e mais novo de santo, um og que ocupa em um outro terreiro o cargo de pai-pequeno, ter sorrido de canto, ironicamente, e feito comentrio com outros prximos a ele, por que o Pai Beto estava cantando para o bolo. Os terreiros de candombl tradicionais, mais atvicos as suas origens tambm so alvos de xoxao, fala-se da roupa da me-de-santo, da vida pessoal, das cantigas etc., mais os maiores alvos so os candombls modernos apesar de ter um grande pblico, especificamente naquelas festas que se tem muita bebida como nas votivas a Exu, com o transe nos filhos-de-santo.16 17

iniciados em casas menos reconhecidas, alvo predileto das acusaes, de ter se filiado a um sacerdote tradicional, na busca da legitimao de suas representaes e prticas. importantssima, essa filiao. Eles no se iniciaram com esse pai ou me-desanto, no entraram em recluso nos terreiros destes para o aprendizado da gramtica ritual, em muitos casos apenas consertaram as suas obrigaes de um ano, trs ou sete anos, ou apenas ofertaram obi s suas cabeas, isto deram bor, comida a cabea, de gua ou sangue. Outros alegam que buscaram esses sacerdotes para fazer um arremate, acertar o que tinha sido feito errado pelo sacerdote anterior.18 Decerto, o candombl sempre foi um espao de relaes de fora entre terreiros cujo embate por vezes se expressa em termos de uma oposio s vezes velada e s vezes explicitas entre os guardies da tradio, os detentores legtimos do saber sagrado, e os profanos da tradio, que passam a serem vistos como charlates, clandestinos, sincreticos, impuros. Porm, cada terreiro de candombl, seja qual for a nao, keto, jeje, angola ou caboclo, assim como no passado valorizavam as suas tradies, acima de todas as outras naes proclamando a sua pureza. Segundo Bacelar (2001) apesar da existncia de tenses e rivalidades entre os terreiros, uma oposio plena ou luta acirrada entre as casas nunca chegou a constituir trao caracterstico do campo afro-baiano, haja vista o clima de simpatia e cordialidade que prepondera entre as casas de candombl. Acredito que essa cordialidade sempre existiu juntamente com as disputas. No obstante, deve se atentar para o fato de que a solidariedade fica mais visvel em terreiros que se constituem enquanto uma rede, pelo parentesco ritual, pelas disposies geogrficas de pertencerem ao mesmo bairro, ou por uma afinidade calcada no grau da amizade entre sacerdotes. Parto do suposto de que a no existncia de uma maior solidariedade entre as casade-santo (apesar do apelo do povo-de-santo pela unio em defesa das religies afrobrasileiras, veiculado nos jornais das federaes e entidades religiosas, assim como nos congressos promovidos pelos lderes de terreiros juntamente com seus representantes da academia) se deva ao fato de que na ausncia de uma estrutura formal centralizada ligando entre si os vrios terreiros, estes mesmo atendendo as etiquetas da hierarquia religiosa de18

Voltaremos a esse ponto nos prximos captulos.

prestar homenagem s casas mais antigas, passam a concorrer entre si pelo monoplio dos bens do sagrado. Nessa disputa o discurso da tradio aparece como um capital para demarcao de poder no mercado concorrencial dos bens simblicos. Cabe observar, contudo, que essa uma tradio reinterpretada; os ritos e mitos, muitas vezes perderam sua originalidade e aqui foram resimbolizados, assim tal como a lngua ritual dos cnticos, rezas e formulas mgicas, identificvel na sua estrutura e no seu lxico, mas certamente modificada em seus valores semnticos e fonticos (Costa Lima;1977:10). As interpretaes ocorridas dentro dos terreiros de candombl no inviabilizaram o processo de redescoberta da frica e africanizao dos cultos, com a ida de sacerdotes ao continente africano, que traziam de l, as especiarias, como inhame, corais, laguidib, pano-da-costa, alm de novas formulas mgicas, cnticos rezas, orikis. As idas e vindas de Martiniano a Lagos, na Nigria o levaram a entronizao no corpo dos Ob de Xang do candombl do So Gonalo, o Ax Op Afonj, e segundo Braga eram um sinal inequvoco do quanto j significava, naquela poca, a reafricanizao ou, melhor dizendo, a renagoizao desses terreiros (Braga;1995:48). A busca da fidelidade da frica, dos pedaos de tradio que so considerados perdidos ou esquecidos (Gonalves;1999:152) j estava presente na dinmica das casas tradicionais do candombl baiano, desde o incio do sculo XX, com a ida a frica de figuras importantes do meio afro-baiano como Martiniano Eliseu do Bonfim e a segunda Iyalorix do terreiro da Casa Branca Ob Tossi e do Pai Ado, famoso babalorix do Xang de Pernambuco. No eixo Rio de Janeiro/So Paulo o empreendimento de busca a uma frica qualificada, 19 produtora de bens simblicos, foi levado a cabo nas duas ltimas dcadas do sculo passado passando a conferir maior prestgio que a viagem Bahia20, considerada no eixo sudeste como centro da tradio afro-brasileira.19No

