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    O que pesquisar Entre Deleuze-Guattari e ocandombl, pensando mito, ci ncia, arte

    e culturas de resist ncia

    Jacques Gauthier *

    RESUMO: A cincia atual uma ci ncia do evento e do aconteci-mento. Explorando, ap s Deleuze, a diferen a entre evento e acon- tecimento na filosofia est ica, o autor caracteriza v rios modos defazer ci ncia : a dupla captura, referida, numa vis o transcultural, divindade Ogum do candombl ; a matura o escura, referida divindade Oss e etc. Da so discutidos, com base em Spinoza, aquest o do local e do universal na constru o do conhecimento, ecom base em Michel Serres, o problema da articula o entre mitoe ci ncia. A pesquisa de Graziela Rodrigues, Bailarino-pesquisa-

    dor-int rprete: Processo de forma o, tomada como exemplo deabordagem inovadora, transcultural e sociopo tica. Uma perguntaconclui este artigo: ser que a descoloniza o dos esp ritos (e doscorpos) passa pela cria o de uma episteme transcultural?

    Palavras-chave : Teoria da pesquisa, sociopo tica, transculturalidade,mito, ci ncia

    Algumas duplas capturas

    Ao refletir sobre a ci ncia atual, Gilles Deleuze, numa obra que podeser considerada como uma explica o ( ex-plica o , desdobramento) dos

    * Doutor em Ci ncias da Educa o; Pesquisador da Universidade de Paris III;(Equipe de Pes-quisa P s-Doutoral ESCOL Education, Socialisation et Collectivit s Locales ); Pesqui-sador do Desenvolvimento Cient fico Regional CNPq / Programa de P s-Gradua o da Fa-culdade de Educa o da Universidade Federal da Bahia. Email: [email protected]

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    grandes conceitos criados em parceria com F lix Guattari: Di logos (Deleuze e Parnet 1996), aponta que a f sica, a matem tica, a biologia eas ci ncias sociais trabalham cada vez mais sobre estados de corpos ,sobre agenciamentos heterog neos , sobre inter-reinos (animal, vege-tal, mineral). O exemplo que Deleuze gosta de tomar o da abelha e daorqu dea, agenciamento de corpos que cria uma m quina nica, atrav sde uma dupla captura, do bicho pela flor e da flor pelo bicho. O modelode cientificidade n o mais a axiom tica nem a estrutura (na busca deformas que tornem homog neos e hom logos os elementos vari veis),mas sim o acontecimento ou evento, singular, incorporal, que tem suaefetua o em corpos ou estados de corpos: No tira-se mais uma estru-tura comum de elementos quaisquer, espalha-se um evento, contra-efe-

    tua-se um acontecimento que corta diferentes corpos e efetua-se em di-versas estruturas (Deleuze e Parnet 1996, p. 82).

    Pesquisar criar devires , exprimir o virtual inclu do em uma situa-o, lan ar multiplicidades que n o podem ser presas nas grandes m -quinas estatais, geralmente bin rias (tais como homem-mulher, branco-negro, adulto-crian a etc.). Nas ci ncias humanas e da sociedade desen-volvem-se pesquisas estudando o singular , tais como as pesquisasetnometodol gicas e interacionistas, socioanal ticas e sociopo ticas,etnocenol gicas e ritual sticas. Uma rea do conhecimento criada, aospoucos, na qual s o teorizados os dados produzidos pelos grupos-sujei-tos das pesquisas, sendo estes dados cria es singulares , quase art s-ticas, inesperadas e imprevis veis, dos sujeitos pesquisados. Muitas ve-zes, os pesquisados tornam-se pesquisadores ao participar da leitura, daan lise, da experimenta o e da teoriza o dos dados que produziram.

    interessante, a , lembrar que o grande te rico da singularidade,Spinoza (e seria bom ler Leibniz tamb m com esta preocupa o), pensa-va o objeto de conhecimento segundo dois eixos: a integra o na unida-de do ser e a dissemina o. A integra o foi glorificada pelas narrativasracionalistas e estruturalistas, pois ela relaciona a complexidade ca ticado que ocorre com a subst ncia universal, Deus, isto , a Natureza. Os ci-entistas encontravam, nessa leitura homogeneizante, as suas pr priaspreocupa es em submeter a variedade lei geral, as varia es ao tema,a flex o ao radical. Por manter o car ter irredut vel da diferen a na singu-laridade, o segundo eixo foi desprezado: poucos cientistas reconheciam

    seu fazer cient fico na filosofia da diferen a. S a partir dos desenvolvi-mentos cient ficos do s culo XX tornou-se poss vel uma leitura que come-asse pela descri o das dimens es da singularidade, e seguisse, pas-

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    so a passo, seu devir imprevis vel pela raz o humana nem sempre su-ficiente ! Um exemplo a Teoria das Cat strofes do matem tico Ren Thom (1977), bem como a Transforma o do Padeiro e as Teorias do Caos(ver Prigogine e Stengers 1988). Ao pensar numa vertente bem diferentedo pensamento, n o por acaso que se reavalia hoje o empirismo, t odesprezado pela tradi o racionalista: os empiristas exercitam sua cons-cincia cr tica sobre as teorias, consideradas como narrativas, cujo sen-tido se encontra, tamb m, nas encruzilhadas entre o imagin rio humanoe os objetos sens veis. O racionalismo cl ssico n o foi suficientementeatento dimens o imagin ria da experi ncia e da pr tica cient fica, nem singularidade dos objetos que ele pretendia transformar em objetos deconhecimento. As singularidades nos obrigam, por causa dos seus devires

    nunca contemplados nos discursos institu dos, a ser atentos poiesis danatureza e da vida social, a seu poder de autocria o e s implica esdo nosso olhar chamado de cient fico, nesse processo de cria o.

