Caetano, miguel afonso tecnologias de resistência transgressão e solidariedade nos media...

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Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa Departamento de Sociologia Tecnologias de Resistência: Transgressão e Solidariedade nos Media Tácticos Miguel Afonso Caetano Dissertacao submetida como requisito parcial para obtencao do grau de ̧ ̃ ̧ ̃ Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação Orientador: Prof. Doutor Gustavo Leitão Cardoso Maio, 2006

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Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa

Departamento de Sociologia

Tecnologias de Resistência:

Transgressão e Solidariedade nos Media Tácticos

Miguel Afonso Caetano

Dissertacao submetida como requisito parcial para obtencao do grau de

Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação

Orientador:

Prof. Doutor Gustavo Leitão Cardoso

Maio, 2006

AGRADECIMENTOS:

● Agradeço em primeiro lugar à minha mãe, pelo apoio na elaboração desta dissertação, mesmo

nas alturas em que eu pensava que não ia conseguir, e pelo trabalho que teve de edição de

grande parte do texto;

● ao Felipe Fonseca, ao Hernani Dimantas e ao Daniel Pádua, pela enorme gentileza e as

conversas trocadas a um oceano de distância;

● ao Dalton Martins, com quem passeei pelas ruas da Baixa de Lisboa numa tarde chuvosa de

Novembro;

● ao Miguel Leal, por se ter disponibilizado a publicar no Vector da Virose um artigo que serviu

para consolidar o meu pensamento crítico sobre os media tácticos;

● à Karla Brunet, por me ter ajudado a dar um rumo concreto à minha investigação;

● ao meu orientador, o Professor Gustavo Cardoso;

● ao Professor José Luís Garcia, por me ter feito acreditar que vale a pena reflectir de um modo

crítico sobre a tecnologia e os media.

RESUMO:

Resultando da convergência entre os media, a tecnologia, a arte e a política, os media tácticos constituem um conjunto de práticas culturais e um movimento teórico surgido na Europa durante a primeira metade da década de 90, difundindo-se até ao final do milénio para a América do Norte e posteriormente para o resto do mundo. Tirando inicialmente partido das câmaras de vídeo mas também, a partir de uma certa altura, das tecnologias digitais como CD-ROMs e a Internet, o produtor deste tipo de media assume-se como um híbrido, desempenhando em simultâneo o papel de artista, activista, teórico e técnico.

Este tipo de utilizações subversivas e/ou criativas das tecnologias de informação e comunicação por indíviduos normalmente excluídos do seu acesso caracteriza-se pelo experimentalismo, a efemerabilidade, a flexibilidade, a ironia, o amadorismo. Partindo da distinção entre tácticas e estratégias estabelecida por Michel de Certeau e retomada por autores como David Garcia e Geert Lovink, esta dissertação examina o modo como os media tácticos se apresentam como “media de crise, crítica e oposição”. Empregando uma análise teórica das práticas de alguns colectivos, pretendemos demonstrar que as tácticas de protesto destas formas de produção mediática representam uma posição de permanente combate contra um adversário concreto e explícito (Estado-nação, instituição supra-nacional ou empresa transnacional).

Depois de abordarmos os perigos a que este modelo antagonista dos media como arma de resistência induz, propomos uma perspectiva alternativa de media tácticos a partir de uma análise empírica de dois projectos brasileiros, o Metáfora e o MetaReciclagem. Em conclusão, argumentamos que estas e outras iniciativas de base adaptam as práticas de subversão e resistência observáveis nos colectivos activistas dos países desenvolvidos às especificidades de um país periférico como o Brasil. Ao fomentarem a reapropriação da tecnologia para fins de transformação social, estes grupos potenciam as capacidades criativas e comunicativas das comunidades locais, com vista à sua auto-sustentabilidade e autonomia.

Palavras-chave: media tácticos, estratégias, activismo mediático, media alternativos, hacker, software livre, reapropriação tecnológica, reciclagem, Brasil.

ABSTRACT:

Resulting from the convergence between media, technology, art and politics, tactical media are a set of cultural practices and a theoretical movement which started in Europe during the first half of the 90s, having spread to North America until the end of the millenium and, afterwards, to the rest of the world. Initially taking advantage of video camcorders but also, later, of digital technologies such as CD-ROMs and the Internet, the producer of this kind of media acknowledges himself as as a hybrid, performing simultaneously the role of an artist, activist, theorist and technician.

These subversive and/or creative uses of information and communication technologies by individuals who normally don't have access to them are characterized by experimentalism, ephemerality, flexibility, irony and amateurship. Based on the distinction between tactics and strategies developed by Michel de Certeau and continued by David Garcia and Geert Lovink, this dissertation examines the way tactical media present themselves as "media of crisis, critique and opposition". By applying a theoretical analysis of some collectives, we intend to demonstrate that the protest tactics of these media production forms represent a position of permanent struggle against a concrete and explicit opponent (nation-state, supranational institution or transnational corporation).

After addressing the dangers that this antagonist model of media as a weapon of resistance can lead to, we propose an alternative perspective of tactical media built on an empirical analysis of two brazilian projects, Metáfora and MetaReciclagem. Finally, we argue that these and other grassroots initiatives adapt the practices of subversion and resistance visible in the activist collectives of developed countries to the local settings of a peripheral country like Brazil. By fostering technological reappropriation for social transformation, these groups unleash the creative and communication capacities of these communities, towards their self-sustainability and autonomy.

Keywords: tactical media, strategies, media activism, alternative media, hacker, free software, technological reappropriation, recycling, Brazil.

As resistências já não são marginais, mas sim activas no centro de uma sociedade que se abre em

redes.

- Michael Hardt e Antonio Negri, Empire

Os media tácticos são o que são quando o necessitam de o ser

Os media tácticos não são nem de esquerda, nem de direita. São um conjunto de abordagens em

constante evolução, motivado pelas necessidades e interesses específicos dos seus criadores.

Os media tácticos são um ethos.

Os media tácticos alimentam-se de ar, respiram debaixo de àgua e vivem na escuridão; excepto

quando necessitam de se expor à luz do sol; nadar pelo ar e beber vinho. Os media tácticos são

uma afirmação do direito de associação; defendem a liberdade de associação e prosperam em

associações promíscuas.

Os media tácticos são sempre produzidos colectivamente, mesmo quando um autor individual os

produz.

Os media tácticos afirmam a acção do indivíduo, mesmo quando são grupos a produzi-los. Os

media tácticos são guiados por uma relação amorosa com a teorização.

Os media tácticos odeiam a Poi, mesmo se lêem teoria compulsivamente.

Os media tácticos são pensamento enquanto acção.

Os media tácticos não suspeitam das emoções fortes. Sabem que as emoções podem levar as

pessoas à acção; e, no entanto, os media tácticos conduzem as pessoas à acção.

Os media tácticos não são a articulação do seu criador. Os media tácticos são um lugar na

linguagem por onde se comunica. Como tal, são sempre sujeitos à apropriação.

Os media tácticos nunca são o vestido; são o par perfeito de brincos que dão bem com os teus

olhos; os sapatos elegantes; o sorriso confidente. São sedução.

Os media tácticos têm um sentido irónico de humor e um coração sincero.

- Gregg Bordowitz, “What is Tactical Media? An open-ended list”

5

Índice

Introdução 9

Notas Metodológicas e Epistemológicas 12

Plano da Dissertação 17

1 - Elementos para a História e Caracterização dos Media Tácticos 21

1.1 - Génese do Movimento 21

1.2 - Principais Definições 25

1.3 - Abordagens Teóricas 27

1.4 - Distinção entre Media Alternativos e Media Tácticos 35

2 - Genealogia das Mobilizações Informacionais 42

2.1 - Décadas de 70 e 80 45

2.2 - Década de 90 51

2.3 - Mediactivismo: do Direito à Informação ao Direito à Auto-gestão da Comunicação 54

3 - A Influência do Movimento do Software Livre e da Ética Hacker 60

3.1 - O Processo de Desenvolvimento do Software Livre 69

3.2 - A Ética Hacker 72

4 - A Táctica e suas Metáforas Teóricas 75

4.1 - A Táctica e a Estratégia em Michel de Certeau 76

4.2 - A Táctica enquanto Détournement 79

4.3 - A Táctica enquanto Rizoma 83

4.4 - A Táctica enquanto Zona Autónoma Temporária (TAZ) 87

4.5 - A Táctica enquanto Swarming 92

4.6 - A Táctica enquanto 'Multidão' 98

4.7 - A Táctica enquanto Smart Mob 103

5 - Práticas de Media Tácticos 110

5.1 - Culture Jamming: Guerrilha Semiológica 110

5.2 - Hacktivismo: O Contra-poder do Ciberespaço 117

6

5.3 - Artivismo: Crítica e Subversão na net.art 129

5.4 - A Rede Informativa Indymedia: Jornalismo open-source 144

5.4.1 - O CMI-Portugal: Um Pequeno Estudo de Caso 152

6 – Contributos Para Uma Crítica do Conceito 168

6.1 - "O Alt.Everything da Cultura e da Política" 168

6.2 - O Espectro da Cooptação pelo Capital 170

6.3 - O Eterno Retorno do Sublime Tecnológico 172

6.4 - A Subversão Impossível dos Media 175

6.5 - A Retórica do Inimigo e a Metáfora Terrorista 178

SEGUNDA PARTE

1 - O "Jeitinho" Digital Brasileiro: "Gambiarras", "Mutirões" e "Puxadinhos" 188

1.1 - Mídia Tática 189

1.2 – Contratv 195

1.3 – Re:combo 195

1.4 - Rádios Livres: Rádio Muda 196

1.5 – CMI-Brasil 198

1.6 - Brasil, Nação Hacker 201

2 - Projecto Metáfora: Caos e Ordem numa Inteligência Colectiva 205

2.1 – Eventos e Projectos 210

2.2 - A Participação no Midia Tática Brasil 216

2.3 – A Tentativa de Criação de uma ONG e o Fim 217

2.4 - Liderança e Motivação numa “Caordem” 222

3 - MetaReciclagem: Reapropriação da Tecnologia para Fins de Transformação Social 226

3.1 - A Replicação da Metodologia da MetaReciclagem 233

4 - Análise dos Dados Obtidos por Questionário 239

4.1 - Perfil dos Colaboradores do Metáfora e do MetaReciclagem 239

4.2 - Opiniões em Relação ao Metáfora e MetaReciclagem 243

4.2.1 - Inspiração Política dos Projectos 243

7

4.2.2 - Distinção entre Inclusão Digital e Reapropriação Social da Tecnologia 244

4.2.3 - Avaliação dos Pontos Fortes e Fracos 247

4.2.4 - Visões Pessoais Sobre o Metáfora e o MetaReciclagem 249

Conclusão Final 251

Bibliografia 258

8

1 - Introdução

Será que o conjunto de iniciativas e actividades temporárias de activismo cultural, político, social e

artístico realizadas através de tecnologias de comunicação a que alguns teóricos e activistas (Garcia e

Lovink, 1997; Critical Art Ensemble, 2001) deram o nome de media tácticos implicam sempre a

existência de um opositor, um inimigo, um "Outro" concreto e explícito? Será que estes meios de

resistência estão sempre associados a uma linguagem de violência ou, pelo menos, de contra-

propaganda? Será que, tal como refere Joanne Richardson (2002), “a linguagem dos media tácticos

aprisiona” irremediavelmente “a ideia de um outro tipo de produção mediática a uma teoria da guerra,

como um medium de oposição, definido em relação ao seu inimigo?”

Responder a estas questões é o principal objectivo a que nos propormos com esta dissertação de

investigação. Tencionamos assim elaborar uma crítica do conceito tradicional de media tácticos.

Numa altura em que os poderes políticos e económicos fazem passar uma imagem que agrupa os

activistas e os terroristas “no mesmo saco", trata-se de reconceptualizar este tipo de utilizações sociais

das novas e velhas tecnologias, de determinar se estes podem ser autónomos em relação à retórica e

acção violenta e extremista que marcou grande parte dos movimentos marginais e da contra-cultura

do século XX como os situacionistas dos anos 50 e 60.

Popularizados pelo evento Next Five Minutes (N5M)1, que se realiza de três em três anos desde 1993

em Amesterdão, Holanda, onde se reúnem participantes de vários tipos de iniciativas que vão sendo

desenvolvidas em todo o mundo, os media tácticos apresentam-se melhor explicitados por David

Garcia e Geert Lovink numa série de manifestos – “The ABC of Tactical Media” e “The DEF of

Tactical Media”, entre outros – publicados na lista de discussão por correio electrónico Nettime2.

Distanciando-se dos media alternativos por desconfiar dos dogmas ideológicos, o praticante de media

tácticos concilia as tarefas de um activista com as práticas de um hacker, empregando tecnologias

baratas como hardware em segunda mão e software livre (Linux). Baseia-se numa lógica Do-It-

Yourself (DIY – Faça Você Mesmo), sem quaisquer objectivos comerciais, operando de uma forma

independente e oposta à dos grupos económicos transnacionais que, tal como já acontece nos media

tradicionais, começam a dominar a Internet. O fim destas iniciativas “tácticas” consiste em aumentar

a liberdade de expressão das classes desfavorecidas, minorias (raciais, sexuais, etc.), comunidades de

bairro, dissidentes políticos, artistas de rua e outros que são normalmente excluídos do circuito dos

1 Site disponível em http://www.next5minutes.org.2 Projecto de cariz marcadamente europeu criado em Outubro de 1995 por Lovink e Pit Schultz, que tem funcionado

desde o início como principal local de discussão e produção dos praticantes de media tácticos. É possível consultar o seu arquivo na Web a partir do endereço http://www.nettime.org.

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meios de comunicação de massas e do acesso às novas tecnologias.

Garcia e Lovink baseiam-se na distinção entre tácticas e estratégias formulada pelo francês Michel de

Certeau em Arts de Faire (1990 [1980]), em que refere que as primeiras correspondem a um método

subreptício, fragmentário e silencioso de resistência e subversão e as segundas aos modos de agir do

poder económico, político e científico. O princípio de táctica é oposto ao de estratégia no sentido de

não efectuar um confronto directo com o rival, mas enveredando por modos de actuação que minam

as suas forças e efeitos devastadores.

Todas as definições mais comuns de media tácticos pressupõem desde o início de um movimento

deste tipo a existência de um "inimigo", quer seja uma empresa transnacional como a Nike, a

McDonalds, a Shell ou um político como George W. Bush ou Silvio Berlusconi. Segundo esta

definição, o movimento só é formado e apenas existe em função de um Outro, O Inimigo, para o qual

se convergem todos os esforços A contestação e a denúncia das práticas desse adversário que o

colectivo considera que violam os direitos humanos, a democracia, a liberdade de escolha dos

consumidores ou o meio ambiente legitimam até o recurso à violência. Assim, quando se fala de

media tácticos existe a tendência para se referir a grupos com uma agenda determinada, como a rede

informativa alternativa Indymedia3, os colectivos artísticos AdBusters4, RTMark5, Critical Art

Ensemble6 e outros grupos hacktivistas, muitas vezes com uma filosofia meramente reactiva. Por

outro lado, estes grupos partilham a herança de uma certa mística terrorista que perpassou por todos

os movimentos artísticos subversivos desde os anos 50 até hoje, como explicaremos mais à frente.

Para os situacionistas, por exemplo, o terrorista era uma figura mítica e inspiradora e o recurso à

violência era encarado como uma forma legítima para alterar a sociedade e eliminar o sistema

capitalista e o espectáculo. Actualmente, alguns hacktivistas mais politicamente motivados não

hesitam em destruir e alterar informações dos servidores e sites, da mesma forma que alguns

elementos do movimento por uma globalização alternativa acabam por provocar actos de violência

contra as forças militares e de vandalismo contra a propriedade privada ou pública. Os media

dominantes exploram e empolam estes actos, apelidando-os até de ‘terroristas’, Muito mais do que a

força física, a dependência salarial, a censura, a insegurança laboral e outros instrumentos tradicionais

de controlo, a difusão propagandística do ‘fantasma do terrorismo’ é uma das principais armas

empregue pelos Estados e empresas transnacionais contra as redes tácticas de resistência provocando

na opinião pública um sentimento de risco ou de normalização social. Este estratagema empregue

pelo poder contra os media tácticos só é equiparado em eficácia pela cooptação – recuperação – das

próprias técnicas dos activistas, alterando o seu significado subversivo inicial por mensagens com fins

3 Site disponível em http://www.indymedia.org.4 Site disponível em http://www.adbusters.org.5 Site disponível em http://www.rtmark.com.6 Site disponível em http://www.critical-art.net.

10

comerciais e de controlo.

Aplicando a ideia elaborada por Tim Jordan em relação ao activismo político apresentada em

Activism!, consideramos que a solidariedade e a trangressão – “o colectivo e a acção”, nos termos de

Jordan (2002: 14) - são as duas faces ‘gémeas’ dos média tácticos. Apesar de se referir à solidariedade

interna, isto é, a que existe entre os elementos de um colectivo como um grupo ecologista,

entendemos que Jordan expande implicitamente este termo ao nível macrosocial quando refere que

um dos princípios éticos do activismo político é a aceitação das diferenças7 e que o “terrorismo é a

negação da diferença”, uma vez que “visa eliminar a oposicão” (2002: 150). Pode-se assim dizer que,

no espírito do activismo político, a solidariedade grupal está interligada com a solidariedade global.

No entanto, Jordan reconhece no activismo político uma tensão entre a ética da teoria e o

pragmatismo das ruas, ou melhor, entre a solidariedade e a transgressão, dado que muitas formas de

acção directa acabam por resultar em violência. Mais ainda, alguns movimentos de libertação animal

encaram o terror como uma táctica legítima. Nos media tácticos, esta tensão é ainda mais forte devido

à herança do fantasma do terrorismo – agora mais do que nunca avivado, após os atentados de 11 de

Setembro, 11 de Março e 7 de Julho.

É neste contexto que surge a necessidade de apresentar tácticas que respondam à questão de como

conciliar a transgressão com a solidariedade global, isto é, resistência e subversão sem violência e

destruição. Esta é a hipótese que nos propomos explorar na segunda parte desta dissertação e que

emergiu a partir da questão que Joanne Richardson coloca no final de “The Language of Tactical

Media”:

A ideia dos media tácticos é o prenúncio de uma questão necessária e oportuna: Como é

possível produzir outros media, que exprimam a sua solidariedade com os pensamentos

humilhados e os desejos incompreensíveis daqueles que parecem condenados ao silêncio, media

que não reflictam o poder estratégico do mainstream ao cair numa propaganda auto-determinada

idêntica a si própria e ignorando a sua própria história? (Richardson, 2002).

Este excerto sugeriu-nos um caminho de pesquisa que consideramos ainda por abrir. De forma a

demonstrar que a existência de um medium táctico não depende sempre da luta violenta contra um

adversário externo, iremos analisar o projecto brasileiro Metáfora. Surgido em 28 de Junho de 2002

sob a forma de uma lista de discussão por correio electrónico, transformou-se em pouco tempo numa

rede colaborativa de iniciativas sobre tecnologia, comunicação, educação e arte. Apesar de ter tido

uma curta duração, subsistindo apenas até Outubro de 2003, o movimento serviu como incubadora de

7 Juntamente com a democracia radical, ou seja, a “transgressão dos actuais sistemas de representação democrática das formas actuais de sociedade civil” (Jordan, 2002: 149).

11

mais de 25 projectos colaborativos de tecnologia social, muitos dos quais continuaram

autonomamente com êxito, tendo até agora maior sucesso o MetaReciclagem8, uma iniciativa que

recebe computadores velhos doados, reequipa-os, configura-os e instala-os em associações e centros

comunitários de bairros carenciados, empregando apenas software livre. Apesar da sua história

atribulada, o êxito relativo do MetaReciclagem9 é testemuhado pelas parcerias estabelecidas com

ONGs, prefeituras e o próprio governo brasileiro. Estes colectivos constituíram e constituem

experiências de produção colaborativa em tecnologia (software e hardware), media, activismo e arte

a partir de um paradigma de conhecimento livre e partilhado, em moldes não-hierárquicos e

horizontais.

Os dois projectos demonstram o modo de actuação completamente globalizado dos media tácticos,

apesar de este tipo de práticas ser frequentemente associado a uma retórica de antagonismo face “À”

globalização. Na verdade, a força deste movimento assenta, como é nossa intenção demonstrar ao

longo destas páginas – ainda que de forma velada mas constante -, na constituição de micro-redes

geograficamente distribuídas por todo o globo compostas por profissionais e amadores oriundos dos

mais diversos sectores. Estas micro-redes nacionais e regionais, por sua vez, constituem-se

esporadicamente em grandes redes mundiais, através dos festivais e laboratórios organizados a partir

do festival Next Five Minutes, em Amesterdão, ou na cobertura informativa realizada pela Indymedia

das manifestações e protestos contra as organizações supra-nacionais que promovem a globalização

neo-liberal como a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional. Embora as

primeiras associações regionais de movimentos de media alternativos e comunitários remontem às

decadas de 70 e 80, como veremos no capítulo dois da primeira parte, o surgimento de redes

horizontais e descentralizadas actuando no campo da intersecção entre arte, media e política só

ocorreu a partir dos anos 90, graças à massificação de tecnologias digitais como os computadores e,

sobretudo, a Internet.

Notas Metodológicas e Epistemológicas

Esta dissertação pretende constituir um trabalho de âmbito teórico-empírico, concedendo, no entanto,

um maior realce teórico. A opção por esta abordagem deriva em primeiro lugar de os media tácticos

constituírem um novo campo de investigação, ainda em evolução, com pouca divulgação junto do

grande público e referindo-se a um vasto conjunto de práticas bastantes diferentes entre si, em que o

número de criadores que reconhece os seus projectos como assumindo um cariz táctico é reduzido,

mesmo se estes se podem enquadrar nesse rótulo. Muitos dos investigadores de media alternativos e

activismo parecem ignorar este conceito, como no caso de Jordan (2002) e de Jordan e Taylor (2004), 8 Site disponível em http://www.metareciclagem.org.9 Tendo em conta o modo de actuação descentralizado e sem qualquer tipo de organização institucional do projecto.

12

autores que apesar de analisarem em detalhe o hacktivismo e culture jamming, nunca empregam

explicitamente o termo media tácticos.

Em segundo lugar, ainda não existe ainda nenhuma teoria estável e sólida sobre os media tácticos, se

é que isso é possível tendo em conta o carácter de grupos como a RTMark, os Yes Men, os

AdBusters, entre outros. Exceptuando os textos de David Garcia e Geert Lovink (1997, 1999 e 2001),

Critical Art Ensemble (2001), Graham Meikle (2002), Alexander Galloway (2004), Joanne

Richardson (2002) e poucos mais, a bibliografia teórica é ainda escassa. E mesmo quando existe, peca

por uma falta de consenso sobre o que são os media tácticos e a que tipo de práticas se referem.

Em termos empíricos, apesar de já haver um certo número de bibliografia académica sobre a

Indymedia10 e sobre o activismo mediático em geral, o estudo de experiências e projectos práticos de

hacktivismo, artivismo e culture jamming a partir da teoria dos media tácticos de Garcia e Lovink e do

CAE é ainda escasso, senão mesmo inexistente.

Outra dificuldade de investigação com que nos deparámos resultou da ausência de outros trabalhos

académicos sobre media alternativos em Portugal. Se falarmos de media tácticos, então a situação é

de total desconhecimento, quer nas universidades, quer no meio artístico. Apenas alguns artistas de

vanguarda actuam neste campo de subversão e resistência, embora não chamem o seu trabalho de

media tácticos (Conde, 2003). É nesse sentido que achamos necessário introduzir esta temática –

ainda que num plano mais teórico - num país como Portugal, normalmente bastante atrasado em

relação aos fenómenos de vanguarda que envolvem arte, tecnologia e activismo, como campos

autónomos ou de um modo interdisciplinar.

Contrastando com este ambiente pouco propício à experimentação cultural e tecnológica a partir de

lógicas subversivas11, se virarmos a nossa atenção para o outro lado do Atlântico, descobrimos um

10 Ver lista de ensaios sobre a Indymedia em http://docs.indymedia.org/view/Local/ImcUkImcResearchReferences e em https://docs.indymedia.org/view/Global/ImcEssayCollection

11 À excepção do Indymedia Portugal e do site Radicais Livres (www.radicais-livres.org) - actualmente suspenso -, será até mais apropriado dizer que não existe qualquer projecto activista, artístico ou de hacking em Portugal que possa ser considerado um medium táctico. Como refere Luís Silva a propósito da net.art no texto introdutório à exposição online “NetArt Portuguesa 1997 | 2004” organizada pelo projecto Atmosferas:

Se, internacionalmente, o aspecto de contra-cultura assume um papel central no desenvolvimento da prática, em Portugal, ainda que existindo peças subversivas, ou extremamente críticas, não se pode falar de grupos organizados, ou minimamente estruturados, cujo objectivo tenha consistido, ou consista, em minar, desacreditar, ou colocar em falha o sistema. (...)Não se pode falar portanto de uma lógica subversiva, organizada, equivalente à sua congénere internacional. Mas também não se pode falar do surgimento de comunidades, novas diásporas até, cujo centro de actividade fosse o debate e a experimentação artística deste tipo de suporte. O carácter periférico, por um lado, e a falta de capital tecnológico, por outro, parecem ter colocado os artistas portugueses à margem de um discurso artístico centrado nas possibilidades criativas da Internet. Ausentes as comunidades orientadas para a discussão e crítica de net art, ausente o lado subversivo

13

país com centenas de milhões de pessoas que falam português onde a investigação e a produção no

domínio dos media alternativos e cultura digital tem-se desenvolvido exponencialmente. Esse país

chama-se Brasil e é actualmente um dos maiores centros de promoção e criação de media tácticos. O

exemplo do festival Midia Tática Brasil12 demonstra bem a vitalidade desta rede mediática. Realizado

em Março de 2003 na cidade de São Paulo, este evento contou com 315 participantes e cerca de

quatro mil visitantes, tendo gerado uma grande repercussão nos media comerciais daquele país,

envolvendo dezenas de colectivos de videoactivismo, produção de fanzines, rádios livres, DJs e

performances artísticas com motivações políticas.

Apesar dos projectos que participaram no festival terem sido quase todos originários de São Paulo, o

número de novas iniciativas despontando noutras cidades do litoral e mesmo do interior do país não

pára de aumentar, como veremos no primeiro capítulo da segunda parte desta dissertação. Um dado

importante que a análise destes projectos pemite identificar é que, tal como Garcia e Lovink (1997) e

o Critical Art Ensemble (2001) salientam, para se produzir media tácticos não é preciso empregar

novas tecnologias de informação e comunicação. Vivendo num país com enormes desigualdades

económicas e dispondo muitas vezes de escassos recursos financeiros, estes colectivos vêm-se

obrigados a recorrer aos suportes que ‘estão mais à mão’ e que têm mais impacto junto do meio onde

actuam, como seja o vídeo, a televisão e a rádio comunitária ou livre, ou mesmo a tradicional fanzine.

Daí que muitos não possuem sequer uma presença na Web. Mas a principal razão da grande dinâmica

dos media tácticos no Brasil advém do facto de estes grupos espalhados pelo território daquele país e

utilizando os mais variados suportes tecnológicos terem constituído uma importante rede de

intercâmbio e suporte mútuo, onde se partilham recursos e conhecimentos. Nos últimos anos, esta

rede tem vindo a ser impulsionada pelo Ministério da Cultura brasileiro de Gilberto Gil, através do

programa Cultura Viva, com o apoio de ONGs e prefeituras de grandes cidades do país. Ao contrário

do que acontece na Europa e na América do Norte, os artistas e activistas brasileiros não ressentem a

colaboração com o Estado e vêm nesta relação a possibilidade de influenciar decisivamente as

políticas públicas sobre os seus sectores de actividade, de modo a fornecer aos cidadãos os meios para

dessas comunidades, o florescimento de uma net art portuguesa apresentou-se difícil, muito circunscrito, ainda que as temáticas abordadas e a forma de o fazer, fossem, na sua essência, semelhantes ao que se estava a explorar internacionalmente. (Silva, 2005)

Em consonância com Luís Silva, consideramos que a única iniciativa que se aproxima mais da designação de media tácticos, segundo as definições de David Garcia e Geert Lovink ou do Critical Art Ensemble, é a plataforma Virose (http://www.virose.pt), que tem vindo desde 1997 a realizar um trabalho sobretudo de divulgação e discussão teórica sobre a convergência entre arte, media e tecnologia. Dirigida por Miguel Leal e Fernando José Pereira, este ‘associação interdisciplinar’ online sediada no Porto publica irregularmente a e-zine Vector, de periodicidade irregular, onde se pode encontrar textos de Geert Lovink, Lev Manovich, Laura Baigorri, Jose Luís Brea e Matteo Pasquinelli. Contudo, esta plataforma parece padecer de um excessivo ‘intelectualismo’ que a faz fechar sobre si própria, em relação à sociedade e à política. Não obstante, representa um contributo valioso para o debate sobre a cultura digital em Portugal e um espaço aberto a outras perspectivas teóricas, como tivemos ocasião de o testemunhar pessoalmente quando Miguel Leal nos concedeu gentilmente a oportunidade de publicar um texto da nossa autoria na Vector.

12 Site disponível em http://midiatatica.org/mtb/index.htm.

14

exprimirem as suas vozes e participarem activamente no ambiente mediático e na sociedade em geral.

Deste modo, embora a inexistência de uma mesma rede dinâmica e criativa de media tácticos em

Portugal, o desconhecimento do tema e a ausência de estudos académicos sobre os media alternativos

ou radicais a nível nacional tenham constituído obstáculos à elaboração de um trabalho de pesquisa

original, o nosso conhecimento pessoal, ainda que à distância, de modo não-participativo e através de

comunicação mediada por computador de projectos lusófonos além-fronteiras como o Midia Tática e,

em particular, com o Metáfora/MetaReciclagem levou-nos a enveredar por um plano de investigação

empírica fora dos moldes tradicionais da investigação sobre os media em Portugal.

Propomos-nos assim apresentar algumas características que detectámos tanto no Metáfora como no

MetaReciclagem que são passíveis de serem enquadradas na definição de media tácticos, com base na

teoria avançada por autores como Garcia e Lovink (1997) e o Critical Art Ensemble (2001), nas

práticas desenvolvidas por colectivos europeus e norte-americanos que assumem essa classificação,

bem como na distinção entre tácticas e estratégicas estabelecida por Michel De Certeau (1990

[1980]). Em segundo lugar, pretendemos assinalar a especificidade que tais iniciativas assumem face

à produção mediática táctica patente nos países que compõem o centro da economia global. Para tal,

iremos apoiar-nos na teorização avançada pelo próprio David Garcia (2004a), bem como nos

trabalhos de Karla Brunet (2005), para além das reflexões de activistas brasileiros como Ricardo

Rosas (2004), Felipe Fonseca e Hernani Dimantas, entre outros. Estes autores apontam para um

modelo brasileiro de media tácticos que se encontra em emergência, mais direccionado para a

inclusão digital no sentido da reapropriação social da tecnologia do que para um activismo de protesto

anti-capitalista e anti-globalização.

Nesse sentido, desenvolvemos uma análise de conteúdo dos arquivos ainda disponíveis das listas de

discussão do Metáfora e do MetaReciclagem13 - sobretudo da lista Metáfora-Yahoo! -, na medida em

que todas as actividades, debates e ideias dos projectos surgiram a partir daí. Outros recursos que

serviram como fonte de recolha de informação foram as wikis14 de ambas as iniciativas, que têm

13 Inicialmente, a nossa intenção era centrar a análise apenas no Metáfora, devido ao carácter híbrido, abrangente e, simultanamente, efémero das suas actividades face ao âmbito mais restrito do MetaReciclagem. A impossibilidade de um contacto físico e directo com a actividade no terreno dos esporos de reciclagem de computadores dificultava também, em nossa opinião, uma análise aprofundada deste último projecto que exigiria o recurso a uma observação directa do tipo etnográfico das práticas em questão. Mas ao longo da investigação fomo-nos apercebendo que era impossível abordar o Metáfora sem dar conta do trabalho desenvolvido pelo colectivo no MetaReciclagem. Embora se limite apenas à reciclagem de computadores, o MetaReciclagem herdou o legado conceptual do Metáfora e permitiu que muitas das ideias aí discutidas conquistassem repercussão junto dos responsáveis pelas políticas públicas brasileiras de inclusão digital.

14 Software colaborativo que permite a edição colectiva dos documentos em hipertexto na Web usando um sistema leve e simples, sem que o conteúdo tenha que ser revisto antes da sua publicação. Todas as alterações realizadas pelos diferentes autores são registadas. A wiki do Metáfora está disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?; a do Metareciclagem pode ser acedida a partir de http://wiki.metareciclagem.org.

15

funcionado como espaços onde são documentadas para memória futura todas as experiências e ideias

partilhadas nas listas. Quando necessário, complementámos essa informação com dados obtidos de

blogs dos colaboradores do Metáfora e MetaReciclagem.

De forma a obter um perfil mais fidedigno dos elementos que integraram o núcleo inicial do Metáfora

- que veio a resultar mais tarde no MetaReciclagem - bem como das suas opiniões em relação a

ambos os projectos, decidimos elaborar um questionário composto pot 21 questões, algumas das

quais abertas, outras fechadas, que foi enviado por correio electrónico a 22 indivíduos – 17 do sexo

masculino e cinco do sexo feminino. O critério de selecção baseou-se no nível de colaboração activa

nos projectos do Metáfora e no MetaReciclagem, bem como na participação nas quatro listas de

email associadas a estas iniciativas (Metáfora-Yahoo!, Xemelê, MetaReciclagem e CoLab). Do total

de inquiridos, recebemos 11 respostas, o que corresponde a metade da amostra.

No intuito de aprofundar certos aspectos da história, estrutura organizacional e actividades dos dois

projecto, realizámos também uma entrevista por email com 15 questões abertas junto de Felipe

Fonseca, Dalton Martins, Daniel Pádua e Hernani Dimantas, na medida em que, tendo em conta a

leitura dos arquivos das listas e das wikis, estes foram os elementos mais envolvidos em ambos os

colectivos – dai serem legitimamente reconhecidos, de forma mais ou menos explícita, pelos outros

colaboradores como líderes. Com esta entrevista, pretendiamos também explorar mais a fundo certas

opções e decisões que marcaram o percurso do Metáfora e do MetaReciclagem. Apenas recebemos a

resposta de Felipe Fonseca15 mas tivemos também a oportunidade de travar algumas conversas

informais com outros responsáveis. A entrevista foi enviada a 18 de Novembro de 2005 e o

questionário a 22 de Novembro de 2005. De modo a garantir um maior grau de resposta, enviamos

nas semanas seguintes mensagens subsequentes apelando ao preenchimento do questionário e ao

envio das respostas da entrevista. A recolha dos dados procedeu-se assim entre a segunda quinzena de

Novembro e a primeira quinzena de Dezembro.

Consideramos que o recurso a vários instrumentos metodológicos como a análise de conteúdo, o

questionário e a entrevista justificam-se na medida em que as unidades de análise da nossa

investigação, o Metáfora e o MetaReciclagem, não podem ser considerados colectivos com uma

estrutura organizativa consolidada, minimamente fixa e dotadas de hierarquias rígidas16. Pelo

contrário, tal como outros media tácticos, possuem um carácter fluído, nómada, criativo e híbrido.

Mais ainda, esta opção metodológica justifica-se, em nossa opinião, na medida em que grande parte

15 Fonseca publicou a entrevista no seu blog em http://metareciclagem.org/fff/?p=1699.16 Muito embora, exista um certo grau de hierarquização da articulação das actividades e competências. Como

teresmos oportunidade de explicar, esta hierarquia resulta de uma meritocracia semelhante aos projectos de software livre, em que o mérito, a reputação e a dedicação de cada um são recompensadas pelo colectivo.

16

da literatura que aborda os media tácticos parte de uma abordagem interdisciplinar da convergência

entre Comunicação, Cultura e Tecnologia, partindo de campos diversos do saber, como a Teoria e o

Estudo dos Media, os Estudos Culturais, a Sociologia, a Filosofia e a Ciência Política.

Reconhecendo as diferenças linguísticas existentes na língua portuguesa escrita em Portugal e no

Brasil, tentámos adaptar as citações de blogs e artigos em publicações e os testemunhos obtidos por

intermédio dos questionários ao português continental. Já no que toca a citações retiradas das listas de

discussão, o critério seguido foi outro: procurámos, tanto quanto possível, manter-nos o mais fiéis

possíveis à fonte original, mesmo sob pena de desrespeitar as regras gramaticais e ortográficas

convencionais. Esperamos que, deste modo, possamos transmitir ao leitor o espírito de discussão viva,

animada e calorosa que constituiu, com efeito, a experiência mais valiosa que o Metáfora deixou nos

seus curtos 15 meses de existência.

De facto, verificámos que muita da vivacidade e da riqueza dos conteúdos presentes nas duas listas

(Metáfora-Yahoo! e Xemelê) se perdia quando as ideias aí trocadas eram documentadas na wiki. Esta

diferença de registos poderá ser explicada em parte pelo facto de que, embora este tipo de ferramentas

de publicação online possibilite a colaboração intelectual em larga escala, a informação aí armazenada

não seja partilhada de um modo tão imediato e generalizado como a que é difundida por intermédio

das listas. Outro factor a ter em consideração é que na altura, em 2002-2003, as wikis eram ainda um

fenómeno novo, não tão massificado como as listas de discussão, exigindo, para além disso, maiores

conhecimentos técnicos que a simples utilização do correio electrónico.

Plano da Dissertação

Commo já mencionámos, esta dissertação encontra-se dividida em duas partes, uma de cariz mais

teórico e outra mais empírica. No primeiro capitulo, começamos por referir as principais definições

do conceito de media tácticos, apresentamos de seguida as origens e a evolução histórica ao longo da

década de 90 do conjunto de práticas culturais e mediáticas para que o termo remete para avançar em

depois para as principais perspectivas teóricas sobre este movimento, recorrendo a autores como

Garcia e Lovink (1997 e 1999), Lovink e Schneider (2002), Critical Art Ensemble (2001), entre

outros. Por fim, elencamos alguns traços que distinguem os media tácticos de outras correntes

associadas à contra-cultura da segunda metade do século XX como os media alternativos e/ou

radicais.

De forma a contextualizar o surgimento dos media tácticos na última década, no segundo capítulo

traçamos um resumo da história daquilo a que Cardon e Granjon (2003) denominam de mobilizações

17

informacionais, isto é, os órgãos de comunicação social inicialmente – anos 70 e 80 - associados às

redes de movimentos sociais como o ambientalismo e o feminismo – como as rádios e televisões

comunitárias - e que vieram a culminar no movimento por uma globalização alternativa.

Uma vez que a metodologia empregue pelas práticas de media tácticos não se restringe ao conceito de

media em sentido estrito de meio de comunicação, no terceiro capítulo abordamos a relação existente

entre estas e o software livre e a ética hacker, conceitos essenciais para se perceber as formas de

actuação e organização descentralizada e o espírito auto-didacta que encontramos nessas práticas.

Dada a conotação específica que o termo táctica possui – e que é salientada ao longo desta dissertação

- remetendo para o universo militar e para uma concepção beligerante e antagonista da arte, dos media

e da própria participação política -, no quarto capítulo analisamos o significado literal da palavra,

assim como a oposição entre tácticas e estratégias no pensamento de Michel de Certeau (1990

[1980]), retomada por Garcia e Lovink anos mais tarde no festival Next Five Minutes. Para além

disso, pretendemos também clarificar as ligações existentes entre a táctica e outros conceitos

semelhantes que são frequentemente associados ao mesmo tipo de acções e fenómenos, como o

détournement, rizoma, Zona Autónoma Temporária, swarming, 'multidão' e smart mobs.

O quinto capítulo centra-se na caracterização de um certo número de práticas culturais, tecnológicas,

activistas que se destacam como exemplos de media tácticos. Estas práticas partilham características

comuns que definem os media tácticos: nomadismo, hibrídismo, valorização do espírito DIY, rejeição

das velhas ideologias, desconfiança por todo o tipo de poder, organização em rede, etc. Embora

muitos destes projectos funcionem sobretudo a partir de ou através da Internet, podemos também

encontrar em alguns o recurso a tecnologias não-digitais como a rádio, a televisão, a imprensa, os

cartazes publicitários ou a intervenções artísticas no espaço físico. De modo a optar pela

categorização que apresentamos aqui, baseámos-nos nos textos de Geert Lovink e David Garcia (1997

e 1999), Graham Meikle (2002), Alexander Galloway (2004) e Cardon e Granjon (2003). Deste modo

decidimos concentrarmos-nos em quatro tipos de práticas tácticas:

1. A subversão das mensagens publicitárias para criticar as grandes marcas comerciais patente

em projectos de culture jamming;

2. Os ataques informáticos, intervenções e protestos virtuais dos grupos hacktivistas;

3. As performances online e offline organizadas por colectivos artivistas;

4. O “jornalismo” produzido por activistas e cidadãos-comuns através do Centros de Media

Independentes (CMIs) da Indymedia.

18

Tendo em conta que o CMI-Portugal foi o único colectivo nacional que, após uma aturada pesquisa,

considerámos como passível de ser classificado como um media táctico, optámos por realizar um

pequeno estudo de caso - disponível no capítulo 5.4.1 – em que contrastamos as características

tácticas com os traços estratégicos presentes neste projecto a partir da análise do sistema de

publicação aberta da Indymedia, que permite a publicação de artigos por qualquer pessoa, e da

implementação da política editorial pelos voluntários encarregados dessa tarefa. Este estudo apoia-se

ainda num questionário enviado através da lista de discussão do CMI-Portugal aos elementos do

colectivo.

Por último, o sexto capítulo é dedicado a um conjunto de apontamentos críticos em relação ao

conceito de media tácticos e aos colectivos e práticas associadas a ele, em que destacamos o emprego

abusivo do termo para designar projectos com trabalhos bastante diferentes entre si - correndo o risco

de se cair numa generalização excessiva -, o perigo das lógicas subversivas dos praticantes tácticos

contra as grandes empresas poderem ser aproveitados pelo próprio capital que criticam, a esperança

frequentemente infundada no potencial emancipador das novas tecnologias como a Internet apenas

por serem novas e a obsessão secreta pela mística dos movimentos de guerrilha e da figura do

terrorista que predomina na linguagem das formas de produção mediática em causa. Este capítulo

aprofunda a reflexão que iniciámos no artigo “Media Tácticos: Uma Introdução ao Activismo Do-It-

Yourself” que foi publicado no nº 12 da série b da e-zine Vector da associação Virose de Janeiro de

2005 (Caetano, 2005).

Na segunda parte, de âmbito mais empírico, começamos, no primeiro capítulo, por descrever o pano

de fundo do movimento brasileiro dos media tácticos em que o Metáfora e o MetaReciclagem

emergiram e se inserem e que tem vindo a despontar com maior força desde o início do século XXI e,

em particular, desde o início da presidência de Lula da Silva, que representou um novo clima político

aparentemente mais favorável à actividade dos colectivos autónomo – embora, na realidade, este se

revele mais paradoxal e nivelado do que se poderia pensar à partida.

No segundo capítulo, procedemos à apresentação da história do Metáfora e dos principais projectos

concretizados pelo colectivo, de entre os inúmeros que foram esboçados nas listas de discussão e na

wiki, continuando com uma análise das razões do fracasso desta “incubadora de projectos”, bem como

da estrutura de organização e liderança do grupo. O MetaReciclagem é abordado separadamente, no

terceiro capítulo, onde para além de darmos conta da história do projecto, fazemos uma exposição da

metodologia empregue na reciclagem de computadores e da reapropriação da tecnologia para fins de

transformação social, conceito que os seus colaboradores utilizam para denominar a sua actividade

em oposição às políticas de inclusão digital propostas por alguns políticos e ONGs brasileiras. No

19

quarto capítulo apresentamos os resultados de um questionário realizado por email que nos permitem

traçar um perfil dos colaboradores do Metáfora e do MetaReciclagem, bem como obter a sua opinião

em relação a ambos os projectos.

Na conclusão, partindo da experiência do Metáfora e do MetaReciclagem, demonstramos que, embora

estas iniciativas possam ser classificadas como media tácticos, elas diferem do modelo 'canónico'

antagonista e de confronto indirecto com um inimigo teorizado por Garcia e Lovink, Critical Art

Ensemble, Graham Meikle, Joanne Richardson e aplicado pelos activistas por uma globalização

alternativa da rede Indymedia, sabotadores de publicidade, hackers que danificam, entopem e/ou

escapam aos sistemas informáticos dos grandes poderes e artistas que colocam em causa a lógica

comercial e proprietária do mundo da arte e de outras indústrias culturais. Neste sentido, o Metáfora e

o MetaReciclagem representam um novo paradigma táctico que leva em conta as especificidades de

uma sociedade periférica e de contrastes como a do Brasil, onde a solidariedade e a cooperação, as

“gambiarras”, os “mutirões e os puxadinhos”, são mais importantes que o activismo de protesto,

resistência e oposição predominante nos media tácticos dos países desenvolvidos, na medida em que é

a própria sobrevivência num quotidiano marcado pela pobreza e exclusão que está em causa.

20

1 - Elementos para a História e Caracterização dos Media Tácticos

1.1 - Génese do Movimento

Tendo como pano de fundo um cenário pós-Muro de Berlim, o termo media tácticos foi criado em

1992 por Geert Lovink, David Garcia e Caroline Nevejan, organizadores da primeira edição do ciclo

de conferências Next Five Minutes (N5M), realizada em Amesterdão no ano seguinte (Berry, 2000;

CAE, 2001; Lovink e Schneider, 2002; Meikle, 2002). Foi desta forma, explica o colectivo artístico

Critical Art Ensemble (CAE)17, que “um certo tipo de práticas culturais existentes desde há décadas”

passou a ter um nome e uma definição (CAE, 2001).

Até então, “este movimento tinha evitado ser designado ou totalmente classificado. As suas origens

situam-se na vanguarda moderna, na medida em que os seus participantes atribuem uma grande

importância à experimentação e ao compromisso com o vínculo imprescendível existente entre a

representação e a política”. Segundo o mesmo grupo, os participantes desta corrente “não são artistas

em qualquer dos sentidos tradicionais do termo e não querem ser apanhados na teia de conotações

metafísicas, históricas e românticas que acompanham essa designação. Nem tão pouco são activistas

políticos propriamente ditos, dado que se recusam a adoptar somente uma posição de reacção.” (CAE,

2001: 3-4)

Inspirados na obra Arts de Faire de Michel de Certeau (1990 [1980]), os organizadores da primeira

edição do N5M inventaram o termo televisão táctica para servir como tema deste evento, na medida

em que, nessa altura, a câmara de vídeo era a tecnologia de electrónica de consumo mais massificada

e que oferecia maiores possibilidades “tácticas”, no sentido atribuído por Certeau a este conceito,

como forma de organização e mobilização social.

A iniciativa contou com activistas, artistas e teóricos oriundos da América do Norte e da Europa

Ocidental e do Leste. Os participantes estavam “interessados em questões de intervenção na televisão,

em teorizar sobre a estrutura e dinâmica da cultura do vídeo, em formular representações de causas

politicas que contribuíssem para uma melhor justiça social e em criar modelos alternativos de

distribuição”, entre outros assuntos (CAE, 2001).

17 Para além de ter uma produção teórica de cinco livros, todos publicados pela editora Autonomedia, (www.autonomedia.org) onde investiga a convergência entre os regimes emergentes da tecnologia com os mecanismos de controlo empregues pelo capital e as grandes empresas, enquanto colectivo de arte performativa, o CAE produz instalações em galerias e espaços públicos onde questiona a propriedade empresarial da Internet, o acesso limitado às redes de informação digital, o predomínio das perspectivas comerciais na indústria tecnológica e as restrições impostas pelos direitos de propriedade intelectual. Recentemente, tem realizado produções relacionadas com a indústria de biotecnologia, incluindo os Organismos Geneticamente Modificados (OMGs) e o patenteamento de genes.

21

Mas enquanto que os activistas e artistas mediáticos do lado ocidental estavam e continuam a estar

sobretudo interessados na produção de media de campanhas em vez de movimentos sociais amplos18,

os artistas dissidentes e activistas dos media samizdat19 tinham na sua maior parte pertencido a um

vasto movimento social que levou ao desmantelamento do império soviético e tendiam ainda durante

esses primeiros anos de liberdade para uma falta de sentido critico em relação ao seu futuro nos

termos de uma economia de mercado, diriam Garcia e Lovink em “The DEF of Tactical Media”

(1999), publicado na Nettime um pouco antes da terceira edição do N5M.

Apesar da sua pequena dimensão – teve apenas cerca de 300 participantes –, o evento serviu como

sinal de que estava a começar a formar-se um novo movimento. Mas, como Garcia referiu mais tarde

(1998), as condições que tornaram possíveis os media tácticos datavam já do final da década de 80,

“período importante de transição em que toda uma gama de novas tecnologias intermédias permitiu

interagir com os media de um modo muito menos passivo que os teóricos e futuristas alguma vez

tinham previsto.” Com intervalos de poucos anos de diferença entre si, apareçeram o zapping

televisivo, o walkman, o gravador de vídeo, a indústria de aluguer de videocassetes, uma quantidade

enorme de canais disponibilizada pelos sistemas domésticos de televisão por cabo e satélite e,

sobretudo, a câmara de vídeo.

Como explica este autor, em resultado desta revolução tecnológica na electrónica de consumo, as

audiências puderam pela primeira vez criar os seus próprios ambientes mediáticos personalizados.

Deu-se assim início ao “fim do domínio dos media difusores de massas enquanto fonte centralizada

das representações da sociedade.” Para Garcia, na medida em que estas novas tecnologias eram

ferramentas domésticas do quotidiano, elas libertaram os artistas e activistas mediáticos dos rituais

penosos e dispendiosos da produção alternativa e marginal (ver ponto seguinte).

Num ensaio mais recente, Lovink e Schneider afirmam, na mesma linha, que “a crescente

disponibilidade de equipamento Do-It-Yourself”, foi uma das razões, juntamente com um “maior

interesse pelas questões do género e o aumento exponencial das indústrias dos media”, da emergência

de um sentido de tomada de consciência entre activistas, programadores, teóricos, curadores e artistas

a partir dos anos 90 (Lovink e Schneider, 2002). Na perspectiva destes dois autores, “os media

deixaram de ser vistos meramente como instrumentos para a Luta para passarem a ser encarados

como ambientes virtuais cujos parâmetros estão em permanente processo de construção”, concluindo

que este período foi a época de ouro dos media tácticos, então centrados na problemática da estética e

na experimentação de formas alternativas de narração de histórias.

18 Ao contrário dos seus antecessores dos anos 60 que pertenciam a movimentos sem uma agenda específica e que actuavam como um megafone representando a voz da resistência ou dos oprimidos, de acordo com Garcia e Lovink.

19 Sistema clandestino de cópia e distribuição de publicações impressas dos países da Europa do Leste durante o período de dominação do comunismo.

22

Desde o vídeo, os primeiros CD-ROMs, as cassetes de áudio, as fanzines e os folhetos volantes aos

estilos musicais como o Rap e o Techno, os media empregues variavam bastante, assim como o tipo

de conteúdos, simbolizando acima de tudo a exaltação de uma liberdade de produção mediática. Na

opinião destes teóricos, este conjunto de práticas libertadoras veio a converter-se na passagem para o

século XXI em movimentos sociais com mensagens políticas explícitas, frequentemente apelidados

erroneamente pelos órgãos comerciais de comunicação social de “anti-globalização”.

Mas, para David Garcia, o facto do termo que veio a caracterizar este movimento ter surgido em

Amesterdão não foi mero acaso, mas sim fruto da “longa e notável história de produção mediática

experimental e anarquista e de redes cívicas desta cidade”. Esta “utopia pirata de media tácticos”,

como chegou o autor a caracterizar Amesterdão em meados da década de 90, resultava de um acesso

comunitário à rádio e televisão por cabo fortemente enraízado que permaneceu ao longo dos anos,

“apesar dos danos provocados desde então neste sector por políticas públicas.”

Para além da Holanda ter sido o primeiro país europeu a estabelecer uma infra-estrutura totalmente

constituída por cabo20, Amesterdão é, segundo Garcia, talvez a única grande cidade europeia que

obteve uma vantagem “táctica” da utilização da televisão por cabo. No ar há mais de vinte anos, os

seus dois “canais abertos” exibem programações de media tácticos e experimentais, para além de

outros programas mais conservadores. Outra iniciativa pioneira que aí teve lugar foi a Cidade Digital,

uma rede comunitária aberta a toda a população, assente em terminais de acesso público espalhados

ao longo do tecido urbano.

A partir de Amesterdão, epicentro deste renascimento do activismo mediático, o termo media tácticos

chegou em pouco tempo às listas de discussão por correio electrónico sobre teoria dos media como a

Nettime. Ao mesmo tempo, o conceito ganhou aceitação junto das comunidades virtuais, grupos de

trabalho e círculos sociais em que os actvistas e artistas mediáticos participam. Esta situação levou a

que os organizadores do primeiro evento N5M se apercebessem que o tópico televisão táctica tinha

um âmbito demasiado limitado no seu âmbito, uma vez que um número cada vez maior de pessoas

com uma sensibilidade semelhante estava a produzir trabalhos “tácticos” e que seria vantajoso para

todos que se reunissem (CAE, 2001: 4-5).

Desde a segunda edição do festival em 1996, o tópico media tácticos tornou-se no denominador

comum de todas as actividades que acolhe. O evento passou a integrar todas as formas de media,

embora os debates se centrassem nas tecnologias electrónicas de comunicação como a rádio, a

20 O que fez com que nesse país a televisão por cabo seja hoje, de acordo com o autor, uma tecnologia utilitária de acesso quase universal.

23

televisão e, em particular, a Net. Ao mesmo tempo, tornou-se mais global, ao ponto do quarto e mais

recente N5M (2003) ter contado com a participação de elementos de projectos do Brasil, Índia,

Tanzânia, Gana, Mali, Zâmbia, Jamaica e outros países considerados periféricos ou semi-periféricos.

Mas a organização pretendeu ir para além de Amesterdão e descentralizar o evento, através da

implementação de laboratórios de media tácticos em São Paulo, Nova Deli, Dubrovnik, Moscovo,

Cluj, Barcelona, Birmigham, Chicago, Nova Escócia, Sidney e Zanzibar, que produziram os

conteúdos a partir dos quais um grupo de editores internacionais conceberam o elenco final do

programa do festival (Garcia, 2004).

.

24

1.2 – Principais Definições

A partir da terceira edição do N5M, realizada em Março de 1999, a secção FAQ21 do site do evento

passou a integrar a seguinte definição:

O termo 'media tácticos' refere-se a uma utilização e teorização crítica de práticas mediáticas que empregam todas as formas de velhos e novos média, simultaneamente lúcidas e sofisticadas para atingir uma variedade de fins não-comerciais específicos e promover todos os tipos de questões políticas potencialmente subversivas.22

Os organizadores do ciclo de conferências referem ainda nessa página que este tipo de práticas

abrange a utilização de câmaras digitais de vídeo de baixo custo e a consequente distribuição de

vídeos na Internet por parte de activistas, o recurso de participantes dos movimentos “anti-

globalização” a transmissores de rádio FM de fraca potência, a organização de ocupações virtuais de

sites da Internet, o desenvolvimento de software livre e open-source por programadores de

computadores e a utilização de tecnologia sem fios para disponibilizarem a comunidades inteiras um

acesso económico à Internet em banda larga.

Mas o primeiro esforço teórico de caracterização deste movimento é disponibilizado em “The ABC of

Tactical Media”, publicado em Maio de 1997 na Nettime por David Garcia e Geert Lovink. Este

manifesto começa com a seguinte definição:

Media tácticos são o que acontece quando meios de comunicação baratos do tipo DIY, tornados possíveis pela revolução na electrónica de consumo e por formas alargadas de distribuição (desde o cabo de acesso público à Internet), são utilizados por indíviduos e grupos que se sentem oprimidos ou excluídos de uma cultura mais vasta. Não se limitam a noticiar factos e dado que nunca são imparciais; participam sempre e é isso mais do que qualquer coisa que os separa dos media dominantes. (Garcia e Lovink, 1997)

Este processo de designação e classificação gerou uma mistura de sentimentos perante muitos

praticantes de media tácticos. Se por um lado, segundo os membros do CAE, o novo termo deixava a

porta aberta para a sua cooptação e/ou a quase inevitável recuperação pelo capitalismo (2001: 5), ao

mesmo tempo “produziu um alívio pois qualquer um podia passar a ser um híbrido, seja artista,

técnico, cientista, artesão, teórico ou activista e todos podiam trabalhar juntos em combinações com

diferentes pesos e identidades. Estas múltiplas facetas (...) que faziam parte de cada indivíduo e de

cada grupo, podiam ser reconhecidas e valorizadas. Muitos sentiram-se aliviados por deixarem de se

ter que apresentar ao público como especialistas de forma a serem valorizados.

21 Frequently Asked Questions, espaço destinado a responder às questões mais frequentes relativas ao evento.22 Retirado da página do FAQ do N5M disponível em http://www.next5minutes.org/faq.jsp?faqid=programme#3.

25

Como refere o CAE, o conjunto de traços a partir do qual emerge uma prática de media tácticos está

sujeito a mudar dependendo de a quem é perguntado quais são essas características. Este colectivo

artístico explica que os princípios deste modelo são gerais, reconfiguráveis, permeáveis, estando

sujeitos a frequentes formações e deformações, dependendo sempre da sua aplicação e contexto.

De forma a contribuir com a sua própria definição do movimento, este colectivo artístico apresenta

quatro princípios básicos (2001: 8-11):

● Os media tácticos são uma forma de intervencionismo digital, não na medida em que apenas

podem ser produzidos através de tecnologia digital, mas sim no sentido em que consistem na

cópia, recombinação e re-presentação de informação. Colocam em causa o regime semótico

em vigor criando eventos participativos e criticando através de um projecto experimental.

● Os praticantes de media tácticos empregam qualquer medium necessário para responder às

necessidades de uma situação. A sua especialização não predetermina a acção, pelo que se

tende para a realização de trabalhos colaborativos que permitam o intercâmbio de diferentes

competências.

● A prática amadora é especialmente valorizada, dado que os amadores podem ver para além

dos paradigmas dominantes, dispôem de uma maior liberdade para recombinar elementos de

paradigmas considerados desde há muito mortos e não se encontram restringidos por sistemas

institucionalizados de produção de conhecimento e de elaboração de políticas públicas.

● Os media tácticos são efémeros, deixam poucos traços materiais. O que resta deles é

sobretudo memória viva. As intervenções desterritorializam-se por si próprias, sendo sempre

ad-hoc. Terminam a sua actividade por si próprias.

26

1.3 - Abordagens Teóricas

O objectivo (dos media tácticos) não é destruir a tecnologia sob algum tipo de ilusão neo-luddista, mas sim impulsioná-la para um estado de hipertrofia, para além do ponto onde se pretendia que ela fosse. Então, na sua condição enfraquecida, ferida e desprotegida, a tecnologia pode ser esculpida de novo em algo melhor, algo em estreita concordância com as necessidades e os desejos reais dos seus utilizadores.

- Alexander Galloway, Protocol: How Control Exists after Decentralization

Nos últimos anos, a começar com o manifesto fundador de Garcia e Lovink de 1997, a teorização

sobre os media tácticos tem vindo a crescer gradualmente. Contudo, o movimento não abandonou

ainda em grande parte o seu círculo inicial, junto do meio artístico de vanguarda e das comunidades

de programadores de software livre na América do Norte e Europa, apesar de algumas iniciativas

realizadas em países menos desenvolvidos.

Em “The ABC of Tactical Media”, Garcia e Lovink apresentam não só a primeira definição do

conceito de media tácticos, como lançam as bases para todo um novo programa teórico e prático no

contexto da teoria dos media, com aplicações aos campos na altura em irrrupção dos novos média e da

cibercultura.

As influências militares do movimento estão bem explícitas logo no início deste texto, com uma

referência explícita à necessidade da existência de um adversário para que o movimento subsista: “Os

media tácticos são media de crise, crítica e oposição. Isto constitui tanto a sua fonte de poder (...)

como o seu limite. Os seus heróis típicos são: o activista, o guerreiro nómada dos media, o prankster,

o hacker, o rapper de rua, o kamikaze da câmara de vídeo, eles são os alegres negativos, sempre à

procura de um inimigo. Mas, uma vez que o inimigo tenha sido nomeado e vencido, é ao militante

táctico que ocorre entrar em crise.”

Os media tácticos possibilitam, deste modo, as condições para a realização da III Guerra Mundial na

óptica de Marshall McLuhan, “uma guerra de guerrilha informacional, sem separação entre

participação civil e militar”23, em que “os fracos se tornam mais fortes que os opressores ao

descentralizarem-se, ao moverem-se rapidamente pelas paisagens mediáticas físicas ou virtuais”, nas

palavras dos dois teóricos. A pesquisa e procura destas técnicas consiste na missão de vários

produtores de media tácticos destinados às comunidades migrantes. Inspirados na distinção entre

“tácticas” e “estratégias” que Certeau aplica à relação entre o consumidor e a produção das indústrias

culturais24, estes artistas e activistas tentam “fazer com que o caçado descubra a maneira de se tornar o

23 McLuhan, Marshall (1970), Culture is Our Business, Ballantine Books, pág. 66. Citado por Kalle Lasn (1999), pág. 123.

24 Tomada de empréstimo pelo próprio Certeau ao filósofo militar prussiano da primeira metade do século XIX Karl

27

caçador”.

Cerca de dois anos antes da publicação deste manifesto, no texto de apresentação da segunda edição

do N5M, já Andreas Broeckmann (1995) colocava como hipótese a existência de uma afiliação

inerente entre os media tácticos com certas disposições militares e tradições de pirataria, questionando

em seguida a aplicabilidade da metáfora militar para descrever o trabalho dos artistas e activistas

mediáticos. “Não será que a metáfora coloca em risco esforços para abordagens mais pacíficas,

ponderadas e também mais compassivas nos media independentes que são frequentemente dirigidas

precisamente contra as práticas repressivas e violentas dos conglomerados da comunicação social e

dos Poderes em vigor?”, perguntava.

O nomadismo militante e de guerrilha dos media tácticos é relacionado por Garcia e Lovink com as

culturas migrantes, na medida em que ambos se distinguem pela sua constante mobilidade. O

praticante táctico está sempre a cruzar fronteiras pré-estabelecidas entre disciplinas, mediums e

espaços. Daí resulta “a produção contínua de uma série de mutantes e híbridos”.

Ao nomadismo junta-se um hibridismo provisório, um permanente work-in-progress

experimentalista, fazendo uso das ferramentas que estão mais à mão. Os defensores deste tipo de

radicalidade estética “baseiam-se num princípio de resposta flexível, de trabalho com diferentes

coligações, sendo capazes de se moverem entre as diferentes entidades no vasto panorama mediático

sem traírem as suas motivações originais” (Garcia e Lovink, 1997).

Na base do movimento está uma estética da fuga, de camuflagem e da apropriação inspirada no texto

do pensador anarquista Hakim Bey sobre “Zonas Autónomas Temporárias” (2001 [1991]), pois,

segundo Garcia e Lovink, “os media tácticos nunca são perfeitos, estão sempre em transformação, são

performativos e pragmáticos, envolvidos num processo contínuo de questionamento das premissas dos

canais com que trabalham”.

À beira do final do milénio e nas vésperas da terceira edição do N5M, Garcia e Lovink actualizaram o

seu manifesto com “The DEF of Tactical Media” (1999), tendo em conta as consequências nefastas

do capitalismo global e o desvanescimento do clima utópico dos activistas mediáticos em relação ao

potencial emancipatório dos novos média, em especial, a Internet, que nesta altura começava já a ser

dominada por interesses comerciais.

Von Clausewitz.

28

Apesar do crescimento extraordinário da globalização dos fluxos de capital, segundo os teóricos

holandeses, os grupos de media tácticos não deixaram de se opor a esta situação com campanhas

também cada vez mais globalizadas. Escrito antes de Seattle, Génova, Davos e Gotemburgo e de

todas as grandes manifestações contra o capitalismo global, este texto contém em si uma certa dose de

premonição, dado que refere já a possibilidade da constituição de um movimento a partir destas

“estratégias”. Nos dois anos seguintes, os órgãos comerciais de comunicação social irão encher-se

cada vez mais de referências ao movimento por uma globalização alternativa – ainda que muitas

sejam de teor negativo.

Contudo, os autores não deixam de realçar as diferenças existentes entre os vários praticantes tácticos.

Utilizando a primeira pessoa do plural, escrevem: “Não possuímos nenhuma identidade predominante

em torno da qual nos organizemos. Não criamos modelos positivos para que qualquer um se

identifique com eles (...). As nossas alianças são ainda relativamente froxas, com uma tendência para

se fragmentarem num número infinito de gangues e subculturas.”

Esta desorganização e fragmentação entre múltiplos organismos é, aliás, um dos problemas que afecta

a legitimidade dos activistas a favor de uma globalização alternativa face ao poder político, às

instituições transnacionais de políticas económicas e à opinião pública. Entre grupos desordeiros e

violentos de um lado e colectivos de acção directa pacífica do outro, o movimento parece ainda não

ter encontrado uma voz comum que represente todos os seus elementos.

Confrontados com a necessidade de saírem do próprio gueto que construíram para si, os praticantes

tácticos são levados, afirmam Garcia e Lovink, a procurarem novas coligações, tentando, em

simultâneo, evitar as armadilhas e os limites da política institucionalizada. Trata-se assim de uma

questão de construção de “zonas temporárias de consensos”, espelhando um equílibrio entre a

formação de alianças com pessoas que em condições normais, provavelmente nunca se iriam

conhecer e a possibilidade de, quando chegar a altura certa, dissolver essas coligações, tendo como

princípio base a mobilidade e a velocidade de forma a evitar a estagnação.

Criticando os activistas da “velha guarda” que consideram que o espaço da representação e do

simbólico construído por e através dos media não passa de um espectáculo cheio de símbolos vazios25,

os dois autores argumentam que muitas das lutas de rua passaram a desenrolar-se não no espaço

público, mas em ambientes virtuais e simulações, isto “numa altura em que se pode assistir a um tão

25 “Hoje em dia, os media são acusados de fragmentarem em vez de unificarem e mobilizarem. Paradoxalmente, isto deve-se ao seu poder discursivo de pormenorizar as diferenças e de questionar, em vez de apenas emitir, propaganda.” (Garcia e Lovink, 1999)

29

grande crescimento no número de canais de media, onde existe uma expansão enorme dos vários

ciberespaços”. Por isso defendem que a velha oposição entre simulação e acção real26 deixou de fazer

sentido.

Outra das vítimas deste segundo manifesto táctico é a ideologia da hibridização. Apesar do

hibridismo, enquanto forma de ligação entre o velho e o novo, a rua e o virtual, ser uma das principais

características dos media tácticos, os teóricos holandeses referem que este método não deve ser

encarado como algo de bom em sim mesmo, porque isso significa o fim do sentido crítico e do

negativismo e a adopção da visão neo-liberal onde tudo pode ligar “promiscuamente” com tudo. Num

sentido táctico, o hibridismo não passa de um realismo sujo, uma questão de sobrevivência e nunca de

escolha.

Nesse mesmo ano de 99, em Novembro, a manifestação de Seattle para contestar a reunião da

Organização Mundial do Comércio (OMC) nessa cidade marcou o início de uma nova época em que

os media tácticos passaram a ser associados ao activismo mediático do movimento para uma

globalização alternativa que organiza demonstrações um pouco por todo o mundo27 contra as grandes

instituições supranacionais que controlam a política económica do globo de acordo com princípios

neo-liberais, quer seja a OMC, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial ou a União

Europeia. Os primeiros meses do século XXI representaram assim um período de crescimento

exponencial deste movimento, apesar da existência de várias vozes dissonantes entre si e da crise

económica acentuada.

É sob este pano de fundo que pode ser lido o último texto do trio de manifestos sobre media tácticos

escritos em co-autoria entre David Garcia e Geert Lovink, publicado em Julho de 2001, mais uma vez

na Nettime. “The GHI of Tactical Media” resulta de uma entrevista realizada por Andreas

Broeckmann, durante o festival de arte de novos media Transmediale 01, que se realizou em Berlim

nesse mês. Broeckmann foi o curador desse evento.