caso paulista observa Gonalves (1995) que com a publicizao dos candombls, proveniente da adeso de um nmero significativo de indivduos de classes sociais mais favorecidas, esses indivduos tem levado a cabo a empreitada de busca a uma valorizao ostensiva a frica, com as freqentes viagens Nigria e ao Benin, cuja finalidade o resgate dos conhecimentos atravs dos Congressos ou visitas aos templos dos Orixs de l, ou para dar obrigao e receber ttulos honorficos. Esta ida a frica permite uma maior visibilidade do sacerdote e lhe garante um coroamento em sua carreira sacerdotal (ibd;271). 20 Diferentemente, os candombls tradicionais baianos no se mostram com grandes preocupaes em ir a frica na busca de razes, na medida que esses terreiros se consideram as razes.

Ento, muitos sacerdotes, sulistas e alguns baianos, partiram em destino a Nigria e ao Benim, no af de conhecer mais sobre os Orixs. Teve forte influncia neste processo de redescoberta da frica a leitura dos livros de Verger que se transformaram em best-seller entre uma camada do povo-de-santo (especialmente o seu clssico Orixs editado pela Corrupio em 1981). Ao receber estudiosos africanos no Brasil, Verger tambm facilitava os contatos destes como o povo-de-santo. Segundo Braga tambm deve ser levado em conta no processo da reafricanizao ou, nos seus termos, nagoizao o papel e o compromisso do Centro de Estudos AfroOrientais da Universidade Federal da Bahia, criado por Agostinho da Silva em 1959. A partir da dcada de 60, o CEAO passou a desenvolver uma srie de atividades numa perspectiva de aproximao cultural entre o Brasil e frica, principalmente os curso de lngua e cultura Iorub (Braga;1995:49). A implantao do CEAO representou a efetivao da proposta antecipadora de dson Carneiro, que na dcada 1920, vislumbrava a criao de um Instituto Afro-Brasileiro na Bahia. O CEAO realizou obras que iam ao encontro s aspiraes dos segmentos intelectualizados dos candombls baianos (Risrio;1995:58-9).A principal iniciativa do centro veio a ser a implantao do curso de lngua Iorub implantado, atendendo aos interesses dos congregados dos candombls" e ao desejo, que tinha de reforar os tnues laos diretos que conservaram com a frica"( ibd;59). Ministrado pelo professor nigeriano, Lasebikan, foi freqentado em sua maioria por gente-de-santo, pessoas ligadas ao candombl que certamente redefiniram muitos dos seus conhecimentos a partir da aprendizagem de uma lngua que, na sua dimenso arcaizante e sagrada, utilizada no cotidiano de suas prticas religiosas. (ibd;1995:49). Alm do curso de ioruba o CEAO incrementou um intenso contato com a comunidade negra, em especial com o povo-de-santo, atravs de cursos de kikongo, de histria e cultura dos afro-brasileiros e dos povos africanos (Bacelar; 2001:135)21.

21 Com a criao do CEAO observa Risrio, se criou um campo magntico cujos efeitos se estendem at os dias atuais. A exemplo do Projeto terreiro" da Fundao Gregrio de Mattos, em 1985, que teve a iniciativa indita no campo da administrao pblica do pas de uma poltica de preservao e recuperao dos terreiros de candombl, quando at ento a ao estatal se reduzia preservao de monumentos de pedra e cal da etnia dominante"(Risrio;1995:60). Do mesmo modo, que se criou o tombamento aos terreiros fundantes pelo IPHAN (Instituto do Patrimnio Histrico Artstico Nacional). O que tambm possibilitou a implantao das casas do Benin e de Angola.