    Por exemplo, criar um devir, na linguagem, criar um estilo singu-lar, falar a sua pr pria l ngua como um estrangeiro. Essa produ o reali-za-se, segundo Deleuze e Guattari (1980), por uma m quina de guerra n made , totalmente diferente dos ex rcitos estatais. A m quina de guer-ra procede por duplas capturas . Na rea da educa o, sem a captura re-cproca dos procedimentos acad micos de pesquisa e de pr ticas e conhe-cimentos de pais, alunos, comunidades, nenhum conhecimento novo podeacontecer. A captura n o pac fica. N o uma s ntese. a cria o, dif -cil, de outra coisa , onde est o conectados corpos, id ias, energias ha-bitualmente soltas. a cria o de novas intensidades, que geram novosconceitos. Esse processo chamado de desterritorializa o. No exem-plo tomado s o desterritorializados tanto a pesquisa acad mica (o saber em educa o) como os pais, os alunos e as comunidades. Isto o que

    Deleuze e Guattari ( op. cit ., p. 34) chamam fazer rizoma :

    Existem linhas que n o podem ser resumidas em trajet rias de umponto e que fogem da estrutura, linhas de fuga, devires, sem futu-ro nem passado, sem mem ria, que resistem mquina bin ria,devir-mulher que nem homem nem mulher, devir-animal que nem bicho nem homem. Evolu es n o paralelas, que n o procedempor diferencia es, mas que pulam de uma linha para outra, entreseres totalmente heterog neos; fissuras, rupturas impercept veis,que quebram as linhas, mesmo se retomam em outro lugar, pulan-do por cima dos cortes significantes tudo isso o rizoma.

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    Para tomar um outro exemplo, bem conhecido: a etnometodologiateve um dos seus in cios no encontro entre o pesquisador Garfinkel eAgnes, pessoa que queria mudar de sexo anat mico. Do encontro en-tre os dois nasceram linhas de fuga altamente criadoras em termos deconhecimento. A dupla captura Agnes-Garfinkel produziu um saberinstituinte sobre os m todos utilizados pelos m dicos, pelo pessoal deenfermagem, pela comunidade acad mica, pelas fam lias por v riosterrit rios inclusive o corpo de Agnes, que escolheu consertar o erroda natureza que colocou para ela, mulher, um rg o viril para dar umaexist ncia social e significa o ao g nero. 1

    A m quina de guerra n made cria uma nova circula o de afe-tos, exp e o virtual presente no atual, gera saberes inesperados. A di-ficuldade que esses saberes passam como fluxos, n o s o identi-ficveis segundo os h bitos acad micos de pensamento. Eles n o t muma identidade. N o se trata, a , da produ o de uma nova identidade,muito pelo contr rio. S o criadas novas intensidades, sim, s vezesevanescentes (como os quarks na f sica at mica), s vezes dur veis.Uma conseq ncia muito importante que a pesquisa em ci ncias hu-manas e sociais desenhar mapas de intensidades, e de jeito nenhum,mapas, carteiras de identidades.

    O acontecimento, o evento e alguns orix s

    Em coer ncia com Deleuze e Guattari vou experimentar a seguintemquina de dupla captura: de um lado, a pr pria intensidade Deleuze- Guattari , intensidade m ltipla, sobretudo, n o dual. De outro lado, o can-dombl , agenciamento complexo de corpos e discursos. No centro, oumelhor, em todos os lugares, o conceito filos fico expresso por Deleuzee Guattari atrav s da palavra francesa v nement . Ora, a l ngua portu-guesa tem duas palavras quando a francesa tem somente uma: even-to e acontecimento . Reflitamos sobre a diferen a entre evento eacontecimento : Acontecimento vem de acontecer , do que est tecido

    junto. Evento vem do que e-veio , do que est indo para fora; do que est surgindo, como o vento.

    Em refer ncia filosofia est ica, apesar da dificuldade da l nguafrancesa que ignora essas diferen as, Gilles Deleuze (1969) caminhourumo a uma compreens o da polissemia da palavra v nement . O

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    estoicismo coloca do lado do acontecimento o que exprime, aqui e ago-ra, a necessidade universal, o destino. O acontecimento sempre neces-s rio (da , lamentar-se e esperar n o t m nenhum sentido); ele sem-pre singular, diferente de um acontecimento outro ( comer no nadar nem falar ); ele sempre complexo ( comer aqui e agora n o comeramanh , ontem ou em outro lugar: o gosto diferente, a luz, o ambien-te, os outros ). O atual, o estado ou fazer atual, o ponto para onde con-vergem todas as caracter sticas necess rias da situa o: eu estou co-mendo tal comida em tal companhia e tal ambiente

    O evento o incorporal que intensifica e contra-efetua o acon- tecimento . Podemos exprimi-lo assim: o comer . O evento o infinitivo.Existe, aqui e agora, o comer . Voc veio at esta comida, pouco im-porta se foi de nibus, a p , voando, voc veio: o vir . Destaca-se umalinha abstrata, o vir , o comer , o falar , o nadar , o cair , o estar .Nunca o Ser, nunca o Eu. Nem mai sculos, nem subst ncias, nem su-

    jeitos. Processos, estados, devires. O evento liga diretamente o atualcom o virtual. Voc passou por um vir? Voc est atravessado por umcomer . A existe um falar virtual, ou um cair da sua cadeira, ou umsambar . O evento abre para uma multiplicidade de devires outros. s falar.

    O desejo vai e vem entre evento e acontecimento. s isso, o de- sejo. Desculpe, uma intui o passou.

    Ao ler Deleuze e Guattari surgiu a imagem de Dion sio. O eventoDeleuze-Guattari, a filosofia do desmembramento. Mas esquecemos queDion sio significa: Aquele que nasceu duas vezes . Sim, depois do seudesmembramento, seu cora o foi comido por Pers fone, filha de Dem ter(a Deusa-terra) e esposa de Hades (o Deus dos Infernos), aquela mo a

    bonita e misteriosa que passa seis meses com a m e, no ver o, e seismeses com o marido, no inverno nosso. E Dion sio nasceu uma segundavez, de Pers fone. Da surgiu uma id ia: falta filosofia francesa contem-por nea a figura feminina da fecundidade da escurid o, do lento trabalhode matura o, do segredo da lama em que come aram as coisas, figuram tica que o candombl conhece sob o nome de Nan Buruku. 2

    Relendo Deleuze e Guattari pareceu-me relevante a capturadessa intensidade pelo candombl . Na terra baiana que escolhi comoterrit rio, na na o Angola que foi escolhida atrav s de mim, os orix sdo candombl s o miticamente mais relevantes para pensar que osdeuses da antig idade grega. Assumindo essa dupla escolha , apon-

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    to que o desmembramento um efeito da singularidade-Exu, 3 assimcomo as liga es novas, instituintes.