Respondendo à questão de se considera que “faz sentido falar dos media tácticos como uma atitude e

prática geral que permeia media diferentes ou se se trata de um termo sucinto para designar todo um

26 Num ensaio baseado nos vários manifestos sobre media tácticos escritos por si e em co-autoria editado no seu livro Dark Fiber (2002: 265), Lovink complementa este texto referindo que as ideias de Jean Baudrillard relativas à simulação foram úteis nos anos quando o sector dos media explodiu. Contudo, à medida que se aproximava o fim do milénio, tudo parecia simulado, tendo as ideias do pensador francês começado a parecer conservadoras e fora de contacto com a actual realidade da Internet. Ver Jean Baudrillard (1981), Simulacros e Simulações. Lisboa, Relógio D’Água. Abordaremos mais uma vez as ideias deste pensador no capítulo 7.3.

27 Praga, Génova, Gotemburgo, Davos, Montreal foram alguns dos cenários que, a seguir a Seattle, foram palco de manifestações contra grandes instituições supranacionais.

30

conjunto de práticas mediáticas diferentes, cada uma com a sua própria cultura e política”, Lovink

afirma que se trata de “uma forma de arte que conjuga o activismo com uma atitude positiva em

relação à tecnologia digital actual”, embora não considere que o movimento tenda para a utilização de

certos meios ou plataformas.

Na mesma linha, Garcia considera que, em vez do emprego de qualquer medium em particular, o que

caracteriza o praticante táctico é a qualidade de criar linguagens efectivas de utililizador, quer sejam

virtuais ou de outro modo. Os media tácticos são, assim, para os dois autores, mais uma questão de

atitude do que uma definição técnica. Nesta perspectiva, os praticantes tácticos não devem deixar

enredar-se por um tecno-narcisismo em favor das novas tecnologias digitais e, sobretudo, da Internet.

Isto na medida em que, afirma Lovink num tom cauteloso, não se obtém liberdade mediática de graça

nem, sobretudo, se pode comprar liberdade tecnológica. Criticando os defensores acérrimos do

software de código aberto como o sistema operativo Linux, o teórico holandês refere que não existe

software inerentemente bom. Do mesmo modo, “a Internet está para além do bem e do mal,

limitando-se a reflectir a natureza humana com todas as suas falhas”, “correndo o perigo de se tornar

num medium profissional, nas mãos de outros”.

Até porque, faz questão de notar, “o activismo táctico que actua na rede está muito mais próximo das

empresas ponto com do que muitos pensam”. Em consequência, o início da depressão da Internet a

partir do final de 2000 levou os activistas mediáticos a trocarem as esperanças utópicas iniciais por

uma série de críticas realistas da globalização e da chamada nova economia, responsabilizando-as

pela crise. Muitos viram desaparecer o financiamento das suas actividades, na sua grande parte até

então assegurado no sector comercial. Mas, de acordo com o autor, a um nível micro continuam a

existir muitas coisas interessantes por fazer com a Net.

Doutro ponto de vista, Lovink considera positivo, em termos das tarefas sociais e políticas efectuadas

na Rede, o desaparecimento da mentalidade de ladrão ciberegoísta das empresas ponto com, embora

saliente que não devemos ignorar o reverso desta história: “Com o liberalismo perdendo a sua

hegemonia, existe sempre o perigo de deitar fora o bébé junto com a água do banho e de perder a

ciberliberdade para as grandes companhias e o Estado. Isso nunca deveria acontecer. Também

compete aos activistas lutar contra a censura, fazer pressão contra a quantidade enorme de legislação

desastrosa.”

A inclusão de determinadas práticas artísticas na gaveta dos media tácticos é também contestada por

31

Lovink neste texto. Na sua opinião, este termo resulta de uma tentativa de “ultrapassar a dicotomia

entre a arte elitista e o activismo das ruas que marcou os anos 80 com os seus combates dogmáticos e

novos movimentos sociais institucionalizados” como o Greenpeace e a Amnistia Internacional. O

autor considera que a ideia dos media tácticos veio a resultar nas manifestações de Seatlle e no

fenómeno Indymedia..

Ao mesmo tempo que dá conta do renascimento extraordinário do activismo mediático a nível

mundial, Lovink não acredita, porém, que o Net-activismo ou os media tácticos possam preencher o

buraco existente entre questões abstractas como a dívida do terceiro mundo, os acordos de comércio

global, as políticas financeiras e a miséria diária, com as suas lutas concretas e locais. “A única coisa

que podemos fazer é trocar e partilhar conceitos”, diz, dando como exemplo o rápido crescimento dos

grupos anti-fronteiras que apoiam os imigrantes ilegais, “uma luta onde a imaginação táctica

desempenha um papel importante”.

Questionados por Broeckmann sobre a existência de uma possível tensão entre a necessidade dos

praticantes tácticos de obter apoio junto das instituições de modo a desenvolverem práticas e infra-

estruturas a longo prazo e a atitude “toca-e-foge” implícita nos media tácticos que é incompatível com

a natureza desse tipo de entidades, Lovink afirma que essa questão ainda não se coloca pois “a

institucionalização é um problema que surge com o tempo, talvez apenas cinco ou dez anos depois do

movimento original se ter fragmentado. Confessa até que “gostaria muito de ver surgir mais

iniciativas privadas do tipo ‘toca-e-foge’ no sector activista e da arte dos novos média”. Contudo,

considera que os indivíduos criativos não conseguem lidar com o tipo de burocracia que envolve as

instituições actuais. Neste aspecto, as empresas ponto com podem constituir para este autor uma boa

lição, na medida em que as artes e a cultura continuam a depender muito dos recursos

governamentais.

Por seu lado, Garcia também não vê essa tensão, embora por razões diferentes, dado que, ao contrário

do que a questão dá a entender, os media tácticos não estão sempre, por definição, fora do poder

institucional. Para si, o poder existe onde se faz exercer e esse local poderá ou não situar-se dentro das

instituições. “O táctico ultrapassa a dicotomia entre o comercial e de massas e o marginal. São os

conceitos em que os media tácticos são produzidos que influenciam as tácticas implementadas, e estes

conceitos (e tácticas) são múltiplos.”

Escrito já depois do 11 de Setembro de 2001, o ensaio de Geert Lovink inserido no Virtual Casebook

da Universidade de Nova Iorque sobre os eventos (Lovink, 2002a) constitui um balanço sobre o

32

impacto que os atentados nos Estados Unidos tiveram sob a condição dos media tácticos e do

mediactivismo em geral, concluindo que a guerra contra as opiniões divergentes que se seguiu a essa

data teve um efeito mínimo no movimento, “As tentativas de Bin Laden e Bush Jr. em 2001 para

sequestrar todos os media debaixo do símbolo único do Terror (e a guerra contra ele) duraram

efectivamente apenas algumas semanas” (idem). Em consequência dos atentados, os media tácticos

desenvolveram-se bastante, afirma. Empregando uma citação de Drazen Pantic, antigo operador de

Internet da estação independente de rádio B92, de Belgrado, e actual investigador da Universidade de

Nova Iorque, que remete para as origens militaristas do termo em questão, Lovink refere que “os

grupos de media tácticos estão muito mais adaptados ao conflito, ao passo que costumam enfraquecer

em tempos menos conturbados”. A grande mudança ocorreu, sobretudo, na entrada em vigor nos

países ocidentais de um conjunto de leis destinadas a “restringir as liberdades civis, a liberdade de

expressão e a privacidade, ou o que resta dela” (idem). A posição de Lovink em relação ao impacto do

11 de Setembro no movimento revela-se assim relativamente optimista. No entanto, como veremos no

capítulo 7.4, outros teóricos e activistas divergem da sua opinião.

Ainda segundo Lovink, encontramo-nos paradoxalmente entre um cada vez maior controlo dos media

e uma estrutura de diálogo e informação independente em ascenção. Se por um lado, o cenário de

medo pós-11 de Setembro fez com que se deixasse de encarar a Internet como um refúgio da

liberdade, por outro, a queda das empresas ponto com criou um espaço para o surgimento de novas

abordagens não-comerciais. Ao mesmo tempo que reconhecem a importância económica do novo

medium, os governos deixaram de recear que a Internet contribua para o aumento da liberdade de

expressão. A filtragem de conteúdos online deixou de ser empregue apenas por regimes autoritários,

como o da China, para se tornar numa característica comum nas intranets das empresas e

universidades, Para além disso, os motores de pesquisa na Web, como o Google, apresentam um

funcionamento nada transparente (idem).

Em paralelo, a utilização crescente do software livre e dos conceitos open-source, as redes Peer-to-

Peer (P2P) de partilha de ficheiros na Rede, o surgimento dos Weblogs que facilitam a publicação de

conteúdos online, as mensagens SMS dos telemóveis e os programas de edição de áudio e vídeo para

computadores pessoais são, para Lovink, sinais de uma democratização do sector dos media que,

apesar do crescente controlo empresarial e regulação governamental, está a ocorrer em todo o mundo

(idem).

Para Lovink, em vez de representarem a queda num reducionismo simplista, os media tácticos

rejeitam análises rígidas introduzindo vozes pessoais e novas que não se enquadram nos esquemas

33

políticos do passado. O autor aconselha os praticantes tácticos a, em vez de continuarem a queixar-se

da censura exercida pelos media comerciais dominantes, utilizá-los como “portais” que conduzem a

outras fontes de notícias e opiniões. Distinguindo-os dos media alternativos, considera que, neste

sentido, os media tácticos são pós-oposicionistas. A razão está no facto de serem mais impelidos pela

sua própria energia e desejo de mediar do que pelo desmascarar dos órgãos de comunicação social

controlados pelo Estado ou pelas empresas privadas.

34

1.4 - Distinção entre Media Alternativos e Media Tácticos

Todos os impulsos tímidos no sentido de democratizar o conteúdo, subvertê-lo, restaurar a ‘transparência do código’, controlar o processo de informação, forjar uma reversibilidade dos circuitos ou tomar o poder sobre os media são inúteis – salvo se o monopólio do discurso for quebrado.

- Jean Baudrillard, “Réquiem pelos media” em Crítica da Economia Política do Signo.

Como já vimos anteriormente, as definições de media alternativos variam bastante. A definição mais

abrangente e aprofundada do conceito é da autoria de Chris Atton, sob a forma de um modelo que tem

em conta vários elementos (2002: 27):

1. Conteúdo (politicamente radical, social/culturalmente radical); valores-notícia

2. Forma – gráficos, linguagem visual; diferentes tipos de apresentação; estética

3. Inovações/adaptações reprográficas – utilização de mimeógrafos28, composição tipográfica

IBM, litografia em offset, fotocopiadoras

4. ‘Utilização Distributiva’ – distribuição através de circuitos alternativos, redes

clandestinas/invísiveis de distribuição, rejeição dos direitos de autor

5. Relações sociais, papéis e responsabilidades alteradas – leitores-redactores, organização

colectiva, desprofissionalização do jornalismo, da impressão e da edição

6. Processos de comunicação alterados – ligações horizontais, redes.

Segundo Atton, os pontos 1 a 3 referem-se a produtos ao passo que os pontos 4 a 6 indicam

processos. Como explica o autor, de acordo com este modelo, “as relações sociais tendem a ser

transformadas através de processos radicais de comunicação, ao mesmo tempo que os próprios media

(os veículos) tendem também a se transformar”. Efectuando uma análise crítica a este modelo ou

definição de media alternativos, podemos afirmar que, ao tentar conceber uma abordagem que

engloba uma dimensão histórica ampla e, ao mesmo tempo, o mais pormenorizada possível, Atton

acaba por se centrar no plano da imprensa e, sobretudo, das fanzines de pequena circulação

produzidas por amadores. As iniciativas baseadas na rádio, na televisão, no vídeo e na própria Internet

são deixadas um pouco de lado no ponto três e quatro. Se bem que se possa adaptar este modelo a

outros media, seria talvez mais apropriado que o quadro fosse mais aberto e menos detalhado.

Adoptando uma perspectiva mais aberta e menos rígida, John Downing propõe o termo media

radicais ou media alternativos radicais, salientando que o termo refere-se a “media polticamente

28 Equipamento que realiza cópias em matriz perfurada – stencil.

35

dissidentes que apresentam alternativas radicais ao debate mainstream” (1995). Segundo Downing,

algumas das principais características deste tipo de órgãos de comunicação social consistem no facto

da sua posse e gestão serem independentes; de exprimirem pontos de vistas que são, de alguma forma,

dissonantes das perspectivas dos media dominantes; e de incentivarem o estabelecimento de relações

horizontais com as suas audiências, ao contrário dos fluxos verticais, de cima para baixo, dos media

impressos e de difusão (broadcast). Tal como refere Graham Meikle, estas características dos media

alternativos devem ser entendidas como tendências e não como formas de classificar – isto é, não se

trata de dispositivos classificadores mas de potenciais abordagens disponíveis para analisar qualquer

órgão de comunicação social (2002: 60).

Dowing chega a remontar as origens dos media alternativos e das publicações dissidentes aos

panfletários revolucionários por altura da Guerra da Independência dos Estados Unidos, passando

pelos escritores abolicionistas negros, a imprensa feminina do século XIX, a imprensa operária do

final do século XIX e início do século XX, os documentários radicais da época da Depressão pós-

1929, chegando aos movimentos em defesa dos direitos civis dos anos 60 e à estação televisiva por

satélite Deep Dish.

Em relação à diferença entre alternativo e radical, Downing afirma que “falar apenas de media

alternativos é quase um oxímoro29. Tudo é, numa determinada altura, alternativo a alguma outra

coisa” (2001: IX). Na opinião de Meikle (2002: 196n1), “‘alternativo’ permanece o melhor de um

conjunto insatisfatório de termos: ‘radical’, por exemplo, conota-se para muitas pessoas com questões

e movimentos na sua maior parte de Esquerda, ao passo que o termo ‘alternativo’ deixa espaço para

analisar grupos com um programa ideológico mais de Direita. De uma forma semelhante, o adjectivo

‘independente’ é frequentemente conotado com independência económica, enviesando a nossa leitura

em direcção a questões relativas apenas à economia política”.

São vários os teóricos e activistas tácticos que fazem questão em distinguir os media alternativos

tradicionais e os media tácticos. Graham Meikle refere que os dois tipos de produção mediática

diferem em aspectos importantes: “Os praticantes tácticos não tentam afirmar-se a si próprios como

uma alternativa – eles não tentam criar uma estação de rádio ou um jornal ‘melhor’ ou estabelecer-se

como, por exemplo, uma ‘CNN chinesa’ (2002: 119). Em vez disso, os media tácticos tem como

essência a mobilidade e a flexibilidade, referindo-se a diferentes respostas a contextos sempre em

mudança.” Este autor, contudo, assinala algumas semelhanças entre os dois diferentes modelos de

media: “os ‘media tácticos, tal como os ‘media alternativos’, são melhor encarados como um conjunto

de opções em vez de uma abordagem monolítica (...) A utilização de media tácticos pode

29 Junção ou combinação de palavras com sentido contraditório.

36

complementar abordagens típicas dos media alternativos – muitos sites da rede Independent Media

Center, por exemplo, são construídos sob a forma de projectos estratégicos a longo prazo; outros

surgem como sites tácticos de curta duração, relativos a eventos específicos.” (2002: 121)

No mesmo sentido, David Garcia e Geert Lovink escrevem no manifesto fundador “The ABC of

Tactical Media” que “apesar dos media tácticos incluirem os media alternativos, aqueles não se

encontram restringidos a esta categoria”. Referem ainda que introduziram o termo táctico de forma a

afastarem-se das “dicotomias rígidas que têm restringido durante tanto tempo o pensamento nesta

àrea, dicotomias como amador Vs profissional, alternativo Vs massificado. Até mesmo privado Vs

público”. Tal como refere Garcia noutro ensaio posterior, parecia que estas velhas terminologias

dialécticas “tinham deixado de descrever a situação por que estávamos a passar” (1998). No seu livro

Dark Fiber (2002), Lovink afirma que os media tácticos herdaram o legado dos media alternativos

sem a etiqueta de contra-cultura e a certeza ideológica de décadas anteriores. “Nascidos do desgosto

face à ideologia” (Garcia e Lovink, 2001), os media tácticos recusam o conflito e as estratégias de

luta pelo poder a que muitas das experiências mediáticas alternativas estavam associadas.

As lógicas dos dois tipos de produção mediática parecem ser na prática bastante diferentes, de acordo

com Joanne Richardson (2002): “As iniciativas grassroots (de base) que se centram na construção de

uma comunidade ligada a valores diferentes dos dominantes ocupam de facto um espaço ideológico

que é representado como sendo diferente: elas não se infiltram no mainstream de forma a pirateá-lo

ou subvertê-lo, como os RTMark poderão infiltrar a imagem mediática da OMC (Organização

Mundial do Comércio)”. Contudo, a autora salienta que uma das características comuns a ambos os

modelos de media é o facto de se auto-definirem através de um acto de oposição face a um

adversário, do qual a sua existência depende.

Em “Notes on Sovereign Media”, Lovink e Richardson (2001) fazem a distinção entre media tácticos,

media alternativos, media independentes e uma quarta categoria teórica a que chamam de media

soberanos. Introduzido pelo colectivo teórico germano-holandês BILWET ou ADILKNO (Fundação

para o Avanço do Conhecimento Ilegal), do qual Lovink foi um dos elementos, o conceito de media

soberanos remete para práticas artísticas que existem por si próprias, desinteressadamente, sem

objectivo ou motivação. Apesar de produzirem sinais com uma origem, um receptor ou autor, não

possuem um receptor designado. Em vez de comunicarem informação, comunicam-se a si próprios.

Eles cortaram todos os laços imaginários com a verdade, a realidade e a representação. Como referem

Lovink e Richardson, “os media soberanos deixaram de se concentrar nos desejos de um grupo-alvo

específico, tal como os media tácticos e alternativos ainda o fazem. Emanciparam-se de qualquer

37

audiência potencial”. Não procuram a ligação, antes desligam-se. Habitam um universo paralelo,

constituído apenas por dados. Não têm mensagem, por isso tendem a considerar o suporte mediático

como um fim em si próprio. Este tipo de produção mediática permanece oculto, sendo por isso difícil

de distinguir enquanto categoria autónoma. Por outro lado, uma vez que não têm qualquer utilidade, a

qualidade dos sinais que emite é um critério irrelevante. Apesar de os autores não darem exemplos,

podemos ver algumas das características atrás anunciadas em obras de web-art pautadas pelo

experimentalismo e pela subjectividade, envolvendo tecnologias de ponta como a realidade virtual.

Trata-se assim de uma herança da postura da "arte pela arte" que algumas vanguardas assumiram nos

séculos anteriores.

Totalmente distintos são os media alternativos. Na visão destes dois autores, estes últimos referem-se

a um período a partir de 1968, funcionando com base na contra-propaganda e no reflexo em espelho

dos media dominantes, que consideram que precisam ser corrigidos e complementados. Têm como

fim transformar a consciência dos indivíduos, de forma a que estes se apercebam do seu

comportamento e opiniões. O modelo do cancro ou dos vírus está na base do seu funcionamento,

através de uma variante positiva segundo a qual “se assume que, a longo prazo, todos irão ficar

informados do problema a ser abordado, seja indirectamente ou através dos grandes órgãos de

comunicação social”. Os seus defensores e produtores acreditam que, no final, o activismo de poucos

irá provocar uma reacção em cadeia por parte da maioria. De forma a funcionarem, os media

alternativos têm que se apropriar da verdade.

Na visão destes teóricos dos media tácticos, o sector dos media alternativos emergiu sob a forma de

uma imensidão de pequenas iniciativas locais e de base auto-organizadas por radicais e militantes,

adoptando o formato de rádios, jornais e televisões comunitárias30. Mas com a chegada dos anos 90, a

Internet permitiu que estes projectos Do-It-Yourself ultrapassassem as suas fronteiras locais e se

tornassem transnacionais, actuando a um nível global, tal como os grandes media de massas. O local

tornou-se universal. De alternativos, estes media passaram a independentes. Lovink e Richardson

querem com esta expressão fazer referência à rede global Independent Media Center (Indymedia).

Mas o próprio Lovink chega a classificar noutros textos a Indymedia de media táctico. Esta opção é

também tomada por Graham Meikle, parecendo-nos na nossa perspectiva a melhor solução.

Na acepção de Lovink e Richardson, os media independentes procuram suplantar o velho sistema

mediático, afirmando-se como tal enquanto contra-media, isto é, “uma negação dialéctica interna,

uma crítica imanente que nunca consegue sair das pressuposições do sistema que desafia”. Os seus

30 Estas iniciativas inserem-se na corrente de crítica expressivista das mobilizações informacionais analisadas por Cardon e Granjon (2003), tal como referimos no capítulo 3.

38

elementos criticam a partir de dentro desse sistema as pretensões dos órgãos de comunicação de

massas de ser uma forma democrática, verdadeira e genuína de representação, aspirando a revelarem

a essência ideológica por detrás deles. Contudo, não deixam de querer oferecer também eles uma

forma democrática, verdadeira e genuína de representação. Pretendem ser uma substituição dialéctica

dos media de massas e sonham com um futuro em que os próprios media serão suplantados, na

medida em que estes implicam sempre uma separação entre o emissor e o receptor. Com a

democratização da informação, estes papéis podem inverter-se ou sobrepor-se.

O método dos media independentes reside na difusão de contra-propaganda. Opõem-se à máscara

ideológica e falsa dos media de massas com contra-declarações efectuadas a partir de uma contra-

perspectiva. Por isso, dependem da imagem dos media de massas para a revertê-la, empregando as

mesmas estratégias destes órgãos de comunicação social. A posição adoptada nunca é alvo de

reflexão ou de dúvida, por ser auto-evidente, e deve ser sempre defendida, mesmo que isto obrigue ao

recurso à luta. Em comum neste tipo de iniciativas, na opinião dos dois autores, é a existência de uma

missão, uma causa suprema.

Ao contrário dos media alternativos, os media tácticos não se levam tanto a sério. Em vez de

assumirem uma posição de superioridade moral, procuram por pontos de fuga e de quebra no sistema

mediático. Impulsionados pelo seu desejo de formarem novas coligações, são capazes de correrem

riscos, mesmo que isto possa levar à sua auto-destruição. Os seus praticantes partilham uma atitude

que é tanto poética como militar, actuam em situações polimórficas e através de manobras e truques,

sendo utilizadores rebeldes do sistema mediático de massas, entretendo-se a subverter as suas

mensagens. Utilizam o que está mais à mão e o que pode ser melhorado no momento. Criam um

sistema de desinformação, que coloca implicitamente em causa o poder e o estatuto dos signos

dominantes. Em vez de ser uma base de dados cheia de “factos”, a verdade é, para os praticantes

tácticos, um breve momento de revelação surgido a partir do inconsciente colectivo.

Apesar de conterem em si uma grande dose de ironia e valorizarem o momento presente “aqui e

agora”, os media tácticos possuem um objectivo político a longo prazo, uma causa futura. Na medida

em que se afirmam como arte, abandonaram definitivamente as massas, mas procuram alterar a

consciência de uma minoria mediante uma política que suplanta a sua definição tradicional para se

assumir como forma de arte. Preferem uma propaganda da mentira, da intrujice, à contra-propaganda.

Optando por uma definição dos media tácticos através de uma abordagem histórica centrada nos

Estados Unidos, Sandra Braman identifica em “Defining Tactical Media: An Historical Overview”

39

(2002) quatro tipos de media alternativos distinguíveis pelas características que os tornaram

alternativos, pela forma de poder exercida, pelas suas perspectivas em relação à estética e ao consumo

e pela função política do indivíduo. De acordo com Braman, todos os quatro tipos podem ser

observados nas práticas dos media tácticos contemporâneos. No entanto, faz remontar a origem dos

media alternativos até às novas formas de comunicação surgidas “nos princípios da sociedade de

informação a meio do século XIX”, apelidando-os desta forma por serem media noticiosos de massas

que diferem dos órgãos de comunicação social anteriores na medida em que pretendem provocar a

mudança política.

O primeiro modelo de media alternativos surge por volta da metade do século XIX com a imprensa

económica ou penny press, salientando-se pelo facto de tornar o indíviduo comum simultaneamente

como sujeito e audiência das notícias. Nos finais do século XIX e até à década de 20 do seguinte, a

chamada “imprensa amarela” vai-se afirmando, coincidindo com o segundo modelo alternativo, em

que se dá a introdução da crítica na cobertura noticiosa e o recurso a blocos alternativos de factos de

forma a realizar essa crítica. As notícias passavam a ter um poder simbólico, segundo Braman, em

que o impacto sobre as ideias do leitor levava a uma alteração dos seus comportamentos. A partir da

década de 60, com a difusão de uma série de inovações tecnológicas, dá-se um aumento do número de

canais mediáticos alternativos. Por outro lado, o “novo” jornalismo abandonava a perspectiva da

notícia enquanto conjunto de factos o mais objectivos possíveis em favor de um ponto de vista que

valoriza a notícia enquanto história inserida num contexto social.

Por último, o quarto modelo representa o período dos anos 90, da irrupção dos media tácticos, em

que, graças às novas tecnologias digitais, o indivíduo comum se torna ele próprio produtor de notícias

e em que os media são, cada vez mais, o conteúdo. Os media tácticos representam a sobreposição pós-

moderna de géneros ao combinarem notícias com comentários políticos e formas de arte. Braman

afirma que este tipo de produção mediática é “alternativo” porque emprega os media como conteúdos,

rejeita a ideologia, funde a política com a arte e reconhece a capacidade da informação digital para

fazer directamente grande parte do trabalho. Na sua opinião, trata-se do primeiro conjunto de práticas

mediáticas concebida com vista a obter poder informacional, isto é, concretizado mediante o controlo

das bases informacionais das formas instrumentais, estruturais e simbólicas de poder.

Logo a seguir, Braman parece entrar em contradição com o que escreveu, ao dizer que “muitos

praticantes de media tácticos tomam um grande cuidado em distinguirem-se dos media alternativos

dos anos 60 e 70, centrando-se em quatro dimensões de diferença: a passagem de uma adesão a

posições estritamente ideológicas ao abandono da ideologia, da rejeição do consumo à utilização do

40

consumo para fins políticos, da rejeição da estética à utilização da estética para fins políticos, e de

uma abordagem centrada no conteúdo dos media para, como Marshall McLuhan expôs, o medium

como conteúdo”. Mais uma vez, parece haver uma certa confusão, generalizável a todo o mundo

académico e até mesmo aos activistas, sobre qual o papel dos media tácticos na tradição histórica dos

media alternativos. Ao mesmo tempo que parecem pertencer a este legado, por outro existe um

esforço de separação, de afirmação de um nicho próprio. A sua posição situa-se permanentemente

entre o distanciamento e a aproximação.

Para agravar mais a confusão, McKenzie Wark escreve em “Strategies for Tactical Media” (2002) que

a existência de media tácticos implica que também hajam media estratégicos e logísticos. Estes

termos referem-se a níveis diferentes onde a contestação pode ocorrer. Se o táctico é local e

contigente, o estratégico envolve o planeamento e coordenação, ao passo que o logístico se terá que

referir a organizações de forças globais, sistémicas e de longo alcance31. Citando Paul Virilio, que

argumenta que nos assuntos militares o conflito passou do domínio do táctico para o estratégico e em

seguida para o logístico, Wark afirma, na mesma linha, que actualmente todo o planeta está

organizado com base na ordenação logística da produção e comunicação. Neste sentido, oferece como

exemplo da militarização logística que está na base da sociedade a forma casual com que a guerra

contra o Iraque foi debatida a nível global. A esta sociedade em que a mesma logística se aplica à

comunicação e à informação, por um lado, e à máquina de guerra, por outro, o autor dá o nome de

complexo militar de entretenimento.

Tendo em conta a crescente organização logística do poder, Wark admira-se da actual retórica sobre

respostas alternativas se centrar apenas nos media tácticos e ignorar os estratégicos e logísticos. Mas,

salienta, caso estejamos de facto a viver na sombra do complexo militar de entretenimento, então a

prática dos media tácticos terá que abandonar as teorias populares do presente32 – para adoptar uma

teoria baseada no princípio básico da logística, isto é, a telestesia33.

31 Do mesmo modo, Graham Meikle efectua uma distinção entre usos tácticos e estratégicos dos media pelos activistas. Ao contrário de Certeau, que privilegia o espaço ocupado, dando a entender que as estratégias são sempre um lugar próprio pertencente a um poder, Meikle dá ênfase ao tempo das acções, que podem ser de curta ou longa-duração, consoante forem tácticas ou estratégicas. Assim, por exemplo, ele considera um media estratégico o McSpotlight (www.mcspotlight.org), um projecto a longo prazo baseado na web que congrega informação, críticas e debates sobre a McDonald's e outras grandes transnacionais, e como táctico os RTMark. Quer as tácticas, quer as estratégias possuem valor, dependendo a sua utilização dos objectivos que visam e do local em questão.

32 Teorias que, como iremos abordar mais à frente, comparam a táctica a um rizoma (Deleuze e Guattari,1980), a uma Zona Autónoma Temporária (Bey, 2001 [1991]) e a uma instância da 'multidão' (Hardt e Negri, 2000 e 2004). Para McKenzie Wark, estas teorias não abordam os media e tendem, por isso, a ter uma visão algo simplista deles, chegando a considerá-los como meros acessórios e não como um objecto central de interesse.

33 “A telestesia significa percepção à distância, possibilitando que a informação se mova mais rapidamente do que as pessoas e as coisas, e que se torne, assim, na forma de organizar o movimento das pessoas e das coisas. “ (Wark: 2002).

41

2 – Genealogia das Mobilizações Informacionais

Toda a utilização dos media pressupõe manipulação (...) Desse modo, a questão não é se os media são manipulados, mas sim quem os manipula. Um plano revolucionário não deverá exigir que os manipuladores desapareçam; pelo contrário, deve transformar todos em manipuladores.

- Hans Magnus Enzensberger, “Constituents of a Theory of the Media”

Os media tácticos só podem ser entendidos se os integrarmos num contexto mais vasto de

mediactivismo, movimento que, surgindo nos Estados Unidos em Novembro de 1999, a partir de

Seattle, registou um rápido desenvolvimento internacional (Meikle, 2002; Pasquinelli, 2002; Cardon e

Granjon, 2003). Por sua vez, o mediactivismo insere-se na tradição dos media alternativos (Atton,

2002) ou radicais (Downing, 2001) que remonta aos anos 60.

Na sua análise geneológica das mobilizações informacionais ligadas às redes de movimentos sociais

estruturados em torno de causas específicas34 que resultaram no actual movimento por uma

globalização alternativa, os autores franceses Dominique Cardon e Fabien Granjon integram esta

tradição no militantismo informacional. Este conceito refere-se às “mobilizações multiformes cuja

ambição é desenvolver os seus próprios dispositivos de produção mediática e/ou democratizar os

media, actuando sobre as suas mensagens, as suas práticas, as suas organizações e o contexto

regulamentar com se regem, com o fim de encorajar a expressão dos cidadãos e favorecer uma

participação alargada no espaço público”.

Nesta parte irei socorrer-me do trabalho de Cardon e Granjon no sentido de apresentar a história da

crítica expressivista das mobilizações informacionais, corrente em que os dois autores colocam a

linha de actividades em que os media tácticos se inserem e que remete para todo um conjunto de

iniciativas diferentes do mediactivismo do princípio deste século, e a crítica anti-hegemónica, quadro

de acção em que insere a tradição dos media comunitários ou cívicos dos países em desenvolvimento

e comunidades desfavorecidas dos países desenvolvidos cuja mais recente expressão são os

watchdogs.

A distinguir estes dois quadros de acção, segundo os autores, está, como o nome indica, o tipo de

críticas efectuadas aos media tradicionais e o género de modelo alternativo a que lhes é oposto. À

primeira crítica, da qual, na sua opinião, o jornal mensal Le Monde Diplomatique é o principal

representante na França35, dão o nome de anti-hegemónica. Ela faz destacar a “função propagandística

dos ‘aparelhos ideológicos da globalização’ que os media constituem e apela à criação de um ‘contra-34 Como o ambientalismo, o feminismo, o sindicalismo, o desenvolvimentalismo, etc. 35 Situação que pode ser extensível para Portugal, dado o mesmo jornal possuir neste país uma versão nacional.

42

poder crítico’”. Faz ainda a denúncia da “repartição desigual dos fluxos de informação à dimensão

planetária, da hegemonia cultural dos media ocidentais, das ligações das empresas de comunicação

social ao sector político-económico, da restrição do espaço jornalístico às suas práticas profissionais,

da procura do lucro e do sensacionalismo”.

Deste ponto de vista, considera-se que os jornalistas reproduzem o pensamento dominante mediante a

ideologia, por conivência ou como efeito dos constrangimentos que as condições de produção de

informação exercem sobre eles. Na opinião dos que efectuam este tipo de crítica, os desvios

jornalísticos são sempre determinados, em última instância, pela estrutura de propriedade das

indústrias de informação. Os erros, os enganos e as deformações nas representações do mundo são

apenas consequências desse processo. Como alternativa, esta crítica reinvindica alterações estruturais

na regulação das indústrias culturais, o reequílibrio dos fluxos de informação entre nações, o reforço

do sector público de informação e comunicação, a autonomização dos media e seus profissionais face

às pressões do mercado e das audiências. Revelando uma forte influência das ciências sociais, a

crítica anti-hegemónica pretende opor às conivências e ao sensacionalismo dos media um nível de

exigência semelhante ao do trabalho científico, implicando exactidão, distanciação máxima, tempo

longo de investigação, rejeição dos formatos curtos, fraca valorização da opinião do leitor nas

preocupações do jornalista, entre outros aspectos.

A segunda linha de mobilização informacional centra-se na recusa da vedação sobre si mesmos do

círculo dos produtores de informação e da separação mantida pelos media tradicionais em relação ao

seu público. Esta crítica, que Cardon e Granjon apelidam de expressivista, opõe-se ao monopólio da

expressão detido pelos profissionais da comunicação social, os porta-vozes e os especialistas. Visa,

acima de tudo, libertar a palavra individual e, “promover os sistemas miniaturizados, que abrem a

possibilidade de uma apropriação colectiva dos media, que concedem meios efectivos de

comunicação não apenas às ‘grandes massas’, mas também às minorias, aos marginais, aos grupos

desviantes de todo o tipo”, referem, citando Felix Guattari36. Aqui, o que está em causa é menos a

objectividade do que a afirmação de subjectividades várias.

A critíca expressivista, coloca em causa o princípio de passividade do receptor que serve de base à 36 Esta apropriação dos media será de acordo com Guattari, possibilitada com o advento de uma era pós-media. Em

1990, ano da primeira Guerra do Iraque, traça o seguinte cenário em Vers Une Ère Post-Média": "O cabo e o satélite permitem-nos alternar entre 50 canais, ao passo que a telemática nos dará acesso a um número indefinido de bancos de imagens e de dados cognitivos. O caracter de sugestão, até mesmo de hipnotismo da afinidade actual com a televisão irá esbater-se. Podemos esperar a partir daí uma modificação do poder mass-mediático que esmaga a subjectividade contemporânea e a entrada numa era pós-media consistindo numa reapropriação individual colectiva e uma utilização interactiva das máquinas de informação, comunicação, inteligência, arte e cultura.". Este texto, publicado no nº 51 da revista Terminal de Outubro-Novembro desse ano está disponível em http://www.revue-chimeres.org/pdf/termin51.pdf. Este tese é mais um exemplo do sublime tecnológico em que se insere Enzensberger, como iremos referir no capítulo 7.3.

43

crítica anti-hegemónica. Para os seus articuladores, importa defender e promover os direitos do

locutor, mediante a produção de informação na primeira pessoa, a recusa do fosso entre dizer e fazer,

a multiplicação do número de emissores. Trata-se de contrariar as tendências monopolísticas dos

media que se exercem no espaço público com a criação de dispositivos de livre expressão. Tendo em

conta este conjunto de características, pode-se notar facilmente uma semelhança entre o programa da

crítica expressivista e dos manifestos tácticos de David Garcia e Geert Lovink.

Ao afirmarem que estes dois quadros de acção dos actores das mobilizações informacionais

“constituem uma chave de leitura para a história dos media alternativos”, Cardon e Granjon estão a

adoptar uma perspectica abrangente e vasta deste último conceito, na medida em que consideram os

media tácticos como um tipo de produção mediática alternativa. Convém no entanto salientar que os

teóricos e praticantes de media tácticos assumem um entendimento diferente do que são os media

alternativos, que remete para uma definição com um âmbito mais restrito, referindo-se à produção

mediática independente surgida após 1968 e ligada a determinadas ideologias, funcionando como um

simulacro dos media dominantes e baseando-se no princípio da contra-propaganda. A distinção entre

os media alternativos e os media tácticos feita por Garcia, Lovink, Meikle, Richardson e outros

autores será abordada mais adiante. A razão destas diferentes maneiras de interpretar as práticas

alternativas aos órgãos de comunicação social dominantes talvez resida, como referem os autores

franceses, no facto destas nunca terem estabilizado o vocabulário que as permite designar. Ao

adjectivo “alternativo” – melhor teorizado por Chris Atton -, é possível contrapor os termos “radical”

– proposto por John Downing -, cívico ou comunitário.

Seguindo o percurso das duas linhas de acção desde os anos 70, passando pela década de 80 e até à

segunda metade da década de 90, é possível observar diferenças nas formas das mobilizações

informacionais que deram origem a transformações internas nas críticas anti-hegemónica e

expressivista. Assim, se nos anos 70 os representantes da crítica anti-hegemónica colocavam em

destaque a desigualdade dos fluxos internacionais de informação, nos anos 90 prestam mais atenção

ao poder detido pelos media. Ao mesmo tempo, a crítica expressivista passou por uma grande

renovação na última década, passando de uma reinvindicação participatica e comunitária a um

modelo individualista, afirmativo e radical de expressão livre, tendo nesta nova configuração

conquistado um papel central no movimento por uma globalização alternativa.

44

2.1 - Décadas de 70 e 80

De acordo com Cardon e Granjon, costuma-se considerar que as formas actuais de militantismo

informacional surgiram nos anos 70. Nesta década, regista-se um grande desenvolvimento dos media

transfronteiriços. Começam-se também a debater neste período os media de massas e a

internacionalização da comunicação. Estes debates são marcados pela forte influência da crítica anti-

hegemónica. Os participantes – na sua maioria, universitários, peritos de organizações internacionais

e representantes de empresas de comunicação social – promovem alternativas práticas para combater

a hegemonia cultural dos grandes grupos mediáticos ocidentais, como a criação de agências

internacionais de informação nos países do sul, de forma a ajudar a recuperar a soberania na produção

de informação.

Durante as décadas de 70 e 80, representada pelo número crescente de media militantes, comunitários

ou cídadãos, a crítica expressivista assiste a um desenvolvimento bastante grande ao defender o

carácter local, participativo e reinvindicativo dos media de proximidade da responsabilidade dos

cidadãos. Neste período, as mobilizações informacionais dividem-se em dois modos de acção

distintos que serão, no entanto, interligados pelos militantes: O desenvolvimento de estratégias de

influência junto das instituições internacionais e a promoção de iniciativas destinadas à criação de

media “alternativos”, através dos partidos, das igrejas, dos sindicatos e das autarquias.

É em Argel, no âmbito da quarta conferência dos chefes de Estado ou de governo dos países não-

alinhados de 1973, que se dão as primeiras mobilizações contemporâneas da crítica dos media. Nesta

conferência ocorre a ratificação do princípio por uma nova ordem económica internacional, que virá a

ser adoptado meses mais tarde pela Assembleia Geral das Nações Unidas e considerada pela Unesco

(Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), na sua conferência geral de

1974, como um elemento central das políticas de desenvolvimento dos países do terceiro-mundo. O

programa de acção para a cooperação económica da conferência de Argel afirma que os países em

vias de desenvolvimento deverão cooperar no sector das comunicações de massas com o fim de

reorganizar os circuitos de comunicação herdados do seu passado colonial e favorecer as trocas de

fluxos de informação entre eles.

O grupo dos não-alinhados vê com maus olhos os monopólios inerentes aos grandes sistemas

internacionais de informação e consideram que o domínio das agências de notícias ocidentais é

incompatível com a exigência de uma informação independente. Em 1976, quer o simpósio de Tunis

(Tunísia) sobre informação, quer a 5ª conferência dos não-alinhados que teve lugar em Colombo (Sri

Lanka), reinvidicam pela primeira vez a necessidade de descolonizar a informação e estabelecer uma

45

nova ordem internacional de informação e comunicação.

Opondo-se tanto ao regime liberal norte-americano do free flow of information (livre fluxo da

informação), como às teses de soberania nacional influenciadas pelo bloco soviético e complicando o

cenário geopolítico bipolar, os países do terceiro-mundo apoiam a sua crítica sobretudo na denúncia

do imperialismo cultural a que são sujeitos. Apelam para que as condições para uma

autodeterminação cultural e uma autonomia mediática sejam alcançadas à escala internacional.

Aspiram ainda a uma influência real sobre os fluxos de informação que partem ou chegam ao seu

território e pretendem controlar as suas próprias representações com destino nos países do Norte, bem

como dominar os conteúdos difundidos nos países do Sul.

De forma a combater o imperialismo cultural, os países do Sul criam novas modalidades de

colaboração entre si, como agências nacionais de informação e redes transnacionais de agências.

Datando já do final dos anos 60, a Inter Press Service, surgida na América Latina, servirá de base a

um projecto cooperativo internacional mais vasto nos anos 70, chegando até à Europa e ao Médio-

Oriente. Em 1975, a jugoslava Tanjug constitui uma rede de onze agências de notícias do terceiro-

mundo. Dois anos depois, surge a PANA, agência panafricana de informação.. Por sua vez, em 1979,

nasce na América Latina a ASIN (Acção de Sistemas Informativos Nacionais).

Em paralelo, no mês de Dezembro desse ano é concluído o relatório da comissão internacional criada

pela Unesco para o estudo dos problemas da comunicação. Fruto de três anos de trabalho de um grupo

de reflexão internacional, é apresentado pelo presidente da comissão, o irlandês Sean MacBride – co-

fundador da Amnistia Internacional e Prémio Nobel -, em 1980. sendo publicado nesse mesmo ano

com o título em francês Voix Multiples, Un Seul Monde. O documento é considerado por Cardon e

Granjon como “a pedra de toque de uma crítica vigorosa da desigualdade estrutural entre os países do

primeiro mundo e os do terceiro mundo no acesso e produção de informação” (2003), pondo em

evidência o domínio das grandes agências de informação ocidentais como a Associated Press e a

Reuters, bem como a posição monopolística das empresas de comunicação transnacionais, com poder

suficiente para impôr um modelo unidireccional de circulação dos fluxos de informação e dos

conteúdos audiovisuais, tendente à uniformização e ao empobrecimento cultural.

A Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (NOMIC) é considerada pelo relatório

MacBride como um elemento indissociável da nova ordem económica internacional e ao equílibrio

das trocas comerciais globais. Logo na sua conferência geral de Belgrado, onde o documento também

é apresentado, a Unesco adopta o Programa Internacional para o Desenvolvimento da Comunicação

(PIDC), cujo objectivo consiste na instauração da NOMIC, visando desta forma o reforço dos meios

46

de comunicação de massas nos países em desenvolvimento. Entre outras medidas, pretendia-se que o

PIDC aumentasse a cooperação e assistência em favor das infra-estruturas de comunicação, reduzisse

o fosso entre os países no domínio da comunicação e apoiasse a formação profissional.

Apesar da ideia de uma nova ordem mundial da informação e da comunicação ter sido abandonada de

vez em 1989, o PIDC pemitiu, contudo, a criação de várias agências de notícias nacionais e

transnacionais, tais como a Alasei (América Latina), Cana (Caraíbas), Wanad (África Ocidental),

Canad (África Central) e Sanad (África Austral). Surgiram também neste âmbito várias rádios

comunitárias, jornais rurais e centros de formação de profissionais dos media.

Esta primeira fase de militantismo informacional atinge o final da década de 90 em crise. As

denúncias da existência de monopólios no sector da informação representadas no relatório MacBride

são rejeitadas, não sendo retomadas ao nível das instituições internacionais. Já na altura, a publicação

do documento tinha levado os Estados Unidos e a Inglaterra a abandonarem a Unesco. Confrontada

com a tendência neo-liberal para a liberalização e desregulação do audiovisual e das

telecomunicações a partir de meados dos anos 80, a crítica anti-hegemónica vê perder a sua

influência. Em simultâneo, as agências de informação independentes que surgem com o impulso dado

pelo relatório MacBride, não conseguem vingar num ambiente de concentração das grandes agências

mundiais.

Para além da crítica anti-hegemónica, a década de 70 é também marcada por um conjunto de diversas

iniciativas promovendo os media comunitários com vista à construção de uma emancipação

mediática, considerada necessária para a mobilização, e à condução de lutas específicas, que ocorrem

sobretudo a nível local. A origem desta corrente, ligada à crítica expressivista, está no

desenvolvimento das primeiras formas militantes de media alternativos, datando dos anos 60 e

representadas através das rádios que funcionam como vozes das revoluções e lutas de independência

nacionais. Contudo, é apenas nos 70 que se dá o crescimento pleno dos media comunitários ou

militantes. Apoiados em comunidades de camponeses e operários ou nas estruturas militantes locais,

estes órgãos de comunicação social têm o seu suporte privilegiado na tecnologia de rádio.

O debate sobre os media, a informação e a comunicação transfere-se lentamente do nível macro para

os colectivos de dimensão reduzida, visando permitir progressivamente uma comunicação mais

democrática, tendo em conta os objectivos de emancipação social a nível local ou nacional. Em vez

de concorrerem directamente com as “máquinas de endoutrinamento” e os “apêndices do poder” da

indústria mediática internacional e de tentarem controlar a informação que lhes diz respeito, os media

comunitários pretendem, acima de tudo, dar sentido à relação existente entre as formas de acção

47

colectiva, características dos seus movimentos de luta e a sua vontade de participar na definição dos

debates.

Este tipo de produção mediática que se difunde por todo o mundo ao longo da década de 70 e 80

apresenta uma grande heterogeneidade, agrupando as estações de rádio e televisão indígenas

(Austrália, Nova Zelândia, Canadá e Estados Unidos), media ligados a movimentos de lutas nacionais

ou sociais (como foi o caso de várias iniciativas latino-americanas), experiências comunitárias

assentes em bases territoriais (como as rádios e televisões de bairros de cidades italianas ou o canal de

televisão em Barcelona colocado à disposição das associações da cidade), as estações de rádio

dedicadas a comunidades específicas (de índole musical, filosófico, ideológico ou religioso), ou ainda

às reinvindicações dos novos movimentos sociais (como as rádios anti-nucleares), entre outros casos.

É importante aqui salientar as experiências de Felix Guattari durante estes anos, de forma a colocar

em prática a teoria do pós-media. Primeiro com a Rádio Alice, criada em Bolonha, Itália, no ano de

1976, que, como referem Brian Holmes et al., "emite uma poesia militante pouco ao gosto dos

carabineiros" - tendo como lema a frase "conspirar é respirar em conjunto" -, e na Tomate, criada em

1981, durante o período da batalha das rádios livres em França, e encerrada após a regularização

comercial desencadeada pelo governo (Holmes, Brian et al., 2005). Entre 1986 e 1991 envolve-se

directamente com o serviço Minitel37 "3615 Alter".

Mas apesar da sua diversidade, estes media partilham um modelo comum que Cardon e Granjon

apelidam de participativo. As suas premissas consistem na aproximação entre emissor e receptor, em

tornar a participação num acto colectivo, empregar os códigos culturais e linguísticos do público,

rejeitar influências comerciais, estabelecer uma relação de igualdade e proximidade entre produtor,

jornalista e audiência, integrar as pessoas nos diferentes níveis do processo de produção e difusão da

informação através de canais alternativos, diminuir a ritualização e aumentar a transparência do órgão

de comunicação social, etc. Embora não deixe de se opor à hegemonia dos media dominantes, este

tipo de crítica expressivista não dirige as suas reinvindicações ao poder central, insistindo

principalmente na reapropriação dos instrumentos de representação do mundo por parte dos cidadãos.

Estes medias participativos não são, contudo, independentes das organizações que os apoiam,

encontrando-se bastante ligados a grupos sindicais ou políticos. É o caso da estação de televisão

chilena Teleanàlisis por altura da metade da década de 70, quando os seus militantes filmam a

37 Rede de videotexto através de terminais informáticos ligados à linha telefónica criada em 1982 pelos Correios franceses. Este serviço obteve um enorme sucesso na França antes da chegada da Internet comercial.

48

resistência quotidiana dos cidadãos ao regime de Pinochet e garantem a redistribuição de cassetes

VHS duplicadas em VCRs – Video Cassete Recorders – pelo circuito dos sindicatos, igrejas e grupos

de resistência que multiplicam as cópias. O mesmo método é empregue no Brasil pela TV Viva do

Recife e a TV Maxambomba do Rio de Janeiro na difusão de vídeos que abordam problemas sociais

nos locais públicos, de forma a incentivar o debate sobre questões de marginalidade social, da

prostituição, do trabalho infantil e da violência nas ruas. Os órgãos de comunicação social

comunitários dos anos 70 desenvolvem-se assim como a linha da frente de grupos sindicais, religiosos

ou políticos e de comunidades culturais, frequentemente tendo por contexto governos autoritários ou

ditaduras. Quem também desempenha um papel importante nesta época é a Igreja Católica, ao apoiar

a criação de rádios junto das comunidades índias da América Latina, bem como nas Filipinas e na

Tanzânia. Já na década de 80, são as organizações não-governamentais nacionais ou internacionais,

cuja missão consiste em resolver problemas de desenvolvimento local e saúde, que estimulam e

financiam algumas experiências comunitárias de produção mediática.

O desenvolvimento dos media comunitários, que teve lugar ao longo dos anos 80 um pouco por todo

o mundo, irá sofrer um declínio no final dessa década, sem que, no entanto, isso represente o seu fim.

As iniciativas que se baseiam nas tecnologias da rádio e da televisão vêm as suas hipóteses de

crescimento bastante restringidas pelos legisladores nacionais que apenas reservam um espaço

marginal para as suas frequências. Por outro lado, quando obtêm êxito, os projectos alternativos são

frequentemente constrangidos a adoptarem uma gestão comercial, caso pretendam alargar a sua esfera

de influência. De modo que os media alternativos nunca chegaram a concorrer seriamente com os

órgãos de comunicação social dominantes.

Talvez mais importante seja o facto de estes projectos de informação alternativa terem também

encontrado dificuldades derivadas de contradições internas ao seu programa inicial. Segundo Cardon

e Granjon, um primeiro tipo de dificuldades é de ordem política. Os vários media políticos dissidentes

da América Latina dos anos 70 e 80 foram controlados pela censura, tendo por isso sido obrigados a

utilizar canais clandestinos de difusão que a repressão policial impedia que se tornassem permanentes.

Mas com a queda do regime anterior e uma vez reconhecidos com um novo poder revolucionário,

estes media perdem também muitas vezes a sua vocação, sendo submetidos a um novo meio

burocrárico.

O segundo tipo de constrangimentos é, de acordo com os dois autores franceses, relativo ao próprio

projecto dos media independentes, na medida em que as experiências comunitárias são por vezes

prejudicadas pelo amadorismo ou por um fascínio excessivo face aos aspectos tecnológicos do

49

desenvolvimento dos seus media. Por outro lado, devido ao facto de não disporem de meios de

difusão regular e de apoios institucionais ou associativos, os media alternativos são obrigados a

restituir regularmente um sentido e um projecto à sua actividade para evitar o seu termo. Os órgãos

alternativos de comunicação social sentem também dificuldades em assegurar as exigências de

democratização que impuseram a si próprios, sobretudo no que toca a ser um medium nas mãos do

povo.

O último tipo de obstáculos tem a ver com o facto de as iniciativas alternativas que obtêm êxito serem

submetidas a processos de profissionalização e comercialização que ocorrem geralmente contra a

vontade e em detrimento dos fundadores do projecto. As mudanças na linha editorial resultam das

pressões de empresas comerciais que se vão progressivamente apropriando dos projectos

independentes mais rentáveis.

50

2.2 - Década de 90

Após o abandono da NOMIC pela Unesco, no final dos anos 80, alguns elementos ligados a entidades

representantes da crítica anti-hegemónica, como a MacBride Round Table on Communication e a

Agência Latino-americana de Informação (ALAI)38, alteram um pouco o teor das suas reinvindicações

de modo a aliarem-se às redes nacionais e continentais de media comunitários, entre as quais a

Associação Mundial de Estações de Rádio Comunitárias (AMARC)39, a Associação Mundial de

Comunicação Cristã (WACC)40, a rede de produção de vídeos Videazimut41 e a Association for

Progressive Communications (APC)42. Estes actores deixam de lado o discurso do relatório

MacBride, orientado a partir dos conceitos de desigualdade dos fluxos e de imperialismo cultural e

adoptam um discurso centrado no direito a comunicar, considerado como um direito social

fundamental baseado nos princípios do acesso e da participação. As mobilizações trocam um modelo

de resistência difusa pela criação de media alternativos isolados e de âmbito local por um modelo de

resistência concertada, mediante a integração destes primeiros órgãos de comunicação social em redes

nacionais, transnacionais e até continentais. É neste âmbito que na década de 90 se forma a rede

Voices 2143 e a campanha Communication Rights in the Information Society (CRIS)44, que irá

retomar a questão das mobilizações informacionais no âmbito da necessidade de regulações

internacionais.

Mas, tendo em conta o clima neo-liberal vigente nos países ocidentais desde meados dos anos 80 que

leva a privatizar e a desregular grande parte da indústria dos media, é necessário esperar até a meio da

década de 90 para assistir a uma renovação do militantismo informacional, desta vez representado

pelas esquerdas radicais, pelos ecologistas e pelas associações de telespectadores. Em paralelo, a

crítica anti-hegemónica transita do plano das desigualdades internacionais no acesso à informação

para o plano da conduta dos media nacionais.

Nos Estados Unidos, surgem por essa altura uma série de iniciativas “cídadãs” constituidas por

associações locais, jornalistas dissidentes e um conjunto de novos colectivos activistas que criticam o

consumo desmesurado e o poder das marcas, defendendo um comércio internacional equitativo.

Principalmente após a aprovação do Telecommunications Act de 1996 - que diminui o controlo

38 Site disponível em http://alainet.org.39 Site disponível em http://www.amarc.org.40 Site disponível em http://www.wacc.org.uk.41 Site disponível em http://commposite.uqam.ca/videaz/videazimut.html.42 Site disponível em http://www.apc.org.43 Site disponível em http://www.comunica.org/v21.44 Site disponível em http://www.crisinfo.org.

51

regulativo e reforça a concentração de empresas no sector das telecomunicações -, multiplicam-se as

iniciativas lideradas por associações de utilizadores – como, por exemplo, os colectivos People for

Better Television e Commercial Alert45, que desencadeiam uma campanha contra a comercialização da

cultura. Ao mesmo tempo, grupos de jornalistas “progressistas” criam revistas que contrastam com as

publicações tradicionais pela sua postura crítica – é o caso de The Nation46, The Progressive47, In

These Times48 e Z Magazine49 -, enquanto que praticantes e analistas dos media alternativos

estabelecem espaços de encontro e troca de experiências – entre eles, Center for Media and

Democracy50, Reclaim the Media51 e Our Media, Not Theirs52.

Um dos modelos de mobilização de maior sucesso por parte da crítica anti-hegemónica na segunda

metade da década de 90 é o do watchdog. Trata-se do desenvolvimento de colectivos dedicados à

monitorização dos media de massas. O primeiro destes observatórios, fundado em 1986, é o Fairness

and Accuracy in Reporting (FAIR)53, sendo também o mais vísível no horizonte mediático norte-

americano. De realçar também a actividade do Alternet.org54 – um projecto desenvolvido pelo

Independent Media Institute55 -, o Media Channel56, a National Coalition Against Censorship57 e o

Newswatch58. Existem também watchdogs conservadores como o Accuracy in Media59.

Em França, a segunda metade da década de 90 é também marcada pelo surgimento de mobilizações

inspiradas no mesmo modelo, como por exemplo os projectos Raisons D’agir60, Acrimed61 e Pour Lire

Pas Lu (PLPL)62, que prolongam, transformam e radicalizam a crítica sistémica dos media mantida

desde há muito pelo Le Monde Diplomatique. A renovação deste jornal durante o mesmo período, a

sua recuperação financeira graças a uma doação privada em 1996, o forte crescimento do seu número

de leitores e o papel importante que desempenhou na fundação do movimento ATTAC (Associação

para a Taxação das Transacções Financeiras para a Ajuda dos Cidadãos)63 representam bem o reforço

45 Site disponível em http://www.commercialalert.org/.46 Site disponível em http://www.thenation.com.47 Site disponível em http://www.progressive.org.48 Site disponível em http://www.inthesetimes.com. 49 Site disponível em http://www.zmag.org.50 Site disponível em http://www.prwatch.org.51 Site disponível em http://www.reclaimthemedia.org.52 Site disponível em http://www.ourmedianet.org.53 Site disponível em http://www.fair.org.54 Site disponível em http://www.alternet.org.55 Site disponível em http://www.independentmedia.org.56 Site disponível em http://www.mediachannel.org.57 Site disponível em http://www.ncac.org.58 Site disponível em http://www.newswatch.org.59 Site disponível em http://www.aim.org.60 Site disponível em http://raisonsdagir.org.61 Site disponível em http://www.acrimed.org.62 Site disponível em http://homme-moderne.org/plpl.63 Site da sede internacional disponível em http://www.attac.org. A secção portuguesa desta rede também tem um site

em http://portugal.attac.org.

52

das posições anti-hegemónicas. Compostos principalmente por jornalistas com um ponto de vista

marginal ou dissidente face aos media comerciais de massas e de académicos comprometidos

politicamente, os watchdogs desempenham um trabalho que permite uma coordenação entre a crítica

interna do trabalho jornalístico e uma crítica externa do poder mediático. As análises conduzidas por

estes observatórios dirigem-se às violações exercidas à deontologia do jornalismo, como o recurso a

uma só fonte, sinais de juízos de valor, alterações ao conteúdo das conversas e sensacionalismo.

Na segunda edição do Fórum Social Mundial, que teve lugar em Porto Alegre, Brasil, no ano de 2002,

um grupo de jornalistas e académicos decidiu criar o Observatório Internacional dos Media (Media

Watch Global – WMG), um organismo mundial dividido em redes de observatórios nacionais de

forma a vigiar a actividade dos media e, assim, garantir o bom funcionamento da democracia

(Pasquinelli, 2002). Para além dos profissionais e dos universitários, o WMG, apoiado pelo Le Monde

Diplomatique e pela agência de notícias cooperativa internacional Press Service (IPS)64, conta ainda

com a participação de representantes do público.

64 Site disponível em http://www.ips.org.

53

2.3 - Mediactivismo: do Direito à Informação ao Direito à Auto-gestão da Comunicação

A batalha sobre a comunicação não é apenas mais uma batalha por uma informação “verdadeira”, objectiva e independente. ‘Information wants to be free’ soa aqui como um slogan ‘freak’ dos anos 60: na época da inteligência colectiva e da rede temos que dizer ‘Information wants to be General Intellect’.

- Matteo Pasquinelli, Mediactivismo: Estrategias y prácticas de la comunicación independiente

O activismo mediático ou mediactivismo, movimento em que os media tácticos são normalmente

inseridos, recebe um grande impulso com os eventos de Seattle, no final de 1999, “estimulados pelo

antagonismo crescente aos grandes monopólios na indústria dos media”. Mas, segundo Matteo

Pasquinelli, a principal razão para o seu desenvolvimento está na “difusão massiva de tecnologias de

baixo custo, como os denominados personal media (media pessoais) e a Internet”. O activismo

informacional é considerado pelos elementos deste movimento “como uma forma directa e imediata

de afirmação pública” (Cardon e Granjon, 2003).

Nos mesmos termos que o praticante táctico teorizado por Garcia e Lovink, o mediactivista é, para

Pasquinelli, “uma nova figura de operador de câmara, militante, artista e cidadão comprometido,

experimentando formas de autogestão da comunicação, frequentemente no próprio tecido urbano”.

Tal como os teóricos tácticos, Pasquinelli não tem ilusões quanto à possibilidade de cooptação deste

personagem, quando diz que “provavelmente iremos vê-la em breve recuperada como moda juvenil

por algum formato astuto de MTV”. De facto, basta olhar para o panorama televisivo português actual

para se encontrar um exemplo eficaz de recuperação comercial das técnicas mediactivistas ou de

media tácticos. É o caso da estação do talk-show A Revolta dos Pastéis de Nata do canal Dois e e de

alguns dos programas da televisão por cabo SIC Radical, como o O Homem da Conspiração ou O

Perfeito Anormal.

Os mediactivistas criticam tanto a objectividade ilusória dos jornalistas profissionais como o discurso

autoritário das elites dos grupos de extrema esquerda, dado representarem, do seu ponto de vista, dois

tipos diferentes de confiscação da expressão. Rejeitam de todo o centralismo, o conformismo, o

autoritarismo e a opressão dos media de massas, desenvolvendo em alternativa projectos de auto-

gestão, abertos, flexíveis e anti-censura, servindo de voz a todos os cidadãos e colectividades,

adoptando assim o mesmo modelo do movimento por uma globalização alternativa. É neste sentido

que Pasquinelli pode ser entendido quando diz que “o direito à informação está-se afirmando

progressivamente como direito à autogestão da comunicação”. “Não apenas o conhecimento dos

mecanismos de comunicação, mas também, e sobretudo, as possíveis práticas de autogestão são

consideradas pilares essenciais de uma nova ideia de democracia e cidadania”, complementa.

54

Adoptando a frase de Jello Biafra, da banda Punk Dead Kennedys, o seu lema pode muito bem ser o

slogan da rede Independent Media Center, “Don’t hate the media, become the media”, isto é, “Não

odeies os media, transforma-te nos media”.

Segundo Cardon e Granjon, a inspiração libertária e a importância concedida à ligação estreita com as

comunidades de experiência dos movimentos de luta presente no mediactivismo “tem a sua origem na

tradição dos media alternativos”. Especialmente na medida em que retoma a ambição de se constituir

como modelo de media perspectivista – de forma a assegurar a expressão do maior número de pontos

de vista possíveis -, prefere a polifonia das subjectividades à objectividade dos peritos, redistribui a

todos o direito à palavra e trabalha para a supressão da fronteira entre produtores de informação

voluntários-amadores, como os militantes, e profissionais, como os jornalistas. Contudo, não deixam

de existir diferenças sensíveis entre a corrente histórica dos media alternativos e a sua recomposição

sob o formato de mediactivismo, salientam. São sobretudo “os modos de organização e os recursos

políticos que diferem”.

Para os dois autores franceses, o mediactivista é uma figura individualista que se pretende afastada de

quaisquer categorias de pertenças territoriais, sociais ou políticas. Isto ao contrário do que sucede nos

media alternativos mais tradicionais, cuja ideologia participacionista considera positivas essas

pertenças. Afirmam ainda que “a valorização exacerbada dos diferentes estados do sujeito – o seu

corpo, a sua subjectividade, a sua autonomia – patente no mediactivismo, demonstra os processos de

individualização que se registam nas culturas políticas da extrema-esquerda, incorporando, desta

forma, características dos movimentos anarquistas”.

Para Pasquinelli (2002), o mediactivismo é uma rede mundial de comunicação composta de várias

redes autogestionadas - sendo a principal o grupo Independent Media Center ou Indymedia – que já

cobrem todo o planeta com uma forma de organização de baixo para cima. Na sua opinião, estas redes

“conseguiram criar a consciência de uma sociedade e cidadania global”. Por isso, “o mediactivismo é

um modelo e uma metáfora para ‘fazer sociedade’. Este autor italiano reconhece no mediactivismo o

seguinte conjunto de atitudes e tendências:

· Políticas: autogestão dos media contra o pensamento único dos monopólios. Esta dimensão,

que abarca os media de movimentos, independentes, comunitários e o fenómeno dos

observatórios de comunicação social, está sobretudo relacionada com a sociabilidade e a

oralidade.

· Lúdicas: destaque para o papel do libídico e do lúdico; o jogo com os media como máquinas

55

de desmontar e voltar a montar, no interior da mutação antropológica em direcção ao cyborg.

Importância do exemplo dos net-artistas, dos hackers e, principalmente, dos programadores

de software novo para a informação independente utilizados no meio medioactivista. Esta

atitude expressa-se na experimentação tecnológica e na tactilidade.

· Criativas: envolve a construção do imaginário e de novos media como novos modelos de

comunicação, organização, criação e sociabilidade. A comunicação é entendida como uma

narração colectiva, mitopoiesis, guerrilha comunicacional, psicosfera, na qual se inventam

simulacros pop, sabotagens mediáticas, novos memes65, meta-media. Esta é a dimensão do

imaginário e da iconicidade (idem).

Da mesma forma que o termo mediactivismo, também o videoactivismo alcançou a sua maior

popularidade após a manifestação de Seattle e o lançamento da rede Indymedia. Foi, de resto, também

nessa ocasião que se produziram os primeiros documentários do movimento global, realizados pelos

elementos desta cadeia de televisão66. Desde então, refere Pasquinelli, “a câmara digital está nos

bolsos de cada activista que está prestes a ir para uma manifestação”. Em Setembro de 2000, durante

as preparações para a mobilização contra o Forum Económico Mundial de Melbourne, que se realizou

de 11 a 13 desse mês nessa cidade australiana, um grupo de videoperadores independentes elaborou e

difundiu através de várias listas de discussão na Internet um texto intitulado “Camcorder Kamikaze

Manifesto”67, em que se destacava a figura do videoactivista no seio do movimento por uma

globalização alternativa. Pasquinelli afirma que “este tipo de manifestos de colectivos de produção

vídeo costuma descrever a missão do videoactivista como uma luta um tanto maniqueísta entre as

forças da ‘luz’ e o regime de ‘obscuridade’ dos media tradicionais, que funda o seu poder no

‘segredo’. A câmara de vídeo é o fogo prometaico que permitirá revelar o poder, um olho que ilumina

e liberta um novo mundo que os media tradicionais querem ocultar às massas”.

O videactivismo é actualmente a forma mais popular e praticada de mediactivismo. Segundo

Pasquinelli, isto resulta da “larga difusão das minicâmaras digitais de preço económico, da

componente lúdico-táctil e da tendência anti-textual e intuitiva da informação visual”, o que originou

um exército de activistas que, por altura dos grandes eventos como Génova 2001, controlaram por

65 Os memes são para a mente e para a cultura o que os genes são para o cérebro e para o corpo. Tal como os genes, os memes são replicadores que constituem a base de um processo evolutivo. Segundo o biólogo Richard Dawkins, inventor deste neologismo, refere em O Gene Egoísta (1989), “assim como os genes se propagam transferindo-se de corpo para corpo atraves de esperma ou ovos, os memes propagam-se transferindo-se de cérebro para cérebro atraves de um processo chamado de imitacao”. Enquanto os genes carregam informação codificada para sintetizar proteínas, os memes incorporam instruções para actividades mentais e culturais. Tratam-se de ideias ou modas que se auto-reproduzem.

66 São os casos de Showdown in Seattle e This is What Democracy Looks Like, que podem ser obtidos através do site http://www.indymedia.org/projects.php3.

67 Texto disponível em http://espora.org/revueltas/IMG/pdf/Mediact_cap3.pdf (acedido a 3 de Novembro de 2005).

56

vídeo toda a cidade. Os colectivos de produção vídeo, como o Toronto Video Activist Collective68,

Big Noise Films69 e o Undercurrents70, são o modelo de auto-organização mais difundido junto dos

videoactivistas. Juntamente com o recurso aos personal media, como as minicâmeras, difunde-se

também um profundo conhecimento das técnicas de montagem de vídeo. Na opinião de Pasquinelli,

“os documentários independentes produzidos após Seattle pelo movimento demonstram um

conhecimento refinado da linguagem vídeo, mas também uma contaminação, inconsciente ou

estratégica, pela linguagem televisiva”. Mas o autor adverte para o facto das estações de televisão,

como a MTV, já terem começado a recuperar a estética do movimento global, introduzindo nos seus

produtos de entretenimento o imaginário produzido pelo videoactivismo.

Os activistas contra a guerra do Vietname nos anos 60, foram os primeiros a utilizarem equipamento

de vídeo. As primeiras câmaras portáteis de vídeo surgem em 1965. Nam June Paik foi um dos

primeiros artistas a comprar uma, tendo-a empregue para iniciar uma crítica prática e concreta dos

media e da cultura de massas. Na sua opinião, citada por Matteo Pasquinelli, “o vídeo iria

revolucionar a arte e a informação, não apenas porque podia ser manipulado por pessoas comuns, mas

porque o material produzido desta maneira estava imediatamente à disposição e acessível, sem

necessidade de tratamentos especiais”. Na década de 70, o ambiente de colectivos vídeo foi marcado

pelas produções da Top Value Television (TVTV), um grupo criado para fazer a cobertura da reunião

do Partido Democrata dos Estados Unidos em São Francisco, no ano de 1972. Os seus documentários

foram exibidos em estações de televisão por cabo de várias cidades, assim como no PBS (Public

Broadcasting System), o canal norte-americano de serviço público. Contudo, a TVTV acabou por

seguir o mesmo percurso decadente dos colectivos vídeo ao longo dessa década.