Do mesmo modo, o CEAO possibilitou o intercmbio Brasil - frica em esfera oficial. Nesse empenho um grupo de pesquisadores tomou rumo Nigria. Risrio acredita que o sonho de Martiniano-Ojelad de incrementar os contatos entre Brasil e frica teria sido contemplado com essa viagem de pesquisadores, estudantes e professores no anseio de aprofundar os conhecimentos sobre o continente africano. Em suma, as recriaes e reinvenes das tradies dos terreiros de candombl, tambm obedeceram s estruturas econmicas da sociedade dividida em classes a qual estavam inseridos. Mesmo nos candombls mais ortodoxos e ostensivamente zelosos de suas origens africanas, as mudanas foram inevitveis, no deixando de existir, factual e ntido, o processo das modificaes estruturais causadas pelas acomodaes situacionais; pela diminuio ou mesmo supresso de algumas prescries rituais, sobretudo aquelas referentes durao de perodo de recluso ritual e interdito comportamentais e por vrios outros fatores de ordem scio-econmica (Costa Lima; 1977:11) O tempo de recluso inicitica, conventual, foi diminudo em razo das presses econmicas fazendo atenuar o rigor da norma introdutria na vida secular do nefito22. Seria a presena da frica qualificada na manipulao de traos genricos, em maior ou menor grau que definiria os cultos afro-brasileiros relacionados noo de tradicionalidade. Foi em nome dessa tradio originria que fez com que a visibilidade desses cultos tidos como ilegtimos e misturados, fossem ofuscados esquecidos por uma tradio de cientistas sociais. A gerao de intelectuais que iniciaram suas pesquisas nos anos 70, levou a srio no somente a denuncia desse compromisso, vindo a colaborar na defesa dos cultos excludos, aqueles sincreticos (Birman;1997:82), os que criam novas tradies com o Terreiro de Pai Beto de Oxal que cada vez mais se empenha em adaptar seu terreiro s exigncias do mundo moderno. Em uma das festas em que estive presente, com um grupo de alunos do curso de formao de guias de turismo, o terreiro contava com um recurso sonoro inovador para uma casa-de-santo que se classifica como nag tradicional na Bahia: ao lado dos atabaques encontrava-se uma caixa de som amplificada e um microfone que era revezado pelo grupo

de solista. Assim acabo concordando com Hobesbawn que toda tradio uma inveno, que visa a atender a estruturas estruturadas e estruturantes do diversos poderes simblicos como diria Pierre Bourdieu. Reinveno da tradio Pela categoria de tradio entende-se um conjunto de sistemas simblicos que so passados de gerao a gerao, que tem um carater repetitivo. Repetio significa atualizao dos esquemas de vida. Em outros termos, pode-se dizer que a tradio uma orientao para o passado, de modo que o passado tem uma significativa fora e influncia sobre o curso das aes presentes. A tradio tambm se reporta ao futuro, ou melhor como organizar o mundo para o tempo futuro. Segundo Weber (1991:148) uma das formas de dominao em uma sociedade calcada na tradio, a crena na santidade das ordens e dos poderes existentes desde sempre, cujo contedo no se tem possibilidade de alterar, funcionando como o cimento que une as ordens sociais. Porm, salienta Sahlins (1987), os sistemas simblicos no devem ser pensados como estticos, e sim dinmicos, atendendo ao curso da histria para se reproduzirem. Conclui que as coisas devem preservar alguma identidade ou o mundo seria um hospcio (1987:190). Desse modo, em toda mudana v-se tambm a persistncia da substncia antiga: a desconsiderao que se tem pelo passado apenas relativa. por esta razo que o princpio da mudana se baseia no princpio da continuidade (Sahlins, 1987:190). Assim, devemos entender a categoria tradio com um campo que envolve um ritual, o que confere o status de integridade, como um meio prtico de garantir a preservao calcado em modelos que podem ser histrias mticas, reais e reinventadas, dando conta dos mltiplos processos de resemantizao e de ressimbolizao no curso da historia dos atores sociais. Em suma, a tradio passa a ter um carater normativo, relacionados aos processos interpretativos por meio do qual o passado e o presente so conectado para ajustar o futuro. Desse modo, a tradio passa a representar no apenas o que feito numa sociedade, mais o que deve ser feito no prprio processo de mudana22

Nos tempos antigos, a recluso no terreiro durava entre seis meses e um ano, o que limitava as atividades econmicas dos filhos-de-santo (ibd; 1977:11).