    Gilles Deleuze, provavelmente, era filho de Ogum, orix guerreiro,patrono do ferro e da tecnologia ( tem a fun o de assiwaju , aquele quetoma a frente acrescentam Sodr e Lima 1996). Ox ssi, irm o dos doisprecedentes (ou filho de Ogum em algumas vers es), orix ca ador, ha-bitante das matas, patrono da na o nag -ktu, rege igualmente a inten-sidade-Deleuze. Exu, Ogum e Ox ssi est o mais do lado do acontecimento .Pelo menos a guerra e a ca a exigem decis es r pidas, prepara es aten-tas, conhecimentos finos de como as coisas s o tecidas entre elas, intui-es das necessidades vivenciadas pelo inimigo ou pela presa.

    Flix Guattari parece ser filho de Oi , orix ligada aos raios e tem-pestades, gua e floresta. 4 Mais praticante de guerrilhas que de guer-ras, por ser apaixonada, caracterizada por deslocamentos bruscos. Oi est do lado do evento, pelo afeto que puxa um fio e corre, e queima: ela a superf cie do vento no evento. F lix de Oi , dos devires imprevis veis,das virtualidades assumidas desde que anunciadas, da velocidade qua-se absoluta no pensamento.

    E nas importantes coloca es de Deleuze e Guattari, em Mil

    Plat s , sobre o devir-bruxo, sobre as liga es por conex o entre ele-mentos heterog neos, aparece a intensidade-Oss e, orix patrono detoda a vegeta o, das folhas e seus derivados m gicos e medicinais.Oi , Oss e e uma parte de Exu est o mais do lado do evento . O queem Exu o estilo , a gera o do que totalmente individual, singular.O ter o inclu do em todo evento, a rela o que sempre pode ser pro-longada em v rias dire es. No indiv duo singular, o estilo aparececomo uma vibra o do ar quando anda, uma diferen a sutil no ambi-

    ente quando est presente, mesmo calado e invis vel. Evento-Exu, queos crist os assimilaram ao Diabo!!!

    Reparemos que se trata bem de uma dupla-captura: n o estamospropondo apenas uma experimenta o (n o uma interpreta o Sobre-tudo n o interpretem mas experimentem! , disse Deleuze) da filosofia deDeleuze-Guattari pelo candombl ; experimentamos, tamb m, o candom-bl por meio da m quina elementar acontecimento/evento , colocandoOgum e Ox ssi de um lado, Oi e Oss e de outro, Exu entre os dois.

    Em Oss e, todavia, quero dizer, no devir-bruxo, os nossos fil sofosviram s a bruxaria, mas sabe-se, no candombl , que se deve cuidar domist rio nos devires, proposta inconcili vel com o projeto da ci ncia oci-

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    dental. Uma prepara o invis vel necess ria para que nas am intensi-dades novas. Esta outra concep o da ci ncia, diferente, n o foi vista porDeleuze e Guattari nos seus livros. Ox ssi n o a revelou. Nesta, o segre-do, a qu mica que permite obter os sumos potentes, a paci ncia, a imagi-na o atenta, o uso cauteloso do tempo s o necess rios. As m quinas deguerra n o servem de nada. A m quina-maga ( maga , mulher do mago,como diria uma crian a), na ci ncia, n o somente conecta elementos he-terog neos, como nossos fil sofos apontaram; ela uma qualidade de usodo tempo. A ci ncia-Oss e uma cincia sens vel , como dizem as pes-quisadoras em enfermagem que tomaram por modelo epistemol gico o cuidar na sua verdade pr tica . Conhecendo pelos seus sentidos, sua emo-o, sua intui o e sua raz o, a pesquisadora afirma o seu direito de co-

    nhecer com todo seu corpo, inclusive nos territ rios da ci ncia nobre . Oevento, a , um concreto , no sentido dos perfumadores, isto , o produ-to de base, o concentrado oriundo das flores: o mais evanescente e o maissens vel e sensitivo narra toda uma hist ria, exprime um dia, uma terra, umcanto de sol e sombra. Lembro a cultura da minha terra, cultura de vinho,queijo e perfume. Os franceses s o bruxos (Serres 1985 exp s com mui-ta leveza alguns segredos que fazem com que os sentidos pensem: estefilho de Hermes-Exu, grande navegador do claro-escuro, foi iniciado pe-los donos da floresta).

    Misteriosa, a ci ncia-Tempo. Do lado do evento, o orix -Tempo, 5a intensidade-Tempo, patrono da na o Angola, que liga os ancestraisque moram na terra com os vivos, n s humanos, morando no ar. De pa-cincia infinita ou muito brusco, terr vel guardi o do esperado e do ines-perado, do previs vel e do imprevis vel, o Tempo. A , o evento feito defluxos que atravessam os ancestrais e o presente, os mortos e os vivos.Algo fica fora da compreens o, no mist rio. O evento momento queafasta o que atrapalha a obra, ele como cavado, tirando o in til. Da ficauma linha, como na escrita dos ha ka japoneses. Um m todo, n o umaorganiza o. O tempo faz a m quina, d a forma, n o a subst ncia. Otempo maquina o evento. Cuidado: n o se trata de passado, nem de ins-titu do. N o s o necess rios a dimens o temporal na poesia, os temposdo verbo, as preposi es, os adv rbios, para o tempo-evento: a noite, umbarco, o fremir de um p ssaro. Eis o charme do tempo que n o aconte-ce, mas eventa . Vapores de uma emo o-intui o: o segredo do Tem-po, diferente do segredo de Oss e, das folhas. Com o tempo encontra-mos a raiz do evento, a base que passou, transpassou a prova da dura-o. Por exemplo, apesar das suas irredut veis diferen as, h algo quefaz evento , eternamente, em Weber, em Marx, na Escola de Chicago.

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    Uma base que questiona sem cessar os pesquisadores. O evento-tempoabre o que estava arrebatado. Michel Serres encontrou uma express o in-teressante desse fen meno: o tempo est como uma folha dobrada emachucada. Assim, um lugar que acreditamos ser muito distante segundoa concep o ing nua do tempo linear, como por exemplo o P rtico dosprprios Est icos que inspiraram estas p ginas, est ao nosso lado. Aquiest o Ain, o tempo infinito, no qual caminhamos sempre pelo meio, t odiferente do Cronos acostumado. Deleuze apontou alguns aspectos doAin est ico, mas ficou distante daquele tempo africano que liga os mor-tos com os vivos, daquele tempo- rvore-Iroko, cujas ra zes mergulham nomundo dos antepassados e cuja folhagem abra a os vivos. Na sua obra,Nietzsche foi o pensador do evento-tempo, marcando tanto o aspecto cor-

    tante e arriscado do orix -Tempo como as lentas matura es que, da Au- rora at o Crep sculo , lhe permitiram mastigar e destacar o essencial.