Um dos elementos da TVTV era DeeDee Halleck, co-fundadora da Paper Tiger TV71 - uma rede

nova-iorquina criada em 1981 -, docente na Universidade da Califórnia, São Diego, e activista da

Indymedia. O primeiro documentário da Paper Tiger, Herbert Schiller Reads the New York Times,

centrou-se na figura do teórico da comunicação Herbert Schiller. Seguiram-se a este cerca de 400

programas emitidos ao longo de anos através dos canais da rede de cabo de Manhattan reservados às

comunidades. Em 1986, a Paper Tiger decidiu contratar uma frequência em satélite, tendo daí

resultado a Deep Dish TV72, dedicada à emissão de produções individuais oriundas de todo o

terrítório dos Estados Unidos, abordando temas como questões locais de acesso à saúde, a SIDA, o

ambiente e as prisões. O seu programa mais famoso foi Gulf War Crisis TV Project (1990-1991). Os

vídeos feministas dos anos 70 e os documentários das comunidades gay e lésbicas dos anos 80 ligadas 68 Site disponível em http://www.tvac.ca.69 Site disponível em http://www.bignoisefilms.com.70 Site disponível em http://www.undercurrents.org.71 Site disponível em http://www.papertiger.org.72 Site disponível em http://www.deepdishtv.org.

57

à campanha contra a SIDA, foram também outros percursores do videoactivismo. Em 1989, o grupo

de afinidade ACT-UP e DIVA-TV (Damned Interfering Video Activist Television) começou a filmar

marchas e manifestações de homosexuais e a difundi-los por cassetes de vídeo.

Na Itália, um país em que a concentração da propriedade dos meios de comunicação que caracteriza a

globalização, atinge proporções extremas73, o movimento TeleStreet74 de micro-estações de televisão

pirata constitui uma experiência de disseminação de informação alternativa que tem vindo a crescer

exponencialmente nos últimos anos, abarcando actualmente mais de 80 canais. A primeira emissão

desta rede, no Verão de 2002, esteve a cabo da Orfeo TV, uma estação de bairro de Bolonha. Para pôr

no ar uma pequena televisão pirata, basta despender cerca de 500 euros na aquisição de um

transmissor, um amplificador, uma antena convencional das que se colocam nos telhados e cabos.

Muitas, contudo, utilizam transmissores mais potentes de modo a terem maior cobertura. O seu

alcançe médio é de um quilómetro mas as que dispõem de mais recursos atingem os três. Elas emitem

quase sempre para zonas onde o sinal das estações comerciais não chega em condições ou é

inexistente. Apenas algumas transmitem 24 horas por dia, tendo a maior parte um horário flexível

("And" (and (at) axxs.org), 2004).

As estações utilizam a Internet para partilhar conteúdos com uma boa qualidade de imagem entre si.

Os produtores locais de conteúdos podem fazer o descarregamento de vídeos com uma resolução

suficientemente elevada para serem emitidos via TV através de uma rede de servidores, a New Global

Vision75. O software Peer-to-Peer (P2P) BitTorrent76 é também empregue para permitir o download

gratuito de filmes e programas televisivos distribuídos com licença Creative Commons (idem).

Uma das mais famosas TeleStreets é a Candida TV77, de Roma, criada em 1997 com o nome de

OFFlineTV. Esta televisão de circuito fechado emitia apenas durante o Overdose Fiction Festival, um

evento de três dias que se realizou durante três anos (Macchina (candida.kyuzz.org), 2002). Em

Dezembro de 1999, a Candida TV passou a transmitir na estação local romana um programa semanal

de uma hora. A partir de 2001 iniciou uma colaboração com a Indymedia Itália78, o que levou em 73 Silvio Berlusconi detém três dos quatro maiores canais televisivos privados, para além de, enquanto primeiro-

ministro, possuir um grande poder de influência sobre a estação pública RAI. Ao todo, assegura o controlo dos seis maiores canais televisivos do país e o acesso a 90 por cento da audiência nacional diária, como se pode ler em "Make Media, Make Trouble: Hacking the Infocalypse" assinado por "and" (and (at) axxs.org) e publicado no âmbito da conferência State of Emergency, que teve lugar em Melbourne a Maio de 2004. As seguintes referências à rede TeleStreet seguem também este texto que está disponível em http://subsol.c3.hu/subsol_2/contributors3/blissetttext3.html.

74 Site disponível em http://www.telestreet.it.75 Site disponível em http://www.ngvision.org.76 Site disponível em http://www.bittorrent.com.77 http://candida.thing.net.78 Site disponível em http://italy.indymedia.org.

58

Julho desse mesmo ano à realização da curta-metragem SuperVideo >>> G879 sobre as manifestações

em Génova contra o G8. A Candida TV adoptou como lema a frase "A televisão é uma arma",

visando ocupar a realidade do ecrã. Perante um Grande Irmão que controla tudo através de câmaras

de televisão, pretende ser uma "Pequena Irmã" que se apodera com as suas mãos dessas câmaras, a

"primeira televisão electrodoméstica", feita por todos (idem). No seu arquivo de programas -

acessíveis online - conta com anúncios humorísticos que gozam com a política proibicionista relativa

à marijuana, vídeos activistas em que colocam Ronald McDonald, a mascote da cadeia de vendas de

hamburguéres, a tentar chegar ao Fórum Económico Mundial de Davos (2001) ou que narram as

aventuras do SuperVídeo, um herói da comunicação independente criado pela equipa de 12 membros

da Candida TV ou ainda relativos à cobertura de eventos como hackmeetings - conferências de

hackers e hacktivistas. Um dos seus mais recentes projectos inseriu-se no âmbito do evento WSIS?

We Seize?80, que ocorreu em Dezembro de 2003 em Genebra, Suiça, à margem e em oposição à

Primeira Cimeira Mundial sobre a Sociedade da Informação (WSIS). Em paralelo, tem desenvolvido

workshops em que jovens dos subúrbios de Roma aprendem a utilizar câmaras de vídeo e técnicas de

montagem de modo a fazerem a sua própria televisão (idem).

79 Vídeo disponível em http://www.ngvision.org/mediabase/22.80 Site disponível em http://www.geneva03.org/.

59

3 – A Influência do Movimento do Software Livre e da Ética Hacker

Pela sua própria natureza, o hacking derruba os limites que a propriedade lhe impõe. Novos hacks suplantam velhos hacks e desvalorizam-nos como propriedade. Enquanto informação nova, o hack é produzido a partir de informação já existente. Isto dá à classe hacker um interesse maior no seu acesso livre do que num direito exclusivo. A natureza imaterial da informação significa que a posse de informação por alguém não necessita de excluir outro dela.

- McKenzie Wark, “A Hacker Manifesto”

A comunidade de programadores responsáveis pelo desenvolvimento de software livre comunga de

uma ética e de uma cultura própria baseada na cooperação, na partilha de conhecimento e na ausência

de hierarquias rígidas. Estes valores estão também bastante impregnados nos praticantes de media

tácticos. Muitas das suas iniciativas correspondem na sua base ao modelo do movimento do software

livre. O princípio da apropriação e transformação colectiva patente nas equipas que desenvolvem o

sistema operativo Linux e seus programas leva a uma progressiva e desejada dissolução da barreira

tradicional entre utilizador e produtor. Seguindo uma lógica DIY, no software livre o utilizador é cada

vez mais um programador que participa na produção colectiva de um bem comum, o software, como

veremos adiante. Tal como já referimos, as primeiras tecnologias de electrónica de consumo surgidas

no início da década de 90 – como as câmaras e os gravadores de vídeo – possibilitaram o surgimento

dos media tácticos. Este tipo de experiências mediáticas realiza-se em grande parte num espírito auto-

didacta e ‘Faça-Você-Mesmo’. Não é por isso de estranhar que o Linux e outro software livre

constitua actualmente a plataforma da rede Indymedia, entre outros projectos tácticos.

A estreita ligação entre o software livre e os media tácticos é confirmada por Josephine Berry, ao

afimar que aquele movimento de programadores de código informático pode ser considerado táctico,

tal como o modo de funcionamento adoptado pelos Net-artistas - artistas que concebem obras

destinadas à Internet e outros produtores mediáticos independentes para combater o poder capitalista.

Assim, “ao revelar o código – seja social, tecnológico ou estético – que sustenta o ambiente da

Internet, os Net-artistas oferecem um caminho para explorar o potencial para que todos se tornem

produtores ou para alargar o espírito do movimento pelo software livre à produção cultural e social

em geral”. Eles procedem através de uma prática cultural aberta que “desafia qualquer tipo de

recuperação e comercialização fácil”.

Podem ainda ser detectados traços comuns entre os hackers do software livre e os activistas, dado que

ambos "visam construir uma sociedade livre", "colocam em causa os lugares de poder estabelecidos.

60

baseados em modelos governamentais e empresariais", "advogam a solidariedade e funcionam com

base na cooperação", "possibilitam uma redefinição do que a propriedade significa" e "constituem

exemplos práticos de modelos sociais alternativos, assentes na descentralização, participação

voluntária e auto-gestão" (Darkveggy, 2005). Para além disso, são muitos os activistas que se

envolvem na produção de software livre, "participando na concepção e criação de sistemas operativos

de uma forma horizontal e colaborativa" (idem).

Tendo em conta esta ligação próxima entre as esferas do software livre e dos media tácticos, torna-se

conveniente analisar mais em detalhe o movimento pelo software livre e a cultura e ética hacker

associados a este, deixando de lado contudo a história pormenorizada deste movimento, uma vez que

já existem vários livros e ensaios bastante abrangentes e detalhados sobre esta temática81

Antes de mais nada, é necessário esclarecer que a acepção correcta e original do termo hacker não

corresponde ao perfil do pirata informático ou cibervândalo com que alguns órgãos de comunicação

social mais sensacionalistas os confundem. Estes últimos, habituados a penetrarem ilegalmente em

redes privadas e a maliciosamente destruirem ou/e alterarem os dados que aí encontram, são

chamados de crackers, sendo normalmente rejeitados pela cultura hacker (Castells, 2001: 41).

Originalmente, a palavra hack servia para designar soluções inovadores, inventivas e não-ortodoxas

para problemas tecnológicos. Segundo Jordan e Taylor (2004: 6-7), o termo refere-se à realização de

um truque habilidoso de programação, indo para além das conotações populares com a invasão ilícita

de sistemas informáticos. Pegando na definição de Sherry Turkle, caracterizam-no como sendo um

acto simples, magistral e ilícito. Para estes autores, o termo hacker engloba assim não só todos os que

desenvolvem software - como refere o filósofo mexico-americano Manuel De Landa -, mas também

os que realizam qualquer tipo de hack (idem: 9). De acordo com De Landa, o conceito de hacker

implica que o programador em questão não possui um curso superior em Engenharia Informática,

referindo-se normalmente a uma produção auto-didacta (Landa, Manuel De, 2001). Neste sentido, “o

termo acarreta a conotação de que o hacker obtem prazer com a criação de programas (em oposição a

ser motivado pelo sentido de dever profissional ou por recompensas económicas) e que possui um

grande respeito pelos valores prezados pela arte (as soluções elegantes de um problema são admiradas

por e em si próprias)” (idem).

Outro conceito importante é o de código. Todo o software é constituído por linhas de código escritas

principalmente por humanos. No entanto, como nota Lawrence Lessig em The Future of Ideas, este “é

81 Ver Moody, Glynn (2001), Rebel Code: Linux and the Open Source Revolution, Harmondsworth, Penguin e Naughton, John (1999), A Brief History of the Future, Londres, Weidenfeld & Nicholson.

61

bastante diferente do que os computadores correm” (2001: 50). Ao passo que “os humanos escrevem

código-fonte, os computadores correm código de objecto” ou código de máquina. O código de

máquina é composto por enormes séries de zeros e uns incompreensíveis para o humano comum. O

código-fonte consiste num conjunto de linguagens informáticas como C ou Pascal, concebidas para

instruir ao computador o que deve fazer, que não só são inteligíveis para os humanos como são

acompanhadas por comentários que explicam (a outros humanos) qual a função de cada parte do

programa. Como explica Manuel De Landa, “devido à sua inteligibilidade, o código-fonte permite

também alterar ou expandir o programa. Uma vez concluído, para que o computador corra o

programa, o código-fonte é convertido em código de máquina através de um programa especial

designado compilador. É esta versão compilada ou binária que é habitualmente vendida nas lojas. Isto

implica que os utilizadores não devem continuar a alterar ou a melhorar o software adquirido. No

entanto, isto pode ser feito mediante a prática de reverse engineering do código de máquina, apesar de

ser bastante difícil e ilegal” (Landa, 2001).

Convém distinguir entre diferentes tipos de software em relação ao seu fim. Os utilizadores comuns

estão sobretudo familiarizados com os programas de aplicações, como os processadores de texto, as

folhas de cálculo, ferramentas de design gráfico, browsers de navegação na Web, entre outros. Mas

um hacker trabalha principalmente com o software empregue no desenvolvimento dessas aplicações.

Para além do compilador, já referido, existem os debuggers – que permitem encontrar e corrigir erros

ou bugs -, os editores de texto – que servem para escrever código – e várias outras ferramentas de

desenvolvimento. Mas a peça de software mais importante para o funcionamento de um computador é

o sistema operativo. Ao contrário das aplicações, que são executadas de forma a realizarem uma

determinada tarefa, sendo depois encerradas, um sistema operativo está sempre a correr por detrás

sempre que o computador esteja a funcionar, ligando todos os dispositivos e periféricos conectados ao

computador, como o rato, o monitor e o disco rígido. Nenhum outro software pode correr sem que o

sistema operativo esteja a funcionar por detrás e com o qual esse software seja compatível.

Ao contrário dos formatos tradicionais artísticos protegidos pelo copyright, como o livro, o disco ou o

filme, o software, tal como qualquer outro tipo de informação em suporte digital, pode ser copiado

inúmeras vezes a custo quase zero. Isto é uma consequência do facto de que a cópia de informação é

inerente ao funcionamento dos computadores. O funcionamento do computador abrange três grandes

actividades: o armazenamento, a transmissão e o processamento de dados, cada uma das quais

requerendo a cópia de informação. Deste modo, explica Josephine Berry, “sempre que um programa

de software é aberto, a versão guardada no disco rígido tem que ser copiada para a memória de acesso

aleatório (RAM – Random Acess Memory), ou sempre que se acede a um site na Web, o que vemos

62

de facto é uma cópia dos ficheiros alojados no servidor feita pelo browser” (Berry, 2002). Para além

disso, a autora acrescenta que “cada cópia que é feita é indistinguível do seu ‘original’ e serve tão

bem como este para fazer mais cópias – como resultado, toda a noção de original torna-se

materialmente obsoleta. A facilidade de reprodução digital é tanta que efectuar mil cópias não é mais

caro que produzir uma. Isto reduz os custos marginais de produção praticamente a zero e exige uma

reformulação total do conceito de mais-valia na economia da informação” (idem).

As grandes produtoras de software e, principalmente, a Microsoft, obtêm os seus lucros enormes

“impondo artificialmente a escassez na abundância natural da informação digital e sua capacidade

inata de replicabilidade”, afirma Berry (ibidem). É neste contexto de um registo cada vez maior de

software sob o direito de propriedade intelectual e, em especial, do copyright, que o movimento pelo

software livre tem desempenhado um papel fundamental, com vista à promoção da ética do software

não-proprietário em que o código-fonte pode ser lido, partilhado e modificado livremente por

qualquer pessoa. Até ao início dos anos 80, contudo, a comunidade hacker – nestes primeiros tempos,

sobretudo ligada a universidades norte-americanas - funcionava de acordo com as regras da

colaboração e partilha de informação, herdadas do mundo científico e académico.

O movimento pelo software livre foi iniciado por Richard Stallman, então técnico no Laboratório de

Inteligência Artificial do Massachusetts Institute of Technology (MIT) – instituto norte-americano

que é tradicionalmente referido como local de origem dos primeiros hackers, em meados dos anos 60

– num período em que o software começava a ser privatizado. Quando Stallman encontra dificuldades

em obter o código-fonte do programa de uma impressora Xerox com problemas de funcionamento,

chega à conclusão que os valores da liberdade e da transparência estavam a ser postos em causa por

uma outra concepção da informação, de cariz proprietário e comercial. De forma a se opor contra esta

mudança, inicia em 1984 o projecto GNU82 – que visa a criação de um sistema operativo compatível

com a plataforma Unix. No ano seguinte, lança a Free Software Foundation, uma organização

activista que promove o software livre. Em 1989, Stallman redige a General Public License (GPL)83,

uma licença de copyright destinada a este tipo de software, como o sistema operativo Linux e, até

recentemente, o servidor Web Apache. Esta licença gerou no movimento uma série de efeitos

positivos que Manuel De Landa caracteriza como sendo “consequências não-intencionais”, na medida

em que são o resultado de uma cultura hacker guiada por interesses pragmáticos que têm menos a ver

com os ‘perigos do software proprietário’ – a principal razão que levou Stallman a redigir a GPL – do

que com o tipo de ambiente que estimule a criação de bom software, isto é robusto face a quebras de

funcionamento, uma qualidade bastante prezada nos sistemas operativos e software para servidores.

82 Site disponível em http://www.gnu.org.83 Site disponível em http://www.gnu.org/copyleft/gpl.html.

63

Quando o software é distribuído na forma de código-fonte, ao permitir aos utilizadores a capacidade

de alterá-lo e adaptá-lo livremente está-se a incentivar a formação de comunidades de

desenvolvimento em que muitos dos erros ou bugs inevitáveis que vão surgindo num qualquer

programa complexo à medida que este é produzido podem ser rapidamente descobertos e corrigidos.

Este processo comunitário de debugging – remoção de erros - resulta em software que é

comprovadamente mais resistente a problemas de funcionamento do que os programas disponíveis

comercialmente.

A GPL pretende resolver o problema da aplicação dos direitos de propriedade intelectual e, em

particular, do copyright, em relação à tecnologia digital e a sua capacidade ilimitada de cópia. Em

termos de propriedade, é necessário distinguir “entre os bens que podem ser consumidos apenas por

uma pessoa (ou pessoas), isto é, bens cujo próprio consumo impede outros de os consumirem, e os

que não possuem esta propriedade” (Landa, 2001). A comida pode ser considerado um exemplo do

primeiro tipo, ao passo que as ideias pertencem à segunda categoria. “Se alguém consome uma

música ou um livro, este acto em si não exclui outros de consumirem a mesma música ou o mesmo

livro, em especial, se as tecnologias de duplicação e distribuição tiverem reduzido ao minímo os

custos de reprodução” (idem). Ora, segundo Manuel De Landa, “o problema económico da

propriedade intelectual é que, quando os bens de consumo não-competitivo são sujeitos a direitos de

propriedade, o aspecto exclusivo destes direitos gera um desperdício social” (ibidem). Sobretudo no

que toca aos bens em formato digital, “uma vez que podem ser geradas e distribuídas cópias

adicionais do original virtualmente sem qualquer custo, excluir as pessoas do acesso a estes bens

significa que não será satisfeitas necessidades, apesar do extremo baixo custo que a sua satisfação

acarreteria para a sociedade. Por outro lado, não sujeitar esses bens aos direitos de propriedade

significa que aqueles que os produzem não terão qualquer incentivo para o fazer, particularmente se

os custos de produção forem elevados” (ibidem). Pelo que, nota o autor, o problema da propriedade

intelectual só pode ser resolvido se se encontrar para cada situação um equílibrio entre os custos

sociais e os benefícios do produtor (ibidem). Partindo do desafio lançando por Manuel De Landa,

consideramos que as licenças Creative Commons introduzidas recentemente são uma possível solução

pragmática, embora também não deixem de ter as suas limitações, como veremos mais à frente.

Visando proteger qualquer obra criativa mediante “a anexação a esta no momento em que a

criatividade é fixada numa forma tangível” (Lessig, 2001: 58) – isto é, num suporte físico -, o

copyright é um ramo do direito de propriedade intelectual que tenta resolver o problema dos

incentivos à criação cedendo aos autores o direito exclusivo de controlarem alguns dos usos do seu

trabalho por um período limitado. Mas uma vez que os autores não dispõem de meios de publicação

64

das suas obras nos formatos analógicos, precisam de recorrer a editores. Assim, mediante contratos, é

cedido o direito de utilização de obras protegidas pelo copyright. Esta cedência consiste num contrato

designado licença (idem: 59). Neste aspecto, a GPL é única: ela não representa a abolição da

propriedade intelectual, dado que cada contribuinte detém os direitos de autor do bocado de código

que desenvolveu, mas altera a forma como os direitos de exclusão são implementados. Ao contrário

da maior parte das licenças de software, que limitam o número de cópias que o indivíduo ou entidade

licenciada pode efectuar, a GPL limita as restrições impostas por esse indivíduo ou entidade em

relação à cópia que outros podem efectuar. Obrigando todos os que previamente utilizaram código–

fonte aberto a ‘abrirem’ quaisquer contribuições que tenham efectuado a este e a distribuirem essa

versão melhorada sem cobrar nada84, a GPL impede os abusadores de tirarem partido deste código-

fonte partilhado, alterando-o e de em seguida o compilarem e venderem sob a forma de software

proprietário, impedindo o acesso ao código-fonte (Landa, 2001). Tal como Richard Stallman

descreve:

Um programa é software livre, para si, um utilizador particular, se: Tiver a liberdade de correr o programa para qualquer fim. Tiver a liberdade de modificar o programa de forma a que satisfaça as suas necessidades (Para tornar esta liberdade efectiva na prática, deve ter acesso ao código-fonte, dado que efectuar modificações num programa sem o código-fonte é extremamente difícil). Tiver a liberdade de redistribuir cópias, quer de modo gratuito ou por um preço. Tiver a liberdade de distribuir versões modificadas do programa, de forma a que a comunidade possa beneficiar das melhorias que introduziu (Stallman, 1999).

Como argumenta o professor de Direito David McGowan, “a produção de software open-source não

implica a ausência ou irrevelância dos direitos de propriedade intelectual. Em vez disso, a produção

open source baseia-se no uso elegante de termos contratuais para implementar esses direitos de uma

forma que crie um espaço social dedicado à produção de código livremente disponível e

modificável”85. Segundo McGowan, a originalidade da GPL reside no facto de em vez de explorar

activamente o direito a excluir, como ocorre nas licenças convencionais, este direito é mantido “em

reserva como um método para impôr a adesão às normas incorporadas na licença” (2001: 133). Muito

para além dos seus objectivos imediatos de manter o software aberto e de funcionar como um meio de

atribuir crédito aos programadores pela autoria de determinado código – uma vez que a licença

também ordena que os nomes dos criadores de partes específicas não sejam removidos em nenhuma

versão futura -, a GPL revela-se assim como um instrumento legal para a criação de uma comunidade,

mediante a preservação e a difusão das normas deste grupo social outrora de pequena dimensão,

fomentando o seu crescimento e estabilização.

84 Contudo, a GPL dá ao programador toda a liberdade de cobrar a quantia que desejar pela cópia do programa desenvolvido a partir do código-fonte. Ver Free Software Foundation (2005 [1996]), "Selling Software". Disponível em http://www.gnu.org/philosophy/selling.html#TOCHighOrLowFeesAndGPL (acedido a 15 de Dezembro de 2005).

85 McGowan, David (2001), “Legal Implications of Open-Source Software”, em University of Illinois Law Review, pag. 103. Citado em Landa, Manuel De (2001).

65

Landa considera que este ‘mecanismo de imposição’ de abertura do código-fonte demonstra que a

GPL vai mais além da promoção da liberdade, no sentido original e mais ideológico de Stallman

(Landa, 2001). O facto de esta licença obrigar reciprocamente o utilizador a partilhar foi criticado por

outros hackers, sendo por isso até acusada de desrespeitar o princípio moral da liberdade e de se

semelhante a um vírus, que contamina todo o código desenvolvido com base numa peça de código

open source – código-fonte aberto – original. Consideram ainda que a CPL é anti-comercial por

impede o desenvolvimento comercial de software. Para rebater este défice de liberdade, criaram

licenças alternativas, como é o caso da BSD, relativa às três variantes da versão do Unix desenvolvida

na Universidade de Califórnia, Berkeley.

A tensão entre a ideologia do software livre e os interesses comerciais de algumas empresas

produtoras de software para Linux e outras grandes companhias de informática levou à criação do

termo open source por Eric Raymond e outros que em 1998 formaram a Open Source Iniciative86.

Esta entidade tem como objectivo persuadir o sector comericail da superioridade do software com

código-fonte aberto com base numa abordagem pragmática e mais ligada ao mundo dos negócios.

Uma vez que se pretende que a marca open source abranja comunidades e licenças de código-fonte

aberto para além da GPL, a iniciativa desenvolveu a Open Source Definition87, uma definição oficial

do termo que enumera uma série de critérios que um software deve preencher para ser considerado

open source:

· Redistribuição livre

· Código-fonte acessível e permitindo a produção de trabalhos derivados

· Assegura a integridade do código-fonte do autor

· Proíbe a discriminação de grupos e pessoas

· Proíbe a discriminação de campos de aplicação

· Proíbe a celebração de contratos de não-divulgação (Non-Disclosure Agreements – NDA)

· Assegura que a licença não pode ser específica a um só produto

· Assegura que a licença não pode restringir outro software

· Assegura que a licença tem que ser tecnologicamente neutral (Reagle, 2004).

86 Site disponível em http://www.opensource.org.87 Site disponível em http://www.opensource.org/docs/definition.php.

66

Uma licença de copyright que a iniciativa considere que satisfaz todos estes requisitos será

considerada como uma licença certificada e aprovada pela OSI. Isto inclui, obviamente, a própria

GPL. Para alguns hacktivistas, não obstante, esta definição "abandona todas as referências aos meios

e motivações éticas e sociais do software livre, para não falar do principal objectivo da luta pela

liberdade"88.

Este modelo de abertura foi alargado a formas de produção cultural não relacionadas com conteúdos

técnicos. Por exemplo, a Wikipedia89 é uma enciclopédia colaborativa que já conta com dezenas de

milhares de artigos em várias línguas (Reagle, 2004) em que, como qualque wiki, todos os

utilizadores podem contribuir com novas entradas, editar outros artigos e acrescentar informações. O

modelo de edição em wikis foi alargado para a produção de informação noticiosa pela equipa

responsável pela Wikipedia com a criação do serviço multilingue Wikinews90 no final de 2004.

Uma das alternativas às licenças de copyright mais bem sucedidas até agora é a associação Creative

Commons91, que expande o modelo de abertura da GPL ao domínio da produção cultural, permitindo

que músicas, vídeos, imagens sejam partilhados livremente pelos artistas, músicos, fotógrafos,

designers e escritores com outros, favorecendo ainda o trabalho colaborativo, mas sem perderem

necessariamente o controlo sobre as suas obras. Lançada em 2001 por juristas como Lawrence Lessig

e James Boyle com vista a combater a erosão do domínio público. David M. Berry acusa este projecto

de "privilegiar a propriedade individual em detrimento das formas colectivas" e de revelar "um

interesse mais económico voltado para a produção em vez de uma preocupação estética ou social com

a criatividade em si" (Berry, 2006). Existem seis licenças básicas associadas à Creative Commons,

mas em todas elas a propriedade é mantida pelo autor que licencia a obra. Este pode impôr uma série

de restrições à capacidade de reutilizar as suas criações como:

1. Atribuição - a obrigação de dar o crédito definido pelo autor original ;

2. Comercial/Não-Comercial - o requisito de que a obra possa ou não possa ser usada para obter

vantagens comerciais com ela ou com obras obras criadas a partir dela;

88 Darkveggy (2005). Este hacktivista vai mais longe, afirmando que "ao apelar à convivência pacífica entre o software aberto e fechado (proprietário), o open-source também é político; mas as suas políticas são as da pacificação, integração, aceitação e promoção das regras do mercado, com a ligeira diferença de adoptar um modelo de desenvolvimento mais inteligente". Ao passo que o open-source compromete-se com o capitalismo, o software livre pode ser um contributo para outra coisa diferente".

89 Site disponível em http://www.wikipedia.org. Versão em língua portuguesa disponível em http://pt.wikipedia.org90 Site disponível em http://www.wikinews.org. Versão em língua portuguesa disponível em http://pt.wikinews.org.91 Site disponível em http://www.creativecommons.org

67

3. Partilha segundo a mesma licença - o requisito de que outros só possam utilizar a obra se a

partilharem de acordo com a mesma licença;

4. Proibição de Obras Derivadas - o autor proíbe a criação de novos trabalhos a partir do seu

conteúdo. Habitualmente, estas quatro condições são livremente combinadas de acordo com a

intenção do criador em relação à sua obra.

68

3.1 – O Processo de Desenvolvimento do Software Livre

O desenvolvimento de melhorias e novas funcionalidades num software livre como o sistema

operativo Linux, o programa de email FETCHMAIL ou o servidor Web Apache funciona acima de

tudo com base na Internet, dado que é através da Rede que se elaboram novos projectos, planificam-

se actividades e atribuem-se tarefas, tudo através de uma cooperação aberta e massiva entre milhares

de pessoas espalhadas pelo mundo(Moineau e Papatheodorou, 2000). A participação num projecto

pode revestir várias formas: Um utilizador com mais conhecimentos pode fornecer documentação ou,

melhor ainda, submeter um patch, isto é, uma modificação do código-fonte ao responsável ou líder do

projecto. Mas outro utilizador menos entendido em Informática pode simplesmente exprimir a sua

opinião sobre um determinado problema que os programadores não tinham ainda detectado ou

corrigir um bug menor (idem). Deste modo, “a capacidade dos autores de software livre de apelar à

comunidade para que proponha melhorias e para reforçar a equipa de desenvolvimento é um factor

determinante. E, de facto, quanto mais um programa é aberto, mais os programadores são submetidos

à pressão da comunidade no sentido de fazer evoluir o seu ‘produto’ e para fazer face às inevitáveis

saídas de membros da equipa”, comentam Moineau e Papatheodorou (ibidem).

Em cada projecto é o líder ou comité de líderes que tem a última palavra sobre quais as melhorias que

acabarão por ser incluídas na versão oficial do programa. “Esta autoridade inquestionável dos líderes

de projectos leva a que por vezes sejam apelidados de ‘ditadores benevolentes”, refere Manuel De

Landa, salientando, porém, que é mais apropriado afirmar – para além das suas contribuições

enquanto escritores de código -, que o seu papel reside na criação de uma comunidade de apoio ao

projecto. Eric Raymond considera que o feito mais importante de Linus Torvalds, o finlandês criador

do Linux e responsável pelo projecto de desenvolvimento deste sistema operativo, foi não tanto a

criação do kernel – núcleo – do Linux mas a invenção do modelo de desenvolvimento do Linux92. Os

princípios deste modelo de desenvolvimento consistem em lançar constantemente qualquer peça nova

de código, de forma a que os utilizadores possam imediatamente começar a trabalhar com ela ou nela,

mantendo-os assim permanentemente motivados, delegando a responsabilidade por áreas específicas

a utilizadores motivados – tornando-os co-programadores -, promovendo a cooperação através de

uma série de formas e sendo o menos egocêntrico possível, de forma a impedir qualquer suspeita de

que o crédito pelo trabalho realizado não é partilhado equatitativamente ou de que as decisões

relativas à qualidade de uma determinada peça de código não são objectivas.

92 Raymond, Eric (1997), “The Cathedral and the Bazaar”, §3 – The Importance of Having Users. Disponível em http://www.catb.org/~esr/writings/cathedral-bazaar/cathedral-bazaar/ar01s03.html (acedido a 5 de Novembro de 2005).

69

Em “The Cathedral and the Bazaar”, Eric Raymond designa este modelo de ‘bazar’, em oposição à

‘catedral’, o modelo comercial tradicional de desenvolvimento de software. Na medida em que o

código-fonte dos programas está livremente disponível, a correção dos bugs procede a um ritmo

sustentado. Daí que o software resultante seja em geral fiável. Ao passo que no ciclo de vida

tradicional de um programa, o período de testes representa frequentemente mais de um terço do

tempo de trabalho dedicado a um produto, na economia do software livre são os próprios utilizadores

que se encarregam destas tarefas e propõem correções. Raymond vai ao ponto de analisar o modo

como é estabelecida e mantida a legitimidade do líder de um projecto e de que forma é que esta

legitimidade impede que um projecto perca a sua identidade ao divergir numa série de subprojectos,

cada um com o seu próprio líder. Esse processo de cisão é apelidado pelos hackers de forking. Em

relação ao primeiro aspecto, ele assinala três modos separados através dos quais um projecto pode

tornar-se legítimo:

Existem em geral três formas de adquirir a propriedade de um projecto open source. Uma, a mais óbvia, reside em fundar o projecto. Quando um projecto tem apenas um responsável desde a sua concepção e o responsável está ainda activo, por costume nem sequer se pode duvidar sobre quem detém o projecto (...) A segunda maneira é fazer com que a propriedade do projecto lhe seja concedida pelo anterior proprietário (...) É de salientar que no caso dos grandes projectos, estas transferências de controlo são geralmente anunciadas com grande alarido. Apesar de a comunidade open source não interferir de facto na escolha do sucessor do proprietário, a prática corrente incorpora claramente uma premisa segundo a qual a legitimidade pública é importante. A terceira maneira de adquirir a propriedade de um projecto consiste em observar que este precisa de ser completado e que o proprietário desapareceu ou perdeu o interesse. Caso se pretenda fazer isto, pode-se anunciar num sitío relevante (como um grupo de discussão dedicado à àrea do programa em causa) que o projecto aparenta não ter líder e que se está a considerar assumir a sua responsabilidade (Raymond, 1998).

Mas de acordo com Raymond, esta legitimidade pode ser posta em causa através de dois processos.

Um consiste em fazer um forking do projecto, isto é, instalar um novo líder que a partir daquele

momento irá dirigir ou manter uma versão alternativa do projecto em desenvolvimento. O segundo

reside em acrescentar peças de código que não foram aprovadas pelo líder do projecto ao software.

Estas são designadas pela comunidade de rogue patches. A ameaça do forking é habitualmente

empregue pela Microsoft como arma para afastar os programadores e utilizadores de projectos de

software livre. O seu argumento consiste em fazer passar a ideia de que enquanto o Windows é

desenvolvido sob um processo fortemente centralizado de tomada de decisões, possuindo

consequentemente objectivos bem definidos e um planeamento a longo prazo que garantem a

manutenção da identidade desse sistema operativo, o Linux, por seu lado, dado ser desenvolvido no

âmbito de um processo em que as decisões são tomadas de forma descentralizada, não oferece

garantias aos programadores de aplicações de que o seu investimento em tempo e recursos irá ser

70

recompensado a longo prazo.93

Contudo, como nota Manuel De Landa, nem sempre o forking é prejudicial. No caso do sistema

operativo BSD, por exemplo, o projecto já sofreu três processos de forking mas cada variantes

especializou-se num aspecto em particular, como a segurança ou a portabilidade (Landa, 2001). Por

outro lado, Joseph Reagle chega mesmo a afirmar que o forking “é um aspecto integral da abertura”

do movimento pelo software livre. Na sua opinião, a autonomia característica das comunidades

‘abertas’ tem a ver com a possibilidade constante de fazer forking (Reagle, 2004). Ao basearem-se no

código-fonte de programas anteriores e iniciar o trabalho de desenvolvimento de acordo com a sua

própria conceptualização sem interferências, os novos projectos contribuem para uma maior inovação

tecnológica.

Ao analisar as normas da comunidade que impedem que o forking e a inclusão de rogue patches se

tornem em fenómenos generalizados e ameaçem a integridade do movimento, Raymond concede

importância ao outro componente do problema da propriedade intelectual – para além dos custos

sociais de exclusão – identificado por Manuel De Landa, isto é, o incentivo. Apesar de os hackers não

darem importância aos incentivos monetários à produção, valorizam muito os incentivos que

impeçam a eliminação da legitimidade do projecto. Neste sentido, Raymond considera que estas

comunidades participam numa economia de reputação em que o que é trocado não são valores

monetários mas outros menos tangíveis como o reconhecimento das capacidades e contribuições de

cada um pelos seus pares Nas suas palavras:

O forking de projectos é mau porque expõe os contribuintes anteriores à cisão a um risco de reputação que apenas podem controlar se participarem em simultâneo em ambos os projectos descendentes após a cisão (...) Distribuir rogue patches (...) expõe os proprietários a um risco de reputação injusto.. Mesmo que o código oficial seja perfeito, os proprietários irão ser prejudicados pelos bugs existentes nos patches. Retirar subrepticiamente o nome de alguém de um projecto é, no contexto cultural, um dos crimes mais graves. [Dado que se está a atacar directamente uma fonte de reputação, o local de mérito de alguém numa história de produção] (...) Todos estes três comportamentos-tabu infligem danos na comunidade open source, bem como danos locais na(s) vítima(s). Prejudicam implicitamente toda a comunidade ao diminuirem a esperança de cada potencial contribuinte de as suas contribuições serem recompensadas (Raymond, 1998).

93 Halloween Document I (memorando interno da Microsoft que traça uma estratégia de combate ao Linux e ao software livre. Anotações de Eric Raymond). Disponível em http://opensource.feratech.com/halloween/halloween1.php (acedido a 5 de Novembro de 2005).

71

3.2 – A Ética Hacker

Por detrás do processo de desenvolvimento do software livre está uma ética ligada à cultura dos

hackers que tem as suas raízes nos anos 60 no mundo anglo-saxónico mas que desde meados da

década de 90 se generalizou a todo o mundo, graças ao surgimento do Linux e à massificação da

Internet. Pode-se até dizer que os hackers são “o primeiro movimento social intrínseco à tecnologia

electrónica que impulsionou a actual era da informação” (Berry, 2002). Em Hackers: Heroes of the

Computer Revolution (1984), Steven Levy enumera pela primeira vez de uma forma explícita e

sucinta os princípios da ética hacker:

· O acesso aos computadores – e a tudo aquilo que te possa ensinar qualquer coisa sobre o

modo como o mundo funciona – deve ser ilimitado e total.

· Toda a informação deve ser livre.

· Desconfia da autoridade – promove a descentralização.

· Os hackers devem ser julgados pelo modo como fazem hacking, e não por falsos critérios tais

como graus académicos, idade, raça ou posição social.

· Podes criar arte e beleza num computador.

· Os computadores podem mudar a tua vida para melhor (1984: 27-33).

Esta ética hacker é oposta por Pekka Himanen em The Hacker Ethic and the Spirit of Information

Age (2001) à ética protestante que, como Max Weber afirmou no princípio do século passado,

funcionou desde o século XVI de base ao capitalismo. Em causa estão duas éticas distintas do

trabalho. Segundo Himanen, a ética hacker constitui uma inovação social susceptível de ter um

alcance que ultrapassa largamente os limites da actividade informática, consistindo numa “expressão

que se caracteriza por uma relação apaixonante com o trabalho” (Himanen, 2001: IX). Para este autor,

o hacker é assim “um perito ou um entusiasta de qualquer tipo” (2001: VIII). “O hack é visto aqui

como uma postura (a atitude hack) e não apenas como uma actividade (a programação)”, comenta

Pascal Jollivet (2002).

Para efectuar a contraposição com a ética protestante característica do capitalismo, Pekka Himanen

distingue três faces da ética hacker: a ética do trabalho, a ética do dinheiro e a Nethic ou ética da

Rede. Na ética protestante do trabalho, este último é considerado como um fim em si próprio. “Não se

72

trata tanto de trabalhar para viver (o trabalho como meio para atingir um fim que, eventualmente, o

ultrapassará – a vida) mas de viver para trabalhar (a finalidade da vida é o trabalho)”, explica Jollivet.

Deste modo, “o não-trabalho é comparado à ociosidade que, em si mesma, não pode conduzir senão à

decadência moral”. Pekka Himanen acrescenta que “esta ideia específica da actividade como dever é

hoje em dia generalizada, se bem que pouco evidente, na realidade é a mais característica da ‘ética

social’ da cultura capitalista e é num certo sentido a sua base fundamental”94

É o prazer, o jogo e a dedicação a uma paixão que constituem para os hackers as suas principais

motivações. O testemunho de Eric Raymond é paradigmático: “É bastante divertido ser um hacker,

mas é um tipo de diversão que exige bastantes esforços”95. Como referiu Linus Torvalds na primeira

mensagem pública em que anunciou a criação do seu sistema operativo: “O Linux tem sido em grande

medida um hobby (mas um hobby sério, o melhor de todos)”96. As práticas produtivas dos hackers

colocam assim em causa a cisão ou oposição tradicional entre o trabalho necessariamente penoso e o

lazer, que permite o repouso ou a evasão. “Estas pessoas trabalham mesmo que não sejam obrigadas a

isso para subsistirem, sendo esse trabalho de uma natureza diferente da do herdado da ética

protestante”, afirma Jollivet. Para o hacker, já não importa tanto a distinção entre trabalho e lazer,

valorizando acima de tudo o interesse suscitado por cada actividade, assim como a creatividade que

uma ou outra implica e a paixão que desencadeia. Outro aspecto desta ética do trabalho é o facto de se

caracterizar por uma relação diferente com o tempo, a sua compartimentação e optimização: “Na

versão hacker do tempo flexível, as diferentes áreas da vida como o trabalho, a família, os amigos, os

hobbies, etc. são combinadas com menos rigidez de tal forma que o trabalho nem sempre ocupa o

centro.” (Himanen, 2001: 32-33)

O segundo pólo da ética hacker diz respeito ao dinheiro. Tal como já referimos, o objectivo da

actividade hacker não é o dinheiro. Pelo contrário, os valores que presidem à participação no trabalho

cooperativo voluntário de desenvolvimento de software livre são a paixão, a criatividade e a

socialização. “Para hackers como Torvalds, o factor organizacional de base na vida não é nem o

dinheiro, nem o trabalho, mas a paixão e o desejo de criar em conjunto qualquer coisa que é

socialmente valiosa”, explica Himanen (2001: 53). A realização da actividade produtiva que é a

programação não se baseia num valor moral (o trabalho como dever), nem sobre a necessidade de

subsistência, nem sobre o incentivo dos ganhos monetários.

A ausência de dependência salarial é “uma outra condição institucional fundamental” apontada por 94 Weber, Max (1904-1905), A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Citado por Himanen (2001: 8). 95 Raymond, Eric (1999), “How to Become a Hacker”, 233. Citado por Himanen (2001, 19).96 Torvalds, Linus (1992), mensagem publicada em comp.os.minix, 29 de Janeiro. Citado por Himanen (2001: 18).

73

Pascal Jollivet “que permite a eliminação do constrangimento da autoridade hierárquica tradicional

nos projectos hackers” e que Himanen não refere no seu livro. De acordo com aquele, esta condição é

actualmente um ponto importante quando se coloca a hipótese de empregar a ética hacker como

possível modelo social alternativo para além da actividade informática. Apesar deste modelo social e

produtivo de partilha e cooperação - que, segundo Himanen, aproxima a ética hacker do

funcionamento do mundo académico da investigação -, poder ser considerado por muitos como

marginal, situando-se à margem do sistema capitalista, o autor finlandês defende que o capitalismo

apenas pode funcionar se existirem esferas de actividade em que os comportamentos humanos se

afastam da lógica capitalista. Acrescenta ainda que essas esferas de actividade ‘fora da economia de

mercado’ constituem os motores indispensáveis ao funcionamento da economia capitalista. Numa

óptica semelhante à de Michael Hardt e Antonio Negri em Empire (2000), afirma:

O paradoxo está no centro do nosso tempo: de facto, se encararmos seriamente a dependência das companhias tecnológicas na investigação, poderemos dizer que o dilema ético com que as empresas da nova economia da informação são confrontadas é que o sucesso capitalista é apenas possível se os investigadores permanecerem ‘comunistas’. (no sentido da definição de Merton) (...) a Sociedade em Rede não é determinada apenas pelo capitalismo, mas a um nível quase igual pelo ‘comunismo científico' (Himanen, 2001: 60).

Na verdade, os cientistas e investigadores académicos serviram de inspiração ao modo de produção

cooperativa em rede dos hackers, ao valorizarem a livre circulação do conhecimento e o

reconhecimento pelos pares e ao adoptarem um cepticismo organizado – seguindo o conceito de

Robert Merton. Tanto os hackers como os cientistas acreditam que estes princípios se adaptam

melhor à produção colectiva de conhecimento. É neste sentido que Himanen afirma que “na era da

informação, a nova informação é criada de um modo mais eficiente deixando espaço para a diversão e

permitindo a possibilidade de trabalhar de acordo com o ritmo de cada um” (2001: 64). Jollivet

identifica aqui um paradoxo das economias capitalistas contemporâneas assentes no conhecimento e

na inovação permanente:

De um lado, baseiam-se na possibilidade do exercício da propriedade privada em relação aos novos conhecimentos (propriedade intelectual, patentes, direitos de autor) que permite a sua exploração comercial (concessão, licença, etc.). Mas ao mesmo tempo, essas economias dependem da criação permanente de conhecimentos que não podem difundir-se (pelo menos, de forma eficaz) senão através da sua livre circulação, da impossibilidade da sua apropriação privada, de acordo com um modelo não-comercial de tipo ‘académico’ (Jollivet, 2002).

74

4 – A Táctica e suas Metáforas Teóricas

Neste capítulo, iremos abordar a genealogia e as ligações teóricas do e com o conceito de táctica, pois

acreditamos que para compreender melhor os media tácticos é conveniente saber as definições, a

história e as metáforas contemporâneas do termo que deu origem a este movimento mediactivista.

Estas metáforas consistem em noções que são frequentemente empregues pelos teóricos e praticantes

dos media tácticos para designar as actividades relativas a este tipo de produção mediática.

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o termo táctica apresenta as seguintes

definições:

1. Parte da arte da guerra que trata como proceder durante um combate ou batalha.

2. Arte de dispor e manobrar as tropas no campo de batalha para conseguir o máximo de eficácia

durante um combate.

3. Método ou habilidade para sair-se bem em empreendimentos, disputas, situações de vida,

etc97.

Este dicionário refere ainda que a origem etimológica da palavra consiste no substantivo feminino

grego taktiké, o que quer dizer, habilidade, especialmente nas manobras do exército, derivado do

adjectivo grego taktikós, relativo a arranjo, organização, alinhamento, organização, hábil em

manobras. De acordo com a mesma fonte, o termo foi introduzido na língua portuguesa em 1789.

De acordo com a Enciclopédia Britannica online, a palavra “tem origem no grego taxis, que significa

ordem, arranjo ou disposição – incluindo o tipo de disposição que as formações armadas utilizavam

para entrar e combater em batalhas. A partir deste termo, o historiador grego Xenofonte derivou o

termo tactica, a arte de dispor os soldados em fileiras”98.

97 “táctica” in Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, VIº Tomo (2003), Lisboa, Círculo de Leitores. 98 "tactics" in Encyclopædia Britannica, retirado de Encyclopædia Britannica Online.

<http://0-www.search.eb.com.library.uor.edu/eb/article-52996> (acedido a 6 de Novembro de 2005).

75

4.1 – A Táctica e a Estratégia em Michel de Certeau

Ao conceberem a sua teoria dos media tácticos, David Garcia e Geert Lovink inspiraram-se na

distinção entre tácticas e estratégias feita por Michel de Certeau em Arts du Faire (1990 [1980]), o

primeiro volume dos dois que compôem L’Invention du Quotidien. Em “The ABC of Tactical Media”

(1997), referem que Certeau “analizou a cultura popular 'não como um domínio de textos ou

artefactos, mas como uma rede de práticas ou operações realizadas em estruturas textuais ou com a

forma de texto’”. O seu objectivo consistia em “saber de que modo é que nós, como consumidores,

empregamos os textos e os artefactos que nos rodeiam”. Na perspectiva de Certeau, o processo de

consumo corresponde a um conjunto de tácticas através do qual o fraco faz uso do forte. O

consumidor revela-se muito mais criativo e rebelde do que até então se tinha imaginado. Na sua

perspectiva, o utilizador rebelde – termo que prefere a consumidor – assume um papel táctico, ao

passo que o produtor presunçoso – categoria em que inclui os autores, educadores, curadores e

revolucionários – desempenha uma função estratégica.

No seu estudo da produção e do consumo cultural, Certeau defende o alargamento do âmbito de

investigação da cultura popular para além das análises das imagens (representações) e do

comportamento dos consumidores de forma a estudar os usos que os consumidores dão aos produtos

culturais. De uma forma optimista, acredita na capacidade de criarem e apropriarem autonomamente

significados nas suas próprias vidas. Dando como exemplo a televisão, escreve:

Assim, uma vez analisadas as imagens emitidas pela televisão e o tempo que se passa em frente ao televisor, resta ainda perguntar o que é que o consumidor faz com essas imagens e durante essas horas. Os 500 mil franceses que compram a revista Information-Santé, os clientes do supermercado, os praticantes do espaço urbano, os consumidores de histórias e legendas jornalísticas – o que fazem eles do que ‘absorveram’, receberam e pagaram por? O que fazem eles com isso? (Certeau, 1990 [1980]: 52-53).

Em Arts de Faire, Certeau apresenta um relato alternativo à micro-física do poder teorizada por

Michel Foucault cinco anos antes em Survelleir et Punir. Para Foucault, este novo ‘panóptico’,

discreto e invísivel, mas generalizado, era um dos elementos característicos da sociedade tecnocrática

contemporãnea. O projecto de Certeau consiste em revelar uma rede de anti-disciplina, isto é, uma

categoria de práticas improvisadas, minúsculas, efémeras e em grande parte invísiveis, ligadas à vida

quotidiana. Este conjunto de processos heterogéneos existe fora do discurso, não tem nome próprio e

não pertence a nenhuma ideologia. Funcionam em pemanente resistência contra o regime panóptico

do poder. Neste sentido, escreve;

Se é verdade que por toda a parte se estende e se fixa a rede de “vigilância”, é ainda mais urgente descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que

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procedimentos populares (também “minúsculos” e quotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com eles a não ser para alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a contrapartida por parte dos consumidores (ou “dominados”?), dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política. (Certeau, 1990 [1980]: XXXIX-XL)

De forma a responder à teorização unidireccional dos mecanismos discretos do poder panóptico

produzida por Foucault e a analizar as características da racionalidade tecnocrática, Certeau efectua a

distinção entre tácticas e estratégias. As estratégias, que dizem respeito aos Estados, ao poder

económico e à racionalidade científica, formam relações de força relativas a um lugar que pode ser

circunscrito a um próprio. Baseiam-se num sentido claro de fronteira, isto é, uma separação entre o

lugar próprio do sujeito e um exterior, definido como inimigo. Graham Meikle refere, como exemplo,

que “uma empresa que define o seu território e utiliza-o como base para as relações com os seus

clientes, privilegia o lugar face ao tempo”. Segundo ele, “trata-se de reclamar um bocado de terra e

expandi-lo, utilizando-o para criar e condicionar relações com outros” (2002: 121).

Por seu lado, as tácticas nunca têm um território próprio, nem uma fronteira. O seu único lugar é

apenas o do outro, insinuando-se a si próprias aí, sem o privilégio da separação. Não são um ataque

frontal contra um poder externo, mas sim infiltrações temporárias a partir do interior do território

inimigo. Consistem em momentos de oportunidade tornados possíveis à medida que surgem fendas na

evolução do lugar estratégico. Dado não terem uma morada fixa ou modo permanente, nunca podem

capitalizar as suas vantagens ou guardar as suas conquistas. Tal como refere Certeau, “o fraco deve

incessantemente tirar partido de forças que lhe são estranhas” (1990 [1980]: XLVI).

Centrando-se no poder da leitura enquanto consumo de signos, de transformar a submissão em

subversão, Certeau adianta ainda que a táctica “opera através de acções isoladas, golpe por golpe. Tira

vantagem das ‘oportunidades’ e delas depende, sem base para armazenar os seus ganhos, aumentar a

sua propriedade e prevenir ataques. Tem que utilizar, de um modo vigilante, as falhas que conjunturas

particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Aí cria surpresas. Consegue

estar onde menos se espera. É astúcia” (1990 [1980]: 61). Conclui referindo: “Em suma, a táctica é a

arte do fraco.”

Para formular a sua distinção entre táctica e estratégia, Certeau baseia-se nos Princípios da Guerra do

teórico prussiano da guerra Carl Von Clausewitz da primeira metade do século XIX, redigidos em

1812. Joanne Richardson refere em “The Language of Tactical Media” que, para Clausewitz, “a

táctica é o modo de comandar cada combate em separado, ao passo que a estratégia é o meio de

combinar combates individuais para alcançar o objectivo geral da guerra. A táctica é o desdobramento

em linha de partes individuais, a estratégia consiste no controlo de todo o exército”. Segundo esta

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autora, esta distinção é muito diferente da oposição feita por Certeau entre modos de combate. “A

táctica de Certeau assemelha-se mais ao que Clausewitz chamou de estratagema – um movimento

indirecto e dissimulado que não ilude mas leva o inimigo a cometer erros de interpretação”, afirma.

Richardson refere que este conceito é análogo ao que Sun Tzu denominou de “guerra de manobra” –

“um artifício de distracção empreendido por forças fracas contra um opositor forte e bem organizado,

uma acção inesperada que atrai o inimigo, levando-o a cometer erros e, eventualmente, a auto-

destruir-se”.

Salienta ainda que “quer directa, quer dissimuladamente, de modo ofensivo ou defensivo,

empregando a força dos números ou o artifício da distracção, tanto a táctica como a estratégia

pertencem à arte da guerra e possuem os mesmos objectivos: conquistar o poder armado do inimigo,

tomar posse dos seus bens e outras fontes de poderio e ganhar a opinião pública mediante a destruição

da credibilidade do inimigo”.

78

4.2 – A Táctica enquanto Détournement

Na medida em que foi formulada por Certeau, enquanto forma de subverter o espectáculo da

informação que evita empregar as mesmas ferramentas (estratégias) contra o seu oponente, a táctica

recicla a ideia de Guy Debord e dos Situacionistas de détournement. Este tipo de práticas consiste na

apropriação das imagens e das palavras produzidas pelo espectáculo de massas, submetendo-as a um

desvio inexperado de sentido, empregando-as de um modo a que não tinham sido originalmente

planeada ao efectuar combinações surpreendentes com elas, ”justaposições heréticas”, como as

caracteriza Joanne Richardson.

Considerados como os inspiradores teóricos dos levantamentos estudantis de Maio de 68 em Paris, os

Situacionistas eram originalmente apenas oito artistas e escritores, na sua maior parte europeus, que

se juntaram em Julho de 1957 na pequena cidade italiana de Cosio d’Arroscia sob a denominação de

Internacional Situacionista (IS). Este movimento que irá marcar a vanguarda artística dos anos 50 e

60, surge graças a uma aliança entre a Internacional Letrista, um grupo de estudantes parisienses

formado em 1952 do qual Debord fazia parte e o Movimento Internacional por uma Bauhaus

Imaginista (MIBI).

Inicialmente, a IS continuou o trabalho artístico da Internacional Letrista, mas após uma cisão entre

os seus membros ocorrida em 1962, passou a ser um grupo de teóricos políticos e agitadores. As suas

raízes situam-se numa tradição de anti-arte utópica que remonta ao Futurismo, Dada e Surrealismo.

Ao longo da sua história o movimento contou com cerca de 70 membros mas devido a frequentes

expulsões o número de elementos em qualquer momento foi sempre de 10 a 20.

Desde sempre, a IS esteve associada ao escândalo e à subversão. Este espírito está bem patente logo

no seu primeiro texto fundador, onde os seus membros referem: “Pensamos, acima de tudo, que é

preciso mudar o mundo.” As suas teorias políticas eram uma combinação do marxismo com o

anarquismo. No entanto, condenavam tanto o comunismo como o anarquismo pelos seus fracassos

histórico (Henriques, 1997). Criticavam a sociedade consumista moderna, apelidando-a de sociedade

do espectáculo por alienar as pessoas e transformar as suas vidas numa procura superficial e

incessante de novas mercadorias. Para Debord, o líder não designado da IS, o espectáculo é o espaço

cultural comercializado e integrado em que “tudo o que era directamente vivido se afastou numa

representação” (1991 [1967]: 9). A vida real foi substituída por experiências pré-concebidas e

acontecimentos criados pelos media. A imediaticidade deu lugar à mediaticidade.

A IS terminou em 1972, quando apenas restavam dois membros. Durante os seus 15 anos de

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existência, o seu jornal Internationale Situationiste publicou 12 números. Debord foi o único

elemento a manter-se no movimento ao longo deste tempo. Apesar de ter sido esquecida por quase

toda a gente durante as décadas de 70 e de 80, as suas ideias, teorias e práticas foram retomadas nos

anos 90, por colectivos de media tácticos que exercem Cultural Jamming como o grupo canadiano

Adbusters. Os Culture Jammers reciclam o détournement situacionista para subverter as mensagens

publicitárias, mediante a alteração de placards e da ordem dos produtos num supermercado, ou para

apropriar as ruas para a realização de festas.

No seu livro Marcas de Baton (1999 [1989]), o crítico cultural Greil Marcus dá conta de uma

“história secreta do século XX” que liga os Situacionistas ao Punk dos Sex Pistols. Esta herança é

marcada por uma identidade rebelde que rejeita as convenções sociais, a ordem dominante e a

vulgaridade. Na sua opinião, os Sex Pistols de Johnny Rotten comungam da mesma filosofia de

Debord e companheiros. Anarchy in the UK exprime de uma forma poética cruel as ideias dos

Situacionistas. De facto, o próprio Malcom McLaren, empresário e criador da banda, tinha sido nos

finais dos anos 60 membro de uma ramificação londrina da IS chamada King Mob.

“Os Situacionistas declararam-se comprometidos com uma vida de permanente novidade”, escreve

Kalle Lasn em Culture Jam (1999: 101). Estavam apenas interessados na liberdade, justificando a

utilização de quaisquer meios para alcançá-la, “com consequências que não se distinguem do

assassínio, do roubo, do saque, do hooliganismo, da destruição, fenómenos que, à falta de melhor, os

situacionistas estavam quase sempre prontos a abraçar como percursores da revolução”, salienta Greil

Marcus (1999 [1989]: 63). Defendiam que era necessário encontrar uma forma de expressão para a

creatividade das pessoas comuns. Eram contra as burocracias, as hierarquias e as ideologias que

constrangiam a espontaneidade e o livre arbítrio. Para os Situacionistas, toda a gente é um criador de

situações, um artista de performance, sendo esta performance a sua própria vida. Para promover uma

vida espontânea, sugeriram vários actos subversivos, como deitar abaixo as igrejas para permitir que

as crianças tivessem espaço para brincar ou colocar interruptores nos candeeiros de rua de modo a que

a iluminação estivesse sob o controle público (Marcus, 1999 [1989]: 484).

O tédio, a forma moderna de controlo, era um dos principais inimigos dos Situacionistas. Para este

movimento, “o tédio é sempre contra-revolucionário”. Segundo Marcus, “esta frase é tipíca do estilo

situacionista e da sua expressão, um paradoxo disfarçado de retórica antiga e linguagem comum,

aparentemente desligada da sua lógica mas passando de afirmação declarativa a interrogação à

medida que se ia ouvindo: que quer isso dizer?” Na opinião de Debord e companheiros, o tempo livre

foi mercantilizado sob a forma de tempo de lazer.

80

O détournement situa-se aqui como uma das principais práticas artísticas dos Situacionistas,

funcionando como um acto de negação do espectáculo que acaba por se transformar numa afirmação

do seu próprio poder, ao retirar uma imagem, artefacto ou texto do seu contexto original e aproveitá-

los em novos contextos criados pela imaginação de cada um. Daqui resulta uma síntese que chama

atenção quer para o contexto anterior, quer para o novo resultado. Em sentido literal, detournement

quer dizer “desvio”, mas de forma a respeitar o seu significado preciso, decidimos não traduzir o

termo francês. Conforme explica a académica de estudos culturais Sadie Plant em The Most Radical

Gesture (1992), citada por Meikle, “a tradução mais próxima em inglês de détournement situa-se

entre diversion (‘diversão’) e subversion (‘subversão’). Trata-se de reclamar o sentido perdido, uma

forma de desconstruir o espectáculo. É plagiarístico, dado que os seus materiais são aqueles que já se

encontram dentro do espectáculo, e subversivo, uma vez que as suas tácticas são aquelas da ‘reversão

da perspectiva’, um questionamento do siginificado dirigido ao contexto em que em que este surge”

(2002: 212n60). Num texto de 1956 intitulado “Methods of Détournement”, Debord e Gil J. Wolman,

outro letrista, definem o détournement nestes termos:

Quando se juntam dois objectos, não importa quão distantes sejam os seus contextos originais um do outro, forma-se sempre uma relação (...) A interferência mútua de dois mundos de sensações, ou a reunião de duas expressões independentes, substitui os elementos originais e produz uma organização sintética de maior eficácia. Pode-se utilizar qualquer coisa (...) Em última instância, todo e qualquer signo é susceptível de ser convertido noutra coisa, mesmo até no seu oposto (Debord e Wolman, 1956).

Esta forma de arte subversiva era já empregue pela Internacional Letrista no início da década de 50.

Um dos métodos mais básicos passava por escrever novas falas para os balões de banda desenhada

dos jornais ou inserir-lhes palavras de antigo pensadores, para posterior publicação em revistas de

pequena circulação. Desta forma, de acordo com Marcus, “insistia-se na ‘desvalorização da arte’ e na

‘renovação’ das formas do discurso social, de uma ‘comunicação’ que contivesse a sua própria crítica

e de uma técnica que não podia nunca mistificar, pois a sua própria forma era já desmistificação”

(1999 [1989]: 203), O objectivo era “fazer com que as palavras dos inimigos se virassem contra si

próprios, obrigando o novo discurso crítico a ser enunciado pelos supostos guardiãos do bem e da

ordem” (1999 [1989]: 214), desvalorizando assim o valor mercantil do espectáculo. O mesmo autor

refere ainda que o détournement era “uma política de subversão quotidiana que devia cortar cerce as

cordas vocais de todo o discurso de poder e os seus símbolos sociais, assim puxados para fora do seu

espelho reflector, palavras e imagens desviadas para contextos familiares a toda a gente e tornando-se,

por esse gesto, explosivas”.

Significando, nas palavras de Greil Marcus “a aplicação da conexão reversível do mundo a todo e

qualquer sujeito ou objecto enunciado”, o détournement afirmava-se como “uma forma de lutar contra

o tédio e de o criticar” (1999 [1989]: 429). Na sua opinião, era “um discurso de ruído, criado a partir

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de ‘elementos pré-fabricados’” (1999 [1989]: 472).

Para além da alteração dos textos dos balões de banda desenhada, os Situacionistas ficaram famosos

por outros actos de détournement na vida real. O primeiro e mais espectacular data ainda do período

pré-Internacional Letrista, em 1950, quando um dos seus futuros elementos, Michel Mourre vestiu a

roupa de um monge dominicano raptado por outros três Letristas e subiu ao altar da Catedral de Notre

Dame para dar um sermão perante milhares de pessoas acusando a Igreja Católica do “desvio fatal das

nossas forças vivas na direcção do vazio celestial”, acabando por proclamar solenemente que “Deus

morreu” (Marcus, 1999 [1989]: 331). A IS também alterou a banda-sonora de filmes pornográficos e

de karate, de modo a reflectir a luta contra a burocracia. Já durante o Maio de 68, trabalhadores

grevistas empregaram a imagem mediática de James Bond com um arma para um cartaz em que se

anunciavam a si próprios como o novo espectro a atormentar o mundo.

Joanne Richardson salienta em “The Language of Tactical Media”, que, “enquanto prática, o

detournement reflectia uma contradição entre o reconhecimento de que lutar no mesmo terreno que o

inimigo é uma armadilha sedutora mas inevitável, e o desejo de ocupar as instalações do poder sob

um novo nome”. Esta contradição, acrescenta, “cristalizou-se na metáfora do sequestro”, na medida

em que “detourne foi um verbo frequentemente utilizado para descrever o sequestro de um avião”.

Segundo Richardson, os Situacionistas jogaram com esta conotação ao apelidarem as suas produções

de sequestros – de filmes, da política e dos desejos quotidianos. Na sua opinião, o terrorista enquanto

equivalente simbólico da subversão esteve sempre relacionado de alguma forma com estas

associações.

82

4.3 – A Táctica enquanto Rizoma

As ideias dos teóricos franceses Gilles Deleuze e Felix Guattari introduzidas em Mille Plateaux

(1980), o segundo volume de Capitalisme et Schizofrénie99 influenciaram ao longo dos anos 90 um

grande número de autores dedicados à teoria da comunicação e à cibercultura. Rizoma e nomadologia

são dois desses conceitos bases que foram empregues sobretudo por teóricos do hipertexto como

George Landow e Stuart Moulthrop. No entanto, tal como refere Stefan Wray (1998b), estas ideias

são também bastante úteis para reflectir sobre as novas redes de resistência que actuam sobretudo na

Internet, inserindo-se na categoria dos media tácticos, como o movimento Zapatista e o Electronic

Disturbance Theater, um colectivo de activistas a favor da causa Zapatista que efectua acções de

desobediência civil electrónica.

O conceito de Rizoma é abordado pela primeira vez por Deleuze e Guattari em 1976, num livro

intitulado Rhizome. Introduction. Esta obra é incorporada quatro anos mais tarde em Mille Plateaux,

no primeiro capítulo. No capítulo XII desta obra, intitulado Traité de Nomadologie, encontra-se a

descrição dos termos nómada e nomadologia. Apesar de nos últimos anos o modelo de rizoma e outro

conceito associado a este, nomadologia, ter sido bastante associado ao ciberespaço e às redes

informáticas - chegando mesmo um autor a referir que “a Internet é um rizoma”100 –, a verdade é que

na altura em que os dois autores franceses introduziram estas ideias, a revolução da computação

pessoal ainda não tinha começado e a Internet chamava-se ainda ARPAnet, estando reservada ao

exército e a alguns cientistas anglo-saxónicos. Esta associação estabelecida entre a Internet e a forma

do rizoma deriva, segundo Joanne Richardson (2005), de se pressupor que a Rede "dissolve as antigas

hierarquias de comando", dado que permite a ligação de tudo com tudo, "não tendo começo, nem fim,

nem limites, mudando de dimensão e alcance com cada nova ligação".

Deleuze e Guattari estabelecem uma distinção entre rizoma e hierarquia, forma estrutural

representada pela arborescência. O rizoma é “absolutamente diferente das raízes e das radículas. Os

bolbos e os tubérculos são rizomas” (1980: 13). Em seguida, enumeram uma série de princípios

rizomáticos. Os primeiros dois são os princípios de conexão e de heterogeneidade, de acordo com os

quais “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado com outro ponto e deve sê-lo”. A árvore ou a

raíz, muito pelo contrário, fixam um ponto, uma ordem. Como refere Stefan Wray, “a rede ideal ou

perfeita consiste num sistema deste tipo, de conexão máxima entre os pontos” (Wray, 1998b). Em

relação à heterogeneidade, os dois teóricos franceses notam que “num rizoma cada traço não remete

necessariamente para um traço linguístico: elos de cadeias semióticas de toda a natureza estão

99 Sendo o primeiro volume L’Anti Oedipe, publicado em 1972. 100 Hamman, Robin B. (1996), “Rhizome@Internet”, 28 de Maio. Disponível em

http://www.socio.demon.co.uk/rhizome.html (acedido a 6 de Novembro de 2005).

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conectados a modos de codificação muitos diversos, elos de cadeias biológicas, políticas, económicas,

etc., pondo em jogo não apenas regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de

coisas” (Deluze e Guattari, 1980: 13).

O terceiro é o princípio da multiplicidade. Um sistema rizomático é composto por uma multiplicidade

de linhas e conexões: “É apenas quando o múltiplo é efectivamente tratado como substantivo, como

multiplicidade, que deixa de ter qualquer relação com o Um como sujeito ou objecto, como realidade

natural ou espiritual, como imagem e como mundo. As multiplicidades são rizomáticas e denunciam

as pseudo-multiplicidades arborescentes”. Não tendo nem sujeito nem objecto, uma multiplicidade

apenas “possui determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que ela mude de

natureza” pois as leis de combinação crescem com a multiplicidade”. Mais ainda, “não há pontos ou

posições num rizoma, como se encontram numa estrutura, numa árvore ou numa raíz. Só há linhas”.

Para Deleuze e Guattari, as multiplicidades definem-se pelo exterior, isto é, “pela linha abstracta,

linha de fuga ou de desterritorialização, segundo a qual elas mudam de natureza ao conectarem-se

com outras” (idem: 14-16).