Como observa o historiador Eric Hobsbawn: toda tradio uma inveno, que surgiu em algum lugar do passado podendo ser alterada em algum lugar do futuro. As tradies esto sempre mudando mas h algo em relao noo de tradio que pressupe persistncia; se tradicional, uma crena ou prtica tem uma integridade e continuidade que resistem aos contratempos e as mudanas. Desta maneira as tradies tendem a ter um carater orgnico: se desenvolvendo e amadurecendo, ou enfraquecendo e morrendo. Por isso, os agentes sociais os guaries os mediadores do sagrado realam constantemente os elementos constitutivos da tradio: a integridade, ou a autenticidade assegura Giddens, entretanto observa Sahlins que: Para compreendermos os movimentos culturalistas contemporneos, as lies da sabedoria boasina tradicional poderiam ser tomadas da seguinte forma: a defesa de uma tradio implica alguma conscincia, conscincia da tradio implica alguma inveno, a inveno da tradio implica alguma tradio ( Sahlins apud Birman, 1997: 89). Entrementes, no foi enquanto inveno que a categoria nativa de tradio se cristalizou e naturalizou no campo acadmico do inicio do sculo XX, mas sim em termos de uma cultura inerte ao tempo, no dando conta da historicidade, da posio dos sujeitos na estrutura do campo religioso e da subjetividade desses atores. Assim, faz-se necessrio observar que os conceitos e categorias so produzidos pelos atores sociais, para atender as expectativas de suas prprias aes e a necessidades de relaes significativas em suas vidas. Logo, no campo do candombl os sacerdotes mais atvicos as suas tradies originrias no reconheciam como legtimos os cultos misturados, acentuando como legitimo os candombls Keto. O debate da tradio versos inveno Na dcada de 60 do sculo XX, inicia-se um largo processo migratrio do Nordeste para as grandes reas industrializadas no Sudeste do pas. Com isso, migram alguns sacerdotes baianos da tradio dos candombls que passam a empreender suas marcas nestas cidades. Prandi parte do suposto de que o candombl comeou a penetrar no bem estabelecido territrio da umbanda, e vrios sacerdotes umbandistas passaram a se iniciar

no candombl. Acentua este autor que neste momento da histria brasileira, as classes mdias urbanas buscavam traos culturais que poderiam ser tomado como as razes originais da cultura brasileira. Desse modo, intelectuais, estudantes, artistas participavam dessa empreitada, que tantas vezes foi bater porta das velhas casas-de-candombl da Bahia (Prandi; 1996:16). Na Bahia, como j descrito antes, os candombls, cada vez mais, almejavam ao ideal de pureza de suas naes, severamente exigidos pelos sacerdotes, desde o tempo de Martiniano, Me Menininha do Gantois, ainda uma nova Iyalorix, no tempo em que concedeu entrevistas a Ruth Landes (Pierson; 1971 Landes; 1967). Ambos endereavam as suas crticas especificamente para os sacerdotes que introduziam na prtica religiosa o culto dos Caboclos, e os cultos de liderana masculina, salvaguarda de dois pais-de-santo amigos de Menininha, a quem essa mostrava respeito, mas ambos eram fervorosos na defesa do matriarcado como um sinal diacrtico da tradio dos candombls nag. Birman, no seu livro Fazer Estilo criando Gnero (1995), parte do suposto de que a liderana feminina nos cultos afro-brasileiros expressa uma fidelidade tradio, revestindo de um minucioso esmero o culto dos Orixs e contrastando em relao a alguns terreiros liderados por pai-de-santo. Birman acredita que os terreiros Dirigidos por homens apresenta uma abertura para fora mais evidente: as festas incluem um nmero maior de pessoas estranhas ao cotidiano da casa, h um carter mais mundano nas atividades: o luxo, as fofocas, o clima geral de um acontecimento altamente excitante e envolvente. Terreiros dirigidos por mulheres so mais fechados: o seu ncleo defende-se da poluio que vem de fora, h uma nfase nas fronteiras da casa e na exigncia de fidelidade de seus participantes (1995: 56). No limite, faz-se preciso relativizar, com muito cuidado, essas afirmaes de Birman quando se trata da Bahia, no mximo podendo tais afirmaes ser validas para o eixo Rio/So Paulo. sabido da fama de pais-de-santo que mantm a tradio aos Orixs com a mesma fidelidade dos seus ancestrais. Entretanto, sabe-se tambm que em muitas casas lideradas por homens esto presentes tanto a mundanidade (as fofocas, o luxo, o sexo) quanto a moralidade da face feminina, que tambm no escapa do mesmo jogo mundano dos candombls masculinos. A