    Dobrando a espiritualidade na ci ncia

    Qual a significa o dessas considera es? que fazer-ci ncia,aprender, logo ensinar, cuidar todas as rea es que temos com o sa-ber s o plurais: existem muitas entradas no conhecimento. Essas entra-das s o variadas, s vezes sendo classificadas pela academia em ter-mos de populares , prticas , te ricas . O fazer-ci ncia um caminhar:o m todo (o caminho) cria o tipo de ci ncia que se possuir . N o h ummtodo, nico, que seja cient fico. A ci ncia-Tempo um tipo de ci nciaque Nietzsche op s, na sua poca, como intempestivo , no-atual , cincia institu da, pois incompreens vel pelos cientistas normais . Hoje,

    as enfermeiras lutam pela dignidade epistemol gica da ci ncia-Oss e naacademia. Mas n o se trata somente de caminho, m todo. A ci ncia ,tamb m, assunto de energias . Todos os cientistas n o mexem com osmesmos tipos de energias; energias diferentes s o envolvidas em pr ti-cas cognitivas diferentes. Por isso se diz que o caminho tomado partici-pa do conhecimento produzido. A maneira de entrar no saber define umtipo de saber espec fico.

    Agora devem-se discutir as id ias de universalidade e comunida-

    de, pois a tradi o africana comunit ria. Com efeito, o conhecimentono se transmite fora da viv ncia do iniciado na comunidade; as abstra-es constru das (para falar aquela estranha l ngua acad mica) s o sem-

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    pre relacionadas a um contexto enunciativo nico, por exemplo o mito,com seus arqu tipos, uma narrativa que toma seu sentido somente emuma situa o de di logo, racional, emocional, sens vel e intuitivo, como ouvinte, no momento presente. Mas o mesmo mito est virtualmentegr vido de sentidos m ltiplos e plurais. Contrariamente tradi oracionalista ocidental, o nag ou o banto afirma que o sujeito e o obje-to, na rela o de saber, s o sempre dobrados um dentro do outro o queno impede o surgimento de abstra es, de textos cujo sentido est aber-to a significa es diferentes. Da , uma liga o original entre o comuni-trio e o universal: um outro nunca far exatamente a mesma experi n-cia ao criar as mesmas condi es, uma vez que reencontrar as mesmascondi es imposs vel. Mexe-se com singularidades, conforme as ten-

    dncias da ci ncia atual apontadas por Deleuze na primeira cita o des-te artigo. As abstra es que s o mais o resultado de uma opera o defus o que de constru o (muito s lida, dura, a constru o, que tem poucoa ver com as energias sutis envolvidas no processo de aprendizageminicitico) s o aquelas no es universais que Spinoza, na tica, II, Prop.XL, Esc lio 1 , definia assim:

    Tantas imagens imagens de homens por exemplo se formam aomesmo tempo no corpo humano, que ultrapassam a for a de ima-ginar, n o completamente de verdade, mas a tal ponto, todavia, queo esp rito n o possa imaginar nem as pequenas diferen as queexistem entre cada um destes homens (tais como a cor, o tamanhoetc., de cada um), nem o seu n mero determinado, e que imaginedistintamente apenas aquilo em que todos s o convenientes, en-quanto o corpo est afetado por eles; pois por isso que o corpofoi mais afetado, uma vez que foi por cada homem em particular; eisso, o esp rito o exprime pelo nome de homem e o afirma de umainfinidade de seres particulares; pois, como j dissemos, ele n opode imaginar o n mero determinado dos seres particulares.

    Mas, diferentemente do s bio da tradi o ocidental que esqueceuas pequenas diferen as abandonadas no processo de abstra o, o s -bio nag ou banto nunca esquece as singularidades que a l ngua, semgra a, traduz e trai atrav s das no es universais. Ser filho de Xang 6

    ser ligado aos mitos de Xang . Mas atuando esses mitos de modo, cadavez, nico. E de maneira ainda muito especial, uma vez que existem 12Xang s diferentes. Isso, por falarmos em rela o singularidade comu-

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    nitria, que cria conflu ncias rumo ao universal que nunca esquecemsuas origens sens veis no m ltiplo, no pipocado do existir. Era como oavesso das coisas, o estar afetado que os nomes sempre escondem e,aos poucos, esquecem. Mais direto, o lado que olha para n s, poder-se-ia receber a seguinte formula o: as v rias entradas no conhecimento e os m ltiplos tipos de conhecimento criados por essas entradas s o,epistemicamente, isto , consideradas em rela o s caracter sticas da-quele que conhece, determinadas pelo campo de energias chamadas deorixs . Pouparemos aos leitores uma rela o de todos os orix s e dotipo de ci ncia que cada um providencia, para nos concentrarmos sobreuma quest o dif cil: podem-se transferir as caracter sticas epist micaspara epistemol gicas? Isto : o fato de que um filho de Xang (Spinoza,

    provavelmente) n o faz ci ncia como um filho do Tempo (Nietzsche), ape-sar dos numerosos pontos de encontro poss veis no conte do, significa,tamb m, que as ci ncias s o diferentes? Ou se trata da mesma ci ncia,considerada a partir de olhares humanos, filos ficos e at psicol gicos,diferentes? Metaforicamente falamos de ci ncia-Tempo, de ci ncia-Oss e etc. Ou ser a met fora o desvelamento da verdade? Respondera esta quest o supera as nossas for as atuais. Indicamo-la, a fim de abriro esp rito dos cientistas sociais: O que voc s est o fazendo? Com qualenergia voc s agem, imaginam e pensam, ao escrever o seu livro ou ar-tigo para uma revista especializada?