O quarto é o princípio da ruptura a-significante, em oposição aos cortes excessivamente significantes

que separam ou atravessam as estruturas: “Um rizoma pode ser rompido, quebrado num lugar

qualquer, mas ele recomeça seguindo esta ou aquela das suas linhas antigas ou em novas linhas”.

Assim, como explica Stefan Wray, “numa rede rizomática, os movimentos e fluxos podem ser

reencaminhados quando ocorre uma ruptura. A secção danificada pode-se regenerar a si própria e

continuar a crescer, formando novas linhas e caminhos” (Wray, 1998b). Deleuze e Guattari

completam este ponto afirmando: “Verifica-se uma ruptura no rizoma sempre que as linhas

segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não

cessam de remeter umas para as outras” (Deleuze e Guattari, 1980: 16).

O quinto e o sexto princípio são os de cartografia e de decalcomania. “Um rizoma não está sujeito a

nenhum modelo estrutural ou generativo. É estranho a qualquer ideia de eixo genético ou estrutura

profunda. Um eixo genético é como uma unidade axial objectiva sobre a qual se organizam estádios

sucessivos; uma estrutura profunda é antes como uma sequência de base decomponível em

constituintes imediatos, enquanto a unidade do produto passa numa outra dimensão transformacional

e subjectiva”. Deste modo, não se sai do modelo da árvore ou da raíz, axial ou fasciculada. Estamos

assim perante “princípios de ‘decalque’, reprodutíveis ao infinito. Toda a lógica da árvore é uma

lógica de decalque e de reprodução (...) Muito diferente é o rizoma, que é mapa e não decalque (...) O

mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, derrubável, susceptível de

receber constantemente modificações”. Nele descobrimos uma das mais importantes características

84

do rizoma: “ele é sempre de múltiplas entradas” (idem: 19-20). Nesta medida, Stefan Wray compara o

mapa ao ciberespaço, dado que este último também possui múltiplas portas de entrada. O teórico e

activista norte-americano afirma ainda que “o mapa está orientado para a experimentação e a

adaptação. Observamos este fenómeno em sistemas de redes. Invenção constante. As redes

expandem-se e contraem-se, emergem e recedem” (Wray, 1998b).

O modelo arborescente de pensamento, oposto por Deleuze e Guattari ao modelo rizomático, refere-

se à epistemologia que serve de base a todo o pensamento ocidental, desde a botânica às ciências da

informação, passando pela teologia e a filosofia. “O pensamento arborescente é linear, hierárquico,

sedentário e cheio de segmentação e estriamento”, comenta Wray, acrescentado que “é a filosofia do

Estado (...), a força por detrás das principais ciências”, sendo “representado pela estrutura em forma

de árvore da genealogia, ramos que se subdividem permanentemente em menos categorias e de menor

dimensão” (idem). O mesmo autor contrapõe ainda o carácter vertical e inflexível do pensamento

arborescente ao carácter não-linear, anárquico e nómada do pensamento rizomático. “Os rizomas

criam um espaço liso e rompem os limites impostos pelas linhas verticais de hierarquias e ordem”,

afirma. Além disso, “o pensamento rizomático é multiplicativo, movendo-se em muitas direcções e

conectado a muitas outras linhas de pensar, agir e ser (...) Desterritorializa os espaços estriados e as

formas de ser arborescentes” (ibidem). Segundo Deleuze e Guattari, “um rizoma está

incessantemente a estabelecer conexões entre cadeias semióticas, organizações de poder e

circunstâncias relativas às artes, ciências e lutas sociais” (1980: 14).

Sumarizando as principais características do rizoma, os dois teóricos franceses escrevem:

· Ao contrário das árvores ou das suas raízes, o rizoma conecta um ponto com qualquer outro

ponto qualquer.

· O rizoma não se deixa remeter nem para o Um nem para o múltiplo. Nâo é feito de unidades

mas de dimensões, ou antes, de dimensões em movimento.

· Ao contrário de uma estrutura, que se define por um conjunto de pontos e posições, de

relações binárias entre esses pontos e de relações biunívocas entre essas posições, o rizoma é

apenas feito de linhas.

· Ao contrário da árvore, o rizoma não é um objecto de reprodução.

· O rizoma é uma anti-genealogia. É uma memória de curta duração ou antimemória.

· O rizoma procede por variação, expansão, conquista, captura, picada.

· O rizoma é um sistema acentrado, não-hierárquico e não-significante, sem general, sem

memória organizadora ou autómato central.

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Para além do rizoma, uma outra ideia importante contida em Mille Plateaux é a de nomadologia e

pensamento nómada. Neste sentido, os caminhos e linhas de fuga constituem estruturas em que o

movimento nómada ocorre. Mas existem outras relações entre os conceitos de rizoma e nómada.

Tendo em conta que o rizoma é uma forma de pensamento nómada oposto ao pensamento do Estado

que tenta disciplinar o movimento rizomático, Wray afirma que “Deleuze e Guattari consideram o

pensamento nómada como sendo uma ciência ou linguagem menor que é constantemente colonizada

pela ciência principal, o Estado arborescente, representando por filósofos e cientistas que actuam em

sistemas fechados” (1998b). Estes sistemas fechados são espaços segmentados, compartimentalizados

e separados em categorias, classificações, tipos e géneros. Pelo contrário, a nomadologia funciona em

sistemas abertos. Em Mille Plateaux, é atribuído aos nómadas a criação da máquina da guerra que

existe fora do aparelho do Estado: “A máquina de guerra é a invenção dos nomádas (na medida em

que é exterior ao aparelho do Estado e distinta da instituição militar” (Deleuze e Guattari, 1980: 471).

Existe aqui uma oposição entre os espaços lisos ou abertos da nomadologia e os espaços estriados ou

‘quadriculados’ do Estado. Para Wray, “é dentro destes espaços lisos, estas zonas rizomáticas, que o

nómada actua, ascendendo e descendendo, emergindo e recuando. O nómada defronta o Estado

estriado e as suas formações rígidas de batalha”. Actualizando o pensamento crítico de Deleuze e

Guattari para a era das redes, acrescenta que “hoje, os guerreiros resistentes da Internet actuam num

terreno semelhante. Os espaços desterritorializados do ciberespaço são zonas nómadas-rizomáticas

lisas”. No final do “Traité de Nomadologie”, Deleuze e Guattari abordam os conhecimentos dos

primeiros nómadas em metalurgia: “A metalurgia constitui em si própria um fluxo necessariamente

confluente com o nomadismo” (idem: 502). O trabalho com o metal mantém-se para os nómadas pós-

modernos de hoje: “A máquina de guerra nómada é a forma de expressão, da qual a metalurgia

itinerante é a forma correlativa do conteúdo (1980: 518). Só que hoje, ressalta Wray. “o conteúdo é o

metal do computador, os fios, as linhas telefónicas. Os nómadas de hoje trabalham e inventam formas

de operar a máquina de guerra contra os aparelhos do Estado na Net” (1998b).

Mas esta visão idílica das possibilidades emancipatórias da Internet choca com o facto de que "o

universo rizomático (...) é também um elemento essencial do capitalismo global", uma vez que a

empresa rizomática é nómada e flexível, estabelecendo permanentemente novas ligações com outras

empresas, alerta Richardson (2005). A autora considera que esta visão ingénua ignora o facto de o

rizoma ser ao mesmo tempo a lógica do opressor e "a promessa de libertação e de um outro mundo

possível" (Richardson, 2005), podendo o seu significado dependendo do contexto em que se inserem.

86

4.4 – A Táctica enquanto Zona Autónoma Temporária (TAZ)

Partindo do principio de que mesmo as ditaduras mais radicais têm de conviver com pontos onde os

seus poderes se dissolvem e são questionados, que há sempre lugares, grupos e pessoas que não

aceitam subordinar-se, o filósofo anarquista norte-americano Peter Lamborn Wilson tem vindo desde

o final dos anos 80 a analisar quais os motivos porque esses “núcleos de caos” se renovam e se

transformam na História da Humanidade, nunca chegando a desaparecer por mais que sejam

derrotados e incorporados pelos Estados em troca de uma suposta estabilidade. Escrevendo com o

pseudónimo de Hakim Bey, ele postula a possibilidade e até a existência de experiências temporárias

de subversão, “enclaves livres” ou “ilhas na rede”, tomando de empréstimo o título de um livro do

autor de ficção científica cyberpunk Bruce Sterling, Islands in the Net, de 1988.

Especialista em filosofia sufi, este autor-mistério que distribui livremente todos os seus textos em

fanzines, sites da Web ou listas de correio electrónico, designa esse tipo de colectivos nómadas de

Zonas Autónomas Temporárias (Temporary Autonomous Zones - TAZ) (2001 [1991]), conceito que,

refere Eduardo Fernandes no ensaio “A Política e o Caos” (2003), “nos faz retomar a ideia de

impermanência”. De acordo com este autor brasileiro, “Bey é um autor que faz inúmeras sínteses (...)

Articula ideias dos filósofos Gilles Deleuze, Felix Guattari, Nietzsche, dos Situacionistas e do Provos

(outro grupo europeu que influenciou as manifestações de Maio de 68 na França e a contra-cultura),

do surrealismo, dadaísmo, sufismo, Burroughs e da geração Beat”, ou seja, “quase tudo o que se

produziu em termos de ‘ideias subversivas nos últimos dois séculos”.

Na base da teoria da TAZ de Hakim Bey está a crítica da ideia de revolução. Retomando o

pensamento do anarquista do século XIX Max Stirner, considera que “a tomada do Estado conduz

geralmente à instauração de novas ditaduras e outras relações baseadas nos mesmos princípios:

violência, obediência, subordinação e vigilância” (Fernandes, 2003). Enquanto que as revoluções

querem prosperar, isto é, durar, os levantamentos e insurreições são considerados pelos historiadores

como revoluções fracassadas, porque após algum tempo de resistência são derrotados. Influenciado

por Stirner, Bey questiona-se sobre o que é que aconteceu durante o período em que a insurreição

durou, que tipo de intensidades foram vividas aí. Na opinião de Bey, estas ‘zonas libertadas’ – festas,

raves, comunas, comunidades, jantares entre amigos, livre-associações, conferências anarquistas, os

ajuntamentos tribais dos anos 60, os festivais, os círculos de gays (Bey, 2001 [1991]: 409) – devem

ser valorizadas. Não se trata de criar um novo poder, mas de inventar espaços de libertação que

podem durar desde uma noite até gerações inteiras.

A Zona Autónoma Temporária abrange assim lugares no espaço, no tempo e nas ideias que escapam

87

aos poderes do Estado, das empresas capitalistas e ao império do Espectáculo e da Simulação. Muitas

das vezes, são invisíveis a estes poderes, embora apenas durante um determinado tempo e de uma

maneira nunca absoluta, uma vez que não existe liberdade total. São espaços em que as pessoas

desenvolvem auto-governos e expandem desejos múltiplos. Para Bey, a TAZ representa uma

alternativa aos embates directos com os poderes entrincheirados – encontros estes que, na melhor das

hipóteses conduzem apenas ao martírio. Eis como o autor define o conceito da TAZ nas suas próprias

palavras:

A TAZ é como um levantamento que não entra directamente em confronto com o Estado, uma operação de guerrilha que liberta uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e de seguida dissolve-se a si própria para se re-fazer noutro lugar e noutro momento, antes que o Estado a esmague. Uma vez que o Estado se preocupa principalmente com a Simulação, e não com a substância, a TAZ pode ‘ocupar’ clandestinamente estas áreas e realizar os seus propósitos festivos relativamente em paz durante bastante tempo. Talvez algumas pequenas TAZs tenham durado gerações, porque permaneceram despercebidas, como certos enclaves rurais – dado que nunca se intersectaram com o Espectáculo, nunca emergiram para fora daquela vida real que é invisível para os agentes da Simulação (Bey, 2001 [1991]: 404).

Por aqui se pode confirmar as influências do pensamento deste autor norte-americano no movimento

actual dos media tácticos. Nomadismo, práticas de guerrilha, subversão, “clandestinidade” e rejeição

das ideologias e de líderes são alguns dos elementos comuns entre uma TAZ e uma iniciativa

mediática táctica. Bey identifica várias TAZs ao longo da história, como os primeiros momentos dos

manifestantes do Maio de 68 em França e outras inúmeras insurreições que propocionaram

experiências de pico. Mas o autor destaca sobretudo como protótipo das TAZs aquilo a que designa

de ‘utopias piratas’ do século XVIII, ilhas habitadas por corsários e piratas – como foi o caso de Salé

e Libertatia:

Os piratas e corsários do século XVIII montaram uma ‘rede de informação’ que se estendia sobre o globo: mesmo sendo primitiva e dedicada sobretudo a negócios cruéis, a rede funcionava de forma admirável. Esta rede era formada por ilhas, esconderíjios remotos onde os navios podiam ser abastecidos de água e comida, sendo os bens fruto de saques trocados por artigos de luxo e de primeira necessidade. Algumas destas ilhas hospedavam ‘comunidades intencionais’, mini-sociedades que viviam conscientemente fora da lei e que estavam determinadas a manterem-se assim, ainda que fosse apenas durante um período curto mas alegre (idem: 401).

De acordo com Eduardo Fernandes, para Bey, “o problema não é ‘libertar-se’, mas ‘liberar-se’. Não é

preciso esperar que o mundo mude. Nem agir segundo um planeamento abstracto para que ele atinja

um sentido que seria ‘seguro’ e ‘justo’”. O que está em causa é o Caos, a criação permanente: "Você

pediu uma utopia prática e possível. Aqui está ela. Um esquema que poderíamos adoptar amanhã, a

não ser pelo facto de que todos os seus aspectos violam certas leis, revelam alguns tabus absolutos da

sociedade norte-americana, ameaçam a própria vida social, etc. Este é o nosso desejo verdadeiro e

para realizá-lo precisamos contemplar não apenas uma vida de arte pura, mas também o crime puro, a

88

insurreição pura.(...) O CAOS não se importa nem um pouco com o futuro da civilização" (Bey, 1991

[1985]).

Como se pode ver, no pensamento de Hakim Bey não existem paraísos nem a previsão de um futuro

estável e domesticado. A sua TAZ não pretende ser democrática nem politicamente correcta, recusa a

institucionalidade, dispõe-se sempre a correr riscos. Uma vez que é encarada na óptica do poder como

um crime, um tabu ou, pelo menos, um perigo a ser vigiado, a TAZ é também uma táctica de

desaparecimento, que quer permanecer invísivel, inclassificada e incontrolável. Para Bey, se a

revolução é geralmente conservadora, os interesses que orientam a revolta dirária são radicalmente

diferentes. Em lugar do governo, dos seus mecanismos e instituições, surge a vivência intensa do

quotidiano: “comida boa, não poluída e natural, acesso a alimentos, substâncias e experiências ilegais,

fazer sexo com quem desejar, poder viajar pelo mundo sem ser limitado por nacionalidades, sem

pertenças absolutas a culturas ou Estados” (Fernandes, 2003).

A importância concedida por Bey à experiência do dia-a-dia é herdada de Henri Lefebvre e dos

Situacionistas, sobretudo de Raoul Vaneigem. No seu pensamento sente-se também alguma

semelhança com a teoria de resistência à cultura popular adoptada por Certeau. Mas este pensador

norte-americano inspira-se sobretudo no conceito de ‘máquina de guerra’ dos filósofos franceses

Gilles Deleuze e Felix Guattari ao propor o termo nomadismo psíquico ou cosmopolitismo

desenraízado.

Ao contrário do que se costuma pensar, “o nómada não é um migrante – que vai de um ponto

determinado a outro – ou um cigano – que está sempre a mudar de espaço -, mas sim aquele que sente

toda a Terra como seu habitat. Ele sai de um lugar não porque quer, mas porque é obrigado a isso. E

quando o faz, não tem um destinado traçado”, explica Fernandes. Tal como referem Deleuze e

Guattari, no seu “Traité de Nomadologie” em Mille Plateaux, o nómada move-se de maneira

‘turbilhonar’ pelo espaço. E faz das suas roupas e posses o seu ‘território’. Daí que ele nunca muda,

está sempre em casa. “Por isso”, ressalta o autor brasileiro, “nomadismo psíquico não signfica

turismo das ideias, mas sim a capacidade de ir para além dos cientificismos, pós-modernismos,

objectividades, misticismos, religiosidades e até alucinações. É movimentar-se turbilhonarmente pelo

conhecimento. Pensamento máquina de guerra.” Tal como refere Bey:

Abra um mapa do território; sobre ele, coloque um mapa das mudanças políticas; sobre ele, um mapa da Net, especialmente da contra-net, com seu ênfase no fluxo clandestino de informações e logística; e, por último, sobre tudo isso, o mapa 1:1 da imaginação criativa, da estética e dos valores. A grelha resultante ganha vida, animada por inesperados redemoínhos e explosões de energia, coagulações de luz, túneis secretos, surpresas (Bey, 2001 [1991]: 410).

89

Apesar de muitos considerarem que a TAZ se destina principalmente à Internet, para Bey, este

conceito é extremamente físico e corporal. Segundo o pensador norte-americano, por mais que a Net

possa ser considerada um lugar de relacionamento nada virtual, na medida em que, para além da

mente, também altera o corpo e movimenta toda uma rede de relações sociais e tecnológicas muito

materiais, a TAZ deve evitar as mediações, desde ecrãs de computador, instituições, televisores a

outros aparelhos tecnológicos. A Internet assume importância no pensamento de Bey enquanto

ferramenta criadora de TAZs. Para além disso, permite circular informações clandestinas, desenvolver

actividades de pirataria e aceder a bens proíbidos através de hackers. Outra contribuição importante

da Net é o facto de possibilitar a existência de algumas estruturas não-hierarquizadas de produção e

divulgação do conhecimento.

A TAZ remete para duas técnicas de revolta quotidiana, o Terrorismo Poético e a Arte-Sabotagem,

que apresentam semelhanças com as práticas dos media tácticos, como o culture jamming, o

hacktivismo e o artivismo, partilhando ainda do legado do dadaísmo da segunda década do século XX

e do movimento Provos. Eduardo Fernandes explica que o Terrorismo Poético é uma acção

ritualística que visa transformar, causar um momento de espanto, medo ou intensidade, Dançar nú

para simbolizar algo; invadir locais não para roubar, mas para deixar mensagens ou objectos (...) ou

até ‘sequestrar alguém e fazê-lo feliz’”. Salienta ainda que não se trata de performances destinadas a

grupos que irão entender o acto: “Terrorismo Poético dirige-se exactamente àqueles que não o irão

considerar artista. Não pretende apenas aparecer nos media. Não é entretenimento para a sociedade de

controlo.”

Por sua vez, a Arte-Sabotagem comunga de algumas características dos regimes políticos, quer sejam

fascistas ou democráticos, como é o caso da censura e da violência. Hakim Bey chega a dar o

exemplo da queima pública de livros. Nas suas próprias palavras, citadas por Fernandes: "Deitar

dinheiro para o alto no meio da bolsa de valores seria um Terrorismo Poético bastante razoável – mas

destruir o dinheiro seria uma excelente Arte-Sabotagem. Interferir numa transmissão de televisão e

colocar no ar alguns minutos de arte incendiária e caótica seria um grande feito de Terrorismo Poético

– mas simplesmente explodir a torre de transmissão seria um acto de Arte-Sabotagem perfeitamente

adequado".

Apesar de Bey dizer que a Arte-Sabotagem é contra idéias e não contra pessoas, “todos sabemos que

nem sempre se consegue atingir uma sem esbarrar nas outras (...) Definitivamente, estas não são

técnicas para aqueles que acreditam na democracia, nos poderes do terceiro sector e dos

assistencialismos”, explica Fernandes. Sendo Hakim Bey um dos principais teóricos referidos pelo

movimento dos media tácticos, por aqui se vê, mais uma vez, a atracção que o terrorismo e a figura do

90

terrorista tem exercido ao longo das últimas décadas nas produções mediáticas deste tipo a que Joanne

Richardson faz referência em “The Language of Tactical Media” (Richardson, 2002).

91

4.5 – A Táctica enquanto Swarming

Outra das possíveis metáforas de táctica que podemos empregar é a de swarming. Trata-se de um

conceito oriundo do sector militar e remete para uma nova forma de fazer a guerra, baseada em redes

e que concede uma importância vital à informação. Este novo pensamento militar, assentando em

pequenas unidades autónomas bem treinadas e capazes de atacar e dispersar rapidamente, foi

desenvolvido com base no modelo dos movimentos activistas que actuaram na manifestação de

Seattle, podendo ajudar a reflectir sobre as práticas dos media tácticos.

Em 1993, John Arquilla e David Ronfeldt, dois investigadores militares da RAND Corporation101,

introduzem com o seu livro Cyberwar is Coming o conceito de netwar102, que irão definir num texto

mais recente como sendo “um modo emergente de conflito (e de crime) a níveis societais, bastante

diferente do combate militar tradicional, em que os protagonistas utilizam formas em rede de

organização e doutrinas, estratégias relacionadas, bem como tecnologias compatíveis com a era da

informação” (Arquilla e Ronfeldt, 2001)103. A guerra em rede situava-se em oposição à cyberwar

(ciberguerra ou, segundo Henrique Antoun, “guerra de controlo” (Antoun, 2003)), um conceito

também desenvolvido nessa obra. Os dois tipos de conflito militar abrangiam a maior parte do campo

da infowar (infoguerra ou guerra da informação)104 no mundo contemporâneo.

Enquanto que a ciberguerra integraria o combate de alta intensidade, mediante o recurso a tecnologia

militar de ponta e travado entre dois Estados – como, por exemplo, as duas Guerras do Golfo), a

guerra em rede seria uma luta de baixa intensidade travada de modo assimétrico (desigual) entre um 101 Uma das principais agências independentes de fomento à investigação sobre temas de interesse do Departamento de

Defesa dos Estados Unidos da América. A marca “RAND” foi formada pela contracção das palavras “Research and Development” (Investigação e Desenvolvimento). A agência foi criada em 1946 pela Aeronáutica dos Estados Unidos como uma empresa independente e sem fins lucrativos com a finalidade de promover através da pesquisa e da análise o desenvolvimento de material que auxiliasse a elaboração de políticas e a tomada de decisões no âmbito da defesa e da segurança nacional e internacional dos EUA.

102 Tal como Henrique Antoun refere em “As Lutas da Multidão e o Futuro da Democracia na Cibercultura” (2003), o termo netwar “tanto pode ser traduzido por guerra em rede, como por rede de guerra”. Da mesma forma que o autor brasileiro, decididimos empregar o termo rede de guerra, dado remeter a tipos específicos de organização em rede, como a Al Qaeda, o Greenpeace ou a Direct Action Network (DAN), optando por utilizar guerra em rede para designar o tipo de conflito em questão. Este texto está disponível na Web no seguinte endereço http://www.comunica.unisinos.br/tics/textos/2002/T1G4.PDF.

103 Segundo a definição original e mais completa, a guerra em rede refere-se a um conflicto de alta intensidade entre nações e sociedades relacionado com informação. Significa tentar minar ou danificar o que uma população-alvo sabe ou pensa que sabe sobre si própria e o mundo em seu redor. Uma guerra em rede pode centrar-se na opinião pública ou da elite, ou ainda em ambas. Poderá envolver manobras de diplomacia, campanhas psicológicas e de propaganda, subversão política e cultural, ilusão ou interferência junto dos media locais, infiltração em redes de computador e bases de dados e esforços para promover movimentos dissidentes ou oposicionistas através das redes de computador.

104 De acordo com Antoun, “a guerra de informação tem como um dos seus fundamentos a administração da percepção, sendo essencialmente o uso da informação para confundir, decepcionar, desorientar, desestabilizar e desbaratar uma população ou um exército adversário. O importante nesta guerra é a inserção de falsidades na percepção do adversário, evitando que ele possa fazer o mesmo, e a adivinhação dos seus segredos, garantindo um domínio na condução da acção pelo poder de decepção adquirido. Em termos gerais, a guerra de informação consiste em toda a operação conduzida para explorar informações de modo a obter vantagem sobre um opositor e para negar ao opositor informações que lhe poderiam trazer uma vantagem”

92

Estado e grupos organizados em rede através do emprego de tácticas e estratégias que envolvem a

utilização intensiva de novas tecnologias da comunicação como a Internet (Arquilla e Ronfeldt,

1993). Em termos de conduta, os dois investigadores militares consideram que a guerra em rede

remete para conflitos onde um protagonista está organizado em forma de rede ou emprega redes de

computadores para efectuar as comunicações e o controlo operacional (Arquilla e Ronfeldt, 1996:

VII). Eles salientam que embora os actores de uma rede de guerra possam utilizar de modo intensivo

as ferramentas da Net, esta não é a sua principal característica, podendo assim subsistir e actuar em

outros campos. Tendo em conta que se trata de um tipo de conflito não-linear, os autores fazem notar

que a guerra em rede exige uma alteração do paradigma analítico de forma a ser compreendida. Deste

modo, apresentam como modelo desta forma de combate o jogo oriental Go. Neste jogo não existem

frentes de batalha, a defesa e o ataque misturam-se, a formação de fortificações e a acumulação de

peças aliciam os jogadores a realizar ataques implosivos e o vencedor é o jogador que conquistar o

maior espaço de combate105. No livro Networks and Netwars, os dois autores aprofundam a distinção

entre a guerra em rede e a ciberguerra:

A guerra em rede é a contraparte de baixa intensidade a nível social do nosso conceito de ciberguerra, mais antigo e mais militarizado. A guerra em rede tem uma natureza dupla, como o deus romano Janus de duas caras, na medida em que é composta, por um lado, de conflitos travados por terroristas, criminosos e etnonacionalistas extremistas; e, por outro lado, por activistas da sociedade civil. O que distingue a guerra em rede enquanto forma de conflito é a estrutura organizacional em rede dos seus praticantes – em que vários grupos não dispõem de líder – e a flexibilidade na sua capacidade de se juntarem rapidamente em ataques swarming. Os conceitos de ciberguerra e de guerra em rede abrangem um novo modo de conflito que está a emergir na esteira da revolução da informação (Arquilla e Ronfeldt, 2001a: IX).

Na opinião de Arquilla e Ronfeldt, as batalhas da luta pelo futuro não estão sendo travadas pelos

exércitos dos Estados mais poderosos do globo, nem tão pouco as suas armas consistem em

dispendiosos e enormes tanques, aviões e frotas. Pelo contrário, os seus combatentes podem pertencer

a redes terroristas como a Al Qaeda, cartéis da droga como os da Colômbia ou então a colectivos de

militantes anarquistas como o Black Bloc – que desempenhou um papel muito importante nas

manifestações de Seattle -, redes de luta política como o Zapatismo e redes de activistas da sociedade

civil global como a Direct Action Network (DAN). Todas estas redes são compostas de grupos que

funcionam através de unidades pequenas e dispersas, capazes de se desdobrarem rapidamente em

qualquer lugar ou momento como se se tratasse de um enxame de abelhas. A este tipo de estratégia

militar Arquilla e Ronfeldt dão o nome de swarming (“enxameação” ou, segundo Henrique Antoun,

“afluência”). Estas redes sabem como enxamear (swarm) e dispersar, penetrar e romper ou iludir e

105 Antoun nota que “embora Arquilla e Ronfeldt ressaltem o controlo do território na vitória do Go, o que o jogo de facto privilegia é a quantidade de espaços livres no território controlado, algo que faz toda a diferença. É importante assinalar que as características apontadas pelos pesquisadores da RAND como pertencentes à guerra em rede e suas redes de guerra são as mesmas apontadas por Deleuze e Guattari em Mille Plateaux para caracterizar as máquinas de guerra” (Antoun, 2003)

93

fugir. O cenário estratégico destas novas batalhas é a guerra em rede.

Na sua abordagem da tradição académica da análise de rede social, os pesquisadores militares

afirmam que este tipo de investigação considera que uma rede é um grupo formado por actores (nós) e

os seus vínculos (ligações) cujo relacionamento possui uma estrutura padronizada. Alguns

investigadores observaram nas últimas décadas que as redes surgem frequentemente através de várias

formas ou topologias básicas, como por exemplo: as redes em cadeia ou linha, em que os membros

estão vinculados numa fila e as comunicações devem fluir através de um actor adjacente antes de

chegar ao próximo; as redes em forma de estrela, eixo (hub) ou roda, onde os membros estão

vinculados a um nó central e devem passar por ele para comunicar uns com os outros; e as redes

completamente interligadas, ou “todos os canais” (all-channel) ou ainda matriz completa (full matrix),

uma arquitectura que permite a comunicação e a interacção de cada nó na rede directamente com

qualquer outro nó. Foram ainda identificadas outras tipologias, bem como formas híbridas, que

combinam as diversas formas de rede dos modos mais variados (Arquilla e Ronfeldt: 2001).

Apesar do campo da análise de redes ter sido dominado até agora pelas abordagens de tipo social,

Arquilla e Ronfeldt consideram que a análise organizacional das redes pode contribuir mais para

compreender a natureza da guerra em rede, pois enquanto que para o analista social de redes basta

determinar os grupos de actores com vínculos, a análise organizacional irá ainda averiguar se os

actores se reconhecem como participantes da rede e se eles se comprometem com as suas operações.

De forma a determinar o que torna uma rede efectiva, para além do seu design organizacional,

Arquilla e Ronfeldt afirmam que é necessário tomar em conta os outros quatro níveis que a compõem:

o narrativo, que diz respeito à história que está a ser contada; o doutrinário, abrangendo os métodos e

estratégias colaborativas; o tecnológico, que se refere aos sistemas de informação em uso; e o social,

constituído pelos vínculos sociais que asseguram lealdade e confiança (idem). Os níveis social e

tecnológico consistem na base material, humana ou técnica da rede. Por seu lado, o doutrinário

responde pelo seu modo de acção. O nível organizacional, por sua vez, remete para a forma de ordem

estrutural da rede, ao passo que o nível narrativo diz repeito à sua constituição e subsistência.

Os autores referem que existem duas práticas doutrinárias que tendem a adequar-se mais ao cenário

de uma rede de guerra. Uma consiste em organizar uma rede num modo de funcionamento o mais

possível sem liderança (leaderless), por não possuir um líder que se destaque ou por ter vários líderes

ou ainda utilizando mecanismos de consulta e formação de consenso para a tomada de decisões. A

segunda prática passa pela utilização de estratégias e tácticas de swarming para atingir um alvo. Um

exemplo do primeiro princípio é a doutrina da resistência sem liderança concebida pelo extremista de

94

direita Louis Beam. Tendo por base este conceito, herdado da experiência da sedição na Guerra pela

Independência dos Estados Unidos, a rede organiza-se em ‘células fantasmas’ e da acção individual

de unidades designadas minutemen106, com vista a que os grupos e indivíduos actuem

independentemente uns dos outros, sem nunca depender de um quartel central ou um líder único. Esta

doutrina distingue quatro tipos de células descentralizadas e secretas: de combate, de comando, de

apoio e de comunicação, sendo cada uma composta por oito minutemen e um líder. A partir da década

de 90, o modelo de resistência sem liderança passou a incluir um novo tipo de unidade chamada ‘lobo

solitário’, destinada a instigar actos violentos, como atentados bombistas, fazendo parecer que são da

sua própria iniciativa.

Mas, na opinião de Arquilla e Ronfeldt, o swarming é a doutrina mais adequada para a guerra em

rede, sendo a resistência sem liderança apenas um passo na sua direcção. Apesar da sua aparência

amorfa, o swarming é um modo estratégico deliberadamente estruturado e coordenado de atacar a

partir de todas as direcções um determinado ponto ou pontos por meio de uma intensidade constante

de força ou/e de fogo, mantida a partir de posições tanto próximas como afastadas107. Deste modo, o

protagonista faz com que várias pequenas unidades mantidas normalmente dispersas converjam num

alvo vindas de todos os lados, efectuem um ataque, redispersando-se em seguida para se prepararem

para a próxima operação. Como exemplos de comportamento swarming, identificam a resistência

tchechena contra o exército da Rússia, os hooligans britânicos e as ONGs associadas com o

movimento Zapatista no México.

Porém, segundo os pesquisadores militares, um dos melhores exemplos de swarming e também uma

das doutrinas mais sofisticadas para a guerra em rede do tipo social vem da Direct Action Network

(DAN), surgida a partir de uma coligação de activistas que recorreram à acção directa não-violenta e à

desobediência civil para paralizar a reunião da OMC em Seattle (Novembro de 1999). A sua

abordagem representa uma súmula das ideias por detrás do modo de swarming. Os participantes são

convidados a organizarem-se, à sua escolha, em pequenos ‘grupos de afinidade’ compostos por cinco

a 20 pessoas. – de acordo com Arquilla e Ronfeldt, tratam-se de “equipas auto-suficientes, pequenas e

autónomas de pessoas que partilham certos princípios, objectivos, interesses, planos ou outras

similaridades que as possibilitam trabalhar bem em conjunto”. Cada grupo decide por si próprio que

acções os seus elementos irão realizar, variando desde o teatro de rua até ao risco de ser preso. Onde

os grupos funcionam em proximidade entre si, eles são ainda organizados em clusters (‘células’). 106 Unidade com origem na Guerra da Independência dos EUA, através do uso de milícias como forma de combater o

imperialismo britânico dominante. Trata-se de um indivíduo que está sempre pronto para entrar em acção quando for a altura necessária, embora actue a maior parte do tempo como um homem comum desvinculado do combate político (Antoun, 2003).

107 Como fazem notar Arquilla e Ronfeldt, “a noção de ‘força e/ou fogo’ pode ser literal no caso de operações militares ou policiais, mas metafórica no caso de activistas de Organizações Não-Governamentais (ONGs), que poderão, por exemplo, bloquear ruas de uma cidade ou enviar quantidades massivas de emails e faxes” (Arquilla e Ronfelft, 2001).

95

Poderão, no entanto, também existir grupos flutuantes que se movem de acordo com o local onde são

necessários. Pessoas diferentes em cada grupo assumem funções diferentes, mas todos os esforços são

feitos de modo a salientar que nenhum grupo possui um líder. Adoptando uma outra abordagem ao

modo sem liderança. toda a actividade e organização é coordenada em encontros de um conselho de

porta-vozes onde cada grupo envia um representante e as decisões são alcançadas através da consulta

democrática e do consenso.

Esta doutrina radicaliza as características da guerra em rede, acentuando a ausência de liderança mas,

ao mesmo, tempo, oferecendo maior flexibilidade, mobilidade e partilha de recursos, tal como

sucedeu na ‘Batalha de Seattle’. De notar ainda que Arquilla e Ronfeldt classificam ainda como um

modo de actuação swarming as acções de desobediência civil electrónica através dos ataques de

Denial of Service organizados por colectivos hacktivistas contra os servidores Web de governos e

transnacionais.

Um outro nível que contribui bastante para a eficácia da guerra em rede é o que diz respeito às

narrativas ou histórias. Ao longo dos tempos, estas sempre desempenharam um papel muito

importante ao manter as pessoas unidas em qualquer organização, pois expressam um sentido de

identidade e de pertença, respondendo a perguntas como “quem somos”, “porque estamos juntos” e

“o que nos diferencia dos outros”. Podem ainda comunicar um sentido de causa, propósito e missão.

Elas exprimem objectivos, métodos e disposições culturais, isto é, “aquilo em que acreditamos”, “o

que tencionamos fazer” e “como”. A história certa pode manter as pessoas ligadas a uma rede que

devido à sua flutuação não consegue evitar o corte de vínculos. Pode também estabelecer ligações

entre diferentes redes e gerar a percepção de que o movimento está a passar por um momento

vitorioso. Como Arquilla e Ronfeldt resumem, "A rede mais forte será aquela na qual o design

organizacional é sustentado por uma história vitoriosa e uma doutrina bem definida, e na qual tudo

isto está colocado em cima de sistemas avançados de comunicação e repousa na base em fortes laços

pessoais e sociais" (Arquuilla e Ronfeldt, 2001)

Segundo Alexander Galloway, “a crise global actual – após o 11 de Setembro – consiste num conflito

entre o poder centralizado e hierárquico dos Estados e redes distribuídas e horizontais” (2004: 204)

como a Al Qaeda e a DAN, cuja forma organizacional já está adaptada à guerra em rede. Neste

sentido, Arquilla e Ronfeldt (2001) oferecem algumas proposições para a política dos Estados face à

guerra em rede:

· As hierarquias têm dificuldade em combater redes.

· É necessário adoptar a forma organizacional e as estratégias de uma rede para lutar contra

96

redes.

· Quem dominar melhor e em primeiro lugar a forma de rede irá conquistar vantagens

significativas.

Para Galloway, “estes comentários são extremamente úteis para reflectir sobre os media tácticos e o

papel do actor político dos dias de hoje. Oferecem às subculturas razões para repensarem as suas

estratégias face ao mainstream. Obrigam-nos a repensar as técnicas do terrorista” (2004: 205). Mas,

na opinião deste autor, as proposições dos investigadores da RAND também levantam muitas

questões, em particular, a de saber o que irá acontecer quando os poderes dominantes evoluírem para

uma estrutura em rede e abandonarem o modelo das hierarquias. Segundo Galloway, em muitos

sectores este processo já se iniciou. Ele acredita que apesar de “nas últimas décadas, o conflito

primário entre designs organizacionais ter sido travado entre hierarquias e redes – uma guerra

assimétrica -, no futuro iremos passar por uma alteração global em direcção a um novo conflito

organizacional bilateral em que redes irão combater contra redes” (idem).

97

4.6 – A Táctica enquanto 'Multidão'

A Diferença veio para ficar e já não precisa de se legitimar a si própria face a autoridades superiores como o Partido, o Sindicato ou os Media. Comparando com décadas anteriores, isto é a sua maior conquista. As multidões não são um sonho ou alguma construção teórica mas uma realidade.

- Lovink e Schneider, “A Virtual World is Possible: From Tactical Media to Digital Multitudes”

Tal como referem os autores franceses Cardon e Granjon, uma parte siginificativa dos elementos do

mediactivismo identifica-se com o conceito de multidão (multitude) desenvolvido por Michael Hardt

e Antonio Negri nos seus livros Empire (2000) e Multitude (2004). “Esse quadro intelectual constitui

para os actores um verdadeiro instrumento de análise, mas também de auto-compreensão das práticas

e das formas de vida desenvolvidas pelo mediactivismo”, referem. Geert Lovink e Florian Schneider

(2002) salientam que as redes de media tácticos possibilitaram o surgimento do movimento por uma

globalização alternativa. Esse movimento híbrido é, na sua opinião, a concretização real de uma

multidão. A partir deste conceito, eles criam o termo 'multidões digitais' para designar um novo

movimento nómada composto por alianças entre hackers, artistas, cientistas sociais e activistas que

actua mediante o recurso às novas tecnologias de informação e comunicação.

Em termos genealógicos, podemos remontar o conceito de multitude ao início do pensamento político

moderno, tendo sido empregue por Maquiavel, Hobbes, Espinoza e, mais tarde, também por Locke e

Rousseau (Thacker, 2004). Mas nestes pensadores não existe qualquer consenso sobre o significado

do termo. Por vezes, a multidão é empregue como sinónimo de “massas” ou “povo”, ao passo que

noutras vezes é atribuída à multidão uma carga política muito específica, no sentido de força

constitutiva da própria vida social e política. Deste modo, ela acaba por ser ao mesmo tempo, segundo

Eugene Thacker, um elemento constituinte e resistente da ordem social e política (idem). Hardt e

Negri distinguem também a multidão do termo classe trabalhadora em Multitude. Apesar de

considerarem que a primeira é um conceito de classe, englobando todos os que trabalham sob o

domínio do capital, sendo potencialmente a classe dos que rejeitam esse domínio, sendo por isso

expansiva e aberta. Pelo contrário, a classe trabalhadora é um termo considerado excludente, pois só

abrange o operariado das indústrias ou os assalariados (Hardt e Negri, 2004: 105-106).

Na actual teoria política, isto é, de acordo com a concepção de Antonio Negri e Michael Hardt em

Empire, a questão da multidão já não é colocada em termos de saber se essa multidão é governável –

partindo de uma posição de escolha entre a prioridade do indíviduo e a prioridade do grupo -, mas sim

de saber como é que a multitude se pode auto-governar. Segundo Eugene Thacker, “enquanto

conceito político, a multidão é definida em termos tanto ontológicos como políticos. O termo é

ontológico porque, na sua raíz, a multitude articula um conjunto de afectos e experiências que servem

98

de base para a afiliação e acção políticas” (Thacker, 2004). Deste modo, a um nível básico, a multidão

diz principalmente respeito à sua própria constituição e, a partir daqui, à sua capacidade de incorporar

quer o consenso como a divergência.

Neste campo ontológico, uma das características mais importantes da multidão é que não é nem o

indivíduo nem o grupo, “situando-se algures entre os dois ou noutro ponto completamente diferente”,

explica Thacker (idem). Trata-se, segundo Antonio Negri, de uma “singularidade não-representável”

(Negri, 2002): na medida em que é múltipla, isto é, tal como as noções de “grupo” e de “povo”,

implica a existência de um número significativamente grande de elementos individuais que são

agrupados de forma a se tornarem um só. Elas designam multiplicidades, um conceito desenvolvido

por Henri Bergson e mais tarde por Gilles Deleuze.

Contudo, Thacker salienta que “a multidão não é apenas um grande número de pessoas que foram

unificadas, homogeneizadas, transformadas num corpo-acima-do-corpo (um corpo político); é

também definida pela sua composição, que é instável, permeável e morfológica” (Thacker, 2004).

Assim, de acordo com este autor, o que impede a multitude de se constituir como ‘um só’ é o facto de

ser definida por um conjunto de interesses, afectos e relações diversas. A multidão não surge de um

contrato social, ao contrário do povo, e não está implicada num momento único de unidade em

consenso. Até porque os seus diversos interesses são muitas vezes contraditórios entre si, coincidindo

apenas em parte.

Em vários textos de Negri, em separado ou, no caso de Empire e Multitude, em co-autoria com

Michael Hardt, a multidão é descrita de uma forma quase paradoxal: uma multiplicidade de

singularidades, uma diferença que é repetição, uma contração e uma expansão, uma diástole e uma

sístole”, como explica Thacker (idem). Assim, “a multidão é um conjunto de singularidades”, embora

“ao contrário do povo não seja uma unidade” pois, apesar de actuarem em comum são diferentes entre

si (Hardt e Negri, 2004: 105). Mas “em oposição às massas e às plebes, podemos vê-la como algo

organizado, sendo de facto um agente de auto-organização” (Negri, 2002). Noutro texto, Negri afirma

que a multidão se refere “a um grupo de singularidades que reapropriaram os instrumentos de

produção, as ferramentas de trabalho, para si próprias”108. O processo contraditório de constituição da

multidão é explicado da seguinte forma: “Um movimento puxa com grande força em direcção ao

absoluto no sentido estrito, em direcção à unidade e indivisibilidade do governo, em direcção à sua

representação como uma alma e uma mente... Mas o outro movimento é plural... A vida do governo

absoluto está dotada em Espinoza de uma sístole e uma diástole, de um movimento em direcção à

108 Negri, Antonio (2003), "N for Negri: Antonio Negri in Conversation with Charles Guerra". Grey Room, nº 11, 99. Citado em Thacker (2004).

99

unidade e um movimento de expansão.”109 É mediante o trabalho que “a multidão se produz a si

própria como singularidade... uma singularidade que é uma realidade produzida através da

cooperação” (Hardt e Negri, 2000: 395).

Segundo Thacker, é devido a estes paradoxos que “as questões ontológicas da multidão são

indissociáveis das questões políticas da multidão” (Thacker, 2004). Desde Maquiavel a Hobbes,

passando por Hugo Grotius, a longa tradição do contrato social na teoria política moderna indicia uma

tendência a favor das formas jurídicas de autoridade e legitimidade. Contudo, em simultâneo, um

legado oposto na teoria do contrato que vai desde Althusius a Espinoza faz introduzir a possibilidade

de considerar a Democracia como “a forma mais natural de governo”. Hardt e Negri inspiraram-se

nesta tradição minoritária ao desenvolverem o seu conceito de multidão.

Tal como os dois autores assinalam, a multidão opõe-se ao contrato social e, em consequência, ao

conceito de povo. Quer o contrato social seja formalmente entendido como um verdadeiro contrato ou

quer seja encarado como uma ficção necessária imposta pelo Estado, ele pressupõe a seguinte

questão: será a multidão governável? Thacker explica que tal questão conduz inevitavelmente à

legitimação a posteriori das formas modernas de soberania. Hardt e Negri fazem questão de salientar

ao longo de todo o seu livro Empire que, embora os regimes monárquicos e imperialistas estejam

historicamente em declínio, isso não quer dizer que a própria soberania tenha desaparecido, como

prova a ascensão do império nas últimas décadas. De forma a repensar o conceito de multidão é então

necessário diferenciá-lo das suas ligações com a soberania moderna e o absolutismo.

De acordo com Thacker, “este processo exige uma nova análise das agregações ou fenómenos de

grupo. Requer uma rejeição da ficção do ‘estado de natureza’ pré-social que supostamente precisa de

ser amansado, domesticado e disciplinado” (ibidem). Neste sentido, alerta para a necessidade de não

confundir a multidão com termos relacionados como plebes, populaça, massas ou mesmo povo. Mas

Thacker salienta que isto não significa que a multidão se torne numa instituição, mantendo, pelo

contrário, uma componente “bárbara”, devido à sua composição ontológica. Trata-se tanto de uma

agregação como uma diferenciação, tanto uma emanação como uma contracção, não sendo, porém,

nem um grupo, nem um conjunto de indivíduos.

Este autor coloca ainda a questão de se a multidão existe mesmo actualmente ou se se trata de uma

mera ficção, “uma visão política de algo ainda por vir" (ibidem). Apesar de referir que a Democracia

não implica a existência de multidões – até porque a Democracia representativa é um dos principais

109 Negri, Antonio (1997), "Reliqa Desiderantur: A Conjecture for a Definition of the Concept of Democracy in the Final Spinoza", em Warren Montag e Ted Stolze (eds.), The New Spinoza, Minneapolis, Univ. of Minnesota, pág. 229-230. Citado por Thacker (2004).

100

alvos da multidão -, Thacker refere como possíveis exemplos deste tipo de fenómeno os movimentos

activistas contra a SIDA e a globalização neo-liberal, bem como as iniciativas contra a existência de

fronteiras e a favor de um domínio público das obras criativas digitais. Por fim, apresenta a seguinta

lista de características que, na sua opinião, distinguem o conceito contemporâneo da multidão:

· A multidão situa-se entre o indíviduo e o grupo; é uma “multiplicidade de singularidades”.

· Funciona através da criação de relações e da cooperação, o que estabelece “o comum”, isto é,

um conjunto de afectos, questões e experiências comuns que coincidem parcialmente.

· Posiciona-se a si própria em oposição à tradição do contrato social e, consequentemente,

contra a inevitabilidade da soberania moderna e o “estado de excepção”.

· A problemática central da multidão consiste no “problema da decisão política”, ou seja, como

o ‘comum’ pode ser constituído ao mesmo tempo que se promove a diferença.

· A questão que a multidão coloca a si própria reside em saber como é que ela se pode auto-

governar e não a questão que lhe é colocada – “será a multidão governável?”.

· As características mais perigosas da multidão – a sua volatibilidade, imprevisibilidade e

instabilidade – são também os seus aspectos mais radicais – um poder constitutivo, uma voz

colectiva e uma ética imanente (ibidem).

Incluindo nesta etiqueta vários fenómenos abordados nesta tese como as smart mobs, as redes de

guerra e a desobediência civil electrónica, Thacker acaba por afirmar que as multidões são

encarnações do modelo tecnológico das redes e do modelo biológico dos enxames (swarms), sendo

inspiradas e transformadas por eles. Hardt e Negri corroboram esta posição em Multitude, onde

estabelecem uma relação entre o swarming e a multidão, ao afirmar que esta última é um modelo de

inteligência em forma de enxame, dando como exemplo as novas organizações políticas em rede que

emergiram em Seattle (1999) ou as manifestações espalhadas por todo o mundo contra a guerra do

Iraque, a 15 de Fevereiro de 2003. Na sua opinião, tratam-se de multiplicidades várias que se

diferenciam pela raça, género, sexualidade mas que cooperam e comunicam entre si, formando uma

inteligência colectiva (Hardt e Negri, 2004: 92). Por outro lado, também entendem que a multidão

deve ser concebida como "uma rede expansiva e aberta em que todas as diferenças podem ser

expressas em liberdade e igualdade" (idem: xiv), uma forma de resistência em rede contra o Império

que tem como valores principais "a criatividade, a comunicação e a cooperação auto-organizada

(ibidem: 83). Hardt e Negri chegam a invocar o software open-source ou de código-fonte aberto para

caracterizar a multitude: "Uma abordagem para compreender a democracia da multidão é vê-la como

uma sociedade open-source cujo código-fonte é revelado de forma a que possamos todos trabalhar

colaborativamente para resolver os seus bugs e criar novos e melhores programas sociais" (ibidem:

340).

101

Mas, tal como Arquilla, Ronfeldt e Galloway, ao mesmo tempo declaram que os aparelhos militares

tradicionais e as formas de poder soberano que representam estão a chegar à conclusão que "para

combater uma rede é necessária uma rede", o que implica a sua restruturação radical (ibidem: 58).

Integram assim esta transformação no contexto da passagem do imperialismo centralizado e assente

nos Estados-nação para a forma em rede do Império, um termo que abrange os principais poderes

estaduais como os Estados Unidos, mas também as instituições supranacionais, as empresas

transnacionais e organizações não-governamentais.

102

4.7 – A Táctica enquanto Smart Mob

Baseando-se em parte no trabalho de Arquilla e Ronfeldt, o jornalista e investigador de tecnologia

Howard Rheingold concebeu o termo Smart Mobs (‘Massas Inteligentes’) para se referir a novos

agrupamentos sociais constituídos por pessoas com capacidade para agir de forma concertada mesmo

sem se conhecerem previamente umas às outras. Isto é possível mediante a utilização de redes

informáticas sem fios, dispositivos móveis como PDAs (Personal Digital Assistant), telemóveis ou

computadores de bolso ou mesmo wearable computers (computadores 'vestíveis') (Rheingold, 2002:

XII). Estas tecnologias informáticas e de comunicação possuem a capacidade de amplificar a

cooperação humana No seu livro intitulado Smart Mobs: The Next Social Revolution, Rheingold

afirma que esta convergência tecnológica contem em si perigos e oportunidades, podendo ser

empregue tanto para fomentar a democracia como para coordenar ataques terroristas. Assim, salienta,

tal como todas as anteriores formas de comunicação, esta também envolve aspectos positivos e

negativos Os riscos de vigilância e controlo por parte do Estado e de grandes empresas exercidos

através destes mecanismos sobre a vida dos utilizadores são bastante graves. Por outro lado, o poder

de conhecimento oferecido pelos pesados PCs ligados por fios à Internet passou a estar acessível num

dispositivo com pouco mais de 100 gramas e capaz de ser guardado num bolso.

Como exemplos de smart mobs, o autor cita os protestos em massa organizados a partir do envio de

mensagens SMS (Short Message Service) por telemóveis que conduziram à deposição do presidente

das Filipinas Joseph Estrada em 2001. A manifestação de Seattle contra a reunião da Organização

Mundial do Comércio de 1999 é também referida por Rheingold como exemplo de smart mob. O

autor inclui as redes de guerra como casos de smart mobs. Ao criarem uma guerrilha inteligente, os

elementos destas multidões organizam-se rapidamente com vista a atingir um objectivo, empregando

tecnologias de informação e recorrendo às estratégias de swarming, tal como teorizadas por Arquilla e

Ronfeldt. Num âmbito mais centrado no quotidiano, as redes sociais urbanas de adolescentes que

enviam constantemente mensagens SMS aos seus amigos são também apontadas como smart mobs,

assim como as redes comunitárias de computadores sem fios do tipo WiFi, os bloggers – autores de

weblogs -, e os compradores e vendedores do site de leilões online eBay110.

As smart mobs e as suas consequências sociais, para além dos seus dispositivos tecnológicos,

indústrias e normas reguladoras, encontram-se ainda nos seus estádios iniciais de desenvolvimento.

Isso talvez possa ter origem no facto de o processo de aprender a agir em conjunto e

cooperativamente demorar algum tempo para a maioria das pessoas. No entanto, após a publicação do

livro de Rheingold, surgiram uma série de acontecimentos relacionados com este novo fenómeno

110 Disponível em http://www.ebay.com.

103

emergente, em alguns casos, até por influência da obra, como as chamadas Flash Mobs, eventos

urbanos que desorganizam e revolucionam temporariamente – tal como uma TAZ – o quotidiano das

grandes cidades.

Segundo Rheingold, estamos actualmente a passar por uma série de conflitos sociais e políticos

relativos ao modo como as tecnologias que permitem o surgimento de smart mobs serão concebidas e

reguladas, lutas que colocam questões sobre como iremos viver nas próximas décadas. Essas

tecnologias estão já disponíveis entre nós, mas é necessário que ocorra a sua convergência: pontos de

Internet sem fios em cafés, hotéis e bairros; chips de rádio concebidos para substituir os códigos de

barras em objectos manufacturados; programas online que aproveitam o poder de processamento dos

computadores de milhões de pessoas para procurarem por inteligência extraterrestre; sistemas de

reputação empregues no eBay e no Slashdot111 e redes Peer-to Peer (P2P) de partilha de ficheiros

como o antigo Napster e o Gnutella.

O número de telemóveis com câmaras digitais não tem parado de aumentar nos últimos dois anos. O

mesmo tem acontecido, embora a um ritmo menor, com os aparelhos celulares que incorporam

dispositivos de detecção de localização. Alguns dispositivos móveis de preço económico já dispõem

da capacidade de ler códigos de barras e de enviar e receber mensagens para e de etiquetas de

identIficação por rádio-frequência (RFID – Radio Frequency Identity). Os mais recentes telemóveis

de terceira geração (3G) possuem ligações permanentes, sem fios e em banda larga à Internet. Para

Rheingold, dentro de alguns anos, vários milhões de pessoas nas nações industriais terão com elas na

maior parte do tempo um dispositivo que lhes irá permitir ligar objectos, lugares e pessoas a

conteúdos e processos online. Basta apontar esse aparelho para um livro numa livraria e ver o que é

que pessoas que gostam do mesmo tipo de obras que nós dizem a respeito dele. Ao apontar para um

restaurante, podemos ver os comentários sobre a comida efectuados pelos últimos dez clientes e

deixarmos também a nossa crítica pessoal.

Contudo, por detrás destas tecnologias existe o perigo de que o novo ambiente mediático seja

possuído e controlado por uma minoria de operadores por cabo e empresas de telecomunicações ou

ainda pelo Estado, isto é, entidades extremamente poderosas que poderão impôr as formas como as

gerações futuras irão comunicar entre si em movimento. Já desde há alguns anos que os

conglomerados dos media e as agências governamentais dos países mais desenvolvidos têm vindo a

tentar – muitas vezes com êxito – reinstaurar o regime da era da radiodifusão em que os clientes da

tecnologia eram privados do poder de criar, restando-lhes apenas a capacidade de consumir. “Será que

111 Site que funciona como forum de discussão do movimento do software livre. Disponível em http://www.slashdot.org. Existe uma versão portuguesa deste fórum, o GilDot, acessível através do endereço http://www.gildot.org.

104

as populações de amanhã irão ser utilizadores, como os proprietários de PCs e criadores de sites da

Web, que tornaram a tecnologia em inovação generalizada? Ou serão consumidores, afastados da

inovação e presos nos modelos tecnológicos e de negócios dos interesses entrincheirados mais

poderosos do mundo?”, questiona Rheingold num artigo publicado na revista científica online

Edge.org (Rheingold, 2002a).

Segundo o investigador brasileiro Júlio Valentim, “as smart mobs são colectivos inteligentes com o

potencial de criar novas maneiras de modular, preencher e ocupar o espaço-tempo. Ou de criar novos

espaços-tempo e modos de se mover neles, segundo outros ritmos e outras velocidades” (Valentim,

2004). Completando o pensamento de Rheingold, afirma que as actuais tecnologias móveis podem

produzir novos modos de acção que irão possibilitar o surgimento de uma mobilidade emergente. Ele

define emergência como sendo “um tipo de mobilidade que escapa ao controlo, pois permite um tipo

de nomadismo intensivo onde o deslocamento ou a mudança é de nível (natureza) e não de

localização. Em vez de passar de um ponto a outro (nomadismo extensivo), permanecendo porém

num mesmo nível, a emergência faz-nos passar para um nível superior, vital, mais apropriado para as

modificações ocorridas no ambiente” (idem). Valentim qualifica as smart mobs de sistemas

emergentes, isto é, “auto-organizáveis e capazes de resolver problemas com o auxílio de multidões de

elementos relativamente básicos”. Esta arquitectura bottom-up (de baixo para cima) contrasta com os

modelos top-down (de cima para baixo) que contam com “uma única ‘divisão executiva’ inteligente,

um líder ou um controlo central e hierárquico”. Nos sistemas emergentes, “nenuma unidade autónoma

consegue por si só realizar todas as actividades necessárias para se atingir a mudança de nível, ou

melhor, a emergência”. Eles caracterizam-se “pela ausência de imposição de controlo centralizado,

pela autonomia dos agentes, pelo elevado grau de interligação e pela existência de uma narrativa não-

linear de parceiros influenciando parceiros” (ibidem).

Este comportamento emergente é um dos traços fundamentais de um dos mais recentes fenómenos da

cibercultura que dá pelo nome de Flash Mob. Este conceito inventado com base no termo e no livro

de Howard Rheingold, refere-se a um grupo de pessoas que são mobilizadas através de mensagens de

email via Internet ou SMS através do telemóvel para se reunirem num local a determinada hora

durante um curto período de tempo de forma a cometer um acto absurdo ou provocador. O tempo e o

local de encontro são anunciados em sites específicos ou na própria mensagem de texto. Como refere

o sociólogo holandês Albert Benschop, “uma flash mob faz algo absurdo e misterioso e dissolve-se

logo em seguida” (Benschop, 2003). Este fenómeno congrega assim grande parte dos aspectos

relativos às metáforas da táctica que aqui já referimos, podendo ser ao mesmo tempo uma TAZ, uma

forma de detournement, um rizoma, uma prática de swarming, uma multitude e, é claro, uma smart

mob.

105

Tal como nos movimentos activistas por uma globalização alternativa, o telemóvel representa aqui

um papel essencial de facilitador dos encontros. Neste sentido, como nota Judith A. Nicholson, ao

contrário do modo de utilização tradicional, individual, directa e de um-para-um, estes fenómenos

estabelecem uma comunicação de massas, indirecta, descentralizada de um para muitos (Nicholson,

2005). As mensagens são distribuídas pelos utilizadores via voz ou texto para os seus contactos

solicitando que estes actuem da mesma forma.

O convite para o primeiro evento deste tipo no Reino Unido descrevia uma flash mob como sendo um

encontro inexplicável de um grupo, num local, durante um curto período de tempo”. O termo foi

criado por Sean Savage, no seu blog cheesebikini.com112. Mas segundo Benschop, o sinónimo flash

crowds já tinha sido empregue em 1973 por Larry Niven num conto de ficção científica (Benschop,

2003). Na narrativa, o teletransporte é uma tecnologia comum e barata. Uma flash crowd refere-se a

uma multidão de dezenas de milhares de pessoas sempre à procura de acontecimentos importantes e

sensacionais que, graças a essa tecnologia, consegue ser transportada automaticamente para qualquer

local na Terra onde acabaram de ocorrer acidentes e desastres. O mesmo sociólogo acrescenta ainda

que “na era da Internet, o conceito flash crowd é também empregue como um indicador de um forte

aumento no número de utilizadores que estão a tentar aceder a um determinado site. Isto ocorre

normalmente quando aí é publicada uma notícia ou história importante e nova” (idem).

As primeiras flash mobs não tinham qualquer objectivo intencional ou sério. Tratavam-se apenas de

iniciativas experimentais conduzidas pela Internet e telemóveis para organizar grupos de pessoas que

apareciam subitamente em espaços públicos para fazer algo engraçado, desaparecendo com a mesma

velocidade com que se juntavam. Mas Benschop acredita que a flash mob poderá servir como um

modelo para o activismo político do futuro. “O que começou como uma brincadeira de Verão levada a

cabo por cibernautas e como uma experiência em mobilização virtual poderá tornar-se num novo

fenómeno político”, afirma (ibidem). Porém, Nicholson assinala que muitos flash mobbers realçarem

o facto de que se tratava de um fenómeno apolítico, sem líderes, que não pretendia responder a

qualquer questão e não tinha uma agenda específica, sendo um dos seus principais lemas a frase "o

poder de muitos em busca de nada" (Nicholson, 2005). Daí que alguns argumentem que "o

movimento foi destruído por pessoas que o apropriaram para os seus próprios motivos políticos ou

comerciais" (idem). Ao mesmo tempo, esta autora afirma como óbvio que "desde o início o fenómeno

foi fortemente orientado" pelos seus representantes e criadores (ibidem).

Em pouco mais de dois meses do ano de 2003, o movimento espalhou-se por todo o mundo. Segundo

112 Site disponível em http://www.cheesebikini.com.

106

Benschop, a primeira flash mob deu-se a 3 de Junho de 2003, em Nova Iorque, por iniciativa de Bill,

um homem de 28 anos que prefere manter o seu último nome no anonimato (Benschop, 2003). Para

organizar o evento, Bill enviou emails a amigos (e aos amigos destes) indicando-lhes que visitassem

um determinado site da Web, de forma a sincronizar os seus relógios. Depois de terem feito isto,

disse-lhes para se juntarem em quatro bares de Manhattan. Os que nasceram nos primeiros três meses

do ano encontraram-se num bar, os nascidos em Abril, Maio ou Junho reuniram-se noutro e

sucessivamente.

Num email enviado a Benschop, Bill explica que ao organizar a primeira flash mob, tinha em mente

criar uma série de ‘multidões (mobs) inexplicáveis’: “A ideia que apenas através de viva voz, um

enorme grupo de pessoas se pode juntar por nenhuma razão de qualquer tipo.” (idem). Para este nova-

iorquino, as flash mobs tiram partido do desejo de escapar do mundo virtual da Internet e de fazer

parte de um underground electrónico do mundo local. “Não se trata de um movimento, mas de um

pré-movimento. As pessoas compreendem intuitivamente que coisa poderosa é transformar de um

modo rápido e surpreendente um espaço físico”, salienta (ibidem).

Poucas semanas depois, a 17 de Junho, 200 pessoas juntaram-se no nono piso do armazém comercial

Macy’s, também em Nova Iorque, na secção de tapetes, aparentando pertencerem a uma mesma

comunidade simulada. Aí perguntaram a um assistente da loja sobre a existência de um tapete oriental

que pretendiam utilizar na sua comuna ficcional como um ‘tapete do amor’. No Central Park,

centenas de flash mobbers juntaram-se e começaram a fazer sons surrealistas de aves. Em Dallas,

cerca de 40 pessoas reuniram-se num novo centro de entretenimento, tendo tomado posições debaixo

de balões vermelhos e azuis. Precisamente às 7h43m, o grupo vermelho começou a gritar “Marco!” e

o grupo azul respondeu gritando “Polo!”. Na segunda semana de Junho, ocorreu a primeira flash mob

no Japão, mobilizada através do site ni channel113. Fãs do filme The Matrix Reloaded organizaram

uma perfomance pública sincronizada em que todos os participantes estavam vestidos com um fato

preto imitando o personagem agente Smith. Na Europa, a primeira multidão convocada pela Internet e

telemóveis juntou-se em Roma a 24 de Junho desse mesmo ano. Mais de 300 pessoas entraram numa

grande loja de livros e discos e perguntaram aos funcionários se tinham disponíveis livros não-

existentes de autores inventados. Na Suiça, os flash mobbers formaram um longo cordão humano na

estação de comboios de Zurique, divindo-a em duas partes. Antes de formarem o cordão, perguntaram

aos transeuntes se “eram a pessoa de que estavam à procura”. Benschop refere ainda que o país onde

as flash mobs se tornaram mais populares foi na Alemanha.

Em Portugal, a primeira mobilização, marcada para 15 de Setembro de 2003, revelou-se um autêntico

113 Site disponível em http://www.2ch.net.

107

fracasso. A flash mob tinha sido convocada através do site Flashmobpt114, por Lucas, um brasileiro de

37 anos profissional de telecomunicações. O objectivo inicial era que os manifestantes se juntassem

numa paragem de autocarro em frente à Assembleia da República, em Lisboa, às 15h30m e depois

fizessem uma vaia, aplaudissem e dissessem adeus, partindo quatro minutos depois. Mas à última da

hora, a forma de actuar foi alterada, esperando-se apenas dos participantes que ficassem a olhar para o

Parlamento durante alguns segundos, gritando em seguida “Yes!”. Contudo, apenas três pessoas

participaram da iniciativa, tendo acorrido ao local uma dezena de curiosos e vários jornalistas.

Apesar do fracasso desta primeira iniciativa, uma flash mob mais recente de cariz político conseguiu

reunir mais de 2500 pessoas. Convocada por SMS para 27 de Junho de 2004, a mobilização visava

protestar contra a nomeação de Santana Lopes para primeiro-ministro, na sequência da saída de Durão

Barroso do cargo de chefe de governo para presidente da Comissão Europeia. “Todos a Belém no

domingo [amanhã], às 19h00, contra Santana Lopes primeiro-ministro! Abaixo um Governo da

‘treta’! Envia este sms a toda a gente, já!”, anunciava a mensagem SMS não identificada (Soares,

2004). Deste modo, pretendia-se influenciar o Presidente da República Jorge Sampaio, de modo a que

não nomeasse Santana Lopes e convocasse eleições antecipadas. Embora a decisão de Sampaio não

tenha ido de encontro aos desejos dos manifestantes115, esta foi a primeira ‘multidão inteligente’ com

fins políticos a acontecer em Portugal. Um dos casos em que se demonstrou o potencial de força

política das smart mobs deu-se em Espanha, após os atentados de 11 de Março em Madrid. Após a

difusão de rumores de que o anterior governo de José Maria Aznar teria enganado deliberadamente a

comunicação social e a população ao difundir a tese de que a organização terrorista basca ETA estaria

por trás dos atentados, afastando qualquer possibilidade do envolvimento de gupos radicais islâmicos,

foi convocada por SMS uma manifestação em frente à sede do Partido Popular, até então no governo,

para exigir que fosse divulgada a verdade. Nesta flash mob política, estiveram presentes vários

milhares de espanhóis, tendo-se a mobilização alargado a outras cidades do país.

Estes exemplos revelam que os flash mobbers estão a começar a organizarem-se melhor. Existem

vários sites locais e regionais onde qualquer pessoa interessada se pode informar sobre as actividades

das flash mobs, de novas mobilizações, para além de poder se envolver em discussões sobre novas

acções possíveis. De acordo com Benschop, as flash mobs parecem ter sobrevivido à moda inicial do

Verão de 2003, enquanto experiências frívolas e sem significado em grande escala possibilitadas

pelas tecnologias digitais de comunicação, “tendo-se tornado numa técnica de auto-organização que 114 Em Setembro de 2004, encontrava-se ainda dispoível em http://www.flashmobpt.blogger.com.br. Contudo, em

Novembro de 2005 já se encontrava offline. A página inicial de 30 de Setembro de 2004 está acesssível em arquivo no endereço http://web.archive.org/web/20040930122623/http://www.flashmobpt.blogger.com.br/.

115 A 9 de Julho desse ano, Sampaio anunciava a sua decisão de dar posse a um novo governo PSD/CDS-PP liderado por Santana Lopes (ver http://www.presidenciarepublica.pt/pt/cgi/noticias.pl?ver=discursos&id=1109). Contudo, a 10 de Dezembro o Presidente decide convocar eleições antecipadas para 20 de Fevereiro de 2005 que viriam a ser ganhas pelo Partido Socialista de José Sócrates (ver http://www.presidenciarepublica.pt/pt/cgi/noticias.pl?ver=discursos&id=1188 ).

108

irá inevitavelmente ser empregue para outros fins e por diferentes grupos”. Este sociólogo prognostica

que “dentro em breve, as flash mobs serão incluídas no repertório de acções dos movimentos sociais,

dos partidos políticos que pretendem mobilizar os seus apoiantes em campanhas eleitorais e de

empresas que desejam vender os seus produtos e serviços a clientes”. Na sua opinião, “a ideia de que

centenas, milhares ou milhões de pessoas são secretamente mobilizadas mediante tecnologias

electrónicas para aparecerem algures de parte nenhuma sem aviso é ao mesmo tempo bastante

inspiradora e aterrorizadora”.