questo de gnero no pode ser o definidora da tradio, pois acabaria por ter a mesma viso etnocntrica dos velhos sacerdotes, para a cristalizao de um ethos ideal. Como j dito anteriormente, a antroploga Beatriz Dantas assevera que essa construo ideal tpica jeje-nag teve grande influncia dos intelectuais que realizaram as suas pesquisas nas casas-de-santo tradicionais baianas da nao Keto, calcada no matriarcado. A idia de pureza foi, portanto, idealizada pelos pesquisadores concomitantemente com a idia de tradio, e relacionada com a histria de cada casa-desanto na preservao dos costumes e valores dos ancestrais africanos. A noo de pureza dos cultos afro-brasileiros facilmente reconhecvel nas analises da literatura antropolgica, desde o inicio do sculo XX at a dcada de setenta. Os intelectuais buscaram uma correspondncia entre a valorizao da tradio africana e a valorizao de uma tradio anti-sincretica, pura, que remetia a uma perspectiva intelectual de pensar o afro-brasileiro, quanto a uma prtica religiosa mantidas pelas casasde-santo tradicionais na Bahia. Em nome de uma tradio originria no se reconhecia como legtimos os cultos misturados. Por sua vez, a gerao de intelectuais que iniciou seus trabalhos nos anos 70, deste mesmo sculo, levou a srio no somente a denuncia desse compromisso, como tambm veio a colaborar no sentido de defender os cultos excludos, aqueles supostos sincrticos (Birman; 1995 :82). Desta forma, inaugura-se uma analise mais atenta para as transformaes das religies afro-brasileiras, identificando uma nova morfologia social dos terreiros de candombl. Os cultos populares antes desprezados pela tradio intelectual ganham um lugar ao sol, assim como outras vertentes das religies afro-brasileiras, tais quais a umbanda, as casas-de-santo da nao Angola. Isto se deu na tentativa de entender melhor o fenmeno do sincretismo e o carter dinmico da cultura ao reinventar a tradio. Na cidade de Salvador significativo o nmero de novas casas-de-santo de outras vertentes no to prximas do modelo ideal purista, e das casas consideradas tradicionais que, aos poucos, foram se mostrando abertas para dialogar com a diversidade de prticas magicas ofertadas no mercado religioso. O crescimento de um corpo de especialistas do candombl se d devido ao fato como de que o exerccio de

sacerdote qualificado no candombl representa a possibilidade de exercer uma profisso que, nascida como ocupao voltada para os estratos baixos de origem negra, passou recentemente, a compor os quadros dos servios de oferta generalizada a todos os segmentos sociais, a reivindicar o status de uma profisso de classe mdia (Prandi;1996 :36). Muitos dos novos sacerdotes no passam pela iniciao, operador de distino que, a rigor, classifica os indivduos como pertencentes religio dos Orixs. Outros ainda no completaram as obrigaes prescritas de um, trs e sete anos, especialmente esta ltima, que finaliza o processo inicitico ou, como mais conhecido, no tomou o dek23, termo advindo da nao Angola e, adaptado a outras naes, concernente ao recebimento do cargo de me ou pai-de-santo 24. Esses lderes so classificados pelo povo-de-santo, desde a poca das pesquisas de Bastide na dcada de quarenta do sculo XX, como improvisados clandestinos, feitos dos ps para a cabea, pais e mes-de-santo de eke. Os sacerdotes clandestinos se valem, para explicar sua falta de iniciao religiosa formal, de clichs racionalizados da sua deficincia, dos quais o mais comum dizerem que foram feitos de bero ou de nascena, isto ; nasceram feitos. Observa Costa Lima (1999) que a expresso talvez seja mais empregada porque em sua ambigidade pode fazer com que se julgue que a me ou o pai-de-santo feito de bero, ou de nascena, tenha nascido na camarinha, durante a iniciao, considerando-se estes como bik Lima; 1999: 52)26.23Segundo Costa Lima a entrega do dec nem sempre dado automaticamente, freqentemente os sacerdotes recusando-se a entregar o cargo de pai ou me-de-santo. Na sociedade moderna, em que se diminui a interao face a face, os filhos-de-santo por razes de ordem econmica vo ao terreiro com mais freqncia no perodo das obrigaes, no lhe conferindo competncia para exercer o sacerdcio. O sbio sacerdote expe ao seu filhode-santo a recusa atribuindo a deciso ultima dos Orixs. Caso no haja uma aceitao da recusa por parte do filho-de-santo, este provavelmente ira fazer a obrigao em outra casa, geralmente de um lder rival de sua me que prazerosamente aceito o encargo e completa a obrigao de ebmi, entregando-lhe o ambicionado dec " (Costa Lima; 1999: 47). 95.Observei esse ritual no terreiro de Pai Beto, na entrega do dek a Fomo de Oy que consistiu em uma entrega de uma cabaa cortada ao meio (em alguns terreiros em vez da cabaa uma peneira) com os objeto relacionados ao ato da iniciao dos futuros filhos-de-santo feitos, os objetos so os bzios para implantao da prtica divinatria, uma navalha, e o rumgebe (colar de miangas marrom avermelhado com coral vermelho e uma conta azul - segui). 96bik so espritos que tivera diversas aparies, julga-se vir ao mundo por um breve momento para voltar ao mundo dos mortos, orum, vrias vezes. Maior detalhes sobre os bik sobre os bik ver Verger. Pierre- A sociedade Egb Orun dos bik, as crianas nascem para morrer vrias vezes. In: Afro-sia, N.14 CEAO-UFBa.1983. 26Muitos dos lderes no to ortodoxos utilizam-se do expediente fotogrfico como forma de registrar o ato de iniciao, a fim de garantir legitimidade, sobre a possvel contestao de sua iniciao.