    Na rea das ci ncias do ser humano e da sociedade, preten-demos experimentar a id ia heur stica (hip tese imposs vel de sercomprovada mas orientadora e necess ria para produzir o conhe-cimento) de que h uma policientificidade, um policientismo, como sefala de polite smo. Isso, pelo menos por raz es ticas: enfraquecer oorgulho dos cientistas, ao afirmar: O seu Deus, a sua Ci ncia, a sua

    Sociologia, com tantos mai sculos, somente uma ci ncia entre associologias (ou psicologias etc.) poss veis! A cincia, na sua unidadeuniversal , no caso a sociologia, seria o jogo de diferen as e desemelhan as entre a sociologia-Xang , a sociologia-Oss e, a sociologia-Tempo etc., etc. Assim resgatamos a liga o entre sabor, saber esabedoria (sabor: a diversidade da experi ncia, antes que esta sejanomeada, recoberta por no es universais; saber: produto de umconjunto de opera es, nas quais os diferentes processos de abstra odesempenham um papel central; sabedoria: uni o singular, em um serhumano, de sabores e saberes, que permite relacion -lo com a Naturezainteira). O equil brio entre as energias naturais-espirituais chamadas deorixs, que a tradi o africana preservou durante s culos, at em terra

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    brasileira, permitiu vencer na prova sofrida por todas as coisas sob osol: o tempo. Isso significa que a referida tradi o mostrou o seu poderintegrador da variedade humana. Da mostramos o interesse heur sticode referir-se ao candombl na nossa elabora o da ci ncia da sociedadee do ser humano. Os leitores que conhecem os mitos de qualquertradi o, grega ou outra, sabem que o olhar-ouvir-sentir que elesproporcionam mais abrangente que o mero olhar cient fico. O afasta-mento da consci ncia da humanidade dos seus mitos, em nome dacincia, n o foi uma boa coisa, pois, queiramos ou n o, esses mitosagem. Assim age o mito da ruptura radical, que cada gera o decientistas reproduz em uma rea do conhecimento ou outra, acreditandoa ruptura ser um dado hist rico objetivo , empiricamente verific vel,

    quando uma das grandes figuras m ticas do nascimento. A atitudereducionista que privilegia apenas um mito, como a psican lise freudiana,gera do seu lado uma cientificidade parcial, mutilada. Por isso preferimosnos referir a um universo m tico completo, e convocar uma grandevariedade de mitos para nos conscientizar e, logo, distanciar da impli-ca o do discurso cient fico nas narrativas arquet picas da humanidade.

    O mito dentro do qual nossa ci ncia social pensa fica invis vel,uma vez que estamos dentro dele; ele nosso mundo, o ar que respira-mos. Por exemplo, um grande cientista, o autor da Cr tica da economia pol tica , que estabeleceu as leis do valor e explicou a forma o damais-valia, precisava de mitos impl citos relacionados energ tica e aotrabalho do ferro para fazer do tempo de trabalho m dio socialmentenecess rio a medida de todo valor, inclusive do valor da for a detrabalho. Vivia na poca da termodin mica, da m quina a vapor: suacincia, at nos seus aspectos considerados como universais, estavaimplicada, dobrada nos mitos da idade do ferro. Isso n o impede os

    problemas locais desenvolvidos pelos cientistas de estarem freq en-temente longe dos arqu tipos m ticos e suscet veis, s vezes, defalsifica o. Mas a orienta o global da teoria , pelo menos nascincias humanas e sociais, baseada em seres l gicos amb guos,intermedi rios entre a imagem e o conceito. Vemos assim que a liga oentre racionalidade e imagin rio uma liga o forte, caracter stica dopensamento humano no seu aspecto criador, a imagina o. Mais umavez citaremos Michel Serres (1994, pp. 229-230):

    Existe mito na ci ncia, e ci ncia nos mitos. ainda preciso nar-rar esta imensa hist ria ou lenda, n o fragmentada [ ].

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    A dicotomia est nas cabe as. E nas institui es; nos jornais; no inter-cmbio convencional; nas grandes correntes de pensamento, comose diz. Em todos os lugares. Salvo nas ci ncias inventivas, ativas, enas hist rias de velhinhas. Salvo na ponta extrema, fina e r pida, e

    na base mais lenta. Salvo no cume da montanha onde se chega ap sesfor os extremos e toda uma vida de treinamento, e entre os idosos,nas ocas do vale. Salvo em ponta e na base. No meio, o interc mbiousual est cercado de nuvens, nevoeiros e vapores.

    No lado das ci ncias experimentais, lembramos que o f sico NielsBohr (1995), cuja obra na rea da f sica at mica marcou o s culo XX,definia o fen meno como constitu do tanto do objeto que estamosexperimentando como do dispositivo experimental que permite a obser-va o do mesmo. J que o aparelho de medida interfere sobre o objetoa ser medido, ele pertence ao fen meno. Isso a grande revolu oepistemol gica da f sica qu ntica: um fen meno n o pressup e somente um objeto ligado s nossas capacidades de perceber e raciocinar (o que seria um fen meno no sentido de Kant), mas um fen meno enquanto estiver ligado ao dispositivo experimental, ao dispositivo que permite o conhecimento.

    Isso umas das coisas mais importantes que Bohr trouxe re-flexo epistemol gica. muito estranho que as ci ncias humanas te-nham tantas dificuldades para reconhecer o que a f sica reconheceu h

    j mais de 50 anos, o fato de que cada abordagem te rica e cada dis-positivo de olhar, da observa o, modificam o objeto de estudo... quenunca estudamos um objeto neutro, mas sempre um objeto implicado,caracterizado pela teoria e pelo dispositivo que permite v -lo, observ -lo, conhec -lo. A nossa pergunta, logo, tem esta forma: Ser que os mi- tos relacionados com as energias b sicas da natureza (chamadas, na cultura afro-brasileira, de orix s) s o implicados, queiramos ou n o, nos fen menos que pretendemos observar ?

    Uma resposta negativa conduziria de novo viso tradicional dacincia, caracterizada pela sua ruptura epistemol gica radical com omundo m tico. Mas neste caso deve-se considerar com muita aten o oscr ticos radicais das ci ncias sociais e humanas que afirmam, comoPopper (1985), que estas n o s o ci ncias, mas somente narra es, dis-cursos de verdade e n o discursos verdadeiros: como poder amos criarum discurso sobre as narrativas sociais que escaparia s implica escaracter sticas dessas narrativas?