Opinião completamente diferente tem Judith A. Nicholson, para quem, apesar de ainda se

organizarem ocasionalmente algumas flash mobs, estas foram um fenómeno de moda, de curta

duração e deliberadamente efémero que teve o seu fim oficial após o oitavo evento deste tipo

realizado em Nova Iorque, a 10 de Setembro de 2003 (Nicholson, 2005). Isto não obstante a

campanha de popularização efectuada pelos blogs e pelos media comerciais durante esse Verão,

adianta (idem). Fazendo uma comparação com a arte de perfomance dos situacionistas e do Fluxus,

acrescenta que as flash mobs "escanrracharam as fronteiras entre o espectáculo, o activismo, o

experimentalismo e as partidas"116 (ibidem).

116 É de notar que Nicholson estabelece uma ligação com o evento do "tapete do amor" organizado em Junho de 2003 em Nova Iorque e uma performance de 1963 do Fluxus intitulada "Manifestação por um Realismo Capitalista" numa loja de mobiliário de Dusseldorf.

109

5 – Práticas de Media Tácticos

5.1 – Culture Jamming: Guerrilha Semiológica

A confusão deve ser considerada uma estética aceitável. O momento da confusão é a pré-condição para o surgimento do cepticismo necessário ao pensamento radical.

- Critical Art Ensemble, The Electronic Disturbance.

O principal objectivo é ridicularizar o poder, revelar a sua natureza corrupta com a linguagem simbólica mais bela, agressiva e poderosa e depois recuar de forma a dar espaço para que as mudanças se implantem.

- Geert Lovink e Florian Schneider, “New Rules of The New Actonomy”.

Uma das vertentes práticas de media tácticos é o Culture Jamming. Trata-se de um conjunto de

técnicas de intervenção e de sabotagem cultural destinadas essencialmente a derrubar os media

comerciais. Estas técnicas podem ir desde a alteração de anúncios e cartazes publicitários de grandes

empresas transnacionais à realização de eventos de rua (Lasn, 1999; Klein, 2000; Jordan, 2002;

Meikle, 2002). O objectivo é sempre, de acordo com Tim Jordan “reverter e transgredir os

significados de de códigos culturais cujo principal fim é persuadir-nos a comprar algo ou a ser

alguém” (Jordan, 2002: 102). “Os culture jammers – apelido pelo qual são conhecidos os praticantes

deste tipo de iniciativas – implementam as técnicas actualmente identificadas com uma estética pós-

moderna: apropriação, colagem inversão irónica e juxtaposição”, refere Graham Meikle que salienta a

grande influência da Internacional Situacionista de Guy Debord das décadas de 50 e 60 nos seus

trabalhos (Meikle, 2002: 131). De facto, ecoando o pensamento situacionista, Kalle Lasn, fundador da

Adbusters, uma agência anti-comercial responsável por algumas das obras mais conhecidas deste

movimento, refere no seu livro Culture Jam que “o culture jamming é, na sua origem, uma metáfora

para interromper o fluxo do espectáculo o tempo suficiente para vos fazer ajustar o vosso aparelho”

(Lasn, 1999: 107).

O culture jammer Jonah Peretti define a sua actividade como sendo “uma estratégia para virar o poder

empresarial contra si próprio, ao cooptar, ao fazer hacking e ao escarnecer os significados. Para as

pessoas habituadas à política tradicional, o culture jamming pode parecer confuso ou mesmo contra-

produtivo” (Peretti, 2001). Isto deriva do facto desta prática de media tácticos proceder

deliberadamente mediante a geração de confusão, a mesma confusão a que a epígrafe da autoria dos

Critical Art Ensemble que inicia este ponto faz referência. Mas, como nota Meikle, estamos também

perante um mediactivismo auto-reflexivo que emprega os media para chamar a atenção para questões

e problemas dos próprios media, acentuando a reflexão sobre a literacia mediática ao “transformar

símbolos familiares em pontos de interrogação” (Meikle, 2002: 132).

110

Tirando partindo da possibilidade que a empresa norte-americana Nike de produtos desportivos

oferece aos seus clientes de personalizarem os seus ténis com palavras ou slogans através do seu site -

um serviço criado para associar a marca Nike com a ideia de liberdade de escolha e de expressão de

cada um -, Jonah Peretti encomendou em 2001 um par de sapatos desportivos solicitando que

tivessem inscritos a palavra sweatshop117. Desta forma, ele estava assim a solicitar à Nike que o

ajudasse a protestar contra as suas próprias práticas laborais baseadas na exploração de trabalhadores

em fábricas asiáticas da responsabilidade de empresas sub-contratadas. O seu objectivo foi

“redireccionar a máquina publicitária da Nike contra a companhia que era suposto promover” (Peretti,

2001). A companhia recusou a encomenda. Mas Peretti não desistiu facilmente, tendo trocado

dezenas de emails com representantes da Nike. Esta iniciativa foi um exemplo de culture jamming em

acção, tendo-se difundido a um ritmo exponencial junto das redes de activismo táctico. Peretti enviou

a uma dúzia de amigos um email contendo todas as mensagens relativas ao seu pedido junto da Nike e

estes reenviaram-no a outros, tendo-se espalhado rapidamente por todo o mundo, “como se fosse um

vírus”, nas suas próprias palavras. Estima-se que esta comunicação ‘viral’ tenha atingido entre várias

centenas de milhares e 15 milhões de pessoas por todo o globo.

Os códigos culturais que os culture jammers contestam podem constranger-nos a comprar um

determinado produto ou a criar artificialmente desejos e necessidades colectivas. Segundo Tim

Jordan, são grandes empresas como a Nike e os Estados nacionais que detêm e controlam os códigos

culturais do consumo, financiando-lhes com montantes extremamente elevados. “Estes códigos visam

gerar formas de vida, identidades e necessidades humanas que servem os seus criadores. Tais

tentativas de conceber as nossas vidas através de formas que vão de encontro não às nossas

necessidades (...), mas às necessidades de, por um lado, empresas cujo objectivo fundamental é obter

lucros e, por outro, de estados cujo fim principal é controlar os seus cidadãos, podem ser resistidas”,

argumenta (Jordan, 2002: 102). Esta resistência procede através da subversão dos códigos. Os culture

jammers partem de uma visão de desastre cultural, segundo a qual “os códigos corporativos e estatais

passaram a dominar, constituem hoje grande parte dos cenários dos nossos desejos, recreando e

moldando explicitamente e com demasiado êxito as nossas paixões às suas necessidades” (idem: 103).

Para alterar esta situação, tornam estas linguagens mercantilizadas e de controlo social - que muitas

pessoas ‘falam’ fluentemente e de modo inconsciente - contra si próprias. Deste confronto, esperam

remover esta relação de subordinação e dar espaço para o surgimento de novas linguagens com que os

indivíduos e as comunidades possam definir as suas próprias necessidades e desejos.

117 Loja ou fábrica que explora os empregados com horas excessivas de trabalho por baixos salários e em más condições ambientais. Este tipo de instalações é bastante comum em países asiáticos como a China, Filipinas e Indonésia, e em alguns países da América Latina, como o México.

111

O culture jamming propaga ideias através da subversão irónica das ideias familiares captadas pela

cultura popular e pelos memes comerciais. Mas, como refere Lance Bennet (2003: 32), a ideologia

também recorre a memes, só que contextualiza-os de forma a promover interpretações comuns.

“Quando os membros de movimentos ideológicos diferem na sua interpretação dos principais memes,

o resultado é quase sempre a segmentação ou divisão em facções”, refere Bennet (idem). É neste

contexto que Kalle Lasn fala de guerra de memes. Na sua acepção, os memes são “unidades de

informação que saltam de cérebro para cérebro” (Lasn, 1999: 123). Ele acredita que os memes mais

poderosos “podem mudar mentes, alterar comportamentos, catalizar estados de espírito colectivos e

transformar culturas” (idem). Para Lasn, a batalha dos memes consiste numa guerra de infomação do

tipo guerrilha travada entre duas visões alternativas do futuro.

Os actos individuais de culture jamming costumam designar-se de Terrorismo Semiótico, de acordo

com Tim Jordan (2002: 104). O termo semiótico, derivado de semiótica ou semiologia - ciência que

analisa teorica e empiricamente o modo como os símbolos funcionam e o que significam -, refere-se

aqui “a todo o terreno simbólico de luta”, na medida em que “os actos de culture jamming existem no

interior de sistemas de símbolos”. Dentro do campo do activismo político, “semiótico refere-se a

símbolos individuais, como uma imagem num cartaz publicitário, e aos códigos de significação de

que os símbolos individuais fazem parte, como as várias convenções relativas à produção e

visualização de anúncios”, explica Jordan (idem). No mesmo sentido, na sua obra No Logo, Naomi

Klein afirma que os culture jammers estão a criar um clima de Robin Hoodismo semiótico” (Klein,

2000: 280). Jordan acrescenta que o culture jamming pretende “‘aterrorizar‘ os símbolos e códigos

que constituem a semiologia que subordina os nossos desejos aos imperativos corporativos e

estaduais” (Jordan, 2002: 117). Apesar de afirmar que este terrorismo não implica o derramamento de

sangue, “dado que são os símbolos que são alvo de atentados e não os semiólogos”, podemos

constatar aqui mais uma vez o poder que a metáfora e a mística do terrorismo detém junto dos

praticantes de media tácticos. Outro exemplo é o facto de Naomi Klein enumerar como uma das

actividades de culture jamming o ‘sequestro’ de cartazes públicitários para se referir à transformação

radical das suas mensagens (Klein, 2000: 280). “O poder de um momento efectivo de terrorismo

semiótico assenta na utilização da mesma linguagem que está a ser criticada”, complementa Jordan

(2002: 104). Este autor considera que “um bom acto de terrorismo semiótico começa por minar

directamente um determinado alvo, retirando de seguida as linguagens através das quais são vendidas

mensagens a nós, o público, do seu normal estado ilusório e tornadas explícitas”. Assim, “quando

ocorre uma disjunção entre a mensagem e o medium, o próprio medium torna-se objecto de discussão”

(idem).

A "guerrilha semiológica" foi antecipada por Umberto Eco num artigo de 1967 com o mesmo nome

112

reunido depois no livro "Viagens na Irrealidade Quotidiana". O sociólogo italiano propunha uma

táctica devia explorar o facto de que "quem recebe a mensagem parece ter uma liberdade residual: a

de ler de um modo diverso" (1993 [1986]: 123), de modo a "levar a audiência a controlar a mensagem

e as suas múltiplas possibilidades de interpretação" (idem: 128). Um exemplo que Eco dá é a

utilização de um medium "para comunicar uma série de juízos sobre outro medium (...) O universo da

comunicação seria atravessado então por grupos de guerrilheiros de comunicação que reintroduziriam

uma dimensão crítica na recepção passiva" (ibidem). Esta perspectiva pode ser vista como equivalente

ao papel de crítica desempenhado desde os anos 90 pelos watchdogs dos meios de comunicação de

massas como o norte-americano FAIR ou, numa lógica de maior confronto directo, com o tipo de

distorção da mensagem provocado pelos cultural jammers118.

De acordo com Naomi Klein, “o termo ‘culture jamming’ foi inventado em 1984 pela banda de audio-

colagem de São Francisco Negativland” (Klein, 2000: 281), para se referir à alteração de cartazes

publicitários e outros actos de sabotagem dos media. Já no que toca a identificar as origens deste

movimento, Klein afirma que é uma tarefa “quase impossível, em grande parte porque a prática é ela

própria um corte e colagem do graffiti, da arte moderna, da filosofia Punk do-it-yourself e da tradição

secular de pregar partidas” (idem: 282). Foi com um panfleto de 1993 do crítico cultural Mark Dery

que o termo passou a ser mais utilizado (Dery, 1993). Dery identifica aí as várias formas que o

culture jamming assumiu no contexto do mediactivismo: trapaçaria, agitprop áudio, banditismo de

placards publicitários, semiótica de guerrilha. Ele insere esta prática numa tradição que abrange os

samizdats russos, o détournement situacionista, o jornalismo marginal dos radicais dos anos 60, as

religiões falsas119, a sabotagem dos locais de trabalho, a guerrilha de sabotagem ecopolítica do

colectivo Earth First! e a utilização para fins insurrecionais da técnica de colagem cut-up proposta por

William Burroughs e outros. Nos termos de Dery, o culture jamming envolve tudo o que mistura arte,

media, paródia e uma postura de marginal.

118 De notar que Eco faz uma distinção pertinente entre estratégia e tácticas de guerrilha no campo do protesto político mais de uma década antes de Michel De Certeau ter elaborado a sua teoria. A abordagem estratégica actua junto dos canais de comunicação estabelecidos no sentido de modificar o seu conteúdo, numa tentativa de alterar os seus efeitos junto da audiência, ao passo que a táctica pretende "discutir a mensagem à chegada" através de sistemas alternativos de comunicação capazes de chegar a todo o público. Eco considera que a estratégia tem mais dificuldades em ser bem sucedida uma vez que, para ele, " a batalha pela sobrevivência do homem como ser responsável na Era da Comunicação não se vence lá de onde a comunicação parte mas lá onde chega" (1986: 127). Como iremos referir mais à frente, Baudrillard questiona também o desempenho das tácticas (1995 [1972]).

Trinta anos mais tarde, o grupo alemão autonome a.f.r.i.k.a irá repegar no conceito de comunicação de guerrilha em "What About Communication Guerrilla?" enquanto "acção directa no espaço da comunicação social", que pretende "distorcer e desfigurar os significados dos códigos e signos do poder e controlo como um modo de contrariar a tagarelice omnipotente do poder", ao contrário de outras práticas militantes que procuram destruir essas mensagens. Ver Bosma, Josephine et al. (1999), Readme! Filtered by Nettime: ASCII Culture and The Revenge of Knowledge, Nova Iorque, Autonomedia, pág. 311. Disponível em http://www.medialounge.net/lounge/workspace/nettime/DOCS/zkp5/pdf/local.pdf.

119 Paródias de religiões, seitas ou cultos, como a religião ficcional Jedi, relativa à saga cinematográfica Guerra das Estrelas.

113

De acordo com Naomi Klein, a táctica de utilizar os cartazes publicitários como arma de activismo

data já dos anos 70 (Klein, 2000: 282). O grupo Billboard Liberation Front120 de São Francisco foi

criado em Dezembro de 1977 por Jack Napier e Irving Glikk. Um dos seus trabalhos mais

emblemáticos data de Outubro de 78, quando decidiram ‘melhorar’ um cartaz publicitário da marca

de cigarros Camel ao ‘vestir’ um soutien rosa ao The Turk, uma figura masculina de bigode e semi-

nú, “muito anos 70: macho, com o peito à mostra, olhar de durão; um verdadeiro disco inferno”

(Napier, 1998), fumando e com uma mulher atraente ao seu lado olhando para ele com admiração. Na

Austrália, o grupo BUGA UP (Billboard Utilising Graffitists Against Unhealthy Promotions)121

actuou bastante nos anos 70 e 80 sobretudo contra anúncios de companhias de tabaco. Em 1983, o

montante de danos provocados pelas suas acções nos cartazes publicitários de cigarros na zona de

Sidney ascendia a um milhão de dólares. Mais recentemente, este movimento alastrou-se à França,

onde o colectivo Stopub122 se especializou na alteração de painéis publicitários no metro de Paris. Para

conter esta ‘vandalização’ crescente da ordem publicitária, a RATP, empresa responsável pelo metro,

decidiu deter selectivamente 62 activistas no final de 2003, exigindo um milhão de euros em

indeminizações (Brune, 2004).

Mas os Adbusters123 são actualmente o colectivo de culture jamming mais famoso. Este grupo foi

criado em 1989 em Vancouver, Canadá, com o apoio da Media Foundation, depois de Kalle Lasn ter

tentado sem êxito comprar um tempo de antena em várias televisões para a transmissão de uma

mensagem activista protestando contra uma campanha publicitária televisiva da indústria canadiana

de abate de árvores. Nesse mesmo ano, foi lançado o primeiro número da revista trimestral Adbusters.

Outra actividade deste grupo é a criação de produção de ‘anti-comerciais’ para televisão que acusam a

indústria de produtos de beleza de provocar desordens alimentares, atacam o consumismo em excesso

dos norte-americanos e apelam às pessoas que passem a andar de bicicleta em vez de carro. Todas as

grandes televisões privadas norte-americanas e canadianas (excepto a CNN) recusam-se a transmitir

os seus anúncios (Klein, 2000: 287). A revista e o site dos Adbusters abordam as acções de culture

jamming e do mundo empresarial, noticiando eventos e analizando a luta para transgredir os códigos

empresariais.

Grande parte da actividade do grupo centra-se na produção de imitações satíricas com qualidade

profissional de anúncios conhecidos que são publicados na revista ou online. Num deles, aparece

Ronald McDonald - personagem emblemática da empresa norte-americana de hambúrgueres – com

um autocolante contendo a palavra ‘Grease’ (Gordura) a tapar a boca. Outro alvo tradicional dos

Adbusters é a Absolut Vodka, famosa pela sua série de anúncios em que a palavra ‘Absolut’ surge

120 Site disponível em http://www.billboardliberation.com121 Site disponível em http://203.41.215.172. 122 Site disponível em http://209.167.42.61.123 Site disponível em http://www.adbusters.org.

114

associada a outra, indicando características da bebida alcoólica, como ‘Fun’ (Diversão). Os Adbusters

produzem anúncios que parecem ter origem na mesma série, com slogans como ‘Absolut Impotence’

(Impotência Absoluta), incluindo a imagem de uma garrafa de vodka flácida e encurvada ou ‘Absolut

End’ (O Fim Absoluto), contendo a forma de uma garrafa desenhada no chão a giz como a de um

cadáver num local de crime. A Smirnoff, outra companhia de bebidas alcoólicas, possui uma série de

anúncios incluindo imagens repetidas, uma das quais é alterada ao ser observada através de uma

garrafa. Num caso, uma série de participantes de uma festa com ar de aborrecidos é interrompida por

uma festa de arromba vista através de uma garrafa. Os Adbusters mudaram o nome da empresa para

Smirkoff num anúncio com crianças sorridentes, excepto aquela que é vista através da garrafa e que

foi mal-tratada. Um anúncio fraudulento destinado a gozar com a campanha ‘Obsession’ da Calvin

Klein integra uma modelo bulímica nua inclinada sob o bidé de uma casa de banho.

Alguns culture jammers, no entanto, não compartilham esta atitude moralista dos Adbusters,

criticando a sua postura tradicionalmente anti-álcool, anti-tabaco e anti-fast food por revelar um

puritanismo antiquado que pouco tem a ver com a desobediência civil da era da informação, centrada

no combate táctico ao poder das marcas e da ‘colonização cultural' (Klein, 2000: 293). Esta

mentalidade revela uma desconfiança face às massas e à sua capacidade de “controlar os seus próprios

desejos”, como afirma Dery em entrevista a Naomi Klein. Existe também uma tensão nos Adbusters

resultante da mistura de abordagens tácticas e alternativas - através da realização de campanhas de

mobilização que envolvem desde o Greenpeace a simpatizantes e apoiantes individuais espalhados

por todo o mundo, como o Buy Nothing Day ou a TV Turnoff Week. “Na sua insistência de que os

media dominantes transformam as suas audiências em imbecis anestesiados – ‘Uma Las Vegas da

mente’ – os Adbusters minam todo o seu projecto”, nota Graham Meikle (2002, 138), que pergunta

como é que os membros da própria comunidade dos Adbusters podem ser ao mesmo tempo críticos

culturais sofisticados e activos – culture jammers - e marionetas das empresas. Este autor assinala

que a própria existência deste grupo é a prova de que o poder exercido pelas empresas junto dos

media está bastante longe de ser total e que “o controlo dos meios de produção não é o mesmo que o

controlo da produção de sentido” (idem: 139).

Isto não impede, todavia, o mundo corporativo de recuperar as técnicas dos culture jammers para

aumentarem as suas vendas e melhorar a sua imagem. Em França, após a detenção pela RATP dos 60

activistas anti-publicidade, os media deram um grande destaque ao movimento. No entanto, apesar de

transmitirem uma imagem positiva do Stopub, os jornalistas limitaram-se a tratar a questão como se

fosse um fenómeno, uma moda passageira. Em reacção a esta popularidade mediática dos colectivos

antipublicidade, a RATP optou por responder com uma manobra de relações públicas, “anunciando

em Março de 2004 que ia disponibilizar, durante uma semana, 47 painéis (ou seja, 10 milésimas

115

partes da sua afixação publicitária anual) à ‘livre expressão’ dos artistas de toda a espécie" (Brune,

2004). Tratava-se assim de oferecer painéis publicitários aos ‘antipublicitários’. Pouco tempo depois,

a associação Agir pour l’environnement congratulou-se por ter comprado à empresa Metrobus alguns

espaços publicitários para denunciar a ‘poluição publicitária’ (idem).

Na verdade, como afirma Tim Jordan, “o potencial para a recuperação está sempre presente quando se

decide utilizar a linguagem do inimigo para subverter o inimigo” (Jordan, 2002: 115). Segundo este

autor o culture jamming nunca deixará de ser ambíguo: “A questão de saber se a sua tentativa de

actuar com as ferramentas do seu inimigo o compromete fundamentalmente enquanto táctica política

permanecerá sempre em aberto” (idem: 117). Para além disso, salienta que “mesmo aceitando que não

existe uma alternativa simples às linguagens do desejo comercial e estadual, fica por esclarecer se o

culture jamming oferece uma via para além destas linguagens ou se é potencialmente mais uma visão

delas” (ibidem, 117). Por mais êxito que os jammers e as suas acções consigam atingir, “o espectro da

recuperação nunca será completamento removido da política do culture jamming. Ao adoptar estas

linguagens e subvertê-las, o culture jamming corre o risco de tornar o Império dos Signos (criado

pelas empresas e pelos estados) ainda mais invencível “ (ibidem). Podemos assim concluir que, tal

como em todos os media tácticos, “a esperança e o risco correm aqui lado a lado”, entre a resistência e

a cooptação.

116

5.2 - Hacktivismo: O Contra-poder do Ciberespaço

O Hacktivismo consiste na utilização de argumentos mais eloquentes – em código ou palavras – para construir um sistema mais perfeito. Ninguém se torna num hacktivista simplesmente por inserir um ‘h’ em frente da palavra activista ou olhando para paradigmas do passado associados à organização industrial.

- Oxblood Ruffin, ‘Ministro dos Negócios Estrangeiros’ dos hackers Cult of the Dead Cow

Resultando da fusão entre as palavras hacking e activismo, o termo hacktivismo foi criado pelo grupo

de hackers de Boston Cult of the Dead Cow (CDC)124, cujo lema é “We put the hack on activism” –

‘Colocamos o hack no activismo’. Para este colectivo, o hacktivismo está ligado à “utilização da

tecnologia para promover os direitos humanos através de media electrónicos” (Cult of the Dead Cow,

2001). Em termos sucintos, trata-se de uma forma de hacking com motivações políticas (Jordan,

2002: 119). Segundo Jordan e Taylor (2004: 1), representa “a emergência da acção política popular,

da auto-actividade de grupos de pessoas, no ciberespaço”. Da mesma forma que o hacking se refere a

soluções inovadoras de problemas tecnológicos, o hacktivismo pode ser definido como um tipo de

activismo político que “procura soluções no software, em busca de um arranjo tecnológico específico

para um problema social”, de acordo com Graham Meikle (2002: 141).

A teoria que serve em grande parte de base ao hacktivismo foi introduzida em 1994 pelo Critical Art

Ensemble (CAE) num panfleto intitulado Electronic Civil Disobedience125, onde o colectivo artístico

apela à realização de uma acção permanente de Desobediência Civil Electrónica e à politização dos

hackers. Do seu ponto de vista, o poder e o capital estavam então a transferir-se de locais físicos para

espaços virtuais, deixando de assumir formas vísiveis e sedentárias para adoptar um perfil abstracto e

nómada. As elites estavam assim crescentemente a construir e a reconstruir o mundo através de fluxos

electrónicos de poder, ou seja, através do ciberespaço. Por isso, o CAE propunha às forças de

contestação social que reinventassem as tácticas de bloqueio e cerco desenvolvidas pelos movimentos

de desobediência civil e as aplicassem a esse novo domínio virtual. Tendo em conta que o poder

advém cada vez mais de fluxos de informação do ciberespaço – dinheiro circulando através de

sistemas financeiros globais -, os membros do CAE acreditavam que era possível bloquear esses

fluxos.

Em 1998, a Desobediência Civil Electrónica deixou de ser apenas uma teoria ao ser aplicada na

prática através de uma iniciativa de acção directa online concretizada pelo grupo de activistas

Electronic Disturbance Theater (EDT)126, fundado por Ricardo Dominguez com vista a apoiar o

124 Site disponível em http://www.cultdeadcow.com.125 Posteriormente, em 1996, este ensaio seria integrado no primeiro capítulo de um livro do CAE, precisamente

intitulado Electronic Civil Disobedience and Other Unpopular Ideas, publicado pela editora Autonomedia de Nova Iorque. A versão online está disponível em http://www.critical-art.net/books/ecd/index.html.

126 Site disponível em http://www.thing.net/~rdom/ecd/ecd.html.

117

movimento Zapatista em defesa da luta da população indígena de Chiapas contra a opressão do

governo mexicano (Wray, 1998; Denning, 2001; Jordan, 2002; Meikle, 2002; Jordan e Taylor, 2004;

Vegh, 2003). Esta iniciativa foi uma forma de reacção ao massacre ocorrido em Dezembro de 1997,

na localidade de Acteal, em Chiapas, onde foram assassinadas 45 pessoas por paramilitares apoiados

pelo Estado.

Anteriormente, o Zapatismo tinha já sido um dos primeiros grupos de activismo político a tirar

partido da Internet para a comunicação externa do movimento (Jordan e Taylor, 2004: 93-95). Os

comunicados do Subcomandante Marcos foram distribuídos mundialmente através de redes sociais de

apoio formadas por activistas em países dotados de capacidades mais avançadas de comunicação. Em

The Power Of Identity, o segundo volume da sua trilogia The Information Age, Manuel Castells

refere-se ao Zapatismo como “o primeiro movimento de guerrilha informacional” (Castells, 1997:

79). Os seus elementos criaram um evento mediático para tentar evitar ao máximo uma guerra

sangrenta. Alguns autores foram até mais longe do que Castells na caracterização do Zapatismo. É o

caso de Graham Meikle que o apelida de movimento de guerrilha culture jamming, constituindo, na

sua opinião, “um détournement engenhoso da retórica e imagem prevísivel – e, por isso, controlável -

das rebeliões” (Meikle, 2002: 145). Outro autor, Sandor Vegh, afirma que o movimento Zapatista foi

“talvez o primeiro exemplo popular de hacktivismo” (Vegh, 2003: 76).

Durante o ano de 1998, os membros do EDT Carmin Karasic e Brett Stalbaum criaram o software

FloodNet, um applet127 escrito na linguagem Java que faz com que um browser recarregue

constantemente o site de um opositor. Por várias vezes, o EDT apelou à participação em massa nos

seus sit-ins virtuais contra o governo mexicano, concretizados através da utilização do FloodNet. A

ideia era congestionar o servidor que aloja o site com um enorme volume de tráfego, de modo a que

ele não pudesse dar resposta a mais pedidos e bloqueasse o acesso a outros visitantes. Contudo, foram

raras as ocasiões em que tal aconteceu, ocorrendo na maior parte das vezes apenas uma lentidão no

acesso ao site.

A 9 de Setembro de 1998, o EDT apresentou o seu projecto SWARM – em referência ao conceito de

swarming avançado por Arquilla e Ronfeldt - no Festival Ars Electronica em Linz, Áustria, tendo aí

lançado uma acção FloodNet de apoio aos zapatistas dirigida em simultâneo contra três sites: a

homepage do presidente Zedillo do México, a Bolsa de Valores de Frankfurt e o Pentágono. Apesar

desta iniciativa ter visado bloquear os sites, tal não aconteceu. Contudo, mais de 20 mil pessoas

participaram na acção, tendo esta obtido uma enorme repercussão mediática, chegando até o EDT a

aparecer na primeira página do New York Times de 31 de Outubro de 1998. Após este evento, nesse

127 Componente de software que corre no contexto de outro programa, como, neste caso, um browser da Web.

118

ano seguiram-se vários outros em favor da luta zapatista e contra vários sites do governo mexicano.

Em Janeiro de 1999, o EDT disponibilizou o código do FloodNet na Internet de forma a que se

pudesse efectuar livremente o seu download, tendo sido vários os apelos públicos por parte de

múltiplas organizações activistas para a participação em sit-ins virtuais. Mas como refere Jose Luís

Brea (2002), “o êxito destas acções foi sempre desigual, no que toca à eficácia técnica (em todo o

caso, temporária e, portanto, simbólica), e a sua repercussão mediática foi, logicamente, diminuindo,

uma vez perdido o seu valor de novidade”.

A crítica formulada pelo Critical Art Ensemble em Digital Resistance (2001) às acções do EDT

assenta aliás, nessa questão. Este grupo, responsável pela teoria da Desobediência Civil Electrónica,

argumenta nesse livro que “a estratégia indirecta da manipulação dos media através de um

espectáculo de desobediência com vista a gerar simpatia e apoio junto da opinião pública, é uma

estratégia destinada ao fracasso” (2001: 15). A sua visão de Desobediência Civil Electrónica remete

para uma acção directa, radical, subreptícia e clandestina que deve ser mantida fora da esfera pública

(seguindo a tradição hacker) e não para o tipo de manipulação dos media exercida pelo EDT.

Referindo-se à reacção de medo gerada pela ameaça simulada de sabotagem electrónica e à sua

afirmação anterior de que as agências de segurança ficariam aprisionadas à “hiper-realidade das

ficções criminais e da catástrofe virtual”, o CAE afirma:

Este é um comentário que o CAE desejaria nunca ter feito, já que alguns activistas começaram a tomar-se a sério e estão a tentar actuar de acordo com ele, principalmente utilizando a Rede para produzir ameaças de activismo hiper-reais com o fim de atear o fogo da paranóia dos estados corporação. Uma vez mais , trata-se de uma batalha mediática destinada a ser perdida. (CAE, 2001: 20)

Logo após o desenvolvimento do FloodNet, a comunidade hacker ficou dividida em relação à suposta

eficácia do software, conta Geert Lovink em Dark Fiber (2002: 268): “Os hackers de espírito mais

libertário sugeriram que a ‘inundação’ de servidores empresariais e governamentais não estava a levar

a nenhum lado. Ataques massivos, direccionados ao site inimigo estavam a perder-se pela Rede,

prejudicando sobretudo, desta forma, os fornecedores locais de acesso à Internet. Inicialmente, os

hacktivistas políticos negaram os problemas técnicos apontados pelos hackers e viram grandes

oportunidades de organizar ‘manifestações online’ em que pudessem participar milhares de pessoas.”

Esta polémica aponta para uma divergência existente dentro deste movimento entre os activistas

políticos que vêem o hacktivismo como uma forma espectacular de resistência e sabotagem e hackers

como os elementos do Cult of The Dead Cow que consideram essas actividades de disrupção das

comunicações electrónicas do inimigo como ineficazes e fúteis, mas mais ainda, na maior parte das

vezes, tecnicamente inaptas, explica Patrice Riemens (2002). De acordo com os primeiros, a Internet

119

é como uma auto-estrada da informação e não existe nenhuma razão para que as novas estradas

públicas, tal como as antigas, não possam ser bloqueadas para um protesto – desde que a causa seja

óbvia. Do ponto de vista dos últimos, este tipo de acção directa online desperdiça largura de banda e

coloca em risco a integridade da Rede, um espaço neutral que encaram como livre e aberto, para além

de limitar o acesso à informação (Lovink, 2002: 269-270). Segundo Jordan e Taylor (2004: 96-97),

estes hacktivistas “digitalmente correctos” defendem o direito dos humanos a fluxos livres de

informação. ao passo que o hacktivismo de acção de massas praticado pelo EDT de Dominguez velam

por um conjunto de direitos humanos de primeira ordem, como a saúde, a educação, a alimentação e a

cidadania total.

Antes do surgimento de hacktivistas oriundos do campo do activismo político, como os EDT, os

hackers tinham um programa político mais minimalista, centrada em questões virtuais e de acordo

com a sua própria ética que atribui máxima importância à existência de fluxos livres de informação,

acessíveis a todos de uma forma segura (Riemens, 2002; Jordan e Taylor, 2004: 96-97). Assim, a

política hacker abordava sobretudo a segurança dos sistemas informáticos e as implicações da

segurança na privacidade dos indivíduos. As suas acções práticas consistiam em descobrir formas de

escapar à censura da Rede, recorrendo frequentemente à sua natureza global para fazer fracassar as

tentativas de estados-nação para censurar conteúdos. Contudo, é importante salientar que a

emergência do novo hacktivismo centrado em questões políticas concretas não suplantou ou destruiu

esta vertente mais preocupada com a liberdade de informação e os direitos humanos, ainda hoje

representada por grupos hackers como o CDC e o colectivo alemão Chaos Computer Club128.

O tipo de acções de Desobediência Civil Electrónica a que o EDT dá o nome de virtual sit-in

caracterizam-se por exigir a participação em massa, ou seja, de um elevado número de pessoas,

transformando-as em protestos populares, o que lhes garante “a mesma legitimidade de um protesto

de milhares de pessoas nas ruas”, pois assegura que representa mais do que uma única pessoa ou

grupo, salienta Tim Jordan (2002: 125)129. É neste contexto que se pode compreender a realização

simultânea de protestos offiline e online durante o encontro da Organização Mundial do Comércio

(OMC) em Seattle, no final de 1999. Enquanto os manifestantes ocupavam as ruas, os hacktivistas

ocupavam o site da OMC. Este sit-in virtual foi da responsabilidade do colectivo britânico

Electrohippies (ou ehippies)130. Os seus membros criaram um pequeno software que era inserido numa

página da Web. Qualquer pessoa que decidisse aceder a essa página para participar no protesto

efectuava automaticamente o download de uma cópia do programa e começava a utilizá-lo a partir do

128 Site disponível em http://www.ccc.de.129 Ver também Jordan e Taylor (2004), págs. 69-82, onde os dois autores desenvolvem o trabalho iniciado pelo

primeiro no sexto capítulo de Activism! (2002).130 Este colectivo suspendeu as suas actividades a 5 de Julho de 2002. O seu arquivo online está disponível em

http://www.fraw.org.uk/ehippies/index.shtml.

120

seu computador. O software carregava repetidamente páginas dos servidores da OMC. Se um número

suficientemente grande de cibernautas fossem ao site dos ehippies e, consequentemente, se um

número suficiente de computadores corressem o programa do colectivo, os servidores da OMC seriam

congestionados por pedidos, o que levaria à sua paralização. Esta acção virtual foi organizada em

coordenação com as acções de rua que visavam suspender a conferência da OMC. De acordo com

dados dos ehippies, cerca de 450 mil computadores participaram na acção ao longo de cinco dias e a

rede da WTO paralizou duas vezes, tendo desacelerado significativamente durante grande parte da

conferência (Electrohippies Collective, 2000).

Pode-se apontar duas diferenças entre o FloodNet do EDT e esta acção dos ehippies: a primeira é que,

ao contrário do primeiro, em que os protestantes necessitam de se reunir todos de uma só vez num site

central, nesta última, eles puderam efectuar o download do software e corrê-lo a qualquer altura do

período de duração do protesto. A segunda diz respeito aos objectivos (Denning, 2001: 267).

Contrastando com os ehippies, “o EDT não pretendeu paralizar um site de um opositor; visou, acima

de tudo, efectuar um protesto político, ao tornar mais lento o acesso ao site e assegurando que o

aumento súbito do tráfego de dados estava obviamente relacionado com uma intenção política”

(Jordan, 2002: 123). Este modelo serviu de inspiração a uma acção posterior dos ehippies contra a

cimeira da Área de Comércio Livre das Américas (FTAA), no Quebeque, em Abril de 2001. Com este

protesto, o colectivo britânico tentou “demonstrar que podia ser organizada uma acção online de

forma a exprimir uma mensagem de uma forma directa, em vez de tentar provocar o encerramento

indiscriminado de um site”131.

Apesar de possibilitarem a participação de pessoas que não podem estar fisicamente presentes numa

manifestação, os sit-ins virtuais têm o defeito óbvio de retirarem quase todo o risco que está

normalmente associado às acções de activistas nas ruas. Como nota Oxblood Ruffin, ‘Ministro dos

Negócios Estrangeiros’ do CDC, ao criticar as acções efectuadas pelo EDT: “Sei por experiência

pessoal que existe uma diferença entre um protesto online e de rua. Eu fui seguido pela rua abaixo por

um polícia a cavalo armado com um cacetete. Acreditem em mim, é preciso muito menos coragem

para se sentar à frente de um computador.” (Ruffin, 2001). Por outro lado, não existe o sentimento de

solidariedade habitual que se pode encontrar entre os manifestantes. A motivação e o entusiasmo

gerado nos protestos de rua está ausente (Jordan, 2002: 132; Meikle, 2002: 143; Jordan e Taylor,

2004: 79-82)).

Os ataques de hacktivismo que pretendem paralizar ou desacelerar os computadores de adversários

através do seu bloqueamento requerem, no caso dos sit-ins virtuais, a participação de muitas pessoas.

131 Electrohippies Collective (2001), “The FTAA Action and May Day ‘Cyber-hysteria’ communiqué May 2001”. Citado por Tim Jordan (2002, 123).

121

No entanto, nos últimos anos foram sendo desenvolvidos programas que permitem que um único

indivíduo ou pequenos grupos desencadeiem o ataque. Este tipo de ataques chama-se Denial of

Service (DoS – ‘Negação de Serviço’), uma vez que procuram remover o alvo da Internet ao ‘inundá-

lo’ de pedidos de informação. Vários ataques de DoS foram lançados contra sites como o ebay.com e

o yahoo.com. Juntamente com o aumento do discurso do ciberterrorismo pelos governos e agências

de segurança, estes actos tornaram o debate inicial em torno do hacktivismo mais sério. Os ataque

DoS perpretados no início de 2000 por um indivíduo que apenas se identificava como Mafiaboy

encheram as páginas dos jornais, desviando assim a atenção dos media comerciais e da opinião

pública das formas colectivas de protesto na Rede para regressar ao estereótipo do hacker – na

verdade, cracker - adolescente masculino agindo individualmente (Lovink, 2002: 269). O recurso

crescente a ataques de DoS levou também ao regresso da mística do terrorismo, tal como o CAE

previu. O hacktivista passou a ser encarado como um terrorista. Para os verdadeiros hackers, como o

CDC, os ataques de DoS representam, independentemente dos seus fins e alvos, ameaças à liberdade

de expressão e de informação, valores que prezam acima de tudo (Riemens: 2002). Nas palavras de

Tim Jordan, os hacktivistas que produzem acções de Denial-of-Service escolhem um meio

tecnologicamente ineficiente para servir fins políticamente eficientes” (2002: 125). Trata-se assim, de

acordo com Jordan e Taylor, de uma utilização ética do DoS na medida em que ao contrário dos

ataques centralizados e automatizados dos crackers comuns, as acções distribuídas dos ehippies, por

exemplo, requerem a participação de vários computadores-cliente, cujos administradores decidem

desencadear o ataque (Taylor, 2004: 77).

Outra forma de bloqueio virtual empregue pelos hacktivistas são as email bombs. Trata-se de

‘bombardear’ o servidor do sistema com mensagens de email, gerando um efeito de

congestionamento das caixas de correio da entidade em questão, tornando impossível a recepção de

mais mensagens (Denning, 2001: 268). Esta táctica visa também demonstrar a extensão do apoio a

uma causa, podendo ser automatizada sob a forma de uma carta em cadeia, de forma a que os

participantes enviem mensagens apenas mediante um clique num link. Em 1998, grupos de

guerrilheiros da etnia Tamil realizaram uma acção de email bombing contra as embaixadas do Sri

Lanka. Algumas autoridades norte-americanas no campo dos serviços secretos consideraram que este

foi o primeiro ataque de terroristas contra os sistemas informáticos de um país. O objectivo do ataque

foi gerar publicidade e congestionar os servidores de email das embaixadas.

Uma outra táctica, o defacement de sites da Web – também chamado de cibergraffiti, aproxima-se

mais da noção popular relativa ao hacking. Estas acções referem-se à intrusão em sites para alterar ou

acrescentar o conteúdo aí disponível por mensagens, desenhos ou imagens de cariz político. Os sites

do Greenpeace, Spice Girls e da Ku Klux Klan foram já alvo destes cibergraffities. O processo reside

122

numa desfiguração temporária da homepage de uma companhia ou organização. Os intrusos deixam

normalmente a restante informação do site intacta, chegando até mesmo a guardar uma cópia de

segurança do ficheiro index modificado no servidor invadido. Alguns afirmam que se trata de uma

expressão artística de resistência, uma performance online. Pode-se até argumentar que existe uma

grande aproximação entre o defacement hacktivista e a clonagem artivista de sites de net.art, como as

obras do 01.org. Um dos defacements mais famosos foi efectuado pelo grupo português de hackers

KaotiK132 contra a ocupação indonésia de Timor Leste. Os sites de cerca de 40 servidores indonésios

foram modificados em Setembro de 1998 de forma a exibirem a frase ‘Free East Timor’ – Libertem

Timor Leste - em grandes letras pretas. Os hackers portugueses também acrescentaram links para sites

descrevendo as violações dos direitos humanos cometidas na antiga colónia portuguesa (Denning,

2001: 272). Em Outubro de 2000, hacktivistas pró-israelistas acrescentaram uma estrela de David no

site do Hezbollah. Em Outubro de 2001, o grupo GForce Pakistan deixou uma mensagem a favor de

Bin Landen no site de uma agência governamental dos Estados Unidos (Meikle, 2002: 163). De

acordo com o site hacker Attrition.org133, realizaram-se mais de 5822 defacements no ano 2000. Do

início de 2001 até Maio desse ano o número já ia nos 5315, tendo a prática se tornado tão frequente

que os responsáveis pelo site deixaram a partir daí de actualizar essa contagem. Contudo, este autor

nota que muitas destas acções não têm motivações activistas, sendo antes realizadas por adolescentes

que querem testar as suas capacidades de hacking.

O ‘sequestro’ de endereços de sites da Web é outra arma dos hacktivistas que faz com que quando os

utilizadores introduzem o endereço de um site atacado nos seus browsers, sejam redireccionados para

um site alternativo. No âmbito dos protestos durante o Fórum Económico Mundial, que teve lugar em

Melbourne, Austrália, no dia 11 de Setembro de 2000, o endereço do nome de domínio da Nike foi

redireccionado, enviando os cibernautas que introduzissem o URL ‘nike.com’ para o site do

movimento S11 de oposição ao Fórum. Durante os Jogos Olímpicos de Sidney 2000, outros activistas

deste movimento registaram nomes de domínio com a palavra ‘Olympics’ – Olímpiadas – mal escrita,

redireccionando os utilizadores que introduzissem endereços como ‘olympisc.com’ para o site do

S11. o que o tornou durante algum tempo o site mais popular da Austrália. Em Março de 2001, alguns

hackers redireccionaram a homepage do Hamas para sites pornográficos como ‘teenjuice.com’ ou

‘hotmotel.com’ (idem: 163-164).

Mas o arsenal de tácticas do hacktivismo não pára de crescer. Um exemplo é dado pelos sabotadores

electrónicos que encerraram os sistemas de comunicação do Movimento Republicano da Austrália nas

vésperas do referendo constitucional de Novembro de 1999. Outro caso consiste num grupo de

hackers associado ao site Condemned.org que em Janeiro de 2000 invadiram uma série de sites de

132 Site disponível em http://www.kaotik.org.133 Site disponível em http://www.attrition.org.

123

pornografia infantil e removeram os dados dos seus discos rígidos. Por vezes, são empregues vírus e

worms para fins políticos134. Um adolescente israelita afirma ter destruído um site do antigo governo

iraquiano de Saddam Hussein mediante o envio de um vírus anexado a um email. Tão ou mais

eficazes a gerar publicidade são os boatos – hoaxes - relativos à propagação de novos vírus (idem:

164).

O defacement de sites e a disrupção de servidores não são, porém, os únicos meios de hacktivismo

para todo o hacker com motivações políticas. Como já referimos, alguns, como os elementos do Cult

of the Dead Cow, partilham de uma filosofia diferente, baseada nos fluxos livres de informação,

segundo o qual o ciberespaço permite que todas as vozes se exprimem. Estes hacktivistas

“digitalmente correctos” combinam o princípio da ética hacker da liberdade de informação com a

faceta mais politizada dos activistas de rua. As suas actividades dirigem-se sobretudo contra a censura

e o controle da Rede efectuado por empresas e Estados. Um dos seus projectos mais interessantes na

área do hacktivismo é o Peekabooty135.

O Peek-a-booty foi desenvolvido por um grupo iniciado pelo CDC designado Hacktivismo136. O

colectivo tem como missão desenvolver formas de impedir a censura da Internet, legitimando-se a si

próprio com base na Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948, que garante a

liberdade de expressão para todos, incluindo a incluindo a liberdade de receber e dar opiniões. Como

tal, concedem grande importância aos fluxos livres e abertos de informação de e para todos. O grupo

Hacktivismo foi criado com vista a responder à imposição de limites no acesso dos cidadãos à

Internet por parte de vários estados-nação. O caso da China é o mais fulcral, embora o número de

estados que implementaram firewalls nacionais137 para bloquear o acesso a conteúdos políticos

oposicionistas ou críticos não tenha parado de aumentar nos últimos anos138. Deste modo, quem

estiver no território chinês e pretender aceder a sites noticiosos internacionais como o da BBC e da

CNN não o poderá fazer. O Peekabooty surge como uma solução para este tipo de censura (Jordan,

2002: 128).

A ideia é desenvolver uma rede que qualquer um possa utilizar através da Internet para passar por

cima de firewalls nacionais – obtendo, desta forma, acesso a toda a informação disponível na Rede,

bem como para tornar anónimos os emissores e receptores de dados online. É descrita como sendo

“uma rede colaborativa e distribuída de privacidade, Permite a evasão a grande parte das formas de 134 Alexander Galloway inclui os vírus informáticos na categoria de media tácticos (Galloway, 2004: 175-176)135 Site disponível em http://www.peek-a-booty.org.136 Site disponível em http://www.hacktivismo.com. 137 Firewalls são mecanismos de filtragem sob a forma de hardware ou software que controlam o acesso de e para a

Internet.138 Nesta lista encontram-se a Singapura, Austrália, Zimababué, Arábia Saudita, Vietname, Irão, Emiratos Árabes

Unidos, Bahrain, Quirguistão e o estado norte-americano do Utah, de acordo com a OpenNet Initiative (site disponível em http://www.opennetinitiative.net).

124

(...) filtragem e encaminha directamente os pedidos de páginas Web para uma nuvem de servidores

distribuídos que processam os pedidos e trans-servem o conteúdo de volta ao cliente que o

requesitou”. Esta tecnologia funciona do seguinte modo: Alguém que esteja por detrás de uma

firewall nacional será capaz de efectuar um pedido a um computador correndo o Peelkabooty que irá

então estabelecer uma rede virtual com outros computadores139. Estas máquinas constituem a ‘nuvem

de servidores’ que transferem os pedidos do computador que os desencadeou. Em vez de requerir

directamente a um servidor Web um site conhecido da Internet, cujo endereço está bloqueado por

uma firewall, o pedido será efectuado a um computador de acesso livre correndo o Peekabooty. Por

sua vez, esta máquina irá de seguida ligar-se à rede Peekabooty. Um dos computadores ligados a este

rede irá aceder ao material pedido e enviá-lo de volta através da nuvem de servidores até ao

computadores que efectuou inicialmente o pedido. Este esquema de funcionamento impede a

existência de uma ligação directa entre o computador requerente e o que cumpriu o pedido. Mais

ainda, cada passo entre estas duas máquinas irá assegurar o anonimato do cibernauta que pretenda

aceder ao site em questão. Por outro lado, para que o conteúdo das mensagens não possa ser

identificado e bloqueado pelas firewalls de um determinado Estado, o software recorre à técnica da

esteganografia que consiste em esconder mensagens em outro tipo de material mais inócuo. Para isso,

emprega protocolos de Secure Sockets Layer, uma tecnologia que permite a codificação ou

encriptação de dados (Jordan e Taylor, 2004: 103-104) As ligações entre a nuvem de servidores serão

também constantemente alteradas (Jordan, 2002: 129). “Isto significa”, explica Tim Jordan, “que um

governo que censure os conteúdos online disponibilizados aos seus cidadãos terá que estar

permanentemente a encerrar muitos computadores correndo o Peekabooty para deitar esta rede

abaixo” (idem). Mas desde que um número suficientemente grande de máquinas participem, encerrar

o Peekabooty será uma tarefa difícil, se não mesmo impossível. Desta forma, o Peekabooty poderá

propocionar um meio eficaz para impedir a criação de fronteiras nacionais no ciberespaço. Este

software sofre no entanto de uma fragilidade comum a outras acções de media tácticos: é que, como

referem Jordan e Taylor (2004: 99), apesar de já ter sido publicamente demonstrado em convenções

de hackers, ainda não foi oficialmente lançado e a última informação divulgada pelo líder do projecto,

Paul Baranowski, data de Julho de 2003140. Embora o Peekabooty tenha sido considerado pela revista

Wired como um dos dez projectos e vapourware141 de 2001, trata-se de “um projecto sério, com

código que já foi desenvolvido e demonstrado; o seu estatuto vapourware também demonstra a

fragilidade da produção de software, o que sucede tanto nos projectos hacktivistas como noutros”

(idem)142.139 Segundo o colectivo Hacktivismo, será supostamente díficil detectar se o Peekabooty está ou náo a correr numa

rede, sendo, porém, possível, monitorizar o Peekabooty, o que irá obviamente por em causa a sua utilidade. 140 Ver Baranowski, Paul (2003), “Peekabooty – Lessons Learned”, 5 de Julho. Disponível em http://peek-a-

booty.org/Docs/Peekabooty-LessonsLearned.pdf.141 Software que é anunciado mas nunca chega a ser lançado. 142 Jordan e Taylor abordam em pormenor quatro aspectos politico-tecnológicos da rede Peekabooty em Hacktivism

(2004:100-111): arquitectura distribuída; recursos a técnicas de esteganografia e encriptação de dados; ligações anónimas; número mínimo ou limitado de endereços IP a um minímo – “minimal discovery”, de forma a impedir

125

Outra ferramenta desenvolvida pelo CDC é o Back Orifice143. Trata-se de um programa que permite

que qualquer pessoa que utilize uma rede informática baseada em software da Microsoft possa, entre

outras coisas, obter secreta e remotamente o acesso e controlo de qualquer outro computador ligado à

rede. Funcionando como um sistema ilícito de administração à distância, demonstra a vulnerabilidade

do poder que o utilizador pessoal exerce sob a sua máquina e as informações aí guardadas em

comparação com o controlo dos administradores de sistemas (Jordan e Taylor, 2004: 111). Este

programa do CDC possui um interface gráfico de utilizador (GUI) que o torna relativamente fácil de

utilizar, em comparação com a maioria do software desenvolvido por hackers. Ao instalar o Back

Orifice, um utilizador passa a deter todos os privilégios de um administrador de sistemas no

computador invadido: visualizar, aceder e executar os ficheiros, ver e registar o que alguém está a

escrever no teclado, assim como copiar quaisquer dados guardados no disco rígido dessa máquina.

Todos os computadores desprotegidos estão vulneráveis a esta intrusão que actua como um vulgar

programa do tipo “cavalo de Tróia”: um ficheiro Back Orifice é anexado a outro ficheiro ou é

importado de outro modo para a máquina que se pretende afectar. Uma vez instalado, o ficheiro de

execução é removido (Jordan e Taylor, 2004: 111).

Com o Back Orifice, o grupo de hackers de Boston visou alertar a Microsoft e os utilizadores do

sistema operativo da companhia para o facto de que os sistemas Windows não foram criados com a

segurança e a privacidade do utilizador em mente. Este ponto é demonstrado na medida em que o

Back Orifice inclui todas as capacidades de acesso secreto e subreptício já integradas no software de

administração de sistemas concebido e comercializado pela Microsoft. Os administradores de

sistemas utilizam ferramentas de software dotadas das mesmas capacidades disponibilizadas pelo

CDC, só que o código da Microsoft não pode ser verificado por indíviduos e entidades independentes,

dado que a companhia o oculta de forma a reter os seus direitos proprietários. Não é de estranhar por

isso que o CDC tenha disponibilizado o Back Orifice no formato open source de código aberto, de

forma a chamar a atenção para a importância deste modelo de desenvolvimento de software, que

permite alterar, examinar e corrigir o código-fonte do programa. Em Agosto de 2001, segundo o

CDC, o Back Orifice estava a ser descarregado de um site à média de mil vezes por dia. Por essa

altura, o software apresentava já um estado avançado de desenvolvimento, permitindo que fosse

apresentado como uma ferramenta alternativa gratuita para a administração de redes Microsoft por

parte de administradores de sistemas (Jordan: 2002, 130-131). Apesar de poder ser usado como uma

ferramenta de cracking, o software, dado que foi divulgado publicamente, pretende colocar em

questão o monopólio que empresas como a Microsoft detêm sob a segurança e a privacidade dos

utilizadores dos seus programas. Nessa medida, pode ser visto como uma performance que, de modo

que todos os computadores ligados a rede sejam traçados.143 Site disponível em http://www.bo2k.com, onde se pode efectuar o download do programa.

126

dramático, “visa teatralizar a natureza da vida online das pessoas com um ênfase deliberado nos

valores que informam o hacktivismo digitalmente correcto: o acesso seguro aos fluxos de informação”

(Jordan e Taylor, 2004: 113).

Como o Peekabooty e do Back Orifice revelam, hacktivistas “digitalmente correctos” como os do

CDC consideram igualmente importantes tanto a privacidade e a segurança online como o acesso total

à Internet. Nesta perspectiva, disponibilizar um acesso absoluto à Internet em países que procuram

restringi-lo poderá ser inútil se as pessoas e os sites que visitarem podem ser traçados. A liberdade de

expressar os seus próprios pontos de vista e de receber toda a informação disponível na Internet são

dois dos mais importantes princípios prezados pela ética hacker mas que podem ser postos em causa

pela restrição do acesso e pela negação da privacidade de cada um.

Por outro lado, dentro do próprio hacktivismo, a batalha dos hacktivistas “digitalmente correctos” em

defesa de um modelo ético de hacking parece estar perdida. Os media comerciais não páram de

veicular notícias sobre ataques de supostos hackers com motivações políticas que acabam por

provocar danos enormes, fazendo com que o hacktivismo seja visto com receio ou até equiparado ao

terrorismo pelos governos e empresas, bem como pela opinião pública. Em consequência, o cerco aos

hackers pelas forças e agências de segurança vai-se apertando. Por outro lado, é cada vez mais

frequente que uma manifestação de activistas políticos contra a globalização neo-liberal seja

acompanhada por uma série de acções de sit-ins virtuais, ataques de Denial-of-Service, defacements e

intrusões de sites.

Um exemplo recente desta coordenação em simultâneo de protestos online e offline foi a campanha

hacktivista de Desobediência Civil Electrónica que coincidiu com as manifestações contra a

Convenção Nacional do Partido Republicano em Nova Iorque ("A31 RNC", como ficaram

conhecidas), Estados Unidos, entre 29 de Agosto e 2 de Setembro de 2004. Entre as tácticas

utilizadas, de referir o roubo de cartões de crédito a grandes empresas de comunicação social para

efectuar uma doação de 2600 dólares a várias organizações humanitárias de direitos civis, a intrusão e

o defacement do grupo de extrema direita ProtestWarrior, e a realização pelo EDT de um sit-in virtual

contra sites republicanos.

Mas para além das acções meramente virtuais, o A31 foi também um exemplo de coordenação entre

os manifestantes de rua e os hacktivistas, como assinala Olivier Blondeau (2005) que caracteriza o

movimento de protesto como um verdadeiro festival de "resistência electrónica", empregando um

termo introduzido pelo CAE. Nas palavras de Blondeau, "as ruas de Nova Iorque foram

transformadas num vasto laboratório de experimentação de media tácticos" em que as tecnologias

127

móveis de comunicação foram empregues pelos hacktivistas como meio de se "reapropriarem da rua"

e de "inscrever a sua acção no espaço público urbano" (idem). No caso do projecto Bikes Against

Bush144, por exemplo, utilizou-se tecnologias "velhas" e tecnologias digitais de uma forma original e

subversiva por exemplo. Inspirado no conceito empregue pelo grupo activista Institute for Applied

Autonomy145 na concepção do StreetWriter146, um dispositivo pilotado por computador que pode ser

auto-mobilizado via rádio-comando ou rebocado por uma viatura e que permite desenhar graffities,

Joshua Kinberg, um estudante da Parsons School of Design de Nova Iorque instalou esse dispositivo

na sua bicicleta de montanha, ligando o seu computador portátil à Internet através de um telemóvel.

Durante a convenção, qualquer pessoa podia aceder ao site do projecto e enviar uma mensagem que

seria imediatamente reproduzida no chão da estrada à medida que a bicicleta circulava pelas ruas da

cidade (ibidem).

Tal como em Seattle e em Génova, o telemóvel também foi utilizado para transmitir informação.

Porém, o seu recurso foi muito mais coordenado. O Txtmob147, outro projecto do Institute for Applied

Autonomy, insere-se no conjunto de práticas de mobilização empregues nas Flash Mobs, tendo

consistido no envio de informações por SMS para os telemóveis a quem se tivesse registado numa

lista de subscritores. Os activistas que participaram nas manifestações contra as convenções

democrata e republicana de 2004 poderam em tempo real ficar a par das movimentações da polícia,

do local e hora exactas das acções de rua e coordenar o trabalho de assistência jurídica e médica entre

si. Noutra abordagem, o serviço Web Moport148 permite através de um endereço de email descarregar

fotografias e vídeos captados pelos activistas durante a convenção republicana nos seus telemóveis

para serem em seguida logo colocados online (idem, 2005). Essa convergência entre tecnologias

móveis como telemóveis e redes de Internet sem fios e accção directa foi alargada com a inclusão do

RSS149 ou sindicância de conteúdos. No caso do projecto RNC Redux/Remix Open Doc150 do grupo

Screensavers, agregagaram-se todos os conteúdos em suporte texto, áudio ou vídeo disponíveis online

de forma a possibilitar a sua distribuição para um blog, site de informação, telemóvel ou aplicação de

mensagens imediatas, recombinando-os no ciberespaço ou nas ruas.

144 Site disponível em http://www.bikesagainstbush.com. 145 Site disponível em http://www.appliedautonomy.com.146 Site disponível em http://www.appliedautonomy.com/sw.html. 147 Site disponível em http://www.txtmob.com.148 Site disponível em http://www.moport.org.149 Really Simple Syndication (RSS) é um formato de XML (eXtensible Markup Language) para partilhar notícias e

conteúdos permanentemente actualizados de sites noticiosos , de discussão e, sobretudo, blogs. O XML é uma linguagem para a Web que permite organizar os dados contidos num documento, de forma a que esta informação possa ser trocada e interpretada por diferentes sistemas e aplicações.

150 Arquivo do site original disponível em http://web.archive.org/web/20041009195827/http://screensaversgroup.org/projects/rncredux.

128

5.3 – Artivismo: Crítica e Subversão na net.art

O acto de resistência possui duas faces: Ele é humano e é também um acto de arte. Apenas o acto de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os homens.

- Gilles Deleuze, “Qu’est-ce que l’acte de création?”

O surgimento de projectos artísticos concebidos para a Internet data de 1994, coincidindo com o

período em que a Web se começa a tornar uma tecnologia comum, permitindo visualizar não apenas

textos mas imagens coloridas a partir da Rede. Desde então até à actualidade, o número de iniciativas

artísticas classificadas de net.art não tem parado de aumentar. Muitas destas obras abordam questões

sociais e políticas através de uma perspectiva crítica e creativa. Com vista a designar algumas práticas

artísticas até então inéditas, dado estarem associadas à Rede, foi criado o termo artivismo. Segundo

Laura Baigorri trata-se de “um neologismo resultante da combinação das palavras arte e activismo e

teoricamente utilizado para referir-se às obras que comungam de ambos os interesses” (Baigorri,

2003). A autora nota que, apesar do seu potencial inicial, esta prática restringiu-se basicamente à

Internet e aos artistas pioneiros da net.art, como Heath Bunting151, Rachel Baker152, Alexei Shulgin153,

Olia Lialina154, Vuk Cosik155, Pit Schultz, o colectivo JODI156 e Andreas Broeckmann157. As suas obras

caracterizam-se pelo humor e ironia, bem como pela crítica tecnológica da Internet.

Um conceito necessário para compreender o artivismo é o de hacktivismo, um neologismo que resulta

da fusão entre a palavra activismo e o termo inglês hacking158. A partir do cruzamento entre o

artivismo e o hacktivismo, nasceu o art.hacktivismo, uma prática que, de acordo com Laura Baigorri,

“se baseia em acções de sabotagem com vista a denunciar a perigosa tendência da Rede de emular

todas as convenções artísticas tradicionais: direitos de autor, objectivização (num site online) e a sua

consequente comercialização” (idem).

Tendo em conta o âmbito de acção, Laura Baigorri distingue os projectos artivistas em quatro grandes

categorias: “os que se restringem à crítica da arte, os que ampliam o seu campo a todo o tipo de

questões políticas e sociais, os que se remetem ao próprio medium, isto é, os que exercem a crítica

151 Bunting é um dos primeiros artistas a identificar-se como artivista, como se pode ver num artigo “Heath Burting is on a Mission” assinado por James Flint e disponível em http://www.irational.org/irational/media/telegraph1.html (acedido a 8 de Novembro de 2005). O seu site está disponível em http://www.irational.org/heath/.

152 Site disponível em http://www.irational.org/rachel/.153 Site disponível em http://easylife.org.154 Site disponível em http://art.teleportacia.org/olia.html.155 Site disponível em http://www.ljudmila.org/~vuk.156 Site disponível em http://www.jodi.org.157 Site disponível em http://www.v2.nl/~andreas.158 Tal como referimos no ponto anterior, este movimento, que tem sempre como cenário de actuação a Rede, é

composto na sua maior parte por hackers que realizam acções de sabotagem através de redes informáticas com fins políticos, como a intrusão em servidores de instituições e organizações políticas de modo a alterar o conteúdo dos seus sites e aceder a ou modificar informação confidencial

129

tecnológica da Rede, e os que enfrentam o poder corporativista que está (também) presente na

Internet” (ibidem). Neste ponto, pretendemos basear a nossa análise na tipologia de Baigorri, embora

com algumas alterações159. Para esta autora, um dos principais grupos que centram a sua actividade na

crítica da arte é o colectivo italiano 0100101110101101.ORG160, “representantes máximos do

art.hackitvismo”. A sua filosofia de trabalho consiste no questionar e no ataque da comercialização da

arte e da net.art através de projectos de simulação offline, tal como a criação do “artista inexistente”

Darko Maver161, e de iniciativas online de duplicação e plágio, como a cópia dos sites de net.art

Hell.com162 e Art.Teleportacia163.

Como o colectivo italiano explica no artigo “art.hacktivism”, o site Hell.com “foi criado em 1995

como uma obra de arte conceptual, uma anti-web que não vendia e promovia nada e que estava

inacessível ao público” (0100101110101101.ORG, s/d). Ao longo de três anos, este espaço online

sem conteúdos, sem fazer parte de qualquer território e não contendo qualquer hiperligação para

qualquer outro site, obteve uma média de um milhão de acessos por mês por parte de pessoas que

introduziram o nome Hell – ‘inferno’ - em motores de busca. Após este período, tornou-se um serviço

de alojamento de páginas de net.art e de galerias de arte que apenas poderiam ser acedidas por

convite e cuja lista de membros era mantida em segredo. Os organizadores visavam criar uma

plataforma de lançamento de novos ciber-artistas, um ‘museu online’ extremamente elitista. Em

Fevereiro de 1999, o Hell.com organizou o evento “surface” em que participaram vários net.artistas

famosos como Zuper!, Absurd e Fakeshop. Tal como todos os eventos anteriores deste site, o acesso

era restrito apenas aos assinantes do site Rhizome. Durante as 48 horas que a iniciativa esteve online,

os membros do 01.ORG efectuaram o download de todos os ficheiros do Hell.com. Foi colocado

online um clone do site que podia ser acedido e reproduzido por todos164.

Na noite de 9 de Junho desse mesmo ano, foi a vez do Art.Teleportacia. Este site da russa Olia Lialina

foi, de acordo com o próprio 01.ORG, “a primeira galeria de net.art a aparecer na Web e também a

primeira tentativa de vender obras de net.art” (idem). Nessa altura, o site alojava a exposição

“Miniatures of the heroic period” - ‘Miniaturas do período heróico’ -, consistindo em algumas

159 A grande diferença é que, ao contrário de Laura Baigorri, não consideramos que o modelo de Desobediência Civil Electrónica introduzido pelo Critical Art Ensemble e posto em prática pelo Electronic Disturbance Theater em nome do movimento zapatista seja uma prática de artivismo, mas sim de hacktivismo. Assim, é nossa opinião de que o colectivo Luther Blissett/Wu Ming se enquadra bastante mais na categoria de artivismo de crítica política e social. Convém salientar que existe uma estreita imbricação entre artivismo e hacktivismo, existindo colectivos que empregam ambos os tipos de práticas de media tácticos. Desta forma, torna-se muitas vezes díficil distinguir se estamos perante uma acção de artivismo ou de hacktivismo.

160 Site disponível em http://www.0100101110101101.org. O grupo é composto pelo casal de artistas italianos Eva e Franco Mattes.

161 Site disponível em http://www.0100101110101101.org/home/darko_maver.162 Site disponível em http://www.hell.com. 163 Site disponível em http://art.teleportacia.org/.164 O clone do Hell.com efectuado pelo 01.org está disponível em

http://www.0100101110101101.org/home/copies/hell.com/index.html.

130

páginas da autoria de Jodi, Vuk Cosik, Irational, Easylife e Lialina, cada uma à venda por cerca de

dois mil dólares (1650 euros). Os elementos do 01.ORG duplicaram a galeria, manipularam os

conteúdos e fizeram o seu upload sem pedir autorização a alguém e violando o copyright do site

original. A exposição ‘clonada’ mudou o nome para “Hybrids of the heroic period” - ‘Híbridos do

período heróico’ - e os cinco trabalhos ‘originais’ foram substituídos por ‘híbridos’, isto é, ficheiros

resultantes da mistura de páginas dos net.artistas com alguns gráficos sem qualquer valor retirados da

Web165.

Até então, o site Art.Teleportacia partia do princípio de que uma obra de net.art podia ser vendida da

mesma forma que qualquer outra obra de arte. Por isso, defendia que cada trabalho de net.art devia

ser protegido pelo copyright e que ninguém, excepto o artista, podia efectuar o seu download ou

mesmo estabelecer uma hiperligação a ele, sem a autorização do autor. Olia Lialina afirmava que a

originalidade de uma obra online era garantida pelo seu nome de domínio ou endereço URL. Mas,

como explica o colectivo, “ao clonar o seu conteúdo, o 0100101110101101.ORG tornou evidentes

todas as contradições inerentes a este pensamento” ainda demasiado centrado no mercado artístico

tradicional (ibidem), uma vez que “quem quer que visite um site descarrega automaticamente, para a

memória cache, todos os ficheiros a que acede. De facto, eles já estão na sua posse, não fazendo por

isso sentido vender páginas que já estão nos discos rígidos de milhões de pessoas” (ibidem).

Retomamos assim a questão da facilidade da reprodutibilidade nas tecnologias digitais, já abordada

no capítulo sobre o movimento pelo software livre. Neste sentido, o grupo de artistas italiano avisa

que devemos ter em conta que “a net.art é digital, é código binário, sendo tudo reprodutível ao

infinito sem perda de qualidade” (ibidem). Numa altura em que cada cópia é idêntica ao original, “o

próprio conceito de ‘original’ perde todo o sentido, e mesmo os conceitos de falso e plágio deixaram

de existir” (ibidem). Uma acção semelhante, visando criticar a comercialização da net.art e defender o

livre acesso à informação online já tinha sido posta em prática em 1997 pelo artista esloveno Vuk

Cosik em relação à Documenta X, ao colocar no seu site pessoal um duplicado dos conteúdos desta

exposição e expondo-os de forma permanente após o evento ter encerrado as suas páginas na Web166.

Um trabalho mais recente do 01.ORG é “life_sharing”167, datado de 2001. Aqui, as noções de

privacidade e a identidade individual são questionadas até a um ponto de ruptura. Baseado na

tecnologia de partilha de ficheiros - file sharing -, mediante a qual computadores, ligados a redes

internas - intranets - ou a redes Peer-to-Peer de troca de músicas, jogos e vídeos, podem aceder e

efectuar o download de ficheiros guardados nos discos rígidos de outros computadores, o colectivo

anónimo abriu todo o disco rígido do seu computador na Internet. Através de um browser de

165 O clone do Art.Teleportacia.org efectuado pelo 01.org está disponível em http://www.0100101110101101.org/home/copies/art.teleportacia.org/index.html.