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(Costa

Essas reinvenes de tradies afro-brasileiras esto diretamente ligadas ao dinamismo cultural da sociedade moderna, que expe seus produtos no hipermercado dos bens simblicos. Mesmo reinventada a tradio acaba funcionando como ingrediente necessrio no discurso desses novos sacerdotes das religies afro-brasileiros. Esses candombls classificados por mim de modernos, no sentido de terem se instalados e consolidados recentemente em relao queles tradicionais, os mais antigos, buscam selecionar determinados sinais diacrticos de pureza (autenticidade, filiao a um terreiro tradicional) para funcionar como demarcadores de uma tradio, que a todo instante reivindicada para aceitao no mercado religioso. Outra mudana recorrente nesses terreiros modernos a troca da nao, do modelo Angola para o Keto, e nunca ao contrrio, sendo este um expediente eficaz para alguns dos sacerdotes, que buscam espao no mercado religioso. As mudanas levam ao abandono de elementos da tradio iniciada, em favor da outra mais valorizada no campo religioso Prandi (1991) constatou em suas pesquisas sobre os candombls que as constantes mudanas dos sacerdotes: so de iniciativa e arbtrio do pai ou me-de-santo, que, contudo, estrategicamente, sempre afirmar tratar-se de desgnio do Orix, que mostra seu desejo atravs do jogo de bzios, o qual s pode ser jogado e interpretado exatamente pelo pai ou me-de-santo, o chefe da casa (Prandi;1991:110).

As migraes racionalizadas ocorrem ainda no plano da filiao. Existem filhos-desanto que ao se desentenderem com seus iniciadores buscam completar ou terminar as obrigaes rituais com outros pais e mes-de-santo. Alegam varias razes para sua transferncia, podendo ser o caso de seus Orixs terem sido iniciados na nao errada, ou, mesmo, terem feito o santo errado. Alguns, nesta estratgia de legitimao, buscam lderes que dispem de um carisma no mercado religioso, uma visibilidade na mdia ou, at mesmo, por uma afinidade com o sacerdote escolhido. Alguns dos novos lderes que migram de um terreiro a outro, de nao a outra, em muitos casos se mostram abertos para o dilogo com outras prticas, advindas do