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    Uma resposta afirmativa implicaria que assum ssemos as nossasimplica es como partes constituintes do objeto estudado. Da , uma dobraepistemol gica e n o apenas epist mica da espiritualidade (no caso,africana) na ci ncia, o que o limite que podemos atingir na altera o dasposi es institu das, dicot micas entre mito e ci ncia. Pode-se semprereduzir a espiritualidade ideologia e, logo, as implica es espirituais sideol gicas. O problema n o desaparece: com efeito, a ideologia assimentendida cont m um ncleo de verdade (conforme, por exemplo, o bomsenso de Gramsci 1985), aspectos universais presos nas contradi es his-tricas etc. que, por seu lado, a refer ncia m tica assume sob o nome dearqu tipos. No seu estudo famoso sobre a imagina o cient fica, GeraldHolton (1981) parece ter encontrado alguns arqu tipos imagin rios que o

    pensamento cient fico desenvolve mais ou menos conscientemente (porexemplo, continuidade x descontinuidade). Queremos encontrar as narra- tivas (os mitos) pelas quais esses arqu tipos receberam sua significa o,o que permitir , talvez, distinguir v rios tipos de continuidade e descon-tinuidade. A nossa cren a que a velha humanidade, na sua experi nciaglobal, sabe aquelas coisas claro-escuras que desconhece a ci ncianormal, apesar de us -las. a cren a inversa da de Bachelard (1972), queevidenciou a qualidade diferente (e superior) do saber dos cientistas que,

    heroicamente, se afastaram do claro-escuro do conhecimento ordin rio, ecriaram assim a juventude perp tua dos que souberam dizer no aosaber institu do, legitimado pelas melhores tradi es. Quem enxerga bem,quando se trata das ci ncias da sociedade e do ser humano?

    Com as velhinhas de Michel Serres escolhemos estar aqui, no li-miar da loucura, do impens vel, do inef vel: contemplando a morte de ummodelo, clivado, do pensamento. A morte do sol, da luz apoloniana, onascer do conhecimento escuro, confuso, preto, n o bvio, que talvez

    ser um dos paradigmas do s culo XXI.

    A cincia pode ter o status paradoxal de uma disciplina fundadasobre mitos, que seja capaz de produzir objetos n o-mticos

    Assim pode a ci ncia-Ogum (a ci ncia segundo Deleuze-Guattari)produzir objetos n o-m ticos, isto , que sejam traduz veis na l ngua dacincia-Oss e (a ci ncia procurada, por exemplo, pelas enfermeiras apartir da pr tica do cuidar) etc. A inven o cient fica, segundo a primeira,

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    necessita da presen a de uma m quina de guerra que captura e alteratanto os saberes acad micos como as pr ticas cotidianas do cuidar pelasprofissionais; de acordo com a segunda forma de ci ncia, para inventars o necess rios a cautela, o rigor, a precis o, a intui o e a sensibilidadedaquelas que desenvolvem uma rela o de empatia com o paciente.Duas episteme , dois problemas , dois tipos de objetos . Mas sempre atradu o poss vel. s medir o custo em trai o da tradu o salvoao considerarmos, fi is experi ncia daquele que est entre as duaslnguas, isto , do tradutor, que traduzir , em lugar de perder informa o,traz mais sentido, mais saber, mais vida ao texto original. Neste caso,mediremos o ganho em trai o! apostando numa filosofia positiva ealegre da diferen a, da multiplicidade, da prolifera o, contra a tristeza

    das filosofias da pureza, da autenticidade e da identidade.

    As candangas, a nomea o e a altera o de Graziela-Ad lia,Gradzi lia a velada, a escondida, Gra a a claro-escura filhaque assobia na trovoada e no nevoeiro

    No fascinante livro Bailarino-Pesquisador-Int rprete: Processo de

    forma o, Graziela Rodrigues (1997) descreve o caminho e as energi-as encontradas na forma o (ou talvez: no nascimento) do seu corpo s -bio, pensador, de bailarina:

    1) Freq entou as mulheres candangas de Bras lia, compartilhandoinc gnita, com os sentidos abertos e sem interpretar o que sentia, os ni-bus, e em seguida uma ag ncia de empregos dom sticos. Ela comenta(idem , p. 18): Diante da vida do povo sofrido, a gente n o fala, s sabe ca-lar: esquece as id ias do povo sabido e fica humilde, come a a pensar

    2) Durante esses tr s meses de conviv ncia di ria, abriu-se umnovo espa o. Por exemplo, uma hist ria de grande desilus o contada poruma candanga era conclu da por frases tais como: Mas eu tenho a for-a da Pomba-Gira, ou a noitinha minha sereia penetra a fresta de meubarraco, cheia de luz trazendo um recado (idem , p. 19).

    3) De volta ao espa o profissional da sala de dan a, a pr tica dodiretor era trabalhar com base nos di rios de campo:

    No in cio o corpo n o respondia, mas aos poucos foram emergindoregistros emocionais, somat rio do universo vivenciado na pesquisa

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    de campo com a minha pr pria mem ria afetiva. O corpo foi assu-mindo v rias sensa es e configura es decorrentes das imagensde lugares vividos em campo e das imagens desconhecidas situ-adas em mim mesma. Estas imagens conjugadas apresentavam

    uma nova configura o de paisagem espa o onde se desenvolvemexperi ncias de vida, que se instaurava no corpo. ( Ibid , p. 19)

    4) Apresentou-se o nome da personagem, s ntese de todas asmulheres da pesquisa, das mulheres candangas. Chamava-se Gra a.Da o nascimento do espet culo: Gra a bailarina de Jesus ou Sete Li-nhas de Umbanda, Salvem o Brasil .