166 Site disponível em http://www.ljudmila.org/~vuk/dx.167 Site disponível em http://www.0100101110101101.org/home/life_sharing/index.html

131

navegação na Web, qualquer pessoa pode ter acesso a estes conteúdos visitando o site do grupo. O

“life_sharing” funciona nos mesmos moldes em que se acede a um site, só que em vez de

disponibilizar apenas alguns ficheiros como documentos de HTML, permite o acesso a todos os

ficheiros, incluindo o seu software e o sistema operativo Linux. Como nota Josephine Berry, “o

projecto identifica a tentativa de vedar e proteger a informação (no disco rígido de um PC ou num

servidor) como se tratando de uma actividade fútil e uma rendição perigosa ao mito da identidade

individual” (Berry, 2002). Numa entrevista, os membros do colectivo afirmam: “Considerem a

tendência crescente em direcção à intrusão na esfera privada – não apenas pelas grandes empresas – e

os esforços consequentes das pessoas na tentativa de preservarem a sua própria privacidade. O

0100101110101101.ORG acredita firmemente que a privacidade é uma barreira a demolir (...) A ideia

de privacidade em si mesma é obsoleta.” (Fuller, s/d). Por outro lado, com “life_sharing”, pretende-se

combater a paranóia dos sistemas de vigilância accionados pelo Estado e pelas grandes empresas com

a disponibilização de informação em excesso.

Outro projecto italiano de artivismo é o Luther Blissett. Trata-se de uma personagem, uma figura

mítica por detrás da qual se escondem várias identidades e nomes múlriplos. No ensaio “The XYZ of

Net Activism”, os seus criadores designam-no de “mito pop”, uma “estrela pop colectiva e ‘aberta’”

que toma de empréstimo o nome de um antigo jogador de futebol do clube britânico Watford

(Blissett, s/d). José Luis Brea (2002) define-o como sendo “uma figura de autoria clandestina e

compartilhada por um sem-número de intelectuais críticos que escolheram a via de uma identidade

múltipla e simulada para participar na discussão colectiva contemporânea na rede, como alternativa ao

próprio espectáculo da autoria intelectual”. Gérson de Oliveira explica que “o mito italiano Luther

Blissett, que se alastrou a países como Reino Unido, França, Espanha e Brasil nos anos 90 como um

conglomerado de pessoas anónimas incitando a rebeldia e a revolução contra a cultura dominante, foi

aniquilado pelos seus criadores originários de Bolonha no ano 2000” (Oliveira, s/d). O colectivo

orquestrou a sua morte simbólica através do ritual suicida ‘seppuku’ No entanto, o projecto nunca

deixou de existir de facto, tendo sido “perpetuado em livros e textos publicados na Internet” (idem)168.

Por outro lado, “em acções concretas, os homens por detrás de Luther Blissett, sempre incógnitos,

convidavam todos a serem também Luther Blissett”. Na óptica destes autores, tratando-se de um

nome múltiplo, “qualquer um poderia assumir a identidade de Blissett e contestar qualquer coisa, a

qualquer hora”. Desta forma, apesar de ter sido anunciado o seu suicídio, Luther Blissett169 nunca

pode morrer.

Criado em Bolonha em 1994, este projecto de cariz político-cultural actua através de um activismo

168 Em Fevereiro de 1999, Roberto Bui, Giovanni Cattabriga, Luca Di Meo e Federico Guglielmi publicaram com o nome de Luther Blisset o romance histórico Q, editado em Portugal com o título O Espião do Vaticano (2005) pela editora Saída de Emergência. Estes membros do projecto de 1994 a 99 foram também os fundadores do Wu Ming.

169 Site disponível em http://www.lutherblissett.net.

132

contra a nova ordem neo-liberal e a globalização capitalista, bem como toda a forma de

“pasteurização do pensamento” que os defensores deste modelo pregam e provocam. É a favor do

anarquismo face aos poderes e normas estabelecidas na sociedade, sobretudo a indústria dos media.

Durante a sua existência concreta, o grupo destacou-se pelo uso imprevísivel de diversos media, como

manifestos, banda desenhada, performances de rua, difusão de notícias falsas ridicularizando os media

e jornalistas italianos, sermões pseudo-religiosos transmitidos pela rádio e diversas acções tácticas,

como a realização de uma festa dentro de um autocarro – que acabou num tribunal onde todos os

envolvidos se identificaram como Luther Blissett. Partilhando o método de guerrilha semiológica

comum a outros praticantes tácticos, como os culture jammers, propôs uma espécie de epidemia

mediática, concretizada através da sinergia de acções múltiplas ocorrendo em diferentes pontos do

globo sob a autoria de um personagem único. De certa forma, Luther Blissett pode ser colocado junto

do tipo de projectos artivistas que abordam toda uma vasta gama de questões políticas e sociais,

seguindo a tipologia de Laura Baigorri. O colectivo chegou mesmo a publicar online em 1997 um

livro chamado Lasciate che i Bimbi, em que a pedofilia é considerada como uma desculpa para a

‘caça às bruxas’.

Após o suícidio de Blissett, foi criado o grupo Wu Ming170 - ‘sem nome’ em mandarim, expressão

empregue na China para designar as publicações dissidentes -, que se auto-define na sua Declaração

de Intenções (Wu Ming, 2003) como “um laboratório de design literário, que trabalha em diferentes

media e por diversas encomendas”. Wu Ming assume-se como “uma empresa independente de

‘serviços narrativos’ gerida por um colectivo de agitadores da escrita”. Um exemplo desse tipo de

serviços consiste em “actividades de ligação entre literatura e novos media”. Pretende valorizar a

cooperação social, tanto sob a forma de produção como no seu conteúdo, acentuando assim a

importância da colectividade. Tal como nos trabalhos e acções assinados por Luther Blissett, os

produtos Wu Ming não têm copyright, seguindo a mesma lógica dos hackers do movimento pelo

software livre. Mais uma vez, o que está em questão é a ideia de informação livre.

Outro grupo importante de artivismo é a RTMark171, que Laura Baigorri define como sendo “uma

organização com base na Internet que utiliza a sabotagem com fins sociais” (Baigorri, 2003). O seu

site na Web “funciona como um centro online para o financiamento de sabotagens inteligente, explica

Graham Meikle (2002: 114). O método da RTMark assenta na multiplicação de colaborações pontuais

Segundo este autor, os objectivos da RTMark consistem em “chamar a atenção para o sistema de

poder corporativo” e “recuperar a linguagem da apropriação empresarial”, à semelhança dos culture

jammers (idem). Os seus membros organizam uma série de actividades culturais, desde o Phone In

170 Site disponível em http://www.wumingfoundation.com.171 Site disponível em http://www.rtmark.com.

133

Sick Day172 ao prémio Corporate Poetry173 – ‘Poesia Corporativa’ -, atribuído anualmente a discursos

de empresas que abusam da linguagem de gestão. Esta ‘empresa’ anti-corporativa esteve envolvida

em acções famosas de outros grupos como a Barbie Liberation Organization174 datada de 1993, em

que os membros do colectivo financiaram em oito mil dólares (cerca de 6.500 euros) um grupo que

trocou as caixas de voz de cerca de 300 bonecas Barbie e bonecos GI Joe de forma a evidenciar os

estereótipos sexuais dos brinquedos para crianças. Graham Meikle conta que “as bonecas foram de

seguida devolvidas às estantes de lojas de brinquedos, só que com uma nova funcionalidade: a Barbie

gritava ‘Vengeance is Mine’ – A Vingança é Minha -. Outros projectos concluídos pela RTMark

incluiram o financiamento de uma acção levada a cabo por um programador informático consistindo

na inclusão de conteúdos eróticos homossexuais ao jogo de computador Simcopter175, tendo sido

distribuídas 80 mil cópias desta versão e da produção do CD anti-copyright Deconstructing Beck176,

contendo canções compostas inteiramente de samples de gravações do músico Beck – que, por sua

vez, também eram, elas próprias, constituídas em grande parte por samples. De forma a criticar o

défice democrático nos Estados Unidos, criaram o site Voteauction.com177, uma farsa onde se

propunha a compra de votos.

Mas a iniciativa mais popular da RTMark foi o projecto gwbush.com, uma página simulada do site da

primeira candidatura presidencial de George W. Bush, destinada a desmascarar a tensão existente

entre a conhecida ligação de Bush com a cocaína no passado e a sua política conservadora enquanto

governador do estado norte-americano do Texas que levou à prisão de vários consumidores da mesma

droga. A respeito deste site, o actual presidente dos Estados Unidos respondeu que “devia haver

limites à liberdade de expressão”178.

Outra grande farsa deste colectivo surgiu nas vésperas da reunião da Organização Mundial do

Comércio (OMC – WTO) em Seattle, a 30 de Novembro de 1999. Em alternativa ao site oficial desta

instituição (www.wto.org), é criado o site www.gatt.org, identificado como homepage da

OMC/GATT. Com um design completamente idêntico ao do site oficial, o gatt.org contém links para

várias associações activistas a favor de uma globalização alternativa e ecologistas, chegando ao ponto

de incluir um comunicado em que se anuncia o calendário para o termo de todas as actividades da

OMC179. Apesar de o gwbush.com e o gatt.org terem sido os mais espectaculares, estes não foram os

172 Site disponível em http://www.rtmark.com/sick.html.173 Site disponível em http://www.rtmark.com/corpoetry.html.174 Site disponível em http://www.rtmark.com/blo.html175 Site disponível em http://www.rtmark.com/simcopter.html.176 Site disponível em http://www.rtmark.com/db.html.177 Site disponível em http://www.vote-auction.net/vote_auction_original_site_2000. Para mais informações, ver

http://www.vote-auction.net.178 O projecto foi, entretanto, desmantelado, mas a RTMark possui um arquivo com todas as versões do site-farsa em

http://www.rtmark.com/bush.html.179 A história deste projecto pode ser lida em http://www.rtmark.com/gatt.html. O site gatt.org continuava em

funcionamento em Dexembro de 2005.

134

primeiros sites-clones da responsabilidade da RTMark. Nestes projectos, o site do colectivo surgia

disfarçado como a homepage da McDonalds ou da Shell, encontrando-se o conteúdo ‘subversivo’ por

debaixo de uma cópia do site da empresa em questão.

No ano seguinte, a táctica de sobre-identificação da RTMark empregue no Gatt.org é levada ao

extremo com a criação dos Yes Men180, um alter-ego desta auto-denominada "agência de relações

públicas anti-empresarial" (RTMark, 2000 [1998]) que actua como se fosse um grupo de

representantes da OMC em eventos que decorrem em vários pontos do mundo, sem que ninguém da

audiência se aperceba que se trata de uma performance satírica. Assim, tanto podem aparecer numa

conferência de advogados na Áustria como num programa de informação de uma estação de televisão

britânica ou numa convenção da indústria têxtil na Finlândia ou ainda num congresso de contabilistas

na Austrália, sempre a convite de funcionários que não suspeitam da farsa. Ao salientarem e

exagerarem as contradições os aspectos social e economicamente injustos daquela organização, eles

funcionam como "um espelho distorcido do Estado globalizado", como afirma Brian Holmes (2004),

utilizando a mesma linguagem "vazia" e os termos técnicos do código de etiqueta empresarial. Em

lugar da posição habitual do activista de "comunicar com verdade ao poder", optam por "comunicar a

verdade do poder" através do exagero (idem).

A RTMark constitui-se legalmente sob a forma de uma sociedade anónima de responsabilidade

limitada de forma a tirar partido dos benefícios que a legislação dos Estados Unidos concede a este

tipo de entidade jurídica. Este princípio de responsabilidade limitada permite que os membros da

RTMark realizem trabalhos culturalmente subversivos e, por vezes, até ilegais (Galloway, 2004: 228).

Deste modo, o colectivo pretende assim chamar a atenção para o excesso de poder que as empresas

gozam graças a este princípio. Em termos de funcionamento, o colectivo “actua quase da mesma

forma que uma instituição de serviços financeiros, oferecendo uma gama de produtos de investimento

aos consumidores”, afirma Alexander Galloway (idem). “Enquanto que um banco comercial possui

uma gama de opções de investimento, desde fundos tecnológicos a contas poupança reforma, a

RTMark oferece uma série de fundos que representam diferentes campos de produção cultural

subversiva”, explica (ibidem). Os visitantes do site do grupo são encorajados a investir na realização

de projectos, com a promessa de receberem ‘dividendos culturais’ (Meikle, 2002: 116). Acima de

tudo, estes projectos visam questionar os direitos e o poder ‘soberano’ das empresas, apelando, por

exemplo, a uma maior transparência das suas actividades. Para além disso, existe em alguns casos um

incentivo monetário. Assim, o primeiro tribunal dos Estados Unidos que mandar prender ou condenar

à morte uma empresa receberá dois mil dólares (cerca de 1650 euros). Argumentando que, por lei, as

empresas norte-americanas são consideradas cidadãos dos Estados Unidos – possuindo os mesmos

180 Site disponível em http://www.theyesmen.org.

135

direitos que estes -, e que por isso, deve ser possível casar com uma, outro projecto oferece 200

dólares (164 euros) a quem cometer esse feito. O público pode ainda contribuir com tempo,

equipamento ou informação para um projecto e até propor novas iniciativas.

Outro grupo de artivismo que actua como uma empresa é a Etoy181, um colectivo libertário e radical

criado em 1994 e composto por artistas-hackers originários da Suiça, Áustria e Inglaterra que opera

na Internet mediante a realização de projectos críticos que questionam o poderio das grandes

empresas dos media e da Internet. A experiência artística deste colectivo centra-se na abordagem dos

principais temas ligados à evolução da Net: o fim da identidade e a mutação corporal, o papel

fundamental da velocidade, a alteração do conceito de espaço, a relação entre a realidade e Rede ou

entre verdade e Rede, o ciberterrorismo, o perigo de um controlo centralizado e de uma censura

secreta e completamente inapreensível ([email protected], s/d). A Etoy criou a Digital Hijacking, a

primeira tecnologia que permitia efectuar o sequestro virtual de sites. O projecto Digital Hijack –

‘Sequestro Digital’ – foi o primeiro ‘rapto’ em massa na Internet. Mediante a utilização de motores de

busca, pretendia-se demonstrar como um pequeno grupo de empresas controla os destinos de milhões

de cibernautas A acção começou a 31 de Março de 1996 e terminou a 31 de Julho desse mesmo ano.

Durante este período, o grupo conseguiu redireccionar para o seu site cerca de 600 mil internautas,

mediante a criação de centenas de páginas falsas pelos seus agentes de software contendo uma das

2400 palavras-chave mais populares (como sex, heaven, love, porsche ou madonna). Estas páginas

eram incluídas automaticamente nos motores de busca Altavista e Infoseek.182

O objectivo declarado da operação consistiu em obter a libertação de Kevin Mitnick, o cracker mais

famoso de sempre que foi capturado pelo FBI em Fevereiro de 95. Mas a verdadeira intenção foi

mostrar os limites e a potencialidade inexpressa da Rede. Tratou-se assim de uma operação de

sabotagem e crítica do sistema mediático que, através do seu simbolismo, resumiu as principais

questões suscitadas pela massificação da tecnologia digital, como a crise do conceito de espaço e o

risco de um controlo invísivel e centralizado dos motores de busca.

A Etoy assume-se como uma sociedade que produz arte e cultura. Pretende gerar dúvida e confusão

nos media mas também subverter a relação entre arte (em especial, a electrónica) e o mercado. Ao

emitir 640 mil títulos accionistas da ‘empresa’ Etoy, disponíveis no mercado através de uma oferta

pública de aquisição, este colectivo forneceu o primeiro exemplo de comércio de arte concebida

especificamente para a Web. Desta forma, conseguiu resolver duas questões: como ultrapassar a

181 Site disponível em http://www.etoy.com.182 Apesar de se poder encontrar alguns exemplos no site http://www.hijack.org, muitas destas páginas foram

eliminadas. Contudo, conforme esclarece Laura Baigorri (2003), “outras ainda não foram localizadas hoje em dia e ainda que a acção tenha terminado, os membros do colectivo garantem que o projecto irá continuar até que sejam ‘sequestradas’ um milhão de páginas ou até que o Etoy seja removido pelas principais companhias de pesquisa na Web dos seus motores de busca”.

136

intermediação do galerista e dos marchands para difundir as suas próprias obras e o que vender

quando não se produz quadros ou esculturas mas acção, choque e emoção. “As acções representam

uma quota de propriedade na companhia e funcionam de forma semelhante à posse de capital no

sistema do mercado bolsista”, explica Alexander Galloway (2004: 229). Este autor acrescenta que “as

acções Etoy possuem um valor monetário e podem ser adquiridas directamente à companhia. Após

receber um investimento por parte do ‘cliente’, a Etoy emite um certificado original impresso em

alumínio e tornado único mediante a inserção de um smart chip”. O valor das acções Etoy é registado

num gráfico mantido online pela organização. A ascensão e queda do valor do título bolsista

corresponde directamente ao sucesso ou fracasso relativo do grupo artístico no sector cultural. As

acções representam o capital cultural associado ao colectivo em qualquer momento. Os dividendos

culturais devolvidos pelos artistas sobem e descem de acordo com o valor do título.

Mas a iniciativa que tornou este colectivo europeu de arte digital mais famoso foi a Toywar, a guerra

travada com a eToys, uma empresa dedicada ao comércio de brinquedos via Internet (Dominguez,

2002; Meikle, 2002; Baigorri, 2003; Galloway, 2004; Jordan e Taylor, 2004). Em 1995, os membros

do Etoy registaram o nome de domínio etoy.com. Dois anos mais tarde, uma start-up – empresa

tecnológica de elevado potencial que se encontra no início da sua actividade – de venda de brinquedos

online comprou o domínio etoys.com. Em finais de 1999, esta companhia decidiu desencadear um

litígio judicial contra a Etoy devido à utilização deste domínio, receando que os compradores de

brinquedos via Net pudessem ficar confusos e potencialmente ofendidos pelo site dos artistas, se se

enganassem e escrevessem ETOY.COM nos seus browsers em vez de ETOYS.COM. Inicialmente, a

eToys propôs-se a comprar o endereço do colectivo artístico, oferecendo 16 mil dólares (13.140

euros). Mas os artistas recusaram. O caso parecia ter chegado ao fim quando um juíz de Los Angeles

decide a favor da eToys, obrigando assim a Etoy a fechar o seu site da Web e a deixar de utilizar

aquele nome.

No entanto, ocorreu um contra-ataque, o que é algo inesperado em casos de alegada violação de

marca registada accionados por grandes companhias contra indíviduos e organizações com menos

poder. Em pouco tempo, desencadeou-se um movimento de apoio à Etoy composto por milhares de

simpatizantes, como o defensor das liberdades civis John Perry Barlow e o autor Douglas Rushkoff. A

notícia foi bastante difundida pela imprensa. Foram criados sites que ridicularizavam a eToys e

descredibilizavam a propaganda da comerciante de brinquedos e nstauraram-se vários contra-

processos à eToys. O grupo de hacktivistas Electronic Disturbance Theater, em colaboração com a

RTMark, desencadeou um sit-in virtual com o seu software FloodNet de forma a bloquear o acesso ao

site da retalhista de brinquedos. Outra arma de ataque virtual empregue foi a plataforma da “guerra

dos brinquedos”, que constituia uma sala de chat com gráficos que utilizava imagens de soldados

137

semelhantes a figuras da Lego. O espaço – que só ficou operacional quando a “guerra” já estava

virtualmente ganha – deveria ter servido como local de coordenação das acções (Jordan e Taylor,

2004: 83-84). A onda de protestos – que chegou mesmo às salas de chat e fóruns de discussão online

dos investidores - gerou uma forte diminuição das vendas da eToyse uma descida do seu título

bolsista, levando a empresa a ceder e a retirar o seu processo contra a Etoy no dia 25 de Janeiro de

2000. No ano seguinte, acabou por declarar falência. As actividades artivistas de grupos como este

colectivo europeu e a RTMark passavam assim pela primeira vez a ter um impacto efectivo no

‘mundo real’ do capitalismo, deixando de ser apenas iniciativas simulatórias e virtuais183.

Esse é também o objectivo por detrás de um novo projecto artivista de um dos elementos da Etoy ,

Hans Bernhard, agora através da "organização" Ubermorgen.com184 e em colaboração com o crítico

italiano dos media Alessandro Ludovico185. Intitulado Google Will Eat Itself (GWEI - "O Google irá

comer-se a si próprio"), esta iniciativa assenta num modelo económico que pretende funcionar como

um parasita daquela empresa de pesquisa e publicidade na Web, gerando dinheiro através da

disponibilização de mensagens publicitárias do Google no site GWEI.org186. Cada vez que uma

pessoa visita um dos sites secretos do projecto espalhados pela Net, um software especial clica num

anúncio disponibilizado através do programa de anúncios AdSense do Google. Por cada clique num

anúncio, os artivistas recebem do Google um pequeno montante. Quando a quantia reunida é

suficiente, é dada automaticamente ordem de compra de uma acção da companhia. Conforme se pode

ler no site, o objectivo último desta "desconstrução dos novos mecanismos da publicidade global" é

"comprar o Google através da própria publicidade que disponibiliza"187. No final, a propriedade

comum das acções do Google obtidas através deste sistema será concedida à empresa pública Google

To The People Ltd.188 (GTTP - "O Google Para As Pessoas") que as devolverá aos utilizadores que

tiverem clicado nos anúncios (GWEI, 2005). O que está em causa em GWEI é o desejo de

desmascarar o monopólio total de informação obtido pelo Google189. Ao mesmo tempo, a intenção é

183 Jordan e Taylor, que não empregam o termo artivismo, afirmam que a campanha da Etoy representa “um cruzamento entre o hacktivismo e o culture jamming (2004: 83).

184 Site disponível em http://www.ubermorgen.com185 Ludovico é responsável pelo Neural.it, um site italiano disponível em http://www.neural.it, que divulga informação

sobre música electrónica, hacktivismo e Net.art.186 Disponível em http://www.gwei.org. 187 Por agora, essa meta parece ser excessivamente ambiciosa pois a 19 de Dezembro de 2005 os organizadores ainda

só tinham conseguido comprar 40 títulos bolsistas e a este ritmo levará 3,5 milhões de anos até que tomem o controlo total da empresa, segundo os dados que disponibilizam em http://www.gwei.org/pages/google/googleshare.php.

188 Os utilizadores interessados podem preencher um formulário online em http://www.gwei.org/pages/gttp/gttp.php.189 Através do seu motor de pesquisa e de serviços derivados como notícias e email, o Google tornou-se o site mais

visitado da Web e conseguiu construir uma enorme base de dados dos termos pesquisados e mensagens recebidas que, quando cruzados, permitem traçar um perfil de hábitos e interesses pessoais dos seus utilizadores. Daqui deriva o sucesso do seu programa de colocação de mensagens publicitárias em sites como blogs. Os bloggers recebem uma pequena quantia por cada clique nesses anúncios. A companhia funciona assim como um gigante intermediário entre os anunciantes, os produtores de conteúdos como os bloggers e os utilizadores. Em relação a este assunto, o cartoon "Google 2084" de Randy Siegel publicado como editorial do jornal New York Times a 10 de Outubro de 2005, é um exercício de futurologia sarcástica que actualiza o cenário de controlo total da informação descrito por George Orwell em 1984 segundo o qual o Google será o novo Grande Irmão que colocará os detalhes mais intímos da vida

138

também revelar as falhas do sistema global de publicidade online. Através de uma ideia que retoma o

pensamento de Galloway (2004), Hardt e Negri (2000; 2004) e Arquilla e Ronfeldt (2001), os

organizadores do GWEI defendem que o maior inimigo de um gigante não é outro gigante mas um

parasita: "Se um número suficiente de parasitas sugar pequenas quantias em dinheiro desta entidade

auto-referencial, eles irão esvaziar esta montanha artificial de dados e o seu risco inerente de

totalitarismo digital" (GWEI, 2005a).

Um projecto que também se situa na área do artivismo é They Rule190, um site da responsabilidade de

Josh On e do colectivo de artistas Future Farmers191 que revela as ligações existentes entre políticos,

industriais e o sector empresarial. Através de mapas e directórios interligados, pode-se ver quem se

senta nos quadros de direcção das 500 maiores companhias norte-americanas – com base no índice

composto pela revista Fortune. Para além disso, permite saber quais os cargos adicionais que esses

executivos desempenham noutras empresas e instituições políticas e de ensino, bem como as doações

políticas que fizeram, quer em termos individuais como colectivos. Os utilizadores podem construir

mapas de influência e guardá-los no site para que outros visitantes possam visualizá-los e avaliá-los.

Este projecto, actualmente na sua segunda versão – lançada em 2004; a primeira data de 2001 -, é

também uma tentativa de demonstrar as relações que existem entre alguns dos mais poderosos

executivos empresariais dos Estados Unidos ao exibir visualmente as companhias em que estão

envolvidos e como essas organizações, como a Coca-Cola, Pepsi, Microsoft, IBM, Procter & Gamble

e HP podem lucrar com essa relação.

A cartografia das estruturas complexas do poder transnacional é uma tarefa também desenvolvida

pelo grupo Bureau d'Etudes. Um dos seus mapas é "Governo Mundial"192, uma representação das

“relações de poder no mundo detidas por um complexo intelectual capaz de coordenar, acumular e

concentrar os meios para a definição das normas e determinação do desenvolvimento do capitalismo".

O Bureau d'Études apresenta-se como um serviço informações (intelligence) open-source em que os

dados produzidos estão disponíveis livremente para todos. Segundo Brian Holmes, o aspecto artístico

das suas criações baseia-se sobretudo no "design gráfico, na invenção icónica, mas também na

audacidade experimental das hipóteses que desenvolvem, no sentido de explicitar o impacto de

hierarquias distantes implicadas na tomada de decisões na vida quotidiana" (Holmes, 2005). Tal

como outros artivistas, fazem questão de disponibilizar livremente os seus trabalhos em papel ou pela

Internet, colaboram nos projectos de outros colectivos, partilhando uma atitude de desconfiança face

ao sistema tradicional de distribuição da arte através dos museus. Nos seus planos futuros está o

privada de cada um acessíveis a todos: http://www.nytimes.com/imagepages/2005/10/10/opinion/1010opart.html190 Site disponível em http://www.theyrule.net.191 Site disponível em http://www.futurefarmers.com.192 Bureau d'Études (2004), Le gouvernement mondial, états post-nationaux, réseaux d'influence, biocratie, Estrasburgo,

Éditions Homnisphères. Este e outros mapas do colectivo estão disponíveis em http://ut.yt.t0.or.at/site/index.html.

139

desenvolvimento de um "gerador de mapas": "Uma máquina que permita que todos possam produzir

os mapas de que necessitem para as suas acções, mediante a introdução de dados relativos à empresa

ou instituição em que trabalham ou sobre a qual encontraram alguma informação"193. Com esta

tecnologia, pretende-se "identificar a organização espacial e a hierarquia de propriedade das linhas

fragmentadas de produção da economia global a longo prazo e, ao mesmo tempo, sugerir a

possibilidade de formações alternativas que possam articular diferentes públicos" (idem). Para Brian

Holmes, iniciativas como o Bureau d'Études e They Rule são formas de intervenção artística ao nível

da geopolítica que vão mais além da representação simbólica do inimigo no sentido em que revelam o

potencial político da sociedade mundial, a capacidade de transformar as hierarquias do poder global

(ibidem).

Visando romper com o “monopólio técnico-estético” dos navegadores da Web Internet Explorer da

Microsoft e Netscape Navigator da AOL, o Web Stalker194, do colectivo britânico I/O/D195, é um

browser alternativo que em vez de mostrar páginas comuns da Web, revela as redes de hiperligações

que estas páginas representam (Manovich, 2001; Berry, 2002; Galloway, 2004). Quando um

cibernauta introduz o endereço de uma determinada página, o Web Stalker exibe numa janela todas as

páginas ligados a esse endereço sob a forma de um gráfico de linhas, revelando noutra janela o

código-fonte da página. Este projecto demonstra que, como afirma Matthew Fuller, “uma vez que

todo o código HTML – linguagem de programação de páginas da Web - é recebido por um

computador sob a forma de um fluxo de dados, não existe nada nesse código que obrigue a seguir as

instruções de design nele escritas. Estas instruções são apenas cumpridas por um dispositivo

obediente a elas” (Fuller, 1998). Assim, a aparência do HTML no monitor depende do programa

empregue para recebê-lo. O fluxo de HTML é concebido pelos membros do I/O/D como uma corrente

que pode ser interpretada por um software diferente de uma forma completamente oposta à

inicialmente intencionada pelo Web designer.

A intervenção artística nas ruas com fins políticos e sociais é também uma componente dos projectos

colaborativos artivistas. A manutenção de um espaço virtual na Internet para divulgar informação é,

tal como no hacktivismo, uma prática corrente. O colectivo italiano Chainworkers196, de Milão, actua

como uma organização laboral que apesar de não ter quaisquer intenções estéticas directas, aspira

"desenvolver uma linguagem icónica que possa alcançar em simultâneo os jovens que desempenham

tarefas de serviços em cadeias de lojas, trabalhadores temporários e intelectuais free-lancers", refere

Brian Holmes (2004). Entre o seu leque de acções contam-se a realização de manifestações e a

193 Bureau d'Études (2004), "Resymbolising Machines: Art After Oyvind Fahlstrom", Third Text, nº 18, Junho, págs 609-616. Citado por Holmes (2004).

194 Site disponível em http://www.backspace.org/iod/iod4.html.195 Site disponível em http://www.backspace.org/iod/index.html.196 Site disponível em http://www.chainworkers.org.

140

afixação de faixas com mensagens de protesto em centros comerciais, o que é considerado ilegal uma

vez que o direito de reunião pública dentro destes espaços é bastante constragido (idem). O site deste

colectivo funciona como um recurso de informação jurídica e um meio de criar uma consciência

colectiva. O Chainworkers foi ainda responsável pela reinvenção da tradicional manifestação do

Primeiro de Maio, adaptando o conceito de manifestação às condições laborais do século XXI em que

as economias ocidentais assentam sobretudo no trabalho precário e flexível. O sucesso do

EuroMayday197 acabou por superar as iniciativas lideradas por sindicatos: a primeira edição, em 2001,

reuniu cinco mil participantes em Milão, ao passo que a terceira, em 2003, conseguiu congregar 50

mil pessoas na mesma cidade italiana. No ano seguinte, a iniciativa alargou-se a Barcelona e, em

2005, difundiu-se para o resto da Europa, tendo esta edição abarcado 19 cidades do continente. Brian

Holmes descreve um pouco o ambiente que se vai vendo ao longo das ruas durante estes eventos:

Dançarinos com écharpes de plumas rosa que entram numa loja Zara para sabotar o comércio da moda; trabalhadores africanos que envergam máscaras brancas que têm escrito "invísivel"; um boneco gigante representando os diferentes tipos de empregos temporários ("escravos" dos call-centers; entregadores de pizzas; operários da construção civil que recebem ao dia), Uma enorme faixa verde envolve a parte lateral de um camião que transporta uma aparelhagem sonora por entre a multidão: "A metrópole é uma besta: cultiva a micropolítica da resistência". Um dos cartazes do evento exibe um contorcionista de um circo antiquado - uma alegoria do trabalhador flexível na sociedade do espectáculo (ibidem).

Para além de desenvolver uma "linguagem estética sob a forma de um território de expressão”, o

EuroMayDay reinvidica um conjunto de garantias mínimas de modo a tornar o trabalho flexível

numa actividade digna e viável: "um ambiente urbano não-poluído; habitação e cuidados de saúde

generalizados; educação pública de qualidade; acesso às ferramentas de produção de informação -

mas também ao tempo e aos espaços necessários para a produção social e afectiva" (idem). Os

trabalhadores precários ou atípicos exigem assim um novo regime de segurança social que os protega

sem renunciar à flexibilidade, a "flexigurança", como é designada por Marcello Tari e IIaria Vanni

(2005). Do mesmo modo que outros elementos da geração pós-fordista a que pertencem, não

procuram obter uma posição permanente e para toda a vida (idem).

Em Fevereiro de 2004, os Chainworkers introduziram uma nova performance, São Precário198, o

santo patrono dos precários em substituição do papel tradicional de líder e porta-voz, uma figura com

uma história própria que tem surgido de uma forma nomádica em diversas cidades da Itália. Matteo

Pasquinelli considera que se trata de uma "estrela pop open-source (tal como o seu percussor Luther

Blissett) que funde personagens arquétipas do imaginário colectivo italiano (os santos) com as mais

recentes personagens sociais (os trabalhadores temporários)" (Pasquinelli, 2005). Na medida em que

197 Site disponível em http://www.euromayday.org.198 Site disponível em http://www.sanprecario.info.

141

se "apropria da tradição católica italiana de transportar estátuas de santos em procissões nos espaços

públicos", este novo héroi é visto por do mesmo ângulo que já abordámos anteriormente: funciona

simultaneamente como "um détournement, uma Zona Temporária Autónoma, um carnaval" (Tari e

Vanni, 2005). O santo, que também faz milagres, "aparece em espaços públicos durante a realização

de comícios, marchas, intervenções, manifestações, festivais de cinema, feiras de moda e, é claro,

procissões". A personagem fez as suas primeiras aparições a 29 de Fevereiro - data fixada para o dia

desta nova "devoção" -, e desde então multiplicou-se materialmente em diferentes disfarçes - pois

"não privilegia uma classe de precários em relação a outra", tendo também já surgido sob a forma de

uma figura feminina (idem). O culto gerou um grande número de seguidores, o que levou à criação de

uma série de acessórios e rituais associados à santidade como várias e diferentes estátuas que são

transportadas em procissões, atributos iconográficos, hagiografia - narrativa biográfica -, uma oração,

campo de especialização e até mesmo o seu próprio santuário, numa praia de Lido di Veneza

(ibidem).

A capacidade de São Precario se transfomar a qualquer momento num novo imaginário ficou bem

patente na sua mutação em Serpica Naro199, um estilista anglo-nipónico "virtual" com um site200

próprio de aspecto profissional semelhante aos de outros designers de moda, que conseguiu ser aceite

pelos organizadores da Semana da Moda de Milão, sem que estes soubessem que se tratava de uma

farsa. Mesmo antes de desfilar, a figura despertou um grande interesse junto dos media comerciais,

tanto generalistas como especializados, que eram incentivados por comunicados de imprensa

supostamente oriundos de um gabinete de comunicação em Tóquio. Para gerar mais controvérsia, os

Chainworkers puseram a circular a informação de que Serpica tinha explorado a comunidade gay

japonesa ao copiar e comercializar o seu visual depois de ter proposto uma colaboração com eles. O

desfile, realizado a 29 de Fevereiro de 2005, contou com oito modelos concebidos por Serpica

abordando o tema da flexibilidade e das condições de trabalho precárias, seguido de uma passagem

de modelos criados por jovens estilistas que se recusam a comprometer com o sistema da moda. No

final, foi anunciado que Serpica Naro não existia, tendo a comunicação social divulgado amplamente

a história. Matteo Pasquinelli considera que, para além de "ter sido útil na condenação das condições

dos trabalhadores precários dentro da indústria italiana da moda", a personagem serviu para "criar

uma metamarca - uma marca que engloba outras, como um franchising - aberta que qualquer estilista

de 'moda radical' pode empregar" (Pasquinelli, 2005). Mais do que uma mera partida, "Serpica Naro é

uma versão generosa da Marca Registada" em que "todos podem ser estilistas"; "qualquer um que se

identifique com Serpica pode fazer parte dele", pode-se ler no comunicado final201 elaborado pelos

Chainworkers.

199 Um anagrama do nome do santo, ou seja, uma palavra formada pela alteração da ordem das letras de outra palavra.200 Disponível em http://www.serpicanaro.com/website/index.html.201 Disponível em http://www.serpicanaro.com/press/oper_serpica_en.zip.

142

Yomango202 foi um dos grupos que elaborou modelos para o desfile de Serpica Naro. Trata-se de um

projecto da responsabilidade de Las Agencias203, um colectivo de Barcelona que desenvolve vários

projectos tácticos recorrendo a tecnologias digitais para produzir e distribuir fisicamente ou online

cartazes, folhetos, autocolantes e vídeos. O nome desta metamarca associa a cadeia espanhola de

lojas de roupa Mango com um termo do calão castelhano que pode ser traduzido para "Eu roubo

(gamo)". O projecto disponibiliza informação e recursos para promover o furto de roupas e outros

produtos comercializados por transnacionais como a Mango, organizando ainda acções colectivas de

"gamanço" e jantares "Yomango" para o consumo dos bens alimentares furtados.

Tal como as outras marcas, "o seu objectivo não é a venda de produtos mas de estilos de vida"

(Pasquinelli, 2005). Com a diferença de que enquanto que o "mercado capta desejos, expectativas e

experiências e vende-os como produtos, o estilo Yomango promove a 'reapropriação' do que foi em

tempos parte do domínio comum" (idem). Mas este tipo de sabotagem no espaço físico tem o

inconveniente de poder facilmente ser associado a e degenerar na criminalidade, acabando por entrar

no jogo do opositor. Esta situação gera um dilema em relação às potencialidades de mudança que os

media tácticos apresentam que desenvolveremos mais adiante.

202 Site disponível em http://www.yomango.net203 Site disponível em http://www.sindominio.net/lasagencias.

143

5.4 – A Rede Informativa Indymedia: Jornalismo open source

Toda a gente é testemunha. Toda a gente é jornalista. Toda a gente edita.

- Matthew Arnison, Open editing: a crucial part of open publishing.

Um dos órgãos de mediactivismo mais originais e populares do movimento por uma globalização

alternativa é a rede informativa Indymedia (Centro de Media Independente - CMI), criada em Seattle

no mês de Novembro de 1999, nas vésperas das manifestações contra a reunião da Organização

Mundial de Comércio que teve lugar nessa cidade norte-americana na mesma altura.

Desde então, esta rede cresceu exponencialmente, possuindo actualmente cerca de 150 centros

autónomos espalhados pelos cinco continentes e abarcando mais de 20 línguas, incluindo o

português204 e contando com cerca de cinco mil jornalistas-editores voluntários. Logo no primeiro mês

de vida, graças à extensa cobertura dos protestos contra a OMC, o site de Seattle205 atingiu uma média

de 1,5 milhões de acessos. Durante a semana dos confrontos em Génova, no decorrer da reunião do

G8 em Julho de 2001, as páginas dos sites da rede informativa chegaram aos cinco milhões de

visualizações. Segundo uma estimativa da Indymedia, as suas páginas são visualizadas 500 mil a dois

milhões de vezes por dia (Indymedia, 2005a). Cada centro está representado na Web com um site

multimédia que no seu conjunto fornecem uma fonte importante de informação em relação às lutas

dos movimentos activistas contra a globalização conduzida pelas empresas transnacionais, bem como

de notícias de campanhas locais, nacionais e internacionais a favor da paz e da justiça social. A

Indymedia caracteriza-se por uma estrutura não-hierárquica, dado que as decisões nos colectivos

locais e a nível internacional são tomadas em consenso, segundo um modelo de democracia

participativa. Funcionando com um orçamento bastante limitado, esta rede independente de notícias

subsiste com base em trabalho voluntário e doações. Baseando-se em simultâneo na tradição dos

media alternativos e no movimento dos media tácticos, o CMI funciona ao mesmo tempo a nível

local, regional e internacional, através de suportes multimedia online e outros media offline mais

antigos.

A sua principal contribuição advém, porém, do público, através de um sistema de publicação aberta –

open publishing - (Kidd, 2003 e 2003a; Meikle, 2003). Trata-se de uma nova forma de produção e

recepção mediática participativa que encoraja as próprias pessoas a tornarem-se nos media ao publicar

os seus artigos, análises e informação para os sites da rede a partir de qualquer computador ligado à

204 Para além do Centro de Media Independente Portugal (pt.indymedia.org), existe também o Indymedia Brasil (www.midiaindependente.org/). Este último, por sua vez, integra 11 CMIs locais: Belo Horizonte, Brasília, Campinas, Caxias do Sul, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.

205 Disponível em http://seattle.indymedia.org.

144

Internet. Para além disso, “as audiências podem tornar-se nos seus próprios editores de notícias,

recorrendo a várias opções interactivas e em rede para seleccionar informação a partir de um vasto e

diverso conjunto de fontes informativas, links para recursos e oportunidades de discussão com origem

em vários locais do globo”, afirma Dorothy Kidd (2003).

Inicialmente desconfiados face à qualidade jornalística deste modelo aberto e politicamente radical, os

media comerciais dominantes passaram a citar as notícias produzidas pela Indymedia, sobretudo no

caso das grandes manifestações (Halleck, 2002). Na primavera de 2003, após a invasão do Iraque

pelos Estados Unidos, manifestantes paralizaram a cidade de São Francisco. Os jornalistas do CMI

estavam lá e "revelaram vários casos de brutalidade policial que escaparam aos principais órgãos de

informação" (Gillmor, 2004: 141). Posteriormente, Bob Cauthorn, antigo vice-presidente da divisão

de media digitais do jornal San Francisco Chronicle comentou: "O Indymedia mandou-nos ir dar uma

curva" (idem).

Como afirmam Cardon e Granjon, o sucesso desta rede mediática deriva “de um lado, da integração

horizontal de diferentes actores do movimento dos media alternativos norte-americanos e, de outro

lado, da implementação de processos organizacionais que favorecem a cooperação e a

horizontalidade” (Cardon e Granjon, 2003). Em 1999, antes do encontro da OMC em Seattle, os

colectivos independentes de videoactivismo como a Free Speech TV, a Paper Tiger TV, a Deep Dish

TV, a Big Noise Films, Whispered Media e outros estavam então bastante empenhados na campanha

de mobilização contra a condenação à morte do jornalista afro-americano de rádio Mumia Abu Jamal.

De forma a coordenar e concertar a intervenção mediática em oposição à data de execução marcada

pelo estado norte-americano da Pensilvânia, os activistas organizaram pontos de encontro físicos para

a partilha dos vídeos e programas radiofónicos produzidos pelos diferentes grupos. A iniciativa foi

bem sucedida, dado que o Estado adiou a execução, embora Mumia continue preso.

Tendo em conta a convergência de vários grupos no final de 1999 em Seattle, os organizadores da

iniciativa mediática em defesa de Mumia concluíram que “o mesmo tipo de campanha podia ser

utilizado para enviar a mensagem do movimento anti-corporation ao público”, como refere a activista

DeeDee Halleck numa entrevista (Vallauri, 2002). Seis meses antes da reunião da OMC começou

assim a ser projectada uma colaboração inter-mediática semelhante, através da criação de um site na

Web para partilhar documentos e informações contribuídos por vários colectivos mediactivistas e

videoactivistas. Na altura da organização da cobertura mediática das manifestações contra a OMC,

contudo, “a ideia de uma presença Web para o futuro evento era apenas um pequeno complemento em

relação às actividades mediáticas tradicionais que estavam a ser planeadas”, explica Kidd (2003). Para

além da publicação online, o CMI Seattle elaborou ainda um jornal diário impresso - "The Blind

145

Spot" -, uma hora diária de televisão por satélite e rádio (Halleck, 2002). Estes programas eram depois

retransmitidos por estações comunitárias nos Estados Unidos e um pouco por todo o mundo (idem).

A adopção do software open-source Active206, desenvolvido por Matthew Arnison, do colectivo

australiano de Sidney Catalyst (ou apenas CAT – Community Activist Technology)207, como base

tecnológica para o primeiro site do CMI foi fundamental para que o espaço online da rede mediática

independente assumisse o papel que veio a desempenhar na sua expansão. O Active integra três

funcionalidades: publicação aberta, serviço de alerta de recepção de emails e calendário de eventos.

Graças às potencialidades deste software, qualquer pessoa podia publicar no site um relatório, clip de

vídeo, fotografia ou ficheiro áudio. “Era tão fácil como enviar um email”, refere Graham Meikle

(2003). Do mesmo modo, qualquer um podia descarregar uma peça noticiosa em formato de texto,

vídeo e áudio no minímo tempo possível. O objectivo da arquitectura do site era disponibilizar a

máxima acessíbilidade aos seus utilizadores, tanto para o download como para o upload de ficheiros.

Este sistema tornou-se também a base para os outros centros Indymedia que surgiram posteriormente,

embora hoje não seja a única plataforma empregue nos sites da IMC (Meikle, 2002 e 2003, Halleck,

2003).

Como se pode ver, o CMI foi o resultado de uma conjuntura histórica em que um movimento social

global em emergência e dois grupos de trabalhadores qualificados cooperaram entre si utilizando

novas tecnologias digitais. Um desses grupos foi o dos técnicos informáticos e outros hackers,

oriundos de todo o mundo e compartilhando um espírito colaborativo herdado do movimento pelo

software livre. Foram eles que criaram o ambiente digital composto por software livre e código-fonte

aberto, responsável, em certa parte, pelo rápido crescimento da rede CMI, dado que todos os centros

podiam partilhar o software (Kidd, 2003). Trabalhando voluntariamente durante muitas horas, estes

técnicos imbutiram no CMI os valores da cultura hacker da Internet, em particular, a partilha do

código-fonte do software e a produção comunitária do código. Segundo Matthew Arnison, o CMI

adopta a mesma abordagem em relação à liberdade dos media que o movimento pelo software livre

aplica ao software (Arninson, 2001). Os conteúdos informativos são também publicados segundo

diferentes tipos de licenças abertas, consoante a decisão de cada centro. Enquanto o CMI-Portugal,

por exemplo, adoptou uma licença Creative Commons que autoriza a sua utilização para fins

comerciais, desde que a fonte seja mencionada, o CMI-Brasil - empregando incorrectamente uma

licença copyleft - apenas permite usos não-comerciais.

Outro factor importante para a constituição da Indymedia Seattle foi a colaboração entre

mediactivistas e artistas novos e velhos vindos de rádios e televisões comunitárias, colectivos

206 Site disponível em http://active.org.au/doc.207 Site disponível em http://www.cat.org.au.

146

independentes de produção de vídeos, zines – pequenas publicações produzidas por amadores,

frequentemente sem periodicidade regular – e da imprensa alternativa. “Esta colaboração inicial ainda

continua nas equipas regionais de vídeo, rádio e imprensa da CMI" assim como no grupo de trabalho

dedicado às notícias de destaque, que é responsável pela coluna central do site global”, escreve

Dorothy Kidd, acrescentando que “vários centros combinam os novos media com formatos mais

antigos como a imprensa, rádio, televisão e vídeo, actualmente ainda os media dominantes junto de

muitas classes trabalhadores e comunidades mais pobres, quer no norte, quer no sul” (2003).

A rede CMI contou também desde o seu início com a participação do movimento global por uma

justiça social – ou por uma globalização alternativa. Muitos centros surgiram como resposta a

conferências de entidades representando o capital corporativo global como a da OMC em Seattle, a do

G8 em Génova e a da Zona de Comércio Livre das Américas no Quebeque (Abril de 2001). A

emergência deste movimento fez com que os grupos activistas “reconhecessem a importância dos

media alternativos e o papel central da oligarquia da informação/entretenimento no capitalismo

global”, salienta DeeDee Halleck (2002). Os media comerciais eram, assim, considerados parte do

problema. “Para estes activistas, uma parte imprescindível da resposta ao neo-liberalismo consiste em

criar novos modos de comunicação” (idem).

De forma a combater a globalização orquestrada por instituições e empresas que não têm pátria, a

Indymedia apresenta-se também ela como um media sem fronteiras, expandindo com êxito o modelo

regional introduzido por alguns órgãos alternativos em décadas anteriores. Apesar do carácter global

da rede informativa, cada site da Indymedia publica informação relativa à sua comunidade ou país,

como é o caso do CMI-Portugal

Referindo-se à influência do movimento dos media tácticos e do festival Next Five Minute na IMC,

Halleck escreve:

Muitas correntes diferentes vieram a congregar-se na Indymedia: a comunidade videoactivista, os piratas de micro-rádios, escritores de código/hackers dos computadores, produtores de zines e o universo da música Punk. Estes activistas foram inspirados e projectados por uma série de eventos denominados Next Five Minutes, organizados por Geert Lovink, David Garcia e outros em Amesterdão, durante a década de 90. Estes encontros abriram uma janela para as possibilidades de mega-eventos colaborativos e participativos (ibidem).

O movimento Zapatista foi “uma das principais inspirações do CMI e um exemplo paradigmático de

pessoas coordenando grupos e accões locais no interior de uma comunidade global diversificada”,

afirma Douglas Morris (2004: 328). A utilização da Internet pelos zapatistas para fins de coordenação

e acção viria a influenciar os participantes da rede Indymedia. O Zapatismo funcionou como modelo

para a criação de uma comunidade global composta por vários centros locais, ligadas entre si pela

147

tecnologia, com vista a debater e a dar uma perspectiva noticiosa alternativa e em tempo real de

situações de emergência como a que ocorreu em Seattle, no final de 1999. A estrutura aberta e

horizontal que está por detrás da Indymedia é bastante valorizada pelos seus participantes, que são na

sua maior parte muito desconfiados em relação a qualquer tipo de liderança centralizada ou ‘quadro

de directores’ (Halleck, 2003).

Tal como outros media alternativos anteriores, a rede CMI rejeita o modelo dos media comerciais, em

que a informação é mercantilizada e comercializada a audiências passivas através dos canais dos

media corporativos. No entanto, em contraste com a lógica alternativa tradicional de oposição à

hegemonia dos media, a abordagem da IMC consiste em rejeitar as ideologias partidárias e em

colocar directamente os media ao serviço da mobilização, assemelhando-se assim à acção directa nas

ruas (Cardon e Granjon, 2003; Kidd, 2003). Os seus elementos não pretendem apenar difundir contra-

informação, mas também alterar as relações de produção e recepção dos media. O CMI promove uma

cultura DIY que abrange tanto os produtores como as audiências, o que implica o minímo de gate-

keeping possível. Assim, em vez de consumidores passivos de informação, as audiências são

encorajadas a navegarem de uma forma activa na enorme quantidade de notícias, artigos de opinião e

debates disponíveis nos vários sites locais da Indymedia, a publicarem as suas histórias e a

comentarem as dos outros, bem como a tornarem-se nos seus próprios editores de informação.

A partir da criação do centro em Seattle durante as manifestações contra a OMC, a rede CMI cresceu

muito rapidamente. Desde o início de 2000 até Outono de 2003, o ritmo de criação de novos centros

foi em média de um em cada 11 dias (Beckerman, 2003). À medida que a onda de protestos contra a

globalização neo-liberal ia crescendo, também a Indymedia se expandia, com a adesão de novos

centros ou devido ao aumento do apoio internacional em lugares de tensão espalhados pelo globo,

como Chiapas, Palestina, Israel, apesar de alguns, como o do Iraque208, não terem subsistido. Para

além de partilharem o código que serve de base aos sites, os centros tiram também partido dos

mesmos servidores. A estrutura descentralizada da rede possibilita que cada centro se administre a si

próprio, de uma forma autónoma, depois de assinar um acordo mútuo com a rede CMI, o que reduz ao

minímo os custos com gastos centrais (Kidd, 2003). Contudo, uma prática comum é a deslocação de

técnicos da Indymedia a partes empobrecidas do mundo para ajudarem à implementação dos centros e

prestarem formação em tecnologias de informação aos voluntários (Beckerman, 2003). Outro nível

em que a cooperação se nota é em relação ao aproveitamento das notícias produzidas pela rede, dado

que é frequente os textos serem traduzidos para duas ou mais línguas209.

208 Em 2004 o site informativo independente Al-Muajaha (www.almuajaha.com) tinha iniciado o seu processo de adesão ao CMI, mas presentemente (Dezembro de 2005) já não se encontra online.

209 Note-se, porém que que a grande maioria dos centros continua a localizar-se na Europa e América do Norte, em comparação com uma fraca presença dos centros existentes nos continentes africano (5) e asiático (11)., como se pode verificar na barra lateral esquerda do site principal da Indymedia.

148

Este ritmo impressionante de crescimento provocou, contudo, alguns efeitos secundários indesejáveis,

como esclarece Dorothy Kidd ao notar que, “tal como muitos dos anteriores media alternativos, a rede

CMI enfrenta continuamente problemas de sustentabilidade, distribuição desigual de recursos pelas

diferentes regiões do globo, ataques de governos e indíviduos hostis, bem como as dificuldades

inerentes à criação e manutenção de um modelo de comunicação mais democrático num ambiente

mediático corporativo cada vez mais privatizado e fechado” (Kidd, 2003).

De forma a contrariar essa privatização dos media e a romper com o modelo comercial que mistura

informação e entretenimento, apostou na abertura do sistema de comunicação através da rápida

admissão de novos grupos-membros, da partilha do código-fonte que serve de base aos seus sites e,

em especial, mediante o desenvolvimento da arquitectura de publicação aberta. Esta decisão, no

entanto, acarretou alguns problemas: vários sites, em especial os CMIs de Israel e da Palestina, foram

sistematicamente alvo de ataques de hacking e a rede está cheia de comentários racistas, de extrema-

direita e carregados de ódio ou artigos contendo propaganda comercial ou partidária. Isto também

acontece no CMI-Portugal, como veremos mais à frente. Do mesmo modo, apesar do processo rápido

de publicação de conteúdos ter permitido a difusão de uma quantidade enorme de material, a sua

qualidade é muito desigual. Muitos dos artigos são escritos por e para activistas, revelando pouco

cuidado na apresentação de informação antecedente e de um contexto para a história em questão. Os

artigos e comentários não contêm informação que possa identificar o autor como endereço de email e

IP, podendo, se quiser, empregar um pseudónimo. Do mesmo, os editoriais elaborados por cada

colectivo de voluntários não são assinados.

Embora a rede CMI tenha mantido em grande parte a sua estratégia de abertura, foram introduzidas

algumas alterações à arquitectura de publicação aberta de forma a dar resposta a esses problemas e a

promover a diversidade e unidade global. Em Março de 2002, circulou na rede uma proposta para

remover o serviço informativo permanente de publicação aberta da coluna central do site global,

substituindo-o por uma selecção dos editoriais publicados pelos sites locais. Em Abril de 2002, depois

de um processo de votação em que 15 centros, desde o Brasil até Barcelona, aprovaram

unanimamente a reforma, o serviço de newswire em modo de publicação aberta foi retirado da

homepage. Muitos sites locais adoptaram em seguida a mesma medida (Meikle, 2003). Por outro

lado, a maior parte dos centros são mais monitorizados, sendo por vezes atribuído aos artigos uma

classificação pelos utilizadores ou membros do colectivo. O grupo de trabalho responsável pela

coluna central elimina mensagens em duplicado e com conteúdo comercial, enviando as que possuem

conteúdo potencialmente desagradável para uma secção de ‘artigos escondidos’. Este conjunto de

alterações geraram alguma controvérsia, dado que muitos activistas opuseram-se a quaisquer novos

149

protocolos de gate-keeping.

Esta tendência em direcção à selecção ou, pelo menos, classificação dos conteúdos, poderá levar a

uma profissionalização da redacção e edição de notícias na Indymedia, com uma maior utilização de

jornalistas profissionais, aproximando-se assim do modelo tradicional dos media alternativos. Mas,

por outro lado, o novo destaque concedido às notícias locais, poderá significar um maior

envolvimento por parte do público, actuando potencialmente como editores: os membros da audiência

poderão, por exemplo, verificar factos e acrescentar fontes, corrigir a ortografia, gramática e

formatação, escolher um tópico dentro do qual cada estória pode ser arquivada ou traduzi-la para

outra língua. A este processo, Matthew Arnison dá o nome de ‘edição aberta automatizada’

(Arninson, 2002). Se for implantado com êxito, este conceito poderá revolucionar o jornalismo online

e o próprio jornalismo, na medida em que, como afirma Graham Meikle, “poderá envolver não apenas

mais pessoas no desenvolvimento de notícias informativas, mas envolvê-las através de novas formas,

apelando para uma gama mais vasta de capacidades e aptitudes do que a publicação aberta só por si”

(Meikle, 2003).

Meikle conclui que este modelo poderá potenciar a emergência de um novo ambiente mediático mais

pluralista. Mas essa possibilidade pode vir a ser comprometida, sobretudo se tivermos em conta as

acções de repressão e controlo que as forças de segurança norte-americanas e europeias têm vindo a

efectuar contra a Indymedia. Já em 2001, durante a reunião do G8 em Génova, o edíficio que

albergava o centro local foi alvo de um ataque pela polícia italiana que prendeu os 90 voluntários que

se encontravam no interior, danificou o equipamento informático aí existente e confiscou as cassetes

de vídeo que encontrou (IMC-Italy, 2001 e Kidd, 2003:63). Em Abril de 2005, começou o julgamento

dos cerca de 30 carabineiros envolvidos, acusados de terem ferido 62 pessoas que estavam no edíficio

e de terem fabricado provas que pudessem ser usadas contra os voluntários (Indymedia, 2005). Desde

então têm sido frequentes os casos de perseguição legal contra os sites da CMI, levando à suas

suspensão ou à instauração de processos a elementos de diferentes colectivos.

A apreensão de servidores da Indymedia no Reino Unido pelo FBI com o apoio das autoridades

britânicas a 7 de Outubro de 2004 em cumprimento de uma ordem emitida por um tribunal dos

Estados Unidos revela bem o carácter de cooperação transnacional entre as autoridades no combate às

actividades que consideram subversivas. Os servidores estavam alojados pela filial local da empresa

norte-americana Rackspace e a sua apreensão, uma semana antes da reunião de vários activistas em

Londres no âmbito do Fórum Social Europeu, levou a que 20 sites da Indymedia em 17 países

tivessem ficado temporariamente indisponíveis, incluindo os de Portugal e Brasil210. A ordem judicial

210 Leyden, John (2004). Como este artigo refere, já antes, em Agosto do mesmo ano, na sequência da publicação de um artigo anónimo no site do CMI de Nova Iorque que revelava informações pessoais relativas aos delegados que

150

foi obtida a pedido dos governos italiano e suiço, nos termos do Tratado de Assistência Legal Mútua,

um acordo bilateral entre os Estados Unidos e o Reino Unido que permite a cooperação policial

internacional em casos de "terrorismo internacional, sequestro e lavagem de dinheiro". O FBI viria a

devolver os servidores um dia antes da abertura do Fórum Social Europeu, mas um número de sites da

Indymedia não conseguiu recuperar alguns artigos e imagens211. Esta acção coordenada tem que ser

compreendida no contexto actual de acentuada globalização em que as fronteiras e o conceito de

Estado-nação se dissipam e da "guerra contra o terrorismo" que instaura um estado de excepção. Da

mesma forma que a Indymedia adoptou a forma de rede distribuída actuando tanto no global como no

local para combater o neo-liberalismo e o capitalismo flexível, nómada, baseado nas deslocalizações,

na subcontratação, na produção imaterial dos fluxos de informação e da propriedade intelectual,

também as forças de segurança começam a assumir traços de uma rede desterritorializada de controlo

contra as resistências reticulares.

iriam participar na convenção republicana a decorrer naquela cidade, o FBI exerceu pressão legal contra o serviço de alojamento desse site de forma a obter os seus registos de endereços IP. Na página disponível em http://indymedia.org/en/static/fbi é possível consultar toda a informação publicada pela Indymedia sobre estas e outras acções legais desencadeadas por agências de segurança dos Estados Unidos.

211 Num caso que consideram estar relacionado com esta investigação, em Junho de 2005 os responsáveis pelo servidor comunitário italiano Autistici (www.autistici.org) descobriram que as autoridades locais tinham um ano antes copiado as chaves necessárias para a desencriptação - descodificação - do seu sistema de webmail, tendo desde então acesso potencial a todos os dados aí guardados. Tal aconteceu com a colaboração do seu fornecedor de alojamento, que nunca chegou a informá-los do sucedido. Ver comunicado de imprensa emitido pelo Autistici a 21 de Junho de 2005 em http://autistici.org/ai/crackdown/comunicato_en_210605.html. A 27 desse mesmo mês foi a vez do servidor que alojava o site do CMI-Bristol ser apreendido pela polícia britânica de modo a obter detalhes sobre o endereço IP do autor de um artigo. Ver Leyden, John (2005), "Legal row after police seize Bristol Indymedia server", The Register, 28 de Junho. Disponível em http://www.theregister.co.uk/2005/06/28/indymedia_server_seizure_bristol/.

151

5.4.1 - O CMI-Portugal: Um Pequeno Estudo de Caso

Uma vez que o CMI-Portugal se insere na Indymedia, uma rede que classificámos como um exemplo

de media tácticos, decidimos realizar um pequeno estudo de caso de forma a verificar se este

colectivo local exibe de facto características consideradas tácticas, tendo em conta as definições

apontadas pelos CAE (2001: 8-11), Garcia e Lovink (1997) e os organizadores do festival N5M,

como o nomadismo, a utilização tanto de velhos e novos media, a subversão com fins políticos, a

valorização do amadorismo e da colaboração com outros grupos, a recusa da imparcialidade e das

velhas ideologias e o carácter efémero das suas acções. Apesar de alguns autores (Lovink, 2002;

Lovink e Schneider, 2002) identificarem certas práticas tácticas na Indymedia212, outros são mais

ambíguos. Graham Meikle, por exemplo, refere que enquanto que "muitos centros de media

independente são estabelecidos como projectos estratégicos a longo prazo (...), outros surgem sob a

forma de sites tácticos de curta duração" (Meikle, 2002: 121). Joanne Richardson, por seu lado, faz

questão de distinguir o CMI de colectivos como a RTMark que infiltram o sistema mediático

dominante para pirateá-lo ou subvertê-lo, apresentando a Indymedia como uma voz alternativa que

pretende ocupar um lugar ideológico diferente do mainstream (Richardson, 2002). A opção de

analisar o CMI-Portugal torna-se ainda mais pertinente se tomarmos em linha de conta o escasso

número de projectos localizados em Portugal que assumem um perfil táctico. Outra nossa intenção foi

averiguar de que forma é que se processava o processo de selecção de artigos escondidos e quais os

efeitos que essas decisões tinham no interior do grupo e nos utilizadores.

Decidimos então elaborar um questionário enviado por email aos voluntários do CMI-Portugal

através da lista geral de correio electrónico deste colectivo213. A recolha dos dados ocorreu entre a

segunda quinzena de Novembro e a primeira quinzena de Dezembro de 2005. O inquérito, composto

na sua maioria por questões abertas, estava dividido em dois grupos. Um primeiro conjunto abrangia

questões destinadas a traçar um perfil de identificação pessoal dos elementos do colectivo, bem como

a averiguar o tipo e nível de envolvimento de cada um e as suas opiniões em relação ao CMI. Outro

grupo referia-se à história, estrutura e actividade do Indymedia Portugal. Recebemos respostas de

quatro dos seis voluntários activos na altura214. Antes do envio deste questionário, tinhamos já

212 Lovink e Schneider vêem a Indymedia como "um parasita dos media comerciais" (Lovink e Schneider, 2002). 213 Para além desta lista geral ([email protected]), existe uma segunda lista dedicada à discussão e

aprovação de propostas de editoriais designada IMC-Features-Portugal ([email protected]).

214 Em termos de caracterização dos inquiridos, dois são do sexo masculino e dois do sexo feminino. Apesar da geração nascida depois do 25 de Abril estar em maioria - três têm entre 25 e 30 anos -, uma das voluntárias tem 46 anos. A maior parte diz residir na cidade de Lisboa e arredores, sendo que apenas uma das inquiridas reside na cidade do Porto. Em relação ao nível de escolaridade, todos os inquridos possuem formação superior e um dos voluntários possui mesmo habilitações ao nível de mestrado. Quanto à antiguidade da participação no CMI-Portugal. dois declararam pertencer ao colectivo há dois anos, uma voluntária explicou que entrou no colectivo há cerca de dois anos e meio a três, sendo que um outro adiantou que começou a colaborar activamente há "mais ou menos" quatro meses. Estes dados apontam para que o anúncio da suspensão das actividades em Setembro de 2003 tenha de facto tido um impacto impulsionador das actividades do colectivo. Aliás, uma das voluntárias refere mesmo "a crise no

152

efectuado a 13 de Julho a inscrição nessa lista e anunciado o nosso interesse em investigar o CMI-

Portugal. Durante este período de cinco meses, podemos observar à distância as actividades não-

editoriais realizadas pelo colectivo através da leitura das mensagens enviadas para a lista. Esta

familiarização prévia permitiu-nos obter um conhecimento teórico necessário para a formulação de

questões que fossem apropriadas ao contexto. De modo a apresentar mais claramente os nossos

objectivos de investigação e a obter a confiança do colectivo, tivemos ainda um encontro pessoal com

uma voluntária.

Durante o período analisado, de 13 de Julho a 31 de Dezembro de 2005, o número de mensagens

enviadas para a lista geral do CMI-Portugal foi de 587, o que dá uma média de pouco mais do que três

mensagens (3,4) de tráfego diário, se bem que em alguns momentos mais conturbados esse número

tenha sido superior a 20.

Para além do questionário, esta investigação é, por isso, complementada com alguns dados obtidos a

partir de uma análise da lista, embora não se apoie em grande parte nesta componente. Isto porque,

embora a lista de discussão seja pública215, tentámos proteger tanto quanto nos fosse possível a

privacidade e o anonimato dos voluntários. Tendo em conta os recentes acontecimentos de repressão

judicial no Reino Unido que chegaram a afectar indirectamente o CMI-Portugal - colocando-o offline

e provocando a perda de alguns conteúdos - a que se juntam os boatos insistentes de vigilância das

forças de segurança e os ataques verbais de grupos de extrema-direita que circulam nos artigos e

comentários da zona de publicação aberta do site, os elementos deste colectivo, tal como outros

CMIs, demonstram alguma preocupação em abordar publicamente assuntos relacionados com a sua

actividade. Para além disso, os editoriais publicados na coluna central do CMI-Portugal não são

assinados. Por outro lado, durante este período de contacto mais próximo com a lista registou-se a

expulsão de um membro do colectivo e, por motivos de responsabilidade ética, não gostaríamos de

expôr aspectos respeitantes à vida interna do colectivo e à privacidade dos seus voluntários.

Outro aspecto relacionado com este é que o número de elementos activos era na altura da recolha de

dados extremamente reduzido e tem variado muito ao longo da sua existência, com a entrada e saída

de vários elementos216. Um exemplo disso é que, com a expulsão de um elemento durante o período

de recolha das respostas ao questionário, o número de voluntários baixou de seis para cinco. Esta foi a

primeira vez que ocorreu uma expulsão no interior do colectivo por decisão de todos os restantes

CMI e a admiração pelo trabalho desenvolvido até à data" como razões para a sua entrada. 215 Apesar do seu funcionamento ser fortemente moderado. Qualquer pessoa pode enviar uma mensagem para imc-

[email protected] mas esta só será remetida para as caixas de correio dos assinantes se um dos voluntários a aprovar.

216 Daí advém também o perigo, para o investigador, de facilitar a sua identificação. Um factor de dificuldade adicional que se coloca numa investigação como esta é que se trata de analisar um grupo muito flexível. Assim, um elemento que num determinado momento decida comprometer-se voluntariamente com um trabalho como o do CMI-Portugal, que acarreta riscos de segurança, poderá, alguns meses mais tarde, querer desligar-se do colectivo.

153

voluntários, devendo-se a dificuldades de integração desse elemento no grupo, mas anteriormente já

tinham ocorrido "episódios de conflitos entre pessoas que resultaram na saída voluntária de

activistas", conforme nos confidenciou um dos inquiridos. Somando ainda as situações em que os

elementos se afastaram do colectivo devido à impossibilidade de conciliar a actividade profissional ou

académica com o trabalho de voluntariado, ao todo passaram pelo CMI-Portugal cerca de 15 a 20

pessoas. Contudo, o número actual de assinantes da lista geral é superior a 20, o que parece indicar, à

primeira vista, um fraco nível de participação activa no colectivo.

Como se pode concluir, grande parte da interacção entre os membros do colectivo é travada online,

através da comunicação mediada por computador. Para além das listas, são também organizadas

reuniões semanais todas as quintas-feiras à noite por IRC217 no canal #portugaliza da rede

irc.indymedia.org218. Mais esporadicamente também são realizadas reuniões presenciais. Durante o

período em análise realizaram-se duas reuniões, uma no mês de Julho de 2005 em Lisboa e outra em

Setembro no Porto. Segundo a informação transmitida pelo grupo, desde a criação do CMI-Portugal

realizaram-se cerca de dez reuniões. Uma das voluntárias realça a importância destes encontros na

medida em que "servem para discutir assuntos mais complexos que não conseguem ser discutidos nas

listas e para ganhar intimidade com as restantes voluntárias". Porém, devido a incompatibilidades

várias, a organização de reuniões através da lista é um processo muito demorado que pode levar

semanas e sofrer vários atrasos. A tal não será alheio alguma desmotivação por que a equipa estava na

altura a passar.