esoterismo, da cabala e da prpria umbanda. Rituais, tido no tipo ideal jeje-nag como depurados, so realizados em suas casas, particularmente as sesses de giro de Exu27. Consideraes Finais significativo atentar para o fato de, atualmente, existir um conflito entre os sistemas de crenas afro-brasileiros, que vem sendo postulado na concorrncia dos bens simblicos. Assim, pais e mes-de-santo procuram uma incessante legitimidade, referindo sempre na genealogia de seus terreiros alguma ligao com os terreiros tradicionais ou refiliaes com lderes de grande reconhecimento pela sociedade exterior religio. Os mecanismos de legitimao de alguns desses terreiros envolviam e continuam a envolver a adoo de ebmis das casas importantes que assumem papel de prestgio na hierarquia da casa (Costa Lima;1987:42), garantindo um atestado de competncia e legitimidade nos conhecimentos, detentores de "fundamentos"; distncia que os separam dos outros. A competncia e o conhecimento se somam um conjunto de estratgias articuladas pelos pais e mes-de-santo que lhes confere reconhecimento. Tendo em vista que na atual sociedade brasileira a eficcia e a competncia so os indicadores importantes para adeso dos indivduos a uma agncia religiosa, seja a um terreiro de candombl, ou a uma igreja neo-petencostal. Os indivduos, atualmente, apegam-se na promessa e na possibilidade de administrar o seu prprio destino, coexistindo sempre a crena de alcanar respostas significativas para os acontecimentos adversos apresentados na vida cotidiana, vendo, assim, na competncia explicitada, por diversos canais de divulgao, do sacerdote das religies afro-brasileiras a possibilidade de encantar o mundo, torn-lo mgico e desse modo, compreende-lo, aceit-lo, ajust-lo as27

As sesses de giro de Exu ou as festas, paulatinamente, vm tendo um colorido umbandista. Geralmente, as festas tem incio com cnticos em lngua Angola e os atabaques so tocados com as mos, trao distintivo do toque Angola em relao ao Keto, que toca-se com varinhas de araazeiro, aguidavis. Sada-se todos os inquies, equivalentes aos orixs nags, e aps os cnticos tm incio o transe dos filhos-de-santo pelos seus respectivos Exus, esses Exus diferem do Exu africano, so espritos de indivduos que tiverem uma conduta moral transgressora: bbados, malandros e prostitutas, essa ideologia advm do espiritismo Kardecista em que essas entidades estariam em estgio de evoluo crmica. Curiosamente, essa modalidade de culto se processa em casas que tambm reivindicam a tradio nag. A exemplo do terreiro Ajaguna de pai Beto de Oxal que foi sistematicamente estudado na pesquisa do mestrado. O terreiro classificado pelo pai-de-santo como Keto, recorrendo s vezes a uma linhagem Angola. No obstante, incorpora os comportamentos rituais da umbanda. Afirma o pai Beto respeitar a umbanda, mas no se mostra muito adepto das prticas e ideologias, explica que forcado pelas presses do mercado religioso, quando afirma que s cultua Pomba Gira pela procura de suas clientes, segundo ele algumas dessas senhoras saem dos seus carros manifestadas, pedindo-lhe cigarro e bebidas.

normas impostas pelos infortnios, apresentados na vida cotidiana, estabelecendo uma relao de casualidade dos problemas apontados a uma dimenso mgica, recorrendo, no limite, aos auxlio de profissionais com agncias qualificadas, que travam uma luta concorrencial no mercado dos bens simblico, na busca de uma grande demanda de clientes e fiis. No cenrio atual da nossa sociedade o clculo, a probabilidade e previsibilidade so formas de enfrentamento do indivduo com o seu ( mal) estar no mundo. Os indivduos so conduzidos a racionalizarem as suas vidas pelas ofertas expostas nos balces do mercado religioso, um mosaico de formulas mgicas, de doutrinas esotricas, de medicinas paralelas, de psicanalismo e todo um amplo receiturio de modos de vida e superao dos obstculos, intervindo a um favorvel desfecho. Assim elabora-se um cenrio, re-encantando o mundo, racionalizando um repertrio de signos disponvel e eficaz, no intuito de garantir e prover ideologicamente os indivduos a uma segurana psicolgica e re-elaborar suas identidades, possibilitando a manifestao dos eus contidos e reprimidos nas sociedades modernas. Nessa trama simblica almeja-se metforas e arqutipos satisfatrios ( signo astrologico e ancestralidade mtica ) capazes de prover aos indivduos a alteridade para pensar a si prprio. No Brasil, em particular na Bahia, os indivduos racionalizam suas condutas recorrendo muitas vezes a recursos religiosos e eficazes, desta maneira as religies afrobrasileiras, promotora tanto de uma auto-identidade, quanto uma identidade comunitria, na eficcia dos mtodos e o discurso da tradio produtor de legitimidade. Desta maneira, na atualidade o candombl passou a compor ao elenco de oportunidade de enfrentamento do mundo ao mesmo tempo passou a ser mercadoria das camadas economicamente privilegiada (branca) e objeto de anlise (desde do incio deste sculo) dos antroplogos, socilogos, historiadores e psiclogos, os signos religiosos tornaram objetos exticos pelos rgos de turismo e cultura do estado da Bahia e da cidade de Salvador. justamente nesse cenrio de busca pelo extico, pelo encantamento do mundo, que emergem novos lideres religiosos que prenunciam em sua careira sacerdotal a possibilidade de ascenso, tendo em vista que cada vez mais na sociedade brasileira se aceita o feiticeiro e sua magia, abrindo desta forma canais de divulgao em emissoras de