    5) Graziela Rodrigues conclui teoricamente:

    Vivi na pr pria pele umas tantas mulheres obscuras , bem ditaspor Cora Coralina, provindas de universos urbanos, suburbanose rurais do Brasil. Elas me ensinaram a rebojar. O rebojo a par- te do rio onde as guas se agitam, rodando, pela presen a de uma parte funda e afunilada de pedras. O perigo denunciado pela efervesc ncia das guas, cuja agita o atinge a superf cie. Quan- do algum objeto ou pessoa cai no rebojo, vem tona, rodando,antes de desaparecer. Rebojar exatamente sair do fundo do rebojo at a veia d gua. (Nbia Gomes e Edimilson Pereira, 1988:Negras ra zes mineiras: os Arturos ) (Ibid ., p. 20)

    No se trata da mera procura narcisista de si: o pr prio corpo bra-sileiro , constitu do na margem da sociedade, em festas e rituais populares(no caso, particularmente a umbanda), que procurado. Sendo uma perso-

    nagem-chave, encontrada no processo de pesquisa, uma Pomba-Girachamada de Macei , Exu mensageira, ponte entre Europa e Recife, comdesvio por Angola. Pomba-Gira, filha da feiticeira ib rica tradicional, revistapelo Portugal escravista e confirmada pela Col nia, onde tornou a cruzarmandingueiros e ciganos (ibid ., p. 29), a constitui o do povo brasileiro,notadamente atrav s da escravid o e do confronto/troca entre culturas, taiscomo ela foi internalizada e silenciada dentro do corpo, que interrogadana experi ncia singular de pesquisa de Graziela Rodrigues.

    Os resultados obtidos, relacionados aos bailarinos que vivenciaramo Processo, deram-se principalmente quanto descoberta de seu

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    potencial e de uma autonomia quanto a sua condu o. A consci n-cia de seus preconceitos, o questionamento de valores, a aceita-o de seus conflitos e a identifica o de que o modelo encontra-se dentro deles produziram um sentimento por eles traduzido como

    de estar com o corpo vivo . ( ibid ., p. 24)

    Trabalho de empatia com as mulheres reais, que sofrem e resistem,descoberta dos corpos de mulheres conservados vivos nas culturas de re-sist ncia, coloca o em crise do seu pr prio corpo constru do pela aca-demia, express o de um modelo espiritual de corpo popular, entre outrosposs veis (virtuais) para mim, a obra de Graziela Rodrigues situa-se nafilosofia da sociopo tica , teoria da pesquisa e do ensino-aprendizagemque caracterizamos a partir das cinco afirmativas seguintes, tomadas si-multaneamente, que permitem transformar poeticamente para conhecer :

    pesquisar com todo o corpo, isto , raz o, emo o, intui o e sen-sa o;

    no separar a arte da racionalidade na constru o do conheci-

    mento; relacionar-se aos saberes das culturas dominadas e de resist ncia;

    no separar ci ncia e espiritualidade;

    fazer com que os participantes da pesquisa se tornem co-pesqui-sadores.

    Nossa proposta desenvolve-se no sentido de instituir um di logo perma-nente, dentro da ci ncia, entre as culturas sobre o que a ci ncia (ver Gauthiere Santos 1996). Da idealizamos v rias pesquisas inter e transculturais e criamosos encontros de Pesquisa Art stica e Transcultural em Educa o (Partranse), as-sociando notadamente povos ind genas, pessoas do candombl , movimentossociais e movimentos de mulheres na busca de uma cientificidade co-produzi-da, e n o imposta pela civiliza o colonizadora.

    Na experi ncia de Graziela Rodrigues vejo, obviamente, uma ci-ncia da transforma o (pela crise e sua supera o), gra as a o deum ter o inclu do, aos poucos desvelado no seu pr prio corpo: Exu emsua forma feminina de Pomba-Gira. Vejo tamb m um m todo e uma

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    energ tica que se podem chamar de ci ncia-Oxal .7 Em suas duas for-mas, Oxal uma m quina de altera o , pois ele to obstinado nassuas inten es que se torna capaz de descumprir as regras que ele mes-mo se deu, depois de ter consultado If , o destino. Durante muito tempoprocuramos, na sociopo tica, uma teoria da altera o do pesquisador ,que completasse a teoria da implica o dos socioanalistas. Mas n oquer amos uma teoria hegeliana, dial tica de tipo: tese-ant tese-s nte-se, que mantivesse a identidade sob a figura da alteridade. Quer amosuma teoria da altera o mesmo. A descobrimos a m quina de altera o Oxal , muito diferente da m quina de guerra n made Ogum (Deleuze-Guattari). Ela cria uma rede de intensidades que caracteriza um indiv duo,ou melhor, aqui, o rizoma individual Candangas-Gra a-Graziela-Diretor-

    Pomba-Gira. Esse rizoma exprime a confus o no sentido de MichelSerres dos mundos que atravessam a pesquisadora. Lembramos que,como criador, Oxal velho, lento, que anda bem devagar quando se mani-festa, gerou Exu-Iangui, o princ pio do movimento sem o qual tudo es-taria paralisado. Altera o pelo esquecimento, pela sapi ncia emp tica,pela oposi o a si pr prio, mas n o existe, nesta po tica da forma o,nenhuma s ntese, a n o ser a amplia o do que a pesquisadora-bailarinaGraziela chamava de configura es da paisagem simbolizadas por

    um nome de estranha beleza: Gra a bailarina de Jesus ou Sete Linhas de Umbanda, Salvem o Brasil nas duas dire es do Ai n, nos mundosvirtuais da hist ria n o escrita (salvo nos corpos das dominadas), dastrilhas desconhecidas em que passado e futuro trocam suas apela es.Da , a Gra a, puro evento.

    Conclus o

    Tomamos por refer ncia experi ncias vividas em culturas tipica-mente brasileiras, tais como o candombl e a umbanda, a fim de partici-par da descoloniza o dos esp ritos (e dos corpos!) . Pod amos, com omesmo rigor, referir-nos mitologia grega ou tao sta, ou, sempre dentrode uma perspectiva de descoloniza o, a uma mitologia ind gena. Nosparece que o problema da crise do paradigma nas ci ncias da socieda-de e do ser humano poder ser resolvido somente ao consentirmos umaradical revis o das rela es entre ci ncia e mito, entre ci ncia e arte,entre ci ncia e culturas de resist ncia. Por qu ? Porque pensamos queas ci ncias da sociedade e do ser humano n o se enraizaram de manei-