O CMI-Portugal foi criado a partir do site anarquista azine.org, com sede no Porto e criado em Julho

de 2000 "com a pretensão de se tornar num centro independente de informações", como se refere na

declaração de intenções do colectivo (CMI-PT, 2004). Cerca de um ano mais tarde, o Azine passou a

fazer parte da rede Indymedia (idem). No final de 2003, devido à fraca participação dos leitores e ao

escasso número de voluntários, o colectivo decidiu interromper as suas actividades. Em resposta, o

CMI Galiza219, que na altura também se encontrava num período de fraca actividade, iniciou contactos

com o centro português de forma a estabelecer uma colaboração entre ambos. Depois de uma reunião

na cidade do Porto foi criado o CMI-Portugaliza. O objectivo era congregar os esforços dos dois

centros para, tirando partido dos "fortes laços comuns, históricos, culturais e a unidade linguística

existente entre portugueses e galegos", criar uma "iniciativa pioneira de comunicação" que unisse os

media alternativos de Portugal e Galiza (idem). Ainda em 2003, com a entrada de novos voluntários,

foi criado um núcleo em Lisboa, pois até então muitos dos voluntários eram do Porto e estavam

217 Iniciais de Internet Relay Chat, isto é, um tipo de software que permite estabelecer conversas escritas em tempo real via Internet entre várias pessoas numa mesma sala virtual.

218 O canal #portugaliza pode ser acedido através de uma página do CMI-Portugal disponível em http://pt.indymedia.org/irc/?cidade=1.

219 Site disponível em http://galiza.indymedia.org.

154

ligados ao Azine. Porém, a colaboração com o CMI-Galiza não chegou a bom termo devido a

dificuldades internas deste centro220.

O CMI-Portugal compartilha com a rede Indymedia a missão de disponibilizar um medium directo

baseado na publicação aberta e que disponibilize uma "informação completa, honesta e exacta,

evitando, dentro do possível a simples propaganda" (ibidem)221. Tal como os outros CMIs, acredita na

possibilidade de conciliar a verdade com a luta política apaixonada pois considera que "só vê longe e

de forma profunda quem permite que a paixão sirva de alicerce ao seu olhar" (ibidem). Nas suas

práticas de edição e publicação, como iremos verificar, os voluntários recuperam assim de alguns dos

valores que caracterizam o jornalismo dos media comerciais e rejeitam outros, como a objectividade e

a imparcialidade: "Ao contrário deles (...), nós fazemos saber que somos subjectiv@s" (CMI-PT,

2004a). Esta distância face ao jornalismo profissional fica patente nas palavras de um voluntário ao

referir os motivos que o levaram a tornar-se voluntário. Na sua opinião, "os meios de comunicação

convencionais não garantem a divulgação da informação essencial ao conhecimento da realidade

social, política e económica". O Indymedia constitui para membros do colectivo como este uma

possibilidade de "utilizar os seus próprios conhecimentos" na prossecução dessa tarefa. De modo

semelhante, outra voluntária refere que a sua adesão ao grupo se deveu ao facto de "acreditar que a

Net pode ser o mais poderoso meio para combater a desinformação, fomentar a participação colectiva

no processo de decisão". O processo de decisão consensual empregue pelos centros de media

independente é visto como "um embrião dum processo alargado de debate e decisão horizontal".

As actividades e decisões do colectivo revelam também uma desconfiança face ao sistema partidário

tradicional, tal como na rede Indymedia em geral. A independência do CMI-Portugal em relação a

partidos e a ONGs é proclamada no documento que estabelece a sua política editorial (CMI-PT,

2004a: § 2.7). Este é mesmo um dos requisitos de filiação na Indymedia222. Em consequência, apesar

dos voluntários poderem ser em simultâneo militantes de organizações políticas, estão impedidos de

actuarem como seus representantes, exprimindo opiniões favoráveis a seu respeito ou promovendo as

suas acções. Aliás, de acordo com as respostas ao questionário, podemos depreender que a

220 A razão dessa suspensão "deveu-se à existência de fortes divergências entre as pessoas do colectivo galego", conforme nos foi explicado por um voluntário em resposta ao questionário que elaborámos. De forma a ter uma ideia do nível de actividade actual do CMI-Galiza, constatámos que desde o início de Julho a 31 de Dezembro foram publicados oito editoriais no seu site. Em contrapartida, o CMI-Portugal publicou 131 editoriais nesse mesmo período.

221 Como todos os outros CMIs, para ser aceite e permanecer na rede Indymedia o centro português tem que assegurar o cumprimento das alíneas que constam de dois documentos aprovados em consenso por todos os colectivos nacionais e locais: O primeiro enuncia um conjunto de 13 critérios básicos de filiação (ver http://docs.indymedia.org/view/Global/MembershipCriteriaPt) e o segundo contém 10 princípios de união (ver http://docs.indymedia.org/view/Global/PrinciplesOfUnityPt).

222 "J. (NÃO CONCLUÍDO) Não tenha filiação oficial com nenhum partido político, estado ou candidato a cargo no estado [comentário: produtores individuais têm o direito de fazer o que bem entenderem e CMIs locais podem apresentar matérias sobre partidos políticos e iniciativas] em Indymedia (2001), "MembershipCriteria". Disponível em http://docs.indymedia.org/view/Global/MembershipCriteriaPt.

155

participação no CMI-PT não parece ser uma actividade isolada no que diz respeito a intervenção

cívica ou activista: três dos inquiridos afirmaram colaborar com associações ou movimentos

ecologista, social e político e um dos voluntários declarou ser associado de uma organização de cariz

político-social.

Produção editorial do CMI-Portugal

O site do centro português encontra-se dividido em três secções, à semelhança do formato adoptado

na maior parte dos sites Indymedia: uma coluna central onde são publicados os editoriais em nome do

colectivo, uma segunda localizada à direita onde surgem os títulos dos artigos colocados online em

sistema de publicação aberta e outra posicionada à esquerda que se destina aos eventos colocados em

agenda pelos voluntários e que estes consideram interessantes223: exibição de documentários

activistas, festas e manifestações não-violentas ou marchas de velocípedes em espaços publicos

urbanos ("Bicicletadas"). Através dessa terceira barra pode-se ainda aceder aos comentários mais

recentes efectuados pelos leitores a todos os artigos, incluindo editoriais e a dossiers que reúnem

notícias do arquivo e links relacionados com temas especiais, como a Constituição Europeia, o Fórum

Social Europeu de 2004, alterações climáticas e o desastre ecológico do Prestige na Galiza. Ao

contrário do que acontece no site geral da Indymedia e nos de outros centros, a lista de ligações para

todos os CMIs está posicionada ao fundo e não à esquerda.

Os editoriais são acompanhados por uma imagem e visam destacar assuntos e acontecimentos

específicos, sendo por vezes seleccionados a partir dos vários artigos contribuídos pelos

utilizadores224. A actividade editorial do CMI-Portugal tem sido bastante elevada, a avaliar pelos

dados patentes no Quadro 1 na página 158 que indicam o número de todos os editoriais publicados no

site entre Setembro de 2003 - quando se deu o reínicio e a passagem completa da designação e do

domínio Azine.org para portugal.indymedia.pt - e Dezembro de 2005. Neste período, foram editados

572 textos pelo colectivo, o que corresponde a uma média de cerca de 20 editoriais por mês225. Estes

números podem parecer reduzidos quando comparados com a produção de um site noticioso

comercial, mas reflecte um pouco o trabalho que um pequeno grupo de "jornalistas" e "editores",

amadores e voluntários, podem produzir, apesar das constantes mudanças, da entrada e saída de

223 Tal como os editorias, os eventos a integrar na agenda são apresentados, debatidos e aprovados na lista IMC-Portugal-Features.

224 O colectivo disponibiliza um feed de RSS dos editoriais que publica. Assim, quem quiser receber os títulos dos textos recentemente publicados num agregador de conteúdos como o site Bloglines (www.bloglines.com), através da Web, pode fazê-lo inserindo o endereço http://pt.indymedia.org/parceiros/noticias.rdf.

225 Não existe nenhum editorial com a data de Setembro de 2004 porque o último backup - cópia de segurança - do servidor onde o CMI-Portugal estava então alojado e que foi apreendido pelo FBI tinha sido efectuado apenas no final de Agosto desse ano. Posteriormente, o colectivo conseguiu recuperar grande parte desses conteúdos que se julgava irremediavelmente perdidos. É por essa razão que o mês de Outubro apresenta o maior número de editoriais publicados, isto é, 38.

156

membros e das dificuldades resultantes da necessidade de se alcançar um consenso na tomada de

qualquer decisão. De notar que, quando questionados sobre se possuíam alguma experiência anterior

ao Indymedia em Jornalismo, nenhum dos voluntários respondeu afirmativamente. Outra das questões

que colocámos diz respeito ao número médio de propostas de editoriais que cada elemento do grupo

apresenta por mês ao colectivo e a este respeito verifica-se que as respostas variam muito. Uma

voluntária adiantou o número de cinco, outro voluntário respondeu entre dez e quinze e um terceiro

chegou mesmo a dizer que não apresentava propostas de editoriais. Reflectindo o mal-estar interno

que se sentia no grupo naquela altura, uma voluntária explicou que de momento não estava a

contribuir para esta tarefa por discordar da forma como o colectivo estava constituído mas que

habitualmente a média ronda as sete a oito notícias - "duas produzidas por mim própria e cinco ou seis

de outras fontes". Tal como no jornalismo profissional e segundo a licença Creative Commons

adoptada no site, no caso de a notícia ser de origem externa os voluntários costumam citar a fonte

original e fazer uma ligação para ela. A não identificação dos elementos que propuseram e

contribuiram para cada editorial é justificada com o facto de que "todos participam na sua

concepção", de acordo com uma voluntária. Outro membro do grupo acrescenta: "Parece-me bem que

seja todo o colectivo a dar a cara, por inúmeras razões... segurança, independência, egos reduzidos."

A pretensão da Indymedia é criar uma rede de informação alternativa que seja simultaneamente global

e local, adaptada aos interesses e preocupações das comunidades locais, regionais e nacionais de todo

o mundo. Mas a livre partilha em rede de todas as notícias produzidas pelos CMIs poderia levar a

pressupor que os centros com menos recursos ou mais pequenos, como é o caso do português, se

tornassem excessivamente dependentes de conteúdos de origem externa, descurando a produção

interna e o contexto nacional.

De forma a verificar se essa hipótese tinha alguma validade quando aplicada ao CMI-Portugal,

efectuámos uma classificação dos editoriais em duas categorias: uma de cariz internacional ou externo

e outra de âmbito nacional ou interno, em que se optou por integrar não só os editoriais que se

referissem à sociedade portuguesa e a acontecimentos ocorridos ou para acontecer em Portugal, mas

também aqueles que tivessem a ver com interesses nacionais226, cuja fonte tivesse origem em território

português ou que fossem relativos à cultura lusófona227.

226 Como é o caso de um texto sobre um processo judicial instaurado por trabalhadores de uma fábrica na Polónia contra o grupo Jerónimo Martins que exigem o pagamento de horas extraordinárias, publicado a 8 de Agosto de 2005 com o título "Polónia: grupo Jerónimo Martins processado por trabalhadores da Biedronka", disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=63484&cidade=1.

227 Inserem-se neste último tipo dois editoriais que destacam a língua galego-portuguesa: "O internacionalismo anti-lusófono de Gilberto Gil" datado de 25 de Julho de 2004 (disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=42311&cidade=1&forcarcomentarios=S) e "Galiza: a resistência lusófona a um genocídio linguístico" (disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=39452&cidade=1).

157

158

Número de Editoriais publicados pelo colectivo do CMI-Portugal

Nacionais Internacionais TOTAL

n % n % n %

Dezembro de 2005 11 45,8 13 54,2 24 100,0

Novembro de 2005 9 50,0 9 50,0 18 100,0

Outubro de 2005 9 50,0 9 50,0 18 100,0

Setembro de 2005 13 41,9 18 58,1 31 100,0

Agosto de 2005 11 50,0 11 50,0 22 100,0

Julho de 2005 12 42,9 16 57,1 28 100,0

Junho de 2005 6 35,3 11 64,7 17 100,0

Maio de 2005 11 61,1 7 38,9 18 100,0

Abril de 2005 13 65,0 7 35,0 20 100,0

Março de 2005 12 60,0 8 40,0 20 100,0

Fevereiro de 2005 10 38,5 16 61,5 26 100,0

Janeiro de 2005 11 57,9 8 42,1 19 100,0

Dezembro de 2004 11 44,0 14 56,0 25 100,0

Novembro de 2004 12 38,7 19 61.3 31 100,0

Outubro de 2004 16 42,1 22 57,9 38 100,0

Setembro de 2004 0 0,0 0 0,0 0 0,0

Agosto de 2004 3 17,6 14 82,4 17 199,0

Julho de 2004 8 34,8 15 65,2 23 100,0

Junho de 2004 5 29,4 12 70,6 17 100,0

Maio de 2004 4 22,2 14 77,8 18 100,0

Abril de 2004 5 29,4 12 70,6 17 100,0

Março de 2004 5 38,5 8 61,5 13 100,0

Fevereiro de 2004 4 25,0 12 75,0 16 100,0

Janeiro de 2004 7 38,9 11 61,1 18 100,0

Dezembro de 2003 5 29,4 12 70,6 17 100,0

Novembro de 2003 6 37,5 10 62,5 16 100,0

Outubro de 2003 8 42,1 11 57,9 19 100,0

Setembro de 2003 2 7,7 24 92,3 26 100,0

TOTAL 229 40,0 343 60,0 572 100,0

Esta distinção entre nacional e internacional ou interno e externo parece-nos pertinente para avaliar o

grau de adaptação da informação produzida pelo CMI-Portugal ao contexto local ou nacional. Poderá

também constituir um indicador, ainda que ténue, do nível de tratamento dessa informação pelos

voluntários do CMI-Portugal. Assim, com base nos critérios de selecção que enumerámos, podemos

ver no mesmo Quadro 1 que dos 572 editoriais publicados por aquele colectivo entre Setembro de

2003 e Dezembro de 2005, 229 foram classificados como informação nacional, contra 343 editoriais

referentes ao contexto internacional ou global. Em termos percentuais, esses números correspondem a

40 por cento de conteúdos com origem nacional face a 60 por cento de conteúdos cuja origem é

exclusivamente internacional. A proporção cumpre a estimativa de 30 a 40 por cento avançada por

uma das voluntárias na resposta ao questionário. Esta atenção concedida ao contexto nacional parece

resultar de uma política intencional do colectivo, como dá a entender outro voluntário: "Pessoalmente,

tento abordar a realidade quer nacional quer transnacional".

O sistema de publicação aberta e a filtragem de conteúdos

Os editoriais não se encontram divididos por secções, ao contrário dos artigos publicados pelos

visitantes através do sistema de publicação aberta. Através de um botão facilmente acessível que se

encontra no cimo da coluna à direita tem-se acesso a uma página onde qualquer um pode publicar

conteúdos audiovisuais como imagens, vídeos ou gravações áudio. Contudo, a grande maioria dos

artigos apresenta-se sob a forma de texto escrito, surgindo por vezes algumas imagens. O autor pode

atribuir até dois temas por artigo para efeitos de categorização por secção. Existem 16 temas à

disposição:

· Autodeterminações

· Cultura / Contra-cultura

· Ecologia / Ambiente

· Economia

· Globalização / Anti-globalização

· Guerra / Anti-militarismo

· Homossexualidade / Outras sexualidades

· Justiça / Prisões

· Migrações

· Minorias discriminadas

· Mulher

· Política

159

· Racismo

· Repressão

· Saúde

· Trabalho / Lutas Laborais

No topo da página de entrada, à direita, ao clicar na secção pretentdia através de uma barra de

navegação, pode-se aceder à página que contém todos os artigos classificados sob o mesmo tema.

Apesar de ser necessário indicar um nome e email para a publicação de artigos e comentários, a

utilização de pseudónimos e endereços falsos é generalizada uma vez que não é exigido qualquer tipo

de confirmação de identidade. O site não efectua o registo de informação relativa aos endereços IP

dos visitantes228. A possibilidade de participação livre e aberta com a protecção do anonimato quase

total num espaço virtual de partilha de informação e ideias sobre activismo libertário resulta por vezes

num discurso mais inflamado e agressivo que pode redundar em ataques e acusações pessoais,

sectarismo partidário ou ideológico, racismo, sexismo ou homofobia. Outro problema gerado pela

liberdade de expressão é a utilização do sistema de publicação aberta para fins de propaganda

partidária e religiosa e marketing comercial.

Uma das tarefas principais dos voluntários consiste, precisamente, em "esconder" as mensagens que

violam a política editorial do colectivo e que podem ser consideradas como lixo electrónico ou

spam229. Aliás, grande parte das mensagens enviadas para a lista de discussão do CMI-Portugal

referem-se a avisos sobre artigos que um dos elementos do colectivo escondeu ou, quando tem

dúvidas, que acha que devem ser escondidos de forma a que o resto do grupo possa analisar e aprovar.

Maior parte das decisões são pacíficas, mas em alguns casos mais controversos é mesmo impossível

chegar ao consenso desejado, valendo nessas situações a lei da maioria. De acordo com um

voluntário, "os conflitos raramente passam da discussão, já que qualquer pessoa do colectivo tem

direito de veto e utiliza-o (quase sempre) de uma forma conscienciosa". Outra voluntária é da opinião

de que "na maioria das vezes o grau de conflitualidade é muito baixo", embora admita que podem

ocorrer situações mais complicadas, acrescentando que existe na generalidade um grande sentimento

de confiança mútua que permite ultrapassar a maior parte dos problemas. Convém, porém, notar que

estas afirmações foram feitas antes da referida expulsão. Posteriormente a este episódio, um elemento

do grupo respondeu que "apesar de as discussões serem frequentes e, por vezes, esgotantes",

228 Como se pode ver na nota anexada pelo colectivo ao editorial "F.B.I apreende material do Centro de Média Independente Português" disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=50042&cidade=1 (acedido a 17 de Dezembro de 2005). A nível global, está a circular para aprovação na rede Indymedia uma proposta do centro de Sidney para a introdução de um novo 11º príncípio de unidade em que consta que "todos os CMIs deverão comprometer-se a proteger a privacidade e o anonimato dos seus utilizadores" e que "o registo de informação do endereço IP dos utilizadores se deva reduzir ao mínimo necessário para manter o controlo do servidor (...) em caso de ataque". Ver http://translations.indymedia.org/Translations/1129761641/index_html.

229 Os elementos do colectivo também podem, obviamente, colocar artigos online na zona de publicação aberta e efectuar comentários.

160

considerava que o colectivo atravessava agora uma fase mais estável e que era normal surgirem

conflitos num colectivo não-hierárquico onde "as diferenças de opinião são consideradas saudáveis e

dinamizadoras". Para além deste caso, algumas das questões mais polémicas debatidas na lista são,

por exemplo, as críticas de "censura" que os utilizadores fazem ao próprio colectivo quando

descobrem que as suas notícias foram escondidas da página principal ou de outras secções230, a

utilização do sistema de publicação aberta para promover blogs e se esse tipo de artigos deve ser

considerado marketing comercial, assim como a convocação por grupos de activistas de esquerda de

contra-manifestações de protesto a manifestações de partidos e movimentos de extrema-direita231. As

mensagens escondidas podem ser classificadas como:

· Marketing comercial

· Mensagem repetida

· Mensagens vazias

· Proselitismo e marketing religioso

· Proselitismo e marketing partidário

· Mensagens de carácter pessoal

· Mensagens com ataques

· Violações de privacidade

· Mensagens incriminatórias

· Contribuições administrativas

· Pornografia Ofensiva

Apenas algumas dessas mensagens ficam disponíveis para consulta. A partir do canto inferior direito

da página de entrada, tem-se acesso a essas secções, com indicação do número de artigos que contêm:

230 É o caso de uma notícia publicada a 28 de Setembro sobre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) (disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=64989&cidade=1) que foi escondida na secção de proselitismo e marketing partidário. Em resposta, o autor escreveu outro artigo intitulado "Será censura no Indymedia português?" (disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=64996&cidade=1). Justificando a sua decisão, o colectivo refere num comentário (disponível em http://portugal.indymedia.org/ler.php?numero=64996&cidade=1&forcarcomentarios=S#65034) que decidiu inicialmente colocar a notícia na secção de "proselitismo e marketing partidário" dos artigos escondidos por considerar que se tratava de "uma noticia tendenciosa e propagandista distanciada da realidade Colombiana" mas reponderou a sua decisão e tornou-la de novo acessível. A esse texto foi acrescentado outro comentário (disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=64989&cidade=1&forcarcomentarios=S#65032) que exprime a seguinte posição: "Consideramos que as FARC não são mais do que, citando José Saramago, "um bando armado" responsável por incontáveis violações dos direitos humanos. Esta posição é fundamentada por relatórios de associações autónomas e organizações não-governamentais, como a Human Rights Watch, (a mesma que Uribe, presidente da Colômbia, classificou de "terrorista" por denunciar violações de direitos humanos cometidos pelo Exército).

231 Podemos-nos aperceber da polémica que esta questão levanta entre os utilizadores através da leitura dos comentários à mensagem "censura no indymedia???" em que o autor manifesta o seu desagrado pela remoção de dois artigos a convocar a organização de uma contra-manifestação (disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=67061&cidade=1#67655).

161

· Proselitismo e marketing religioso (17)

· Proselitismo e marketing partidário (138)

· Mensagens de carácter pessoal (18)

· Contribuições administrativas (39)

· Marketing comercial (30)

O grande número de mensagens de propaganda política - segundo dados registados a 31 de Dezembro

de 2005232 - deve-se sobretudo a convocações para manifestações de movimentos e partidos de

extrema-direita, a comunicados de organizações maçónicas e, mais recentemente, a apelos ao voto

nos candidatos autárquicos e presidenciais. Outros dos maiores contribuintes de lixo electrónico são

os apoiantes de ideologias anti-semitas e sionistas. Uma das curiosidades que registámos ao

analisarmos estas secções é que um dos maiores spammers do CMI-Portugal, o Mídia Sem Máscara

(www.midiasemmascara.org), um site watchdog brasileiro de tendência conservadora chega mesmo a

utilizar refinados estratagemas para atrair os visitantes à sua página, como publicar uma mensagem

com um link para um site com um endereço semelhante ao do Indymedia. Com efeito, como Joanne

Richardson observa (Richardson, 2005), os grupos radicais de direita descobriram há muito tempo

que a utilização táctica da Internet pode constituir um óptimo meio para a difusão dos seus ideais233.

Ao tentar criar um ambiente mediático verdadeiramente aberto, a Indymedia acaba por ser assim

impelida a limitar a liberdade de expressão de outros, levando os centros locais a recorrer à filtragem

e selecção ou mesmo censura dos artigos publicados pelos utilizadores. Apesar dos princípios de

unidade deste projecto salientarem "a importância da auto-determinação colectiva, da participação

aberta e igualitária, da promoção do debate e de divergências de opinião, assim como da

transparência", a realidade do funcionamento regular de um sistema online de publicação aberta leva

a que sejam impostos "limites à participação daqueles cujas ideias, fins ou tácticas são anti-

democráticos ou discriminatórios" na medida em que "interferem com a auto-determinação de outros"

(idem). Aí reside uma das grandes dificuldades da Indymedia, pois o critério do que é anti-

democrático ou discriminatório é sempre subjectivo e pode mesmo gerar problemas internos dentro

dos colectivos, como acontece regularmente no CMI-Portugal. Neste sentido, a resposta dada por um

dos voluntários num comentário à acusação de censura pelo autor de uma notícia sobre as FARC

colombianas que tinha sido escondida é exemplificativa:

232 Convém talvez notar que o arquivo das mensagens escondidas só vai até Outubro de 2004, quando o servidor de alojamento foi apreendido.

233 Joanne Richardson, que também pertence ao colectivo editorial do CMI-Roménia (http://romania.indymedia.org), alerta para a existência de "media neo-fascistas - como a rede de sites Altermedia (site português disponível em http://pt.altermedia.info), que são baseados no Indymedia mas sem terem publicação aberta, tomada de decisões por consenso, transparência ou arquivos públicos " (Richardson, 2005). Estes órgãos valorizam a participação até certo ponto : "A Altermedia afirma ser 'a voz do povo' e os seus editores procuram activamente colaborações; querem que os recém-chegados se envolvam com o movimento e na produção do seu discurso (...) mas sem colocar questões, sem argumentar, debater ou deliberar e sem crítica interna" (idem).

162

RJA em 28-09-2005 às 19:42:53

A Indymedia é o que fizermos dela. Só criticar não serve de muito, participar sempre com duas pedras na mão, ainda menos.

Há um colectivo que faz o melhor possível para que o CMI-PT exista. Estás descontente, ou tens talvez ideias melhores? Participa, faz alguma coisa para que algo mude.

Provavelmente só pretendes "mandar vir", portanto...

diverte-te e um bom trabalho.

PS: este CMI não é assim tão mau, melhor, até não é nada mau. A minha opinião também conta, né?

beijos#65022234

Em resposta, outro utilizador deixou o seguinte comentário, antes da notícia ter sido recolocada

online juntamente com uma nota explicativa:

mente reflexa em 29-09-2005 às 05:52:02

Ouve lá ó RJA mas aqui não se trata de ter duas pedras não mão. Censuraram um texto! Percebes? Censuraram sem avisar os autores, sem qualquer tipo de argumentação, sem lógica aparente. Se estão a denunciar isto é porque não é a primeira vez e pelos vistos a tua opinião é a de que devem censurar alguns textos e que devem deixar outros, tipo os da maçonaria, dos fascistas não sei quê, etc. Se este é o teu CMI, que nem é assim tão mau, então fica com ele.#65029

Outro comentário à mesma notícia exprime uma mensagem de apoio ao colectivo:

Milé Sardera em 29-09-2005 às 16:42:35

Afinal o RJA até tem razão. O cmi não é tão mau como isso. Tem erros, é verdade. Mas existe. E existe há muito tempo. E resiste a crises internas e a ataques externos. E parece que vai continuar a existir. De quantos colectivos se pode falar assim?

E o cmi até se arrepende dos erros e até volta atrás nas decisões. De quantas pessoas podemos falar assim?

Há gente que não faz nada e come o mundo tal como ele é. Há gente que faz coisas para que o mundo melhore. Há gente que faz coisas para que o mundo piore. Estejamos atentos para ajudar o cmi a ser melhor, mas orientemos as energias para pôr a agir os que estão adormecidos e para parar os que nos estão a matar a todos.

Pessoalmente, sempre achei que o cmi não deveria fazer censura de opinião. E, portanto, nunca poderia estar de acordo com o retirar da notícia de propaganda às FARC, assim como não poderia estar de acordo com a retirada de propaganda fascista.

No meu planeta, Liberdade ainda se escreve com maiúscula e ainda é um valor absoluto. No meu planeta, toda a gente tem direito a exprimir uma opinião. Ainda bem que o cmi faz parte do meu planeta.

234 Disponível em http://portugal.indymedia.org/ler.php?numero=64996&cidade=1&forcarcomentarios=S#65022.

163

#65056

Face à controvérsia gerada pela interpretação que é dada aos diferentes tipos de mensagens que,

segundo a política editorial, devem ser escondidos, alguns utilizadores sugerem que cada item que

pode ser motivo de remoção seja melhor explicitado. Outros falam na existência de uma "cúpula" que

pretende capturar o Indymedia. Quando questionados sobre qual era, na sua opinião, a percentagem

de artigos escondidos em relação ao número total, dois dos membros do grupo responderam que

estimavam que devia ser bastante reduzida, não chegando talvez a um por cento do total. Uma

voluntária reconheceu, no entanto, que a prática de remover um texto do site corresponde, de certo

modo, a uma forma de censura, mas que "é absolutamente necessário para manter um mínimo de

qualidade e coerência". Acrescenta que "são mensagens que, na medida em que vão declaradamente

contra a política editorial, "fogem ao propósito do CMI-Portugal". Outro elemento acha que não se

trata necessariamente de censura: "Escondemos notícias porque não queremos ser responsáveis por

mensagens de ódio, boatos e rumores, ou porque sentimos necessidade de demonstrar que não somos

cordões umbilicais de partidos políticos". Um terceiro respondeu de um forma mais frontal: "Não

tenho qualquer problema em censurar spammers235 ou pura propaganda". Outra questão que

colocámos diz respeito aos critérios pessoais empregues na edição de artigos. Enquanto que uma

voluntária destaca valores como a "veracidade, oportunidade e importância da informação, clareza,

síntese, correcção sintáctica e ortográfica e a identificação das fontes", dois outros elementos

concedem mais importância à relevância e ao seu interesse pessoal sobre o assunto que o texto

aborda.

Indyzine e outros projectos

Paralelamente à actividade online, o CMI-Portugal elaborou ainda a Indyzine, uma publicação

impressa de tiragem reduzida e periodicidade mensal distribuída em festas e outros eventos activistas.

Conforme nos explicou uma voluntária, esta publicação consiste numa selecção dos editoriais

publicados online em cada mês mediante a apresentação de propostas para a lista IMC-Features-

Portugal que são sujeitas a votação. "Os artigos mais votados ficam, desde que ninguém se oponha à

sua publicação, como já aconteceu. Respeita-se sempre o consenso; se não há, não passa." A Indyzine

é também disponibilizada em formato digital (PDF) a partir do site. Contudo, em Dezembro de 2005,

este projecto encontrava-se parado devido à falta de voluntários suficientes, de acordo com o que nos

confidenciou outro elemento do colectivo. Até então tinham sido publicados 12 números, sendo que o

último datava de Setembro desse ano. Outra iniciativa concebida em suporte impresso foi a adaptação

para português do livro Argentina, crise e revolta do autor catalão Carlus Jové - sobre os eventos que

235 Autores de mensagens que constituem lixo electrónico ou spam.

164

ocorreram naquele país da América Latina em Dezembro de 2001 -, lançado em Abril de 2005236 e

que "resultou de um trabalho de tradução e revisão por parte de cinco ou seis activistas, a grande parte

dos quais já saiu do colectivo", de acordo ainda com o mesmo membro237. A escassez de voluntários

tem ainda dificultado a concretização de uma secção multimédia contendo vídeos e gravações áudio.

Tácticas Vs estratégias

Ao longo de mais de quatro anos de existência o CMI tem sobrevivido aos conflitos internos e à saída

constante de elementos, realizando um trabalho de redacção e edição jornalística que concilia a busca

pela veracidade, o rigor e a exactidão herdados do jornalismo profissional com a paixão e a

subjectividade dos movimentos activistas. Mas se considerarmos, tal como afirma um dos voluntários,

que "o colectivo só poderá constituir-se como uma alternativa informativa se existirem mais pessoas

dispostas a participar na sua administração", temos que concluir que a subsistência a médio e longo

prazo do CMI-Portugal não está de todo garantida. Neste sentido, se atentarmos à distinção feita por

Graham Meikle (2002: 121), pode-se concluir que apesar de ter como objectivo tornar-se um médio

alternativo e estratégico - a longo prazo -, o CMI-Portugal assume actualmente por necessidade a

forma de um media táctico: provisório e efémero238. Por outro lado, é também ainda táctico na medida

em que valoriza a prática amadora. Para além de nenhum dos inquiridos ter respondido que tinha

experiência anterior em jornalismo apenas uma voluntária afirmou possuir algum conhecimento em

Web design (em particular, Microsoft Front Page e Adobe Photoshop)239. Do mesmo modo, o CMI-

Portugal emprega qualquer medium que seja mais acessível ou esteja mais disponível - quer seja a

Internet (Web, email, IRC), quer seja as publicações impressas e, apesar de rejeitar a imparcialidade,

também recusa os velhos dogmas ideológicos. As identidades e as subjectividades são

permanentemente salientadas no seio do grupo240.

236 O preço de capa é de três euros, sendo as receitas destinadas a financiar o Indyzine e o site.237 Esta e todas as restantes actividades do colectivo são financiadas pelos próprios elementos. 238 Não só devido à sua reduzida dimensão, mas também devido aos riscos de segurança por parte das forças de

autoridade que o site, como ficou bem patente na perda de alguns conteúdos do arquivo devido à apreensão do servidor onde estava alojado. Os próprios elementos também não estão imunes a serem perseguidos, se levarmos em conta os processos instaurados em centros estrangeiros.

239 Devido ao afastamento de outros elementos, a mesma voluntária admite que existe um problema de centralização na sua pessoa dos conhecimentos técnicos necessários no domínio do design e administração do site. Na sua opinião, o colectivo precisa de arranjar formas de distribuir equitativamente o poder técnico. Têm sido apresentadas na lista geral várias propostas de realização de workshops de modo a que ex-voluntários com formação específica na àrea partilhem os seus conhecimentos com os restantes. Até agora, porém, essas tentativas foram infrutíferas. Registe-se ainda que dos inquiridos, só dois responderam que utilizam software livre, apesar de no documento que define a política editorial se referir que "O CMI-Portugaliza compromete-se a (..) 5- defender o uso, em particular de tecnologias de informação de fonte aberta" (open-source) (CMI-PT, 2004a, § 2.7).

240 Durante a leitura das mensagens trocadas através da lista geral constatámos que os elementos se tratavam entre si recorrendo a substantivos no plural onde a referência ao género masculino era substituído por uma arroba ou pelo feminino: por exemplo, "tod@s" ou "todas" em vez de "todos". Isto apesar de ambos os sexos estarem representados equatitativamente no grupo. Para uma das voluntárias trata-se de "uma questão de descriminação positiva. A língua descrimina cruelmente as mulheres. se 99 mulheres e um homem fizerem qualquer coisa notável, foram 'eles' e não 'elas', já foram sempre "eles" que fizeram tudo (...), já na internet, o ELES é enorme e excluente delas. Por isso, os nossos eles acharam por bem serem elas quando se fala do conjunto das voluntárias, em solidariedade connosco".

165

Mas, por outro lado, podem também ser identificados no CMI-Portugal certos traços dos media

alternativos e movimentos activistas anteriores. Como pudemos verificar, a política de moderação

existente gera uma dissonância entre o discurso e as práticas do colectivo: Com efeito, se "a

Indymedia é aquilo que fizermos dela", a centralização das tarefas de edição num grupo restrito de

pessoas, mesmo que voluntárias e actuando sempre que possível em consenso, acaba por contrariar os

princípios democráticos de abertura, igualdade, transparência e livre participação inscritos nos textos

fundacionais (CMI-PT, 2004 e 2004a). A acusação constante de censura feita pelos utilizadores ao

colectivo revela os limites de um modelo auto-proclamado de emancipatório que oferece apenas a

capacidade de publicação, de transmitir informação241. Não se trata apenas do direito à palavra, mas

do direito de essa palavra ser recebida nas mesmas condições em que foi enviada, sem ser controlada,

reapropriada ou mesmo eliminada, de acordo com Baudrillard (1995 [1972]). É também neste sentido

que entendemos Matteo Pasquinelli quando refere que no mediactivismo "o direito à informação está-

se afirmando progressivamente como direito à autogestão da comunicação”. E é neste sentido que

Arninson (2002) e Graham Meikle (2003) falam de edição aberta.

Neste aspecto, as experiências dos fóruns de discussão de publicação aberta como o Slashdot e, mais

recentemente, o Digg242 e da enciclopédia colaborativa Wikipedia podem ser instrutivas na medida em

que reflectem um modelo em que os poderes editoriais dos responsáveis pelo site são ainda mais

reduzidos. O Slashdot é um site de notícias e opinião sobre tecnologia muito ligado à cultura hacker e

ao software open-source em que os utilizadores propôem artigos que precisam de ser aprovados por

um moderador para serem publicados. Qualquer um pode efectuar comentários ao texto publicado.

Para facilitar a discussão e filtrar o conteúdo mais interessante243, os comentários são classificados

pelos utilizadores com uma pontuação de - 1 a 5. Assim, uma pessoa pode querer ler todos os

comentários a um artigo ou seleccionar apenas a pequena minoria dos que receberam cinco pontos. O

Digg, outro site de tecnologia semelhante ao Slashdot, publica links para outros sites da Web

submetidos pelos utilizadores para avaliação. Os outros utilizadores podem fazer comentários sobre

essas ligações e aprová-las. Mas a grande diferença em relação ao Slashdot é que aqui não são os

editores que escolhem quais os links que surgem na página principal mas sim os leitores. Este fórum

emprega um sistema que apelida de "controlo editorial não-hierárquico" em que as peças submetidas

são colocadas numa lista de espera onde permanecem até que um número suficiente de utilizadores as

aprove para que seja publicadas na página de entrada. Caso não recebam um número suficiente de

Esta opinião é corrobada por um elemento masculino do grupo: "Consideramos que a linguagem não resulta de códigos imparciais. A utilização do feminino é o resultado do uso e abuso do masculino, expressão das diferenças de género existentes nas nossas sociedades." Outra resposta masculina é mais divergente: "Sinceramente o abraços a todas (as pessoas, presumo) não me convence... por isso, não o utilizo. O Homem VS O Ser Humano. É-me indiferente, mas para algum@s não é. ;)"

241 Mesmo que a remoção das mensagens seja justificada em comentário sempre que o autor assim o solicite. 242 Site disponível em http://digg.com. 243 São frequentes as discussões que ultrapassam as duas centenas de comentários.

166

aprovações, acabam por sair da lista de espera. O Digg aproveitou o conceito de edição aberta

empregue no fórum de discussão Kuro5hin244. embora com muito mais sucesso que este último. A

única diferença entre os dois é que no Kuro5hin os utilizadores registados podem aprovar a

publicação do artigo na página principal ou numa secção específica ou ainda optar pela sua remoção.

Sistemas como estes são aplicações do espírito de colaboração, abertura e autonomia existente no

movimento do software livre no sector informativo que aplicam à letra o lema “Não odeies os media!

Sê os Media”, funcionando com grande sucesso. Apesar de alguns CMIs já terem começado a aplicar

o sistema de edição aberta, consideramos que a sua adopção generalizada pela rede Indymedia e, em

particular, pelo CMI-Portugal, poderá contribuir para fomentar a participação activa de um maior

número de cidadãos comuns e não apenas de activistas.

244 Site disponível em http://www.kuro5hin.org.

167

6 – Contributos Para Uma Crítica do Conceito

6.1 - "O Alt.everyhing da Cultura e da Política"

Começámos por referir na introdução desta dissertação que a maior das dificuldades que as práticas

tácticas enfrentam consiste na utilização de uma linguagem militarista e de guerrilha, centrada no

ataque a um adversário, acarretando assim o risco permanente de se tornarem no reflexo do inimigo

ao empregarem os mesmos recursos desse adversário. Mas antes de abordar este problema, no

subcapítulo 5 deste capítulo, de foma a servir de passagem para a última parte desta investigação,

gostaríamos de nomear outras críticas e obstáculos que se tornaram evidentes para nós ao analisarmos

os media tácticos. Uma das quais é a inexistência de uma definição minimamente estável daquilo que

une estas práticas classificadas como tal, de modo a que se possam distinguir claramente de outros

fenómenos vizinhos. Com efeito, embora sejam vários os teóricos (Garcia e Lovink, 1997; CAE,

2001) que tentem responder à questão "o que são os media tácticos?", estes autores são, como vimos,

os primeiros a reconhecerem esta dificuldade. Se Joanne Richardson (2002), tal como outros teóricos

(Lovink, 2002: 271; Meikle, 2002: 119-124), identifica no leque de exemplos mais comuns de media

tácticos a sabotagem de publicidade dos AdBusters, os sites de net.art plagiados pelos 01.org, as

versões satíricas do espaço online da campanha de 2000 de George W. Bush produzidas pelo RTMark

e os vídeos das manifestações anti-globalização realizados pela Indymedia, para além destes nomes

“canónicos”, as divergências abundam.

Em Protocol, Alexander Galloway chega mesmo a incluir os vírus informáticos debaixo desta

etiqueta, na medida em que “infectam sistemas informáticos proprietários e propagam-se através da

homogeneidade contida dentro deles”, ao explorarem as falhas dos protocolos de comando e controlo

das redes e do hardware (Galloway, 2004: 175-176). O movimento ciberfeminista245 é também

considerado por Galloway como um medium táctico, comparando-o a um vírus que corrompe o

funcionamento regular dos protocolos tecnológicos (idem: 185). Atendendo aos mais recentes

desenvolvimentos das tecnologias sem fios, Robert Hassan (2004: 121-122) coloca na mesma gaveta

o Warchalking, isto é, a prática de escrever com giz símbolos codificados nas paredes de edifícios ou

no chão das ruas para assinalar a quem entender estes símbolos e tiver um computador portátil com

uma placa de rede que ali existe uma rede privada sem fios que está desprotegida ou aberta da qual se

pode tirar partido para aceder gratuitamente à Internet246. O software livre, como já referimos, surge 245 Corrente teórica que desafia o domínio masculino sob os computadores e a tecnologia argumentando que as

mulheres sempre tiveram uma relação muito estreita com as máquinas. Sadie Plant e Allucquére Rosanne Stone e as VNS Matrix são algumas das maiores representantes deste movimento.

246 O Warchalking consiste numa adaptação da linguagem assente em símbolos de giz empregue nos Estados Unidos pela altura da depressão pelos hobos - nómadas desempregados - para avisar os outros de que numa determinada casa morava um médico que não cobrava as consultas ou um polícia ou da existência de um local seguro onde podiam tomar uma refeição.

168

também por vezes associado aos media tácticos (Berry, 2002; Hassan, 2004: 119-120).

Nos últimos anos, o número de projectos que se auto-encaixam ou são colocados dentro desta enorme

gaveta a que se dá o nome de media tácticos não tem parado de aumentar. A frase um tanto irónica de

Gregg Bordowitz em “What is Tactical Media” de que “os media tácticos são o que são quando o

necessitam de o ser” parece ser a mais adequada para descrever este movimento onde cabe quase tudo

o que mistura arte, activismo, tecnologia e política (Silva, 2002; Richardson, 2002). Empregando a

metáfora criada por Naomi Klein em No Logo (Klein, 2000), o CAE caracteriza com acuidade a

situação, dizendo que o termo se tornou no alt.everyhing da cultura e política (CAE, 2003). Para este

colectivo, “a componente táctica é apenas uma das muitas correntes de possibilidades de resistência

convergindo no vector cultural/político de resistência que, na ausência de um termo melhor, é

actualmente designado de media tácticos”. McKenzie Wark (2002) considera que os media tácticos

estão-se a tornar numa “forma cómoda de classificar projectos experimentais na àrea dos media que,

de outro modo, vão contra as categorias de actividade aceites”. Num tom semelhante, Sam de Silva,

compara o conceito a “um spam persistente que eleva e celebra os homems e mulheres dos media

tácticos como se possuíssem algum tipo de magia necessária para acabar com os males do seu mundo

global e/ou local” (Wark, 2002).

Na quarta e mais recente edição do N5M, realizada em Setembro de 2003, a organização incluiu no

programa iniciativas que anteriormente eram deixadas de lado. Até então, salienta Richardson (2002),

predominava a visão de que os media tácticos eram sobretudo uma ideia ocidental. No entanto, no

N5M4 foi possível encontrar projectos do Mali, Gana, Tanzânia, Uganda, Zâmbia, Jamaica, Bolívia,

Índia e Brasil organizados por autóctones ou por europeus e norte-americanos. Na sua grande maioria,

consistiam em iniciativas de combate à info-exclusão ou divisão digital que fornecem recursos em

tecnologias de informação e comunicação, bem como acesso à Internet a populações desfavorecidas.

Para Richardson, “ao classificar todas estas diferentes práticas de media tácticos, corre-se o risco de

ignorar as suas diferenças e fazer com que o termo deixe de ter sentido” (idem). Este esvaziamento de

significado “parece corresponder em proporção inversa ao ênfase recente dos media tácticos enquanto

rótulo cool no mercado das ideias”, surgindo associado a adjectivos como “bom, progressivo,

alternativo, etc. Não existe necessidade de colocar questões, a sua verdade parecer ser desde logo

óbvia” (ibidem).

169

6.2 - O Espectro da Cooptação pelo Capital

Mas será que “quando as tácticas deixam de constituir apenas formas de improvisar sob as condições

opressivas da sociedade e começam a obter a legitimação de valor artístico ou de modus operandi

político, ainda continuam a ser a 'anti-disciplina' em relação à ordem dominante?” (Berry, 2000). Esta

questão, remete-nos para outra das dificuldades que os media tácticos enfrentam já mencionada em

cima. Trata-se do risco da sua cooptação e recuperação pelo capitalismo – actuando, à maneira de

Certeau, como estratégia -, seguindo o mesmo destino de outras correntes alternativas do século

passado que acabaram por ser comercializadas sob a forma de mais uma mercadoria.

Este perigo tem várias causas interligadas entre si, umas intrínsecas ao próprio movimento em

questão e outras relacionadas com factores globais. A primeira deriva do processo de designação e

classificação de um conjunto de práticas que até há menos de uma década era invísivel aos olhos do

grande público, como adianta o CAE (2001). O acto de dar o nome a algo que até então era anónimo

representou, para este colectivo, a abertura de uma “caixa de pandora”, um gesto que libertou todos os

males. Opinião mais optimista tem Josephine Berry (2002). Começando por recordar Certeau, afirma

que “onde a lógica do capital (...) deve sempre procurar obter lucro dos seus investimentos mediante a

extração de um produto, o táctico rejeita o próprio (nomes próprios, identidades fixas, territórios

definidos) em nome do temporário, do precário, do efémero e do improvisador”, acrescentando que “a

tendência do campo da produção para assimilar as relações comunicativas e afectivas da sociedade

visa aproveitar as inovações da actividade táctica do quotidiano”. Apesar disso, conclui que o capital,

“mediante a conversão do que está em fluxo em algo fixo, acaba sempre por falhar as possibilidades

reais de invenção táctica” (idem).

Mas esta resposta é insatisfatória por ser incompleta. Para além disso, ignora o facto de que o capital

não é ameaçado pelo caos, antes prospera com ele, como nota David Garcia em “Old and New

Dreams for Tactical Media” (Garcia, 1997), onde, num tom prudente, alerta os praticantes tácticos

para o facto de “não só todos os seus actos de subversão poderem ser cooptados pelo capital, como

também de que o ciclo perpétuo de destruição e renovação característico dos media tácticos é uma

incorporação das forças libertadas pelo capitalismo”. Entre o capitalismo e os seus descontentes existe

uma relação de dependência mútua remontando ao século XIX, o que explica “porque é que

movimentos estéticos tão radicais como o Fluxus e o Punk foram cooptados tão facilmente” (idem).

170

É necessário assim talvez reconhecer, como o faz Peter Lamborn Wilson (1997), que o destino de

qualquer medium táctico acaba sempre por ser a sua integração num tipo de estratégia e que muitas

das trajectórias destes projectos terminam no “buraco negro fatal” que é o capital. Isto porque “todos

os media (...) estão ligados à representação”. Mesmo os tácticos, um tipo de produção cultural e

política que procura “manter-se sempre à frente da representação, de forma a obter uma relativa

invulnerabilidade face a esta, mediante a mobilização. Embora Lamborn Wilson não seja muito claro,

o termo representação poderá ser interpretado num sentido que se situa entre a simulação e/ou

manipulação (idem). “Os media, enquanto tecnologias (...) são representações-espelho perfeitas da

totalidade que os produz (ou vice-versa)”, afirma, apontando como exemplo a Internet, uma

tecnologia que “para além de reflectir uma origem militar, mantém também uma afinidade com o

Capital”, pois tal como este, a Rede ultrapassa fronteiras, é um “caos”, possuindo características

nómadas. Da mesma forma, tal como o capitalismo, “aproxima-se da virtualidade, do

desencorporamento, da prótese cognitiva” (ibidem).

A curta-duração das micro-intervenções dos media tácticos surge também para Geert Lovink e Ned

Rossiter como uma "armadilha" do capital, pois actua de acordo com o modo temporal do Pós-

Fordismo e da economia da informação (Lovink e Rossiter, 2005). Os autores apelidam de

"retrógada" a lógica efémera dos media tácticos. "Dado que o modelo do ataque pontual é a condição

dominante, os media tácticos têm uma afinidade com o que procuram opôr-se", sendo por isso

tratados com uma "tolerância benigna" (idem). Não aspirando a mais do que provocar "breves

instantes de ruído ou interferência", acabam por se prestar a si próprios à exploração pelo capital ao

apontarem as falhas no sistema e fugirem logo em seguida. Em seu lugar, Lovink e Rossiter propôem

as redes organizadas, um híbrido que é "em parte um medium táctico e em parte uma formação

institucional", assente num pano de fundo info-guerra e tendo como objectivo a sustentabilidade a

longo prazo das suas acções (ibidem).

171

6.3 - O Eterno Retorno do Sublime Tecnológico

A suposta “bondade” dos novos media e da tecnologia digital em relação a uma potencial utilização

emancipatória por parte dos cidadãos face aos media comerciais dominantes como as rádios e as

televisões, de forma a deixarem de ser consumidores passivos para se tornarem produtores activos é

também motivo de dúvida. Se seguirmos o ponto de vista de Lamborn Wilson, a cooptação pelo

capital resulta da mediação da realidade inerente aos próprios media. A crença – muitas vezes ingénua

e infundada - nos efeitos revolucionários do digital está na essência da teoria dos media tácticos e, se

bem que possa parecer que a sua origem remonte apenas aos anos 90, ela percorre grande parte da

segunda metade do século passado até ao momento actual. A atitude é bem sumarizada na frase já

quase clássica de William Gibson no conto “Burning Chrome” (1986): “The street always finds its

own uses for things”, ou seja, a tecnologia pode ser adaptada pelo cidadão comum de forma a dar

resposta aos seus desejos e necessidades.

A massificação da Internet em meados dos anos 90 levou alguns gurus hiper-optimistas como Kevin

Kelly247, Nicholas Negroponte248 e George Gilder249 a considerar esta como uma tecnologia

emancipadora face aos suportes radiodifundidos como a televisão e a rádio, conotados com um modo

centralizado e controlador. Tratavam-se de "previsões delirantes", como refere Joanne Richardson,

segundo as quais a nova tecnologia iria "ultrapassar a matéria, eliminar a escassez, descentralizar o

controlo hierárquico e possibilitar una nova democracia em rede"250. A sua iminência representava

uma ruptura cataclísmica da história", sendo que, depois dela "nada voltaria a ser o mesmo"

(Richardson, 2005).

O fascínio pela tecnologia patente nos dias de hoje em muitos projectos tácticos nascidos na Internet é

denunciado por Matteo Pasquinelli sob a forma do tecno-narcisismo (Pasquinelli, 2002)251 presente 247 Kelly, Kevin (1994) Out Of Control: The New Biology of Machines, Social Systems and the Economic World,

Reading - Massachusetts, Addison-Wesley.248 Negroponte, Nicholas (1996 [1995]) Ser Digital, Lisboa, Editorial Caminho. 249 Gilder, George (1994) Life After Television: The Coming Transformation of Media and American Life, Nova Iorque,

Norton.250 Richardson (2005). Richard Barbrook e Andy Cameron apelidaram esta visão optimista do futuro assente numa "fé

profunda no potencial emancipatório das tecnologias de informação" de "Ideologia Californiana" (Barbrook, Richard e Cameron, Andy (2001) "Californian Ideology" em Ludlow, P (ed.). Crypto Anarchy, Cyberstates, and Pirate Utopias, Cambridge - Massachusetts, MIT Press, pág. 364). Esta caracteriza-se por "combinar promiscuamente o espírito libertário dos hippies com o zelo empresarial dos yuppies", sendo no entanto, em simultâneo, pessimista e repressiva em termos sociais, na medida em que exclui os "info-pobres" do "info-ricos". Na opinião destes autores, "a tecnologia está assim mais uma vez a ser utilizada para reforçar a diferença entre senhores e escravos" (idem: 376-378).

251 Pasquinelli relaciona o tecno-narcisismo do mediactivista com o narcisismo dos media descrito por McLuhan. O canadiano adapta em Understanding Media (1964) o mito grego de Narciso ao ambiente comunicacional da tecnologia eléctrica. Segundo ele, a extensão do nosso corpo que os media nos oferece produz um efeito de narcose através da auto-amputação que o sistema nervoso central realiza sobre o sentido, função ou orgão afectado.

172

nos hackers envolvidos. Segundo ele, "não se pode dissimular uma ideologia dominada pelas

máquinas, uma prática orientada pela tecnologia", dado que esta última, "tal como as instituições e a

arquitectura, produz ideologia, ideias e comportamentos" que se impôem como "óbvias, naturais e

indiscutíveis” (idem). Não é, por isso, raro encontrar nos media tácticos "uma confiança

incondicional na libertação que a tecnologia acarreta automaticamente consigo, e na Rede, elevada a

instrumento perfeito da democracia, ignorando a divisão digital que coloca grande parte da sociedade

fora destes media" (ibidem). Richardson refere também os mitos associados ao activismo digital no

novo milénio e os seus heróis: "vanguardas e embusteiros da rede, guerreiros dos media tácticos e

multidões digitais" (Richardson, 2005).

Mas é necessário ir além dos mitos e das ideologias para ver a Internet como ela realmente é, nas

palavras de Richardson: "Uma relação social, uma ligação ou uma rede entre indivíduos mediada por

computadores e cabos" em vez da visão da "máquina incorpórea que surgiu do nada e continua a

produzir-se, multiplicar-se e a perpetuar-se a si própria a partir da sua energia vital e força viva",

descurando o papel dos agentes humanos na transformação social (idem).

Para compreender melhor este deslumbramento pelo que Leo Marx apelidou de “sublime

tecnológico”252 na sua vertente cibernética, convém recordar a polémica teórica travada entre Hans

Magnus Enzensberger e Jean Baudrillard no início dos anos 70. Tendo em conta a crescente difusão

das câmaras de vídeo, da televisão por cabo, dos satélites e dos computadores, o primeiro argumenta

no artigo “Constituents of a Theory of the Media” que “pela primeira vez na história, os media tornam

possível uma participação de massa num processo social produtivo” e que “os meios práticos desta

produção estão nas mãos das próprias massas” (2003 [1970]: 262). Enzensberger sustém que a

estrutura dos novos media é igualitária. Propõe um modelo de utilização emancipatória destes,

baseado numa comunicação descentralizada, interactiva, de “muitos para muitos” e politicamente

motivada, que contrapõe a um modelo de utilização repressiva dos media (idem: 265; 269).

Aludindo ao pessimismo da teoria crítica, o autor acusa a esquerda de sustentar uma teoria dos media

assente apenas no conceito de manipulação, uma posição que apelida de defensiva e que revela uma

impotência face ao domínio dos meios de produção pelo inimigo. Este “receio de ser engolido pelo

sistema é um sinal de fraqueza, pois pressupõe que o capitalismo é capaz de ultrapassar qualquer

contradição – uma convicção que pode ser facilmente refutada em termos históricos e que é

teoricamente insustentável”. Segundo ele, “a premissa básica não-dita da tese da manipulação”

252 Marx, Leo (1964), The Machine in the Garden, Nova Iorque, Oxford University Press.

173

consiste em pressupor que existe uma verdade pura e impossível de ser manipulada” (ibidem: 263-

264. Mas Enzensberger discorda dessa ideia, afirmando que “toda a utilização dos media pressupõe

manipulação (...) Desse modo, a questão não é se os media são manipulados, mas sim quem os

manipula. Um plano revolucionário não deverá exigir que os manipuladores desapareçam; pelo

contrário, deve transformar todos em manipuladores” (ibidem: 265). Os media são, pela sua natureza,

“sujos” na medida em que “o próprio acto da crítica exige o recurso às tecnologias dominantes de

manipulação” (Galloway, 2004: 57). Aqui, o ensaísta alemão antecipa-se ao modo de actuação em

espelho dos media tácticos assente no combate ao adversário aproveitando os recursos desse “outro”,

presente na contra-propaganda dos AdBusters e da Indymedia visando atacar as “falsificações” e

“mentiras” do discurso corporativo.

Anteriormente, também o surgimento da televisão253 e da rádio254 tinham já sido alvo de hinos

messiânicos. Na verdade, a história do sublime tecnológico está repleta de consagrações a cada

"nova" tecnologia anterior aos media electrónicos: desde a máquina a vapor de à energia nuclear,

passando pelos caminhos de ferro, o telégrafo e a electricidade, recorda Richardson, explicando que

"em cada um destes momentos históricos ocorreu um esquecimento activo das pretensões da

tecnologia anterior no sentido de tranformar totalmente o mundo tal como o conhecíamos".

253 Em 1940, David Sarnoff, o fundador da cadeia NBC e o homem que anunciou o primeiro televisor a cores no ano anterior, previu que a televisão "estava destinada a oferecer mais conhecimento a um maior número de pessoas, uma percepção mais verdadeira do impacto dos acontecimentos actuais, uma avaliação mais exacta dos políticos e uma compreensão mais vasta das necessidades e aspirações dos outros seres humanos". Esta frase encontra-se no prefácio a Lohr, Lenox R., (1940) Television Broadcasting, Nova Iorque, McGraw-Hill. Citado em Shenk, David (1997) Data Smog: Surviving The Information Glut, Nova Iorque, HarperCollins, págs. 59-60.

254 Já em 1932, Bertold Brecht salientava em "The Radio as an Apparatus of Communication" o potencial que a rádio possuia para ser uma rede de comunicações de duas vias. deixando de ser um mero meio de distribuição: "A rádio seria o mais formidável aparelho de comunicação imaginável para a vida pública, um enorme sistema de canalização. Ou antes, poderia sê-lo se não soubesse apenas receber mas também emitir; não somente fazer o ouvinte escutar, mas fazê-lo falar; não isolá-lo, mas colocá-lo em relação com os outros. Texto disponível em http://www.medienkunstnetz.de/source-text/8/ (acedido a 4 de Dezembro de 2005). Original em alemão publicado com o nome de "Der Rundfunk als Kommunikationsapparat" em Blätter des Hessischen Landestheaters, Darmstadt, Nº 16, Julho de 1932.

174

6.4 - A Subversão Impossível dos Media

Em resposta à teoria marxista dos media de cariz optimista esboçada por Enzensberger, Baudrillard

defende em “Réquiem pelos Media” que não existe uma estrutura inerente aos media, em termos

tecnológicos, como o teórico alemão e McLuhan sustêm. Ao mesmo tempo, remete a questão da

produção e do conteúdos para segundo plano face ao problema da falta de interactividade oferecida

pelos media. Estes são acusados de fabricarem não-comunicação e de impedirem sempre a produção

da resposta e todo o processo de troca. É aqui que, para Baudrillard, “se funda todo o sistema de

controlo e de poder”. Por isso, afirma que “a única revolução neste domínio (...) está na restituição da

possibilidade de resposta”, o que “pressupõe a subversão de toda a actual estrutura dos media” (1995

[1972]: 173).

O seu pessimismo em relação aos media leva-o a afirmar que “qualquer veleidade no sentido de

democratizar os conteúdos, de os subverter, de restituir a ‘transparência do código’, de controlar o

processo de informação, de forjar uma reversibilidade dos circuitos ou tomar o poder sobre os media

é sem esperança - se não for quebrado o monopólio da palavra” (idem). Isto não significa o mesmo

que cada um ter uma câmara e gravar vídeos domésticos ou mesmo, nos dias de hoje, um computador

portátil equipado para aceder à Internet sem fios e poder actualizar em todo o lado o seu blog, pois

isso apenas significaria “dar individualmente a palavra a cada um”, resultando num “amadorismo

personalizado”.

Para Baudrillard, o que está em causa é a possibilidade de comunicação verdadeira, de trocar e

retribuir a palavra, sem que possa alguma vez ser detida, fixada, armazenada e redistribuída. Pelo

facto da “revolução” proposta por Enzensberger “conservar no fundo a categoria de emissor (...),

fazendo de cada um o seu próprio emissor, ela não põe em cheque o sistema mass-mediático”

(ibidem: 187). Através de uma análise que pode ser também aplicada aos media tácticos, faz uma

crítica das estratégias - ou melhor, tácticas? - empregues pelo movimento estudantil do Maio de 68

em França e pela contra-cultura hippie dos Estados Unidos. Desta forma, nega o impacto subversivo

dos media, no sentido da difusão da mensagem revolucionária. “A transgressão e a subversão (...) não

passam sobre as ondas sem serem subtilmente negadas enquanto tais: transformadas em modelos,

neutralizadas em signos, são esvaziadas do seu sentido”. Não existe melhor forma de as reduzir do

que “administrar-lhes uma dose mortal de publicidade” (ibidem: 178).

175

À luz do único exemplo de comunicação interactiva dado em “Réquiem pelos Media”, isto é, os

cartazes, as serigrafias e os graffities que alteram o sentido dos cartazes publicitários255, designados

como os “verdadeiro media revolucionários” durante e após o Maio de 68 (ibidem: 181; 189), e tendo

em conta os escritos posterirores de Baudrillard sobre as simulações nos anos 80 e o virtual na década

seguinte, é provável que o filósofo francês olhe com a máxima suspeição a actual atracção

avassaladora e inquestionável pela tecnologia, pelo digital, pelas redes virtuais que atinge os media

tácticos. Mas, por outro lado, talvez o pessimismo de Baudrillard seja demasiado cínico, pois ao

valorizar a acção directa nas ruas, o modelo activista tradicional, “esquece-se“ que se encontra sempre

na posição demasiado cómoda de teórico. É necessário reconhecer, como o faz Lovink (2002: 265),

partindo da realidade actual dominada pela Internet, que tudo é simulação hoje em dia. Já em 1994 o

CAE defendia que, dado que o poder se estava a transferir dos espaços físicos para assumir uma

existência nómada na virtualidade, o combate nas ruas se tinha tornado ineficaz e que a resistência

devia combatê-lo no ciberespaço, bloqueando os seus fluxos de informação (CAE, 1994: 23-25). O

colectivo virá, como vimos, a propor mais tarde a desobediência civil electrónica, através do bloqueio

dos fluxos de informação que viajam pelas redes (CAE, 1996: 11). Também Stefan Wray, do grupo

hacktivista Electronic Civil Disturbance, vê o computador como uma ferramenta potenciadora de

resistência contra o capitalismo: "Dada a crescente preponderância dos computadores e o facto de que

os nossos opositores políticos estão entre os mais conectados no mundo, é insensato ignorar o

computador. É importante desviar a nossa atenção para o computador, de forma a compreendê-lo e a

transformá-lo num instrumento de resistência. Para os ludditas do mundo que resistem aos

computadores, considerem utilizar computadores para resistir" (1998b). Na nossa opinião, o caminho

a seguir para os media tácticos será porventura a coordenação de iniciativas compostas por uma

vertente virtual e acções reais. Os protestos de Seattle não tiveram lugar apenas no espaço público

físico mas também na Internet, através de ataques hacktivistas de Denial of Service aos servidores da

Organização Mundial do Comércio. Outra alternativa de reconciliação entre o real e o virtual é a

interligação e a “síntese rigorosa entre os movimentos sociais e a tecnologia” proposta por Lovink e

Schneider (2002), de forma a ter em conta os limites e as potencialidades dos novos media para o

activismo. Este parece ter sido o caminho tomado pelos activistas e hackers no A31, durante a

Convenção Republicana de 2004 em Nova Iorque, em que os telemóveis, as redes sem fio, os blogs e

o RSS permitiram coordenar a acção nas ruas e criar uma linguagem mediática colectiva.

É certo que as redes e os novos media sofrem de uma vertigem que tende em direcção ao abismo do

capital - resultado das suas origens militares-industriais -, mas também é verdade que a sua

arquitectura rizomática, descentralizada e aberta gera falhas no “sistema protocolar de comando e

255 Estes podem ser considerados as primeiras práticas de "piratagem" de cartazes publicitários, inserindo-se na categoria de culture jamming, enquanto prática de billboard liberation.

176

controlo”, como diz Alexander Galloway (2004). Se aproveitarmos estes buracos poderão surgir daí

fenómenos inesperados, aleatórios e emergentes baseados no princípio da troca que Baudrillard tanto

anseia, que poderão formar a multidão teorizada por Hardt e Negri ou a inteligência colectiva de

Pierre Lévy. Enquanto que o desenvolvimento cooperativo de software livre, as redes Peer-to-Peer

(P2P) de partilha de ficheiros e o movimento por uma globalização alternativa são casos de nível

macro, os projectos de media tácticos pertencem ao microscópico, actuando como “formigueiros”

reticulares dedicados a subverter com ironia e solidariedade o Império.

177

6.5 - A Retórica do Inimigo e a Metáfora Terrorista

Se os media tácticos atingissem alguma vez os seus objectivos legítimos, tornar-se-iam imediatamente redundantes como categoria autónoma. Nesse momento, passaríamos todos a ser mediums, rejeitando que o discurso público fosse controlado (ou monopolizado) por peritos e profissionais dos media. O 11 de Setembo teve precisamente esse efeito.

– David Garcia, “Islam and Tactical Media in Amsterdam”

A grande questão para o futuro dos media tácticos poderá estar em saber como ultrapassar o legado de

um termo como táctica que remete para uma história militar e para uma tradição de subversão do

espectáculo mediático influenciada pelo terrorismo (Richardson, 2002). A definição deste termo po

teóricos como David Garcia e Geert Lovink associa uma linguagem militarista e de guerrilha às

práticas tácticas, da mesma forma que outros projectos anteriores de media alternativos se inspiraram

na metáfora do terrorismo. Segundo estes autores e outros praticantes tácticos, um movimento de

media tácticos só é formado e apenas existe em função de um Outro, O Inimigo, para o qual se

convergem todos os esforços, legitimando até o recurso à violência. O próprio David Garcia admitiu

mais recentemente que alguns praticantes e activistas criticam a natureza militarista do termo táctico

por remeter a uma bipolaridade que, segundo eles, pertence ao passado. O autor, não deixa contudo de

afirmar que "o carácter militante do termo também ajuda a explicar a sua persistência obstinada",

tendo em conta "a política de consenso à Terceira Via" dos dias de hoje (Garcia, 2004).

Em causa para McKenzie Wark (1997), está uma “linguagem de mobilização herdada da guerra fria

em que se espera que intelectuais, artistas e profissionais dos media se alistem num ou noutro

‘movimento’ para combater contra este ou aquele adversário nesta ou naquela ‘emergência’”. As

liberdades política, estética e ética de todos podem ser legitimamente suspensas em nome de um valor

mais elevado (idem). No lugar de uma escolha entre táctica e estratégia está, para Wark, a opção entre

uma linguagem autoritária ou democrática para a produção mediática. Contestando o discurso

militarista e de guerrilha adoptado em relação aos media tácticos, McKenzie Wark afirma que de

entre as várias linguagens que se podem aplicar aos media – estética, ética e política, entre outras -, a

linguagem militar é a que é menos necessária (ibidem).

A pertinência destas críticas acentua-se num cenário pós-11 de Setembro de "guerra contra o

terrorismo" em que vigora o estado de excepção256: Detenções sem julgamento, o recurso a tribunais

256 De acordo com a concepção de Giorgio Agamben em Stato di Eccezone, Turim, Bollati Borighieri (2003), relativa à capacidade do Estado se defender a si póprio recorrendo a qualquer meio disponível. Nesta zona de vazio legal, de suspensão da ordem legal na sua totalidade, segundo Carl Schmitt, ou de indeterminação entre a anomia e o Direito, na acepção de Walter Benjamin, a Constituição - e, consequentemente, os direitos e liberdades dos cidadãos - é

178

militares e a campos de detenção no estrangeiro, o direito do governo de vigiar populações domésticas

e estrangeiras e outras disposições consignadas em leis como a USA Patriot Act fizeram com que as

actividades de activistas e artistas passassem a ser muito mais controladas pelas autoridades,

sobretudo os que desenvolvem trabalhos na àrea da privacidade e criptografia. A sua liberdade de

expressão e direitos civis começaram a estar em risco. As acções de desobediência e dissensão que

questionam as utilizações convencionais da tecnologia de um modo não-violento começaram a ser

ainda mais associadas ao terrorismo. A estrutura em rede, distribuída, modular e leve, baseada em

pequenos grupos autónomos, característica da Al Qaeda possui bastantes semelhanças com a dos

movimentos tácticos activistas-hacktivistas (Galloway, 2004: 201). Ambos executam acções creativas

e flexíveis que Jordan e Taylor (2004: 30) apelidam de acções de reverse engineering face ao sistema

opositor, explorando as suas próprias falhas. No caso dos hacktivistas, trata-se, no sentido literal, de

reapropriar esta técnica hacker para combater virtualmente o capital global. As organizações

terroristas em rede, por seu lado, "fazem uso dos mesmos canais de comunicação responsáveis pela

difusão dos valores comerciais norte-americanos" que rejeitam veemente, explicam Jordan e Taylor

(idem)257.