TV e espaos especficos em shopping center, para prestao de servios. Com este prestigio e reconhecimento esses lideres modernos e eclticos ingressam na competio do mercado de trabalho por deter uma competncia real ou atribuda pela agncia formadora. ( Prandi; 1993:106) Em suma, no novo contexto dos candombls baianos, no apenas o iderio normativo da tradio do modelo jeje-nag que assegura a legitimidade aos pais e mes-desanto entre o povo-de-santo, o que esta em jogo a competncia no campo religioso do pai e me-de-santo frente s expectativas coletivas que almejam encantar as suas vidas. Isto ; esperam uma operacionalizao do campo sagrado para atender as aflies e tormentos apresentados no dia-dia. Outro ponto destacado entre o povo-de-santo que funciona como um demarcador de legitimidade o poder carismtico do sacerdote, o domnio de uma linguagem que agrega em torno de si os seus fiis e uma vasta clientela carismaticamente dominados (Weber, 1994, 154) e a divulgao de suas qualidades especiais na manipulao do mundo mgico. Durkheim (1989) aponta para o fato de que os clientes no fazem parte da religio, por no se constiturem como base efetiva da comunidade moral (a igreja), tendo apenas uma relao utilitarista com servios prestados pelos sacerdotes, entretanto, numa perspectiva weberiana, mesmo a clientela sendo fugaz, ela tende a reforar o poder do sacerdote, enquanto um burocrata, no cumprimento de modo satisfatrio de suas funes. Assim, a clientela torna-se, ento, objeto de influncia decisiva na legitimao do sacerdote, que tende a sistematizar as suas formulaes mgicas, o seu conhecimento e sua eficcia nos tratamentos de aflies e tormentos apresentados (Weber;1994:319). Os pais e mes-de-santo nesse caleidoscpio do mundo moderno se viram obrigados a racionalizam as suas prticas; o jogo de bzios, as consultas privativas, ou os ebs aos seus clientes que cumprem uma funo importante para o candombl como religio. No obstante, incide Prandi que a clientela procura o candombl pelos servios mgicos ofertados, no encantamento desse mundo atravs dos ritos sacrificiais. A constante procura pelos servios das religies afro-brasileiras se d no af, na curiosidade dos indivduos saberem qual o seu Orix de cabea, ou na busca de uma resoluo imediata das aflies, privaes e incertezas. Essa clientela no diferente das que procuram

kardecismo, pentecostalismo, umbanda a depender da classe social psicanlise e outras modalidades teraputicas (Prandi; 1993: 26-7). Nesse hipermercado, ou melhor nesse mosaico de bens religiosos so inmeros os pais e mes-de-santo apontados pelo povo-de-santo baiano, como grandes provedores de "ax", pelas suas competncias explicitadas na eficincia dos servios prestados pelas suas divindades os Caboclos, Exus e Pomba Gira a clientela. Sendo assim, os pais e mes-desanto dos candombls que se mostram com uma abertura para socializar o Outro, nesse caso o Outro so as representaes e prticas umbandistas, particularmente, o culto dos Exus abrasileirados. Esses modelos de candombls distante do ideal normativo das casas ortodoxas respondem s expectativas da clientela, que sem um clculo mecnico ajustam-se de imediato s exigncias inscritas no mercado religioso, como j dito na resoluo das aflies e tormentos dos fieis, sade, problemas financeiros e questes amorosas. Em suma, os pais e mes-de-santo "eclticos", "modernos" garantem nas suas agncias religiosas a legitimidade, tirando proveito do capital simblico de reconhecimento frente aos devotos assim como a toda sociedade.

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