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    ra satisfat ria, ao esquecerem que os grupos humanos s o criadoresde significa es e sentidos. A ci ncia deve reconhecer que ela , tam-bm, uma cria o de significa es entre outras, que se articula comessas outras, e n o pode isolar-se numa torre de marfim. Assim comoexistem jogos de linguagem (Wittgenstein 1953), existem jogos designifica es , com uma problem tica complexa de tradu es, fus es,ironias, simula es etc. Pesquisar, entender, conhecer, assim, brincarno jogo das significa es vir tuais. Pouco importa que as entidades dasreligi es afro-brasileiras sejam verdadeiras ou n o passem de seresilus rios. O que significante que elas pertencem a um sistemaorganizador da experi ncia potente (pois muito diferenciado), suscet -vel de experimenta o e negocia o. Da , a nossa ci ncia n o pode

    fazer como se este ch o de significa es n o existisse e se construiratrav s da assim chamada pureza de rupturas epistemol gicas queacreditariam se livrar definitivamente desse ch o m tico. N o assim:a posi o da pesquisa cient fica de intera o polif nica com as sig-nifica es j constru das pela humanidade o que n o impede momen-tos de franca ruptura, mas nunca puras . Como apontou Michel Serresem Atlas, podemos estudar essas intera es polif nicas COM ( proble-ma da comunica o e do contrato), ATRAV S DE (problema da tradu-

    o), ENTRE (problema das interfer ncias), POR (problema das passa-gens), AO LADO DE (problema da parasitagem) e FORA (problema dodistanciamento) . Todas essas posi es relativas entre a ci ncia e osoutros sistemas de significa es devem ser meticulosamente explora-das, assim como come amos. s vezes, nossa contribui o foi orgulho-sa. Mas foi somente a express o moment nea do nosso rebojar . Indi-camos um problema, experimentamos uma trilha at seu limite, paratentar resolv -lo. Se fomos al m do razo vel, at a vertigem, foi o pre-o do risco. Este texto j est chamando respostas.

    Notas

    1. Obviamente, o devir-mulher, tanto dif cil para a mulher como para o homem, n oimp e nenhuma cirurgia! o devir-pol tico de quem pensa a mulher fora da im-posi o criada pelo g nero dominante de escolher entre o homem e a mulher.

    Como apontou Garfinkel (1967), Agnes muito conservadora: ela quer conser-tar para conservar, nela, o g nero institu do mulher . Ela n o inventa uma li-nha de fuga nova: ela quer um territ rio bem conhecido, que a natureza n osoube lhe dar. A linha de fuga n o Agnes: ela existe entre Agnes e Garfinkel.

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    a m quina de guerra Agnes Garfinkel, nova singularidade, nova individuali-dade, que o analisador da produ o social das categorias de g nero.

    2. Elogiando o conhecimento claro-escuro, Michel Serres, que se diz profundamen-te ligado a Hermes, o Deus mensageiro, merece uma men o especial. Ele en-xergou alguns mist rios na escurid o da lama. Meditemos, logo, a seguinte ci-ta o, de profunda sabedoria: Nos livros Rome e St tuas muitas vezes elo-giado o gesto latim de enterrar, encobrir, esconder, colocar na sombra paraconservar, opondo-o ao gesto grego de colocar na luz. pronunciado o elogiomesmo da implica o, do dobramento da massa pelo padeiro e pela padaria,mais que da explica o: a se encaram dois tipos de conhecimentos, cujo se-gundo s praticamos e estimamos [ ] Ora, tirar da escurid o muitas vezescomo destruir, e colocar na sombra como proteger. Nunca calculamos o pre-o dos nossos m todos, os acreditando gratuitos. Tudo se paga: at a clare-za, pela escurid o ou destrui o s vezes. Dever-se-ia inventar uma teoria doconhecimento escura, confusa, preta, n o bvia, uma teoria do conhecimentoad lia este adjetivo bonito, de sonoridades femininas, significa isso: o que seesconde e n o se mostra. Muito antes que a ilha apoliniana de D los se nome-asse assim, ela se chamava de Adelos, a velada; se voc j tentou abord -la,voc sabe sem d vida que, muito freq entemente, ela se esconde na trovoa-da e no nevoeiro. A sombra acompanha a clareza como, em outros lugares, aantimat ria avizinha a mat ria (Serres 1994, pp. 214-215).

    3. Orix patrono do movimento, da expans o, do desenvolvimento. Diz a tradi-o nag que cada ser e cada coisa tem o seu Exu particular; sem ele, todoo sistema de seres e coisas estaria paralisado. Exu constitui o princ pio daexist ncia individualizada. o principal respons vel pela integra o entre orun e ai , c u e terra, sendo considerado o mensageiro dos demais orix s. (In:Sodr e Lima 1996). Exu tem o poder de desfazer o que ele fez, logo,desmembrar o indiv duo.

    4. Sodr e Lima continuam: Segundo alguns mitos, transforma-se em touro. Se-gundo outros, em borboleta. Certa qualidade de Oi patrona dos esp ritosancestrais. Tamb m conhecida como Ians .

    5. Orix padr o dos candombl s da na o Angola. Materializado nos terreiros poruma rvore sagrada que se enra za no mundo dos ancestrais e desenvolvesua folhagem no mundo dos vivos, o orix -Tempo se manifesta atrav s deformas muito firmes, afirmativas que cortam, mudan as inesperadas, e tam-bm por regula es vis veis e invis veis, esperas sem limites

    6. Orix do trov o, ancestral divinizado da dinastia dos Alafin, reis da cidadeiorub de Oi . associado ao elemento fogo (Sodr e Lima, op. cit. ). Zazepelos Bantos.

    7. Orix considerado o pai da cria o, relacionado aos elementos gua e ar e cor branca. Simboliza o princ pio masculino (Sodr e Lima, op. cit .). Oxal serealiza em duas formas: Oxaguian, o jovem guerreiro, e Oxalufan, o velhos bio que traz paz, dedica o ao pr ximo e harmonia.

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    What is searching? Between Deleuze-Guattari and Candombl ,thinking about myth, science, art and cultures of resistance

    ABSTRACT: Actual science is a science of events and occurrences.

    After Deleuze, studying the difference between event and occurrencein the stoician philosophy, the author characterises several ways to make science : the double capture which is, in a transcultural vision,related to the god Ogum in the candombl ; the dark maturation,related to the goddess Oss e etc. After Spinoza, the question of the local and the universal in the construction of knowledges is examined; after Michel Serres, the problem of articulation between myth and science. Graziela Rodrigues research, Bailarino-pesquisador- int rprete: Processo de forma o is an example of an innovated,

    transcultural and social poetic approach. There s a question left to conclude this article: does the end of colonisation of spirits (and bodies) pass though the creation of a transcultural episteme ?

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