O terrorismo fundamentalista é, nas palavras de Joanne Richardson, “um espelho da sociedade em

rede de um capitalismo global sem Estado” (Richardson, 2002), no que se assemelha ao perfil do

praticante táctico: “Os militantes de Bin Laden educados no Ocidente não pertencem a qualquer país

específico; eles viajam pelo globo, da Bósnia a Paris e Nova Iorque, utilizam a Internet e telemóveis e

têm acesso a redes de comunicação mesmo numa gruta do deserto” (idem).

Tendo em conta "o ataque tão catastrófico e niilista de 11 de Setembro", David Garcia faz no ensaio

“Islam and Tactical Media in Amsterdam” (Garcia, 2002) uma auto-crítica ao manifesto fundador do

movimento dos media tácticos “The ABC of Tactical Media”. Tomando de exemplo a parte desse

texto em que se salienta a importância das tácticas das culturas migrantes, na sua tentativa de

passarem de caçados a caçadores, para os praticantes tácticos, considera que ele e Geert Lovink, co-

dissolvida de forma a evitar a sua destruição. Agambem defende que os Estados Unidosvivem actualmente num estado de excepção. Como nota Tobias C. Van Veen, "alguns membros do Partido Republicano e Democrata argumentaram que o USA Patriot Act colocam em causa determinadas passagens da Constituição dos Estados Unidos, em particular, os princípios democráticos relativos aos direitos e protecções" (2005). Ver também Hardt e Negri em Multitude (2004).

257 Distanciando-se de alguns comentadores conservadores que, mesmo antes do 11 Setembro, rotulavam os hacktivistas de terroristas da informação, estes autores "argumentam que o hacktivismo é uma tentativa defensável e imaginativa de se reapropriar das novas tecnologias de informação para benefício das sociedades" (Jordan e Taylor, 2004:30). Mas também dentro dos círculos da lista de correio electrónico Nettime surge por vezes a associação entre os media tácticos e as organizações terroristas islâmicas. Veja-se o caso da mensagem enviada pelo autor de ficção científica Bruce Sterling com o título "Yep, that's 'tactical media', all right" enviada a 6 de Agosto de 2005 (disponível em http://www.nettime.org/Lists-Archives/nettime-l-0508/msg00010.html), referindo-se a uma notícia sobre a utilização da Web para organizar e formar terroristas.

179

autor do manifesto, foram em certa medida prescientes, mas sobretudo, extremamente ingénuos por

assumirem implicitamente que os media tácticos, ao darem voz aos excluídos e marginalizados, iriam

estar automaticamente ligados apenas a movimentos sociais emancipadores (idem). Referindo-se aos

media das comunidades de imigrantes de Amesterdão, David Garcia explica que a “a ala militante do

Islão teocrático demonstrou ser tacticamente versada, utilizando combinações simples de ligações de

satélite para cabo”. Isto “permitiu-lhe interligar redes locais a media locais. Num verdadeiro estilo

táctico, as ferramentas das tecnologias de comunicação viraram-se para a própria sociedade

tecnológica” (ibidem). Coloca-se assim a dúvida de os praticantes tácticos terem sido vítimas do seu

próprio sucesso.

Numa época em que a tecnologia enquanto recombinação permite "cortar" e "colar" recursos como

obras criativas, software e componentes biológicos, recombinando-os em novas formações passíveis

de serem reproduzíveis para fins utilitários, "questionar a tecnologia torna-se o mesmo que questionar

o Estado". declara Tobias C. Van Veen (2005). É à luz do referido que podem ser entendidas as

acusações de bioterrorismo levantadas contra um dos cinco membros-fundadores do colectivo de

media tácticos Critical Art Ensemble que tem vindo a "promover um maior envolvimento colectivo na

invenção e implementação de tecnologias em que o público tem tido até agora pouca influência"

(idem) através de performances artísticas que desmistificam a ciência258.

No início da manhã do dia 11 de Maio de 2004, Steve Kurtz, também artista e professor de Arte na

Univerdade Estadual de Buffalo (Nova Iorque) acordou e encontrou a sua esposa, Hope, morta ao seu

lado por um ataque cardíaco. Decidiu então telefonar para o número de emergência 911. Quando a

polícia chega, encontra vários instrumentos de laboratório como tubos de ensaio, substâncias químicas

e diferentes tipos de bactérias que Kurtz estava a utilizar para um traballho artístico. Presumindo que

estava perante os preparativos de um atentado terrorista com armas biológicas, os agentes de

autoridade chamam o FBI a unidade de anti-terrorismo Joint Terrorism Task Force. O elemento do

CAE é detido, todos os seus bens são confiscados, incluindo material de trabalho e o corpo da mulher,

retido para análise. A sua casa é declarada "área de risco" pelo Departamento de Saúde da região de

Erie259. O FBI e a unidade de anti-terrorismo Joint Terrorisno Task Force acuusam Kurtz e Robert

258 Numa das suas performances denominada Flesh Machine (www.critical-art.net/biotech/biocom/index.html), o CAE extraiu o ADN de membros da audiência e convidou-lhes a calcular o valor potencial dos seus corpos na economia de mercado genética. Em Cult of The New Eve (http://www.critical-art.net/biotech/cone/index.html) representaram a promessa redentora e a retórica utópica da biotecnologia sob a forma da fé arrebatadora de um culto apocalíptico centrado no Projecto do Genoma Humano. Experiências biológicas poderam ser realizadas pelo público em Contestational Biology (http://www.critical-art.net/biotech/conbio/index.html), como a realização de reverse enginering em organismos geneticamente modificados.

259 De acordo com a secção FAQ do site de recolha de fundos para a defesa legal de Kurtz disponível em http://www.caedefensefund.org/faq.htm, em que se acrescenta que "apenas uma semana mais tarde, depois do Comissário de Saúde Pública do Estado de Nova Iorue ter examinado amostradas retiradas da sua casa e anunciado que não constituiam qualquer ameaça à segurança pública, é que Kurtz pode regressar a casa e recuperar o corpo da

180

Ferrel, cientista da Universidade de Pittsburgh, de fraude por correio e telegrama para a obtenção de

amostras inócuas de bactérias. As duas agências estaduais estão também a tentar recorrer a

disposições do USA Patriot Act. para acusá-los de bioterrorismo. Outros membros do CAE, como

Steven Barnes, foram entretanto chamados a testemunhar. O equipamento apreendido e alvo de

interesse pelas autoridades era um laboratório móvel para a realização de testes em ADN, usado para

alimentos possivelmente contaminados por organismos transgénicos, que fazia parte da

instalação/performance Free Range Grains260.

O caso mostra, tragicamente, que Steven Kurtz e o CAE acabaram por provar na pele o que

escreveram em Molecular Invasion (CAE, 2002: 111): "Na era do pancapitalismo, apenas as empresas

têm o direitos de administrar e controlar o abastecimento de alimentação. Se outro qualquer intervir, é

considerado terrorista". Embora afastando-se do mundo da tecnologia digital e aproximando-se da

tecnociência, a mais recente táctica deste colectivo - denominada Sabotagem Biológica Indefinida

(fuzzy) - assemelha-se ao trabalho dos hacktivistas, artivistas e outros praticantes de media tácticos, na

medida em que os autores apelam ao "hacking e à reverse engineering genéticos". Tal como a sua

anterior proposta da Desobediência Civil Electrónica, trata-se de permitir um maior envolvimento

colcetivo do público amador com a biotecnologia de formar a desafiar a apropriação privada por parte

das empresas e do Estado da ciência e do conhecimento, "actuando na linha ambígua entre o legal e o

ilegal" (idem: 100), "nas áreas que ainda não foram completamente reguladas" (ibidem: 99). Em

ambos os casos, de uma forma não-violenta. Apesar da sabotagem biológica ter efeitos destrutivos,

dado que lida com produtos vivos transgénicos, apenas procura "danificar os processos maquínicos e

recombinantes e não o indíviduo" (Van Veen, 2005). O CAE coloca-se deste modo contra a

sabotagem de locais de realização de testes ou fogo posto em plantações de organismos geneticamente

modificados, tácticas que considera meramente reactivas, reveladoras de um sentimento de desespero

e excessivas, um contra-espectáculo disponível à recuperação imediata (CAE, 2002: 107-109).

Esta postura pretende assim evitar que o capitalismo espectacular possa facilmente rotular os

praticantes tácticos de "sabotadores ou, ainda pior, de (eco)terroristas"(idem: 98). A utilização destes

termos tem o efeito de "gerar uma opinião pública negativa, o que por sua vez permite que a polícia

do Estado e os poderes empresariais possam reagir violentamente sem deixarem de parecer legítimos e

justos" (ibidem: 100). As tácticas destrutivas acabam por constituir um convite ai reforço da resposta

autoritária e a um maior investimento financeiro e de recursos em segurança (ibidem: 107). Mas,

acima de tudo, impedem o estabelecimento de um diálogo com o público, com vista à reapropriação

colectiva da tecnologia recombinatória utilizada como propriedade privada.

esposa". Na posse do FBI continuam até hoje os materiais apreendidos. 260 Site disponível em http://www.critical-art.net/biotech/free/index.html.

181

Este alerta do CAE contra o perigo de praticantes tácticos se deixarem cair em associações fáceis com

o terrorismo já estava presente no ensaio "The Mythology of Terrorism On The Net" de 1995

publicado em Digital Resistance (CAE, 2001: 39-40): "Devem ser tomados passos no sentido de

separar a acção política no ciberespaço dos símbolos da criminalidade e do terrorismo. A actual

estratégia do Estado parece ser a de rotular de criminoso tudo o que não optimize a difusão do

pancapitalismo e o enriquecimento da elite." No entanto, acabariam por reconhecer mais tarde que

"parece quase impossível escapar totalmente a esta classificação" (CAE, 2002: 100).

Tanto assim que o crítico cultural e jornalista Mark Dery apelida o colectivo de "célula terrorista

filosófica”261, chegando até a compará-lo com as Brigadas Vermelhas262 Outros grupos de media

deixam-se associar intencionalmente ao ideário do terrorismo, para fins de auto-promoção. O

colectivo artístico suíço eToy anuncia-se a si próprio como “terrorismo digital”, ao passo que a

RTMark dá-se a conhecer junto dos media comerciais pelo seu "terrorismo mediático", apelidando as

suas acções de "sabotagens inteligentes"263. Joanne Richardson afirma em “The Language of Tactical

Media” que o terrorismo estético continua a ser invocado como um título honorífico nos media

tácticos contemporâneos (Richardson, 2002). A autora salienta a existência de um antigo elo de

ligação entre o artista comprometido e o terrorista que se manteve até ao presente, desde a

Internacional Situacionista de Guy Debord e Raoul Vaneigem dos anos 50 e 60 percorrendo todas as

vanguardas artísticas da segunda metade do século XX (idem). Questionando-se sobre em que medida

é que esta afinidade consiste apenas numa metáfora, Richardson afirma que o terrorismo também “é

uma forma do fraco, estando em desvantagem de forças, tanto em número como em influência

política, poder tentar aproveitar-se do forte, infiltrando-se nos seus locais de poder, na esperança de

que a captura temporária de um edíficio-chave, um avião ou um político possa fazer mudar a situação,

oferecendo-lhe mais poder nas negociações” (ibidem). Na sua mais recente faceta, enquanto método

de propaganda dos actos terroristas, o terrorismo funciona através de um sequestro dos media. Como

refere a autora, “as cartas à imprensa e os comunicados asseguram cinco minutos de fama no

espectáculo mediático”. Na sua opinião, este tipo de iniciativas resulta de uma combinação dos media

tácticos com a estratégia (ibidem).

261 Numa entrevista com o CAE disponível em http://www.levity.com/markdery/cae.html, que, apesar de não datada, tudo indica que foi realizada mesmo antes dos eventos de 11 de Setembro, como se pode ver através das cópias de arquivo guardadas pelo Internet Archive em http://web.archive.org/web/*/http://www.levity.com/markdery/cae.html. Já em 1994, duranre uma conferência dedicada à Desobediência Civil Electrónica, o CAE tinha sido acusado de fomentar uma tactica terrorista por um membro da audiência (CAE, 2001: 32-33).

262 Organização terrorista italiana de extrema esquerda surgida nos finais dos anos 60 e que perpetrou vários ataques sucessivos de grande impacto durante a década de 70 e início da de 80.

263 Ver RTMark (1997), "A System for Change", Março. Disponível em http://www.rtmark.com/legacy/docsystem.html.

182

Embora a organização terrorista “possua consciência da separação entre a sua posição e a do inimigo”,

ela acaba por ser “uma réplica da organização política, sistema jurídico e modo de expressão do poder

a que se opõe”, Esta auto-definição sob a forma de um acto de oposição a um inimigo é também, na

opinião de Richardson, compartilhada pelos media tácticos, assim como pelos media alternativos

anteriores; "Uma falsa página GWBush não pode existir sem a original, a qual ridiculariza; A

Indymedia não pode existir sem o capital global, cujos abusos reporta, ou sem os media de massas,

cujas falsificações denuncia" (ibidem). No entanto, "o mainstream também precisa de uma

personificação da oposição". Actualmente, o terrorista desempenha o papel contra o qual os meios de

comunicação comerciais podem definir os seus valores em reverso, "a fantasia mediática perfeita"

(ibidem).

O problema desta teoria dos media baseada nos princípios da guerra de guerrilha é que a mera

imitação da linguagem do Adversário, do Poderoso, faz com que os media tácticos corram o risco de

se tornarem uma simples réplica em forma de espelho desse inimigo, funcionando como produtores

de contra-propaganda, manipulando, exagerando os factos e abusando do sensacionalismo, ou até

recorrendo à destruição de informação, o que contribui para a sua descredibilização. Esse é o risco

que está sempre presente na RTMark, nos culture jammers ou no Electronic Disturbance Theater,

como escrevemos anteriormente.

Mas para lá desta visão beligerante dos media tácticos, outros colectivos e grupos que actuam na

mesma xona de confluência entre arte, tecnologia, activismo e media mas com um trabalho menos

“espectacular” têm vindo a demonstrar que é possível conciliar a transgressão com a solidariedade,

sem a existência de um adversário concreto. É o caso do projecto unipessoal “Technologies to the

People” (TTTP)264 do artista espanhol Daniel Garcia Andújar que, tal como a RTMark ou a Etoy, se

define como uma companhia com fins sociais mas protegida por marca registada e que se encontra

alojada no servidor Web do sistema Irational265. As primeiras obras de TTTP, datadas de 1996,

questionavam os limites da informação legal e o livre acesso à tecnologia, bem como a suposta

interactividade da rede e a sua credibilidade” (Baigorri, 2003a), recorrendo para tal a simulacros como

264 Site dispnível em http://www.irational.org/tttp/primera.html.265 Sistema internacional que elabora informação “irracional”, isto é, serviços e produtos destinados ao diletantismo e à

vagabundagem – através da partilha de espaço online a artistas que comungam da mesma filosofia de actuação. O artivista Heath Bunting tem o seu site pessoal alojado no Irational. Como refere David Casacuberta:

O Irational foi um dos primeiros espaços do mundo digital que se deu conta do potencial da Internet como espaço para partilhar informação e fez seu o adágio hacker 'a informação quer ser livre'. Face a um artivismo mais intelectualizado, o Irational caracterizou-se por uma versão de acção mais directa, acção que requer sempre a cumplicidade dos demais que colaboram, abtindo também as portas a uma abordagem mais colectiva da acção política em formato artístico. (Casacuberta, David (2003), Creación Colectiva – En Internet el creador es el público, Barcelona, Editorial Gedisa, citado por Baigori, Laura (2003a)).

183

Video Collection266, uma colecção de videoarte que permite aceder online e de uma forma

completamente gratuita a grande parte dos trabalhos mais importantes neste campo artístico. Alguns

dos comentários enviados por email ao autor, revelam que o acesso livre a obras cuja exibição

dependeu sempre dos direitos de autor é motivo de estranheza e mesmo de hostilidade por parte de

utilizadores, distribuidores e outros artistas.

Noutro tipo de projectos, Andújar, ou melhor, TTTP, opta por combinar verdade e simulação de

forma perversa em que a ironia e o cinismo são empregues para subverter os convencionalismos

(idem) . Um dos exemplos disso é The Famous Art Power Database for ARTIST, uma repositório de

dados contém informação secreta destinada a artistas onde se pode encontrar recursos sobre segurança

online, hacking, phreacking267 e criptografia. A página encontra-se dividida em várias secções

temáticas: crime informático e propriedade intelectual, diccionário de hackers e glossário Linux, um

sector sobre ferramentas de ataque e defesa informáticas, para além de um guia de conhecimentos

básicos relativos a actividades de legalidade ou moralidade duvidosa (ibidem).

Photey, um CD-ROM informativo, prossegue essa mesma linha de investigação, consistindo numa

base de dados de ferramentas informáticas como vírus e outros programas que podem ser utilizadas

por qualquer pessoa Assim, enquanto um cracker com conhecimento dos códigos pode aproveitar

para penetrar nos computadores de grandes empresas e infectar servidores, um utilizador leigo pode

seguir as instruções de modo a, tirando partido do anonimato que estas ferramentas lhe oferecem,

realizar pequenas transferências bancárias ou escutar conversas telefónicas. Apesar de o autor avisar

logo no início que qualquer destas actividades é inteiramente ilegal e que a sua realização fica ao

critério do sentido da responsabilidade de cada utilizador, pressume-se que o livre acesso à

informação não significa necessariamente que se tenha que fazer um mau uso dela (ibidem).

Mais recentemente, desde o início deste século, o TTTP passou a estar associado a uma série de

iniciativas transparentes, completamente abertas à colaboração dos cidadãos que, segundo Baigorri,

resultam de “uma postura ética e de uma concepção profundamente social das novas tecnologias de

informação e comunicação” (ibidem). O modelo assenta no exemplo de fóruns de discussão como o

Slashdot e o Kuro5hin. Através de sites como e-valencia.org268, Andújar lança-se no domínio da acção

social directa. Neste caso em particular, trata-se de um portal de discussão sobre a política cultural e

artística da região espanhola de Valência em que os utilizadores são os responsáveis pelos conteúdos

aí publicados. Em lugar de informações ou simulacros compostos e recolhidos pelo autor, trata-se de

266 Site disponível em http://www.irational.org/video/.267 Actividade que visa tirar partido e explorar das falhas da rede pública de telefones como hobby ou para fins

utilitários. Enquanto que o hacking tem por objecto os computadores ligados em rede, o phreacking aplica-se aos telefones.

268 Site disponível em http://www.e-valencia.org

184

uma plataforma que funciona como um espaço cooperativo para a partilha de informação e debate

entre os cidadãos (ibidem). Outro portal com as mesmas características é e-barcelona.org269, embora

direccionado para as necessidades culturais da cidade de Barcelona e da Catalunha.

Infelizmente já desaparecido, o portal e-arco.org270, criado em 2003 por Andújar em parceria com Roc

Parés tinha como público-alvo os artistas e outros produtores culturais, visando partilhar informação

relativa aos seus direitos, um inquérito sobre os honorários que cobram e uma secção intitulada

“conflito” onde podiam relatar as suas experiências problemáticas com galerias, museus e outras

instituições. Para além de visar a livre participação, o site tinha uma forte componente crítica.

Conciliando as questões abordadas nos seus primeiros trabalhos com as potencialidades de

interactividade e do debate online exploradas mais recentemente, Individual-Citizen Republic

Project271 é definido pelo autor como “um projecto em desenvolvimento baseado na construção e

exploração de um protótipo social de cidadão autónomo que promove, utiliza e desenvolve recursos

obtidos de fontes de informação pública que oferece à comunidade como parte integrante do processo

social colectivo” (citado em Baigorri, 2003). A partir deste site, o utilizador pode explorar uma série

de recursos gratuitos e open-source sobre cracking, hacking, linux, phreaking, privacidade e

criptografia, segurança, vírus, tecnologias sem fios, etc. Partindo da missão do TTTP de facilitar o

acesso à tecnologia a todos os cidadãos, Andújar organiza workshops no âmbito do mesmo projecto

em que os participantes aprendem a ligarem-se à Internet através de redes comunitárias sem fios e a

partir de computadores em segunda mão com Linux.

Apesar de os projectos do TTTP se integrarem frequentemente no circuito artístico através de

instalações presenciais que visam complementar ou dar uma maior visibilidade à sua existência

online, têm como objectivo primordial estabelecer uma relação participativa directa com o espectador,

mediante a partilha de informação. O seu carácter táctico advém do paradoxo de, apesar de ainda

necessitarem da mediação artística institucional (em termos de espaço físico de exposição), estas

iniciativas têm como fim último legitimarem-se à margem das instituições artísticas, de modo a

transformarem o espectar em mais que um consumidor passivo.

A mesma relação paradoxal com as instituições está presente noutra iniciativa que aqui referimos

269 Site disponível em http://www.e-barcelona.org. Surgido em 2003, nas vésperas do Fórum Universal de Culturas, o e-barcelona.org funcionou desde o início de forma independente e desligada deste e de outros eventos organizados pelos poderes públicos. Ver Roma, Valentin (2005), “ A critical reading of www.e-barcelona.org and of the context of Catalonia”, 16 de Setembro, Mono, número especial, Valência-Estugarda. Disponível online em http://www.nettime.org/Lists-Archives/nettime-l-0509/msg00038.html.

270 Ver cópia de arquivo em http://web.archive.org/web/20030805124350/http://www.e-arco.org.271 Site disponível em http://www.irational.org/tttp/banquete. Em Abril de 2006, o endereço não se encontrava,

contudo, acessível.

185

como um exemplo de medium táctico em sentido alargado. O Sarai272 é um centro de investigação

sobre novos media localizado em Nova Deli, Índia, fundado em 1998 e que, apesar de estar associado

a uma instituição académica (o Centre for the Study of Developing Societies), é coordenado por um

colectivo de artistas-teóricos independentes, o Raqs Media Collective, mantendo-se até hoje como um

espaço à margem do sistema académico. Embora conte entre os seus campos de investigação temas

tão diversificados como cinema documental, história do cinema, culturas e políticas urbanas, artes

digitais, o Sarai valoriza a produção mediática táctica273. Em Novembro de 2002, o Sarai organizou

um laboratório de media tácticos em Nova Deli que integrou a rede de eventos distribuídos um pouco

por todo o mundo associados ao festival Next Five Minutes. Neste laboratório, participantes da Índia,

Nepal, Irão e Austrália aprenderam a programar scripts de código de computador em línguas

regionais como o hindi274 e o urdu275, utilizando para tal software livre como Linux.

Actuando na mesma área dos media tácticos, os dois laboratórios experimentais de media

Cybermohalla276 criados em 2001 e 2002 em bairros periféricos da cidade indiana têm vindo a

possibilitar o contacto diário das pessoas com menos recursos com as novas tecnologias. Estes

telecentros estão equipados com computadores, uma ligação à Internet de 64 kbps, impressora,

scanner e outro hardware adicional. Rapazes e raparigas entre os 16 e os 25 anos são encorajados a

exprimirem e a interpretarem criativamente a cidade em que vivem. Eles actuam como repórteres no

terreno, utilizando os computadores para registar em sons, fotografias, cartoons e texto a vida

quotidiana dos seus bairros, compostos por construções ilegais constantemente ameaçadas de

demolição. Apesar de os centros estarem bem apetrechados, o principal suporte destes repórteres-

cidadãos é um jornal de parede escrito em Hindi. Até agora, este grupo editou dois livros publicados

em conjunto pelo Sarai e pela Ankur, a Sociedade Indiana para as Alternativas na Educação, uma

instituição que também financia os dois centros. Nestas publicações escritas em hindi mas contendo

sempre a tradução em inglês lado a lado, é possível ler histórias sobre incidentes da vida destas

comunidades: um esfaqueamento, uma conversa entre marido e mulher, a falta de água potável e

electricidade, uma fotografia retratando o dia-a-dia dos bairros, um cadáver encontrado num poço.

272 Site disponível em http://www.sarai.net. 273 “No Sarai os media tácticos são apenas uma de entre diversas formas e modos de fazer coisas (e pensar), bem como

de implementar tecnologias, dependendo dos contextos e públicos”, explicou-nos Monica Narula, do Raqs Media Collective e co-fundadora do Sarai num email pessoal enviado a 13 de Janeiro de 2006. As informações que se seguem são recolhidas de uma série de entrevistas com os elementos do Raqs Media Collective: Breitsameter, Sabine (2004), "The Internet has changed urban popular culture in India", AudioHyperspace, Abril. Disponível em http://www.swr.de/swr2/audiohyperspace/engl_version/interview/narula_senguptal.html; Caloud, Mike (2002), “Sarai”, Rhizome, 18 de Abril, disponível em http://www.noemalab.org/sections/ideas/ideas_articles/caloud_sarai.html; Rollin, Laurent (s/d), Interview Raqs Media Collective, New Delhi, Tour du Monde du Web – Centre Pompidou. Disponível em http://www.fluctuat.net/tourdumonde/intw_2.htm. Sollfrank, Cornelia (2002), “The situation is tense but under control”, Nettime, 10 de Setembro. Disponível em http://www.artwarez.org/?p=11.

274 Língua oficial da Índia, de origem indo-ariana e falada por 75 por cento dos indianos.275 Língua indo-europeia da família indo-ariana, falada sobretudo no Paquistão, onde é a língua oficial, mas também em

alguns estados da Índia (Jammu, Caxemira e Uttar Pradesh). 276 Site disponível em http://www.sarai.net/community/saraincomm.htm.

186

Também de salientar no trabalho com implicações tácticas do Sarai é o OPUS (Open Platform for

Unlimited Signification)277, uma plataforma online de colaboração criativa. Este espaço na Web onde

artistas, programadores e outros criadores podem criar, partilhar e transformar imagens, sons, vídeos e

textos. Após descarregarem o seu trabalho, outros membros da comunidade OPUS poderão fazer

comentários em fóruns de discussão. O autor original pode também permitir que a sua obra sirva

como inspiração e ponto de partida para os novos trabalhos de outros. Seguindo as mesmas regras

vigentes nas comunidades de programadores de software livre, o OPUS permite, através de uma

licença própria, que o código-fonte, neste caso, os objectos mediáticos, possa ser livremente utilizado,

editado e redistribuído. Visa-se assim criar uma cultura digital baseada no princípio da partilha das

obras, preservando ao mesmo tempo a criatividade individual de cada um. Os utilizadores são

convidados a abandonar a sua posição de espectadores e a tornarem-se produrores, colaborando em

grupo no desenvolvimento de novos objectos. A ideia é possibilitar o surgimento de bens digitais

comuns que pressupõem a dispersão e a elaboração do conceito de autoria ao longo do tempo. Deste

modo, uma linha de trabalhos resulta de vários autores que intervêm no processo de criação em

momentos diferentes ou que estão localizados em espaços diferentes.

Ao contrário de colectivos de media tácticos que adoptam uma atitude mais activista e de denúncia,

em permanente confronto com um adversário concreto, projectos como Technologies To The People

e o Sarai valorizam sobretudo a partilha de informação e conhecimento, de forma a que os cidadãos se

possam apropriar da cultura e da tecnologia278. Estes aspecto é particularmente saliente no trabalho de

Sarai que actua num cenário urbano, inundado de tecnologia mas relativamente periférico em termos

de fluxos de informação como o da cidade Nova Deli. Tal como o Metáfora, o MetaReciclagem e

outros colectivos brasileiros, procuram dar ferramentas à população local para que possam comunicar

entre si as suas vivências. Em parte, estas iniciativas incorporam o conselho dado por Joanne

Richardson:

À medida que as guerras grassam à nossa volta – guerras que racionalizam o tráfico de mercadorias sob a sombra de princípios nobres, guerras contra o terrorismo, guerras contra as drogas, guerras de informação contra informação – talvez do que precisamos menos é de anunciar a nossa prática como uma extensão de um ou outro princípio da guerra. Quando nos é pedido para tomar partido, a favor ou contra, apoiando um exército ou outro, por vezes a única verdadeira resposta está em não entrar em jogo. Esta recusa não deve ser confundida com uma fuga, uma passividade silenciosa ou uma resignação conformada. Trata-se do cuidado de pensar, para além do óbvio, de uma terceira, quarta ou quinta alternativa à visão apocalíptica ou utópica dos media. (Richardson, 2002)

277 Site disponível em http://www.opuscommons.net.278 Apesar de considerarmos que pelo menos, parcialmente, estes colectivos partilham com os hacktivistas digiltamente

correctos uma agenda política de defesa do acesso ilimitado à informação e ao conhecimento, eles não se limitam a facultar o acesso, pois possibilitam o diálogo com a população local e, acima de tudo, cumprem uma tarefa de educação digital de um ponto de vista crítico, em que a tecnologia é questionada e desconstruída.

187

Segunda-Parte

1 - O "Jeitinho" Digital Brasileiro: "Gambiarras", "Mutirões" e "Puxadinhos"

(No Brasil) temos uma tradição antropofágica que é totalmente coerente com a cultura hacker, combinando elementos de

origens diferentes em produtos criativos. Somos historicamente periféricos (...) Aqui, a colaboração é sempre uma

estratégia de sobrevivência.

- Hernani Dimantas, "Linkania - A Multidão Conectada"

Os media tácticos são o mais recente invasor a ser consumido pelos jovens canibais gentis do Brasil.

- David Garcia, "Fine Young Cannibals, of Brazilian Tactical Media"

Iniciativas como o Projecto Metáfora e o seu descendente Metareciclagem não surgiram

isoladamente, desligadas do contexto local. Antes pelo contrário, elas são fruto do seu meio ambiente.

Apesar de as destacarmos nesta investigação, elas nasceram no mesmo período - durante os primeiros

anos do século XXI - que outros colectivos brasileiros actuando com as tecnologias mediáticas mais

simples e acessíveis para fins de activismo político, crítica dos media comerciais ou inclusão social.

Quer se considerassem a si próprios media tácticos, quer ignorassem que o que estavam a fazer tinha

esse nome, esses grupos partilharam desde o início uma lógica criativa e Do-It-Yourself. Este

movimento de colectivos que ocupa uma posição marginal face ao sistema artístico e discurso político

dominantes foi caracterizado pelo teórico dos media Ricardo Rosas de Vingança Low-Tech279 (Rosas,

2004), uma vingança "contra a elite tecno-fetichista, high-tech e auto-indulgente dos Web-artistas no

Brasil que se interessa apenas com o seu egoísmo obsessivo". Uma vez que grande parte da população

não tem acesso às mais recentes tecnologias de ponta do modo como o circuito da arte e as grandes

empresas dispõem, a melhor maneira de se lhes opor consiste em tirar partido das ferramentas

disponíveis.

Apesar do método destes grupos assentar no recurso a tecnologia acessível para produzir acções e

trabalhos no espaço físico, eles mantêm interligações e colaboram entre si através de comunidades

virtuais na Internet. Segundo Karla Brunet, "são projectos de oposição não só ao poder, mas que

também criam um novo poder na Net" (Brunet, 2005) e, nesse aspecto, diferenciam-se de outras

práticas tácticas dominantes em zonas mais centrais como a Europa e a América do Norte. Tendo em

conta o contexto nacional, dedicam uma atenção especial à inclusão digital e à educação. O seu

objectivo não é, por isso, apenas disponibilizar um maior acesso à Internet e a outras tecnologias

digitais, mas também a promoção da utilização crítica e criativa dos media através de "diversas

279 O termo low-tech refere-se a uma prática comum entre os hackers de empregar tecnologia barata para subverter o sistema da indústria da tecnologia de ponta, aliando a criatividade à falta de recursos.

188

formas e padrões de modo a que se transformem em algo novo, experimental e criando

ocasionalmente ruído e distúrbios" (idem). Estes projectos visam assim adaptar o conceito de media

tácticos à realidade de um país de graves contrastes sociais e económicos como o Brasil, onde a

maioria da população não tem acesso à educação, saúde e habitação própria e o sector dos media é

dominado por grandes conglomerados multimédia como a Globo e a Abril.

Ricardo Rosas acusa estes gigantes de "representarem os interesses da elite e de tentarem manter a

aparência de um consenso complacente, mesmo face a conflitos sociais intensos". Na sua opinião, a

sociedade brasileira encontra-se submersa num consenso mediatizado formado pelas telenovelas e

reality-shows, o que faz com que os pontos de vista críticos tendem a ser escassos e bastante

marginais (Rosas, 2004). Se olharmos para o caso da estação televisiva Globo, por exemplo, podemos

verificar o poder desta influência na população quando verificamos que, para além de ser um dos

maiores conglomerados de media do mundo, é o maior produtor privado de programas em todo o

mundo (Wells, 2005). Como refere David Garcia, "tal como o império de Berlusconi, a Globo vai

muito para além da televisão: ela abarca todos os media possíveis, incluindo a imprensa", dispondo

assim do poder de "determinar os resultados de eleições e de influenciar importantes decisões

políticas num curto espaço de tempo"280 (Garcia, 2004a).

Em resposta, alguns colectivos surgidos no início deste século pretendem constituir uma forma de

antídoto destinada a curar "uma sociedade mediatizada de uma natureza particularmente virulenta"

como a brasileira "em que vastas hordas da população são literalmente anestesiadas pela dieta de

telenovelas da Globo" (idem). Trata-se de transformar os espectadores em protagonistas que não se

limitem a criticar e a reagir aos media a partir da posição passiva que ocupam quando apenas mudam

de canal com o comando. Para tal, consideram necessário um "Vietcongue dos media", nas palavras

do artista gráfico Latuff, citado por Garcia, através do qual as pessoas possam recriar a sua própria

realidade mediante a produção dos seus próprios media e que transforme radicalmente as estruturas

existentes da propriedade e utilização dos media electrónicos281 (ibidem).

1.1 - Mídia Tática

280 Para saber mais sobre o monopólio da Globo, em especial durante o periodo da ditadura militar, ver o documentário Beyond Citizen Kane de Simon Harzog (BBC), realizado em 1993, que continua oficialmente proibido no Brasil apesar de poder ser acedido através do site do Centro de Media Independente brasileiro: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/08/260618.shtml.

281 Ricardo Rosas insere o aparecimento dos media tácticos e do activismo digital no século XXI no contexto de uma história de mais de 30 anos de produção mediática independente no Brasil: "Durante a última ditadura, nos anos 70 (,,,) a 'imprensa nanica' - pequena -, produziu inúmeras fanzines, samizdats e revistas culturais contra o governo, o que gerou uma espécie de contracultura (...) A partir da década de 80 este movimento foi gradualmente reduzido ao mercado comercial das publicações para fãs. A renovação dos media agit-prop ocorreu apenas no final dos anos 90, a seguir à vaga mundial dos protestos anti-globalização" (Rosas, 2004)..

189

Foi com base nesta filosofia de acção de questionamento do monopólio mediático dos conglomerados

multimédia que Ricardo Rosas e as artistas Tatiana Wells e Giselli Vasconcelos organizaram em

Março de 2003 na cidade de São Paulo o festival Mídia Tática Brasil282, um laboratório de media

tácticos que decorreu no edifício Casa das Rosas, situado na Avenida Paulista - o centro financeiro e

económico da cidade -, que consistiu numa versão brasileira do Next Five Minutes de Amesterdão,

realizado a par de outros eventos semelhantes que tiveram lugar em várias partes do mundo ao longo

desse ano. Apesar do orçamento bastante limitado, o festival atraiu cerca de quatro mil visitantes e

uma enorme cobertura mediática. Sobretudo, devido à presença do Ministro da Cultura e cantor

Gilberto Gil

Entre os colectivos intervenientes, para além do Metáfora, participaram videoactivistas com

motivações políticas - A Revolução Não Será Televisionada e Bijari283 -, grupos de acção directa e

intervenção urbana – Batukação, Rejeitados e Bicicletadas -, iniciativas dedicadas à criação de farsas

e paródias - Projecto Sid Moreira - produtores de fanzines - A Cria -, revistas destinadas ao apoio dos

sem-abrigo – Ocas284 -, um colectivo de DJs que realiza raves gratuitas nos subúrbios – Interfusion285

-, artistas com trabalhos de intervenção nos media – Latuff286 e Formigueiro -, uma rádio livre - Rádio

Muda287 -, e um grupo que recolhe narrativas individuais de anônimos em São Paulo – Museu da

Pessoa288. Embora uma parte imporante destes colectivos fossem originários de São Paulo, muitos

estavam espalhados por outras grandes cidades do país. Como explica Ricardo Rosas, "havia tanta

diferença e diversidade entre os diferentes grupos que parecia, por vezes, que as suas práticas eram

contraditórias entre si." (Rosas, 2004). O evento congregou durante quatro dias teóricos, activistas e

artistas brasileiros e estrangeiros e o seu programa abarcou apresentações dos colectivos, debates,

workshops, conferências, uma exposição, espectáculos musicais, performances, festas espontâneas e

"uma estação temporária de rádio pirata que desafiou as políticas repressivas em relação às emissoras

livres no Brasil" (idem), a rádio "Pega Eu", que iremos referir mais à frente neste capítulo.

Impressionados com o êxito do primeiro laboratório de media tácticos no Brasil, os três organizadores

decidiram expandir o conceito Mídia Tática e estabelecer um movimento com o mesmo nome visando

funcionar como uma rede de media tácticos que facilitasse a comunicação e a colaboração com outros

grupos desenvolvendo trabalhos na àrea de intersecção entre a arte, os media e a tecnologia (Wells,

2005). O Mídia Tática289 funciona como uma plataforma simultaneamente offline e online que

organiza e apoia a criação de ambientes comuns - como festivais, publicações, sites ou laboratórios 282 Site disponível em http://www.midiatatica.org/mtb/index.htm.283 Site disponível em http://www.bijari.com.br.284 Site disponível em http://www.ocas.org.br.285 Site disponível em http://www.interfusion.com.br.286 Site disponível em http://latuff2.deviantart.com.287 Site disponível em http://muda.radiolivre.org.288 Site disponível em http://www.museudapessoa.com.br. 289 Site disponível em http://www.midiatatica.org.

190

temporários - em que estes colectivos independentes e autónomos se podem reunir e trocar ideias e

experiências.

Esta rede de parceriais foi implementada pela primeira vez na prática nas favelas e subúrbios de São

Paulo, através do projecto Autolabs290 iniciado em Fevereiro de 2004. Os Autolabs constituem

"laboratórios de literacia dos media, experimentação tecnológica e criatividade desenvolvidos com o

apoio das comunidades locais", de acordo com Ricardo Rosas (2004). Empregando software livre e

outros media DIY acessíveis, estes laboratórios ensinam os princípios, conceitos e práticas tácticas de

forma a incentivar a produção cultural independente. A aprendizagem é aqui realizada de um modo

colaborativo e em rede, incidindo na utilização e domínio de ferramentas de produção gráfica, sonora

- rádios livres, VJing e DJing -, vídeo - televisão pirata - e direccionada para a Web por parte de

jovens que normalmente não dispõem dos recursos que o acesso às tecnologias de comunicação exige.

Este tipo de zonas temporárias autónomas são fruto de parcerias estabelecidas entre iniciativas sociais

autónomas como o Metareciclagem, o CMI-Brasil, o Colectivo de Histórias Digitais291, o Museu da

Pessoa, o colectivo de design experimental BaseV292 e a Rádio Muda que prestam formação nas suas

respectivas àreas de actuação.

Em Julho de 2004, no final do projecto, tinham sido implementados três centros de media em São

Miguel Paulista, Ermelino Matarazzo e Itaquera, bairros da zona leste de São Paulo. O projecto foi

parcialmente financiado através de uma bolsa atribuída pela Unesco e resultou de uma aliança com a

organização não-governamental La Fabbrica - ligada ao grupo italiano Fiat -, por intermédio de un

projecto de acção social denominado CAJU (Centro de Acção Juvenil). Outro apoio inesperado foi o

da autarquia local, através da sua agência de tecnologia Governo Electrónico. Esta instituição tem

vindo a desenvolver ao longo dos últimos anos várias iniciativas de combate à divisão digital, sendo

uma das mais importantes os Telecentros293, isto é, centros de acesso público à Internet com

computadores correndo Linux e outro software livre294 – e. Juntamente com o Prodam, empresa

municipal especializada na disponiblização de infra-estrutura tecnológica, forneceu uma ligação em

banda larga rápida à Internet. Depois do fim dos workshops, os laboratórios foram integrados na rede

de Telecentros e alguns dos jovens que receberam formação foram empregues como monitores dos

centro públicos. Aliás, é importante frisar que os Autolabs surgiram em parte como reacção e crítica

290 Site disponível em http://autolabs.midiatatica.org.291 Esta iniciativa de Tatiana Wells que surgiu a partir de discussões dentro da lista do Metáfora no Yahoo! e, tal como

o Museu da Pessoa, dedica-se à recolha de histórias das comunidades periféricas. Site disponível em http://chd.memelab.org. Para saber mais sobre os workshops de histórias digitais do Autolabs verhttp://www.contratv.net/HD/. O material que resultou desses cursos está disponível em http://autolabs.midiatatica.org/modules/mydownloads/viewcat.php?op=&cid=14.

292 Site disponível em http://www.basev.has.it/.293 Site disponível em http://www.telecentros.sp.gov.br.294 Segundo dados obtidos do site do programa da prefeitura de São Paulo em Fevereiro de 2006, existiam nessa altura

119 Telecentros contando no total com 847 mil utilizadores registados.

191

aos Telecentros. Como Garcia coloca a questão: "O que é que importa que os computadores corram

Linux se os visitantes apenas utilizam os serviços de mensagens e navegam e m sites de pornografia

ou da Globo?" (Garcia, 2004a). Os organizadores dos Autolabs consideram que os Telecentros se

baseiam numa crença errónea no poder da informação, só por si, desencadear transformações sociais,

acabando por oferecer pouco mais do que acesso à Net. Na medida em que são um instrumento de

"inclusão digital", os Telecentros são vistos por activistas como Rosas como um exemplo de uma

política estabelecida de cima para baixo e unidireccional pelo Estado que se limita a oferecer acesso

às tecnologias digitais àqueles que não possuem computadores, acabando por "reflectir o mesmo

ethos de desigualdade e hierarquia que aparentemente se propõe a desafiar" (Rosas, 2004). As práticas

e utilizações diárias, assim como as necessidades das comunidades visadas são ignoradas, "dando

mais ênfase ao consumo do que à produção crítica e criativa". Para Ricardo Rosas, "esta política tenta

responder às consequências e não às causas da realidade em que procura intervir", e "cria

frequentemente mais problemas do que soluciona"295. Não admira por isso que alguns dos envolvidos

nos Autolabs considerem que a recente ligação com o poder político através da integração nos

Telecentros compromete os objectivos iniciais de autonomia e independência (Garcia, 2004a). Por

outro lado, David Garcia indica que o modelo crítico de educação para os media, produção mediática

e reciclagem de computadores presente nos Autolabs tem sido levado em conta nos mais recentes

projectos de inclusão digital desenvolvidos pelo Ministério da Cultura (idem). Ricardo Rosas nota que

os novos Telecentros híbridos são bastante diferentes do protótipo original, no sentido em que

combinam a intenção de autonomia e ligação às comunidades presente nos Autolabs. Falando em

termos metafóricos, Rosas vê os Autolabs como "um conceito 'alienígena' vivendo dentro do corpo

uma política 'hospedeira', aí implementado uma forma de 'subversão prática' ao mesmo tempo que são

financiados e apoiados por grandes instituições" (Rosas, 2004)296.

Apesar da desconfiança inicial, a relação entre os colectivos de base e o governo tem-se estendido a

todo o sector do movimento do software livre e das utilizações sociais das novas tecnologias. Para

além de São Paulo, centenas de Telecentros foram também sendo introduzidos noutras cidades

brasileiras controladas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) - que ocupa actualmente o governo -, de

modo a permitir uma inclusão digital da população dos bairros mais carenciados, através da utilização

295 Da mesma opinião são outros activistas como Tatiana Wells, do Mídia Tatica, e Felipe Fonseca e Hernani Dimantas, do Metáfora e Metareciclagem. Wells refere que o modelo estatal dos telecentros centrado no simples acesso à informação é insuficiente se se pretende compreender o fenómeno da segregação digital num cenário mais alargado de discriminação racial, sexual e de classe (Wells, 2005). Fonseca sugere uma via alternativa que passa pela apropriação tecnológica: "Muitos telecentros funcionam como cibercafés gratuitos (...) A preocupação é que as comunidades tenham acesso à internet. Mas pouco se fala que as pessoas não precisam ser apenas utilizadores, e que podem ser co-autores. Se o que procuramos é transformação sustentável, gerar autonomia é fundamental" (Fonseca, 2005a). Segundo Dimantas, as acções dos Telecentros e infocentros correspondem a uma segunda fase de inclusão digital em que, para além do mero acesso ao computador, existe o acesso à informação. Para Dimantas, este processo requer uma terceira fase que garanta o acesso à informação e sua circulação, bem como a produção local de conhecimento. Do seu ponto de vista, projectos como o Metáfora e o Metareciclagem representam modelos dessa nova fase, pautada pela colaboração descentralizada (Dimantas, 2004a)

296 Esta perspectiva optimista da experiência dos Autolabs de Rosas não é, no entanto, partilhada por Felipe Fonseca (2005) que, como veremos mais à frente, faz um rescaldo mais pessimista.

192

de software livre. Com a ascensão de Lula da Silva à presidência, os Telecentros passaram de

experiências locais a iniciativas federais297. Um dos coordenadores desta iniciativa é Claúdio Prado.

Enquanto responsável pelas políticas digitais do Ministério da Cultura, Prado foi também o arquitecto

de uma experiência semelhante, as BACs (Bases de Apoio à Cultura), que "previa cerca de cinquenta

mega-centros de cultura digital em comunidades periféricas em todo o Brasil, com estúdios de

produção multimédia e uma grande infra-estrutura tecnológica integrando todos eles" (Fonseca,

2005)298. Este projecto foi, no entanto, substituído pelos Pontos de Cultura, inserido na estratégia

Cultura Viva299 do Ministério que prevê o desenvolvimento de mil centros multimédia espalhados

pelo país e baseados nos princípios da colaboração e autonomia, visando potenciar a democratização

da produção cultural. Para além do Midia Tática, o MetaReciclagem é, como veremos mais à frente

em pormenor, um dos colectivos que está ligado aos Pontos de Cultura, sendo que alguns dos seus

elementos que começaram por desenvolver trabalho voluntário aí foram entretanto integrados como

funcionários do Ministério da Cultura.

O evento seguinte organizado pelos elementos do Mídia Tática foi o festival Digitofagia300, que teve

lugar em Outubro de 2004 em São Paulo e no Rio de Janeiro, que reuniu activistas, teóricos e artistas

nacionais e estrangeiros com o objectivo de "repensar a prática antropofágica na era dos

computadores e dos novos media através de uma antropofagia das práticas de media tácticos

actuais"301. O termo deriva de uma tentativa de adaptação para o contexto dos media digitais às

práticas do movimento artístico modernista antropófago surgido nos anos 20 do século passado que,

por sua vez, retomou o conceito de antropofagia, isto é, as práticas de canibalismo dos indíos

brasileiros. "Só me interessa o que não é meu" exclamou o escritor Oswald de Andrade no manifesto

fundador do movimento em 1928302. Apesar das ideias de apropriação, justaposição e colagem

parecerem estabelecer uma ligação com o dada, o surrrealismo e outros movimentos modernistas

(Garcia, 2004a), a especificidade do contexto pós-colonial do Antropofagismo brasileiro advém desse

297 Como refere David Garcia, "o governo brasileiro tem uma das políticas mais activas e vocíferas do mundo sobre o software livre e as licenças abertas de propriedade intelectual" (Garcia, 2004a). Encontra-se actualmente em planeamento a migração de todo o o software nos computadores da Administração Pública para Linux. Foi também apresentada uma lei na Assembleia Federal do país para introduzir uma licença Creative Commons comum para todo o trabalho imaterial gerado no Brasil. O próprio Gilberto Gil licenciou já a sua música Oslodum no âmbito da Creative Commons, tendo sido incluída uma remistura dessa faixa realizada pelo DJ Dolores num CD que contava com 16 faixas de vários artistas como Wilco e Björk e que foi oferecido junto com o número de Novembro de 2004 número da revista Wired. Ver mais em http://www.wired.com/wired/archive/12.11/linux.html. Outra iniciativa do Governo Federal para promover a adopção do software livre em grande escala é o PC Conectado, lançado em Janeiro de 2006 e que financia a aquisição de computadores com um preço até 1500 reais (cerca de 500 euros) em 24 prestações.

298 Ver também Freire, A. et al. (2005).299 Site disponível em http://www.cultura.gov.br/programas_e_acoes/cultura_viva/index.php. Ver também página na

wiki do MetaReciclagem em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/PontosdeCultura.300 Site disponível em http://www.midiatatica.org/digitofagia/.301 A iniciativa foi preparada ao longo de três meses através de uma lista de correio electrónico em português e outra

em inglês. Uma selecção dos textos e discussões mais importantes foi publicada num documento disponível em formato PDF disponível em http://www.midiatatica.org/ip/downloads/digito_cookbook.pdf.

302 Ver texto do Manifesto Antropófago em http://www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifantropof.html.

193

movimento não tanto de apropriação mas de absorção próprio do canibalismo, nas palavras de Garcia

(idem). Referimo-nos ao ritual da cultura guerreira dos indíos Tupi de comer órgãos dos corpos dos

seus inimigos após as batalhas. Ao contráro da visão europeia do canibalismo como uma prática tabu

que classifica o outro de bárbaro, ignorante e incivilizado, sendo constituído através de uma alteridade

radical e ameaçadora, a cultura indígena estabelece uma assimilação rejubilante do outro sem

discriminação303. Ao mesmo tempo que comiam os guerreiros mais destemidos das outras tribos para

assimilar a sua força e coragem, os índios também devoravam os colonizadores - que detestavam - de

modo a eliminá-los. O movimento antropofágico retoma a ideia de "comer" o que vem do exterior,

como as vanguardas europeias da época - e "digeri-lo" misturando-o com as circunstâncias locais para

criar um novo estilo304. Para além dos objectivos concretos do evento Digitofagia tal como estão

indicados no seu site, o colectivo Mídia Tática pode assim ser entendido como um esforço no sentido

de não só adaptar o conceito de antropofagia a uma época dominada pela tecnologia digital mas

também de assimilar as práticas tácticas comuns na Europa Ocidental e na América do Norte ao

ambiente local. Certo elementos do Metáfora/Metareciclagem, como Hernani Dimantas, por exemplo,

também fazem questão em assinalar a ligação entre esta tradição antropofágica e a cultura e ética

hacker de fundir elementos de diferentes origens em produtos criativos (Dimantas, 2005; Fonseca,

2003d e 2005).

Foi com a intenção de fomentar novas redes de colaboração no campo da inclusão digital que os

elementos do Mídia Tática criaram em 2005 o IP:// Interface Pública305, que Tatiana Wells descreve

como sendo um espaço de trabalho intersectando as àreas da arte, media, comunicação e tecnologia.

Para além de ser um centro de media no Rio de Janeiro dedicado à produção autónoma em novos

media, à reciclagem tecnológica - contando mais uma vez com o apoio do Metareciclagem306 e

software livre, assim como na investigação de uma pegadogia crítica dos media. Resultado de uma

parceria com o centro de media Sarai, de Nova Deli, e a Sociedade Waag Para os Velho e Novos

Media, em Amesterdão, do seu programa constam acções e eventos como workshops, residências de

artistas, activistas e hackers, uma conferência307 e o alojamento de seis projectos. Está ainda previsto

a edição de uma publicação. O MetaReciclagem também faz parte desta parceria308.

303 Schütze (2000). Este autor vislumbra uma ligação entre as práticas antropofágicas e as tácticas de incorporação parasítica de alguns projectos artivistas como a RTMark, Mongrel (www.mongrelx.org), JODI (www.jodi.org), m9ndfukc (www.m9ndfukc.org) e Shredder (www.potatoland.org/shredder) de Mark Napier.

304 Esta metáfora seria também adoptada pelo Tropicalismo, o movimento de música popular brasileira do final dos anos 60 representado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre outros, que efectuaram uma fusão do samba com a contra-cultura e a música Pop e Rock da altura, como se pode ler no site do Digitofagia e no texto de Felipe Fonseca (2005).

305 Site disponível em http://www.midiatatica.org/ip/.306 O "esporo" ou núcleo do Metareciclagem no Rio de Janeiro é coordenado por Ricardo Ruiz e Tatiana Wells que são,

paralelamente, membros do Midia Tática. 307 Intitulada Submidialogia, teve lugar em Campinas no final de Outubro e serviu para discutir os media digitais

brasileiros e contou com convidados estrangeiros como Monica Narula, do Sarai, e Derek Holzer, organizador do N5M e artista multimedia. Ver site em http://radiolivre.org/submidia/submidialogia.

308 Em resultado desta Fellowship, Beatriz Rinaldi e Fernando Henrique viajaram para Nova Deli em Julho de 2005, para realizarem uma residência de dois meses num dos Cybermohalla, centros multimédia instalados pelo Sarai em

194

1.2 - Contratv

Um dos projectos alojados no IP:// é a Contratv309, um colectivo de produção e distribuição de

programas televisivos e outras experiências narrativas para a Web que vão contra o modelo das

televisões comerciais como a Globo, como por exemplo, "anti-novelas" que alteram o sentido e

revelam as mensagens escondidas nas telenovelas, reapropriando-se delas. Este grupo já participou

em iniciativas anteriores do Mídia Tática, tendo sido o responsável pela formação em narrativas

digitais nos workshops realizados nos Autolabs em colaboração com o Colectivo de Histórias Digitais

e o Museu da Pessoa. No seu site pode-se aceder ao programa desses cursos, às páginas concebidas

pelos jovens das comunidades abrangidas e aos vídeos produzidos colectivamente. Quem quiser pode

ainda enviar textos, imagens e vídeos amadores para serem colocados online. e um guia passo-a-passo

explica como "libertar o seu computador", isto é, a instalar Linux em computadores Apple baseados

no sistema operativo proprietário Mac OS X. Partindo do conceito de "imaginofagia" como resposta à

construção e reconstrução quotidiana das identidades dos telespectadores exercida pelas estações de

televisão, a Contratv propõe que estes últimos criem os seus próprios programas, reconstruindo assim

essa mesma surrealidade de forma a impedir a reprodução do poder estabelecido. Para tal,

disponibiliza online um tutorial para a criação de programas Contratv baseados em cinco princípios:

amadorismo, não-edição - cenas com maior duração -; lentidão - de forma a gerar uma monotonia e

desprender a atenção do espectador do ecrã -; subtileza e verosimilhança - "de modo a mostrar o que a

TV não mostra: o dia a dia" (Contratv, s/d).

1.3 - Re:combo

Aplicando ainda mais à letra do que a Contratv o lema antropofágico de "só se interessar por tudo

aquilo que não é seu", o colectivo Re:combo310 constitui um projecto audiovisual colaborativo

baseado nas práticas da recombinação, a improvisação e a intertextualidade que permite efectuar a

partir do seu site o download de músicas e imagens, remisturá-las e descarregar as novas versões. O

grupo é formado por cerca de 40 elementos, entre músicos, artistas plásticos, designers,

programadores, DJs e profissionais de vídeo. Estes colaboram em várias obras divididos em "células

de áudio e vídeo" espalhadas por cidades do Brasil como Recife, João Pessoa, São Paulo, Caruaru e

Belo Horizonte que, à distância, via Internet, se dedicam à produção de novas criações ou retomando

trabalhos em desenvolvimento. Organizam ainda exposições e performances em que colaboram em

tempo real com outros DJs da Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra e Roménia. Considerando que o

bairros degradados da cidade. 309 Site disponível em http://www.contratv.net.310 Site disponível em http://www.recombo.art.br.

195

copyright representa uma força restritiva ao processo de criação artística, inicialmente o Re:combo

começou por remisturar ou samplar311 todos os trabalhos produzidos pelos seus membros ou cujos

autores permitiram declaradamente a sua reutilização, explica h.d. mabuse, membro fundador do

colectivo em entrevista (Beguelman, 2002). Mas em 2003, introduziu uma licença de Uso Completo

Re:combo (LUCR) para disponibilizar as suas criações e facilitar a reutilização dessas obras por

outras pessoas, sem receio de problemas legais. No ano seguinte, a LUCR passou a ser uma licença

Creative Commons aplicável ao sampling ou recombinação de obras (Re:combo, 2004).

1.4 - Rádios Livres: Rádio Muda

O movimento das rádios livres tem também uma grande força no Brasil e revela bem quer o espírito

de colaboração existente nesse país, como também a relação complexa e paradoxal entre os media

tácticos brasileiros e o governo do PT. Estas estações encontram-se reunidas no radiolivre.org312, um

"rizoma" que se destina não só à troca de informação, experiências e solidariedade, funcionando ainda

como um fornecedor de serviços para rádios livres, como a transmissão em directo pela Internet, o

alojamento de sites, listas de discussão e email, e o armazenamento de arquivos e fóruns. Segundo a

secção de Perguntas e Respostas do seu site, uma rádio livre pode ser considerada "uma emissora de

baixa potência onde qualquer pessoa pode assumir o papel de programador, locutor ou DJ. A rádio

procura trocar o conceito de broadcasting - de um para muitos - pelo de multicasting - de muitos para

muitos -, onde todo o cidadão e cidadã pode tanto ouvir rádio como participar activamente da

construção de uma emissora" (Radiolivre.org, 2005). Distingue-se assim de uma rádio comunitária na

medida em que nesta última é habitualmente "uma associação que assume para si o dever de informar,

manter a programação e gerir uma emissora". As primeiras rádios livres surgiram no Brasil no início

dos anos 80 e apesar de ainda hoje serem "consideradas ilegais pelo Estado e perseguidas pelas

empresas de rádio comercial do país, através da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e

pela Polícia Federal"313, desenvolveram-se bastante nos últimos anos, tendo passado de 100 em 1982

para 1500 em 1995 e 10000 em 2002 (Andriotti, 2004: 110). Tendo em conta a distinção de Andriotti

(idem: 197) e seguindo a dicotomia estabelecida por Garcia e Lovink (1997) e Meikle (2002),

311 De acordo com a definição para o termo equivalente "samplear" - em português brasileiro - do Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, consiste no acto de "gravar e processar (sons previamente gravados) por meio de um sampleador" - sampler no original em inglês -, isto é, "um instrumento electrónico" que utiliza esses excertos sonoros que são gravados e "armazenados digitalmente na sua memória, podendo alterá-los de diversas formas, à maneira de um sintetizador". Ver entradas relativas a "samplear" e "sampleador" no mesmo dicionário (2003: Vol. VI). A técnica do sampling começou por ser introduzida na música popular através do Hip-Hop no início dos anos 80.

312 Site disponível em http://www.radiolivre.org. 313 Andriotti (2004). Esta autora distingue com maior detalhe a história das rádios livres e comunitárias e as suas

ligações recíprocas. Para esta autora, inicialmente as rádios brasileiras de comunicação popular eram consideradas todas livres, na medida em que estavam ilegais e não tinham fins lucrativos, ao contrário das emissoras piratas que possuem intuitos comerciais (idem: 12-13). Mas com o processo de legalização das primeiras rádios livres, desencadeado pela lei 9612/98 que regulamento a radiodifusão de baixa potência, as estações que se institucionalizam passam a ser designadas de comunitárias (ibidem: 122-123; 150-151). Esta dissertação inclui ainda um estudo de caso sobre a Rádio Muda FM, onde colabora desde 1993.

196

poderíamos assim considerar as rádios livres como projectos tácticos, na medida em que são

emissoras flexíveis, com uma estrutura aberta, baseadas num modelo de desobediência civil e, por

isso mesmo, permanentemente susceptíveis de serem encerradas pelas autoridades, e as rádios

comunitárias como projectos de media alternativos ou estratégicos, uma vez que apresentam uma

estrutura mais centralizada e ligada a movimentos sociais ou políticos e uma programação mais

orientada por critérios de qualidade do que pela possibilidade de participação de todos, uma vez que

optaram por institucionalizar-se e seguirem os trâmites da lei, de modo a serem aceites pelo Estado.

Uma das rádios livres que tem sido frequentemente alvo de mandatos de encerramento é a Rádio

Muda, que surgiu na segunda metade da década de 80 no seio da Universidade Estadual de Campinas

(Unicamp) e que tem o seu estúdio numa caixa de água na praça central do campus. A estação

transmite para toda a cidade com uma potência de 50 watts na frequência 105.7 MHz e, através de

streaming pela Internet, para todo o mundo. O seu nome deve-se às inúmeras suspensões e paragens

derivado a problemas legais e técnicos, que continuam ainda hoje, mesmo após o novo governo314.

Como menciona Andriotti (2004: 151), a sua história está associada à história de resistência e livre

apropriação do meio rádio, sendo vista como "uma referência nacional de rádio popular e

democrática". Esta emissora esteve sempre ligada à questão da libertação de frequências radiofónicas

para apropriação pública. Há mais de dez anos que se desvinculou da associação de estudantes local,

funcionando desde então como uma iniciativa autónoma, possuindo uma estrutura de organização

horizontal, em que o colectivo responsável pela sua gestão é composto pelos próprios programadores

- que rondam os 200, para um total de cerca de 100 programas inscritos (idem: 162) e a emissão é

aberta a todo o público, na medida em que qualquer pessoa pode difundir o seu programa.

A Rádio Muda tem estabelecido várias parcerias com outros colectivos de media tácticos e

alternativos. Para além da parceria com o Mídia Tática, através dos workshops ministrados no âmbito

dos Autolabs com o através de um subgrupo de programadores, a Submidia315, esta estação mantém

314 Veloso (2003). Neste artigo, Thiago Novaes, locutor da Muda, refere que nos poucos meses após a entrada em funções do novo governo de Lula "foram fechadas mais rádios do que durante o governo FHC (Fernando Henriques Cardoso) inteiro". Na verdade, o número de rádios fechadas pela Anatel durante o primeiro ano do actual governo cresceu 37 por cento, de acordo com os dados de uma notícia publicada a 10 de Outubro de 2004 pela Agência Brasil - um serviço noticioso público - (disponível em http://www.radiobras.gov.br/materia_i_2004.php?materia=204512&editoria=). Um facto revelador das contradições internas do executivo é que Cláudio Prado é responsável pelo programa Imidiático emitido nessa mesma estação. A propóstio do exemplo de resistência da Muda, o articulador de políticas digitais do Ministério da Cultura afirma: "O que acho bonito nessa história é que as rádios brasileiras estão mudas e a Muda está falando" (Veloso, 2003). De salientar que Thiago Novaes é hoje um dos coordenadores da acção Cultura Digital do mesmo ministério, trabalhando directamente com Prado.

315 A Submidia apresenta-se no seu site como sendo um "grupo de pesquisa e actuação pela subversão dos padrões sociais de uso das tecnologias de comunicação enfatizando a imaginação, criação e aplicação de OUTRAS relações com os meios" criado por estudantes da Unicamp e que actua na àrea da rádio para a Web e do software livre. Site

197

uma colaboração regular com o Centro de Media Independente do Brasil. A transmissão da rádio

pela Internet é possibilitada mediante o alojamento da emissão num servidor do CMI em Inglaterra,

através de uma tecnologia de software livre. Esta aliança - a que não é alheia a existência de várias

afinididades entre os dois colectivos, no sentido em que ambos assumem uma estrutura

descentralizada e rejeitarem a intermediação do mercado nos media - estabeleceu-se na segunda

edição do Fórum Social Mundial316, em Janeiro de 2002, na cidade de Porto Alegre, onde o CMI

possuía um ponto de acesso à Internet e uma equipa de técnicos especializados (ibidem: 204): "Ali

mesmo no Acampamento da Juventude durante o II Fórum Social Mundial é realizada com sucesso a

primeira experiência de transmissão do sinal da Rádio Muda via Internet." A partir desse encontro,

surgiu a ideia de criar uma rede de rádios livres brasileiras que se concretizou com o desenvolvimento

do site radiolivre.org. O projecto tem também o objectivo adicional de permitir a retransmissão de

toda a programação das rádios livres pela Internet (ibidem: 211). Outra colaboração com o CMI foi a

criação da rádio livre "Pega Eu" que funcionou durante o período de duração do Festival Midia Tática

em Março de 2003, em directo da Casa das Rosas "com os microfones abertos a qualquer um que

deles se quisesse apropriar, além das tradicionais oficinas" (ibidem, 223). O CMI elaborou uma carta

que foi enviada à Anatel e ao governo federal uma semana antes do evento em que anunciava a

criação da estação e desafiava as autoridades a virem fechar a rádio317. Este acto de desobediência

civil serviu para gerar uma maior visibilidade para a questão dos encerramentos das emissoras livres,

aproveitando a presença dos media comerciais no local.

1.5 - CMI-Brasil

Pelo que pudemos ver até agora, o CMI-Brasil têm desempenhado um papel fundamental na

coordenação de iniciativas activistas de carácter táctico no país. Apesar de já termos abordado a rede

Indymedia e o CMI-Portugal, achamos que seria importante mencionar aqui as actividades deste

Centro de Media Independente que se destacam e se distinguem de outros CMIs. Actualmente, conta

com 11 centros em grandes cidades brasileiras, encontrando-se em processo de formação mais 13

outros núcleos espalhados pelo Brasil318. Tendo surgido em Setembro de 2000, no seguimento de

protestos do movimento por uma globalização alternativa contra a reunião do FMI e do Banco

Mundial que decorreu nesse mês em Praga, o CMI-Brasil colocou o seu site online em Dezembro de

disponível em http://submidia.radiolivre.org.316 Andriotti (2004: 193-221). A autora aborda a história da participação da Muda nas três primeiras edições brasileiras

do Fórum Social Mundial, inicialmente à margem da programação oficial do evento, com a instalação de uma emissora móvel no local destinada a efectuar a cobertura radiofónica do Fórum e a realização de oficinas de formação em rádio para outras estações livres e comunitárias.

317 Ver texto da carta em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/03/249595.shtml. 318 Ver página solicitando a participação de novos voluntários disponível em

http://www.midiaindependente.org/pt/blue/static/volunteer.shtml.

198

2000 (Cabral, 2005). Devido à disparidade de acesso à Internet e às tecnologias digitais existente no

país, os colectivos locais procuraram “combinar a tecnologia digital e de internet com os meios

tradicionais de forma a potencializá-los", explica Pablo Ortellado, do Indymedia brasileiro (Ortellado,

2003).

No campo da rádio, por exemplo, para além da colaboração com a Rádio Muda, o CMI-Brasil

integrou o projecto da Área de Rádios Livres das Américas (ARLA) em paralelo com o Encontro de

Rádios Livres em Novembro de 2003, permitindo a criação de uma emissão radiofónica conjunta

transmitida pela Web319 destinada a realizar a cobertura das mobilizações contra a Área de Livre-

Comércio das Américas (ALCA), durante a reunião em Miami dos responsáveis por este organismo

regional impulsionado pelos Estados Unidos. Outra acção do CMI-Brasil que resulta da colaboração

com as rádios locais é a produção de um boletim de notícias seleccionados do seu site que é enviado

para rádios livres e comunitárias que, entre outras, abrange dezenas de estações localizadas na região

de Porto Alegre. Isso permite estabelecer um intercâmbio mútuo, já que as rádios também enviam

notícias das suas comunidades locais para os colectivos Indymedia no Brasil, nota Ortellado (idem).

Um dos media com que os colectivos brasileiros da Indymedia têm obtido mais visibilidade é o vídeo.

O documentário "Não começou em Seattle, não vai terminar em Quebec (A20)", realizado pelo

núcelo do Rio de Janeiro que filmou as manifestações contra a ALCA em São Paulo, no mês de Abril

de 2001320. Tendo em conta as dificuldades financeiras e de acesso à Rede da população, o CMI

nacional possibilita não só a publicação de vídeos no seu site, tal como o centro português, mas

conjunga esforços com outros grupos activistas de vídeo e associações locais para a facilitação de

espaços de exibição. A cooperação internacional através da Internet facilita a troca e difusão de

vídeos com centros de outros países. Ortellado salienta que esta rede de distribuição permitiu que o

documentário sobre os protestos contra a ALCA "fossem vistos por mais de 20 mil pessoas ou que

comunidades de sem-abrigo em São Paulo ou de favelas no Rio de Janeiro conhecessem uma

realidade semelhante, a dos trabalhadores desempregados de Buenos Aires" (ibidem).

Tal como o colectivo português, os núcleos do CMI-Brasil produzem "jornais relativamente

periódicos, com pequena tiragem, como o Ação Direta de São Paulo que são distribuídos para

organizações sociais diversas, em determinadas localidades ou eventos" (Cabral, 2005). Devido à

falta de recursos e de técnicos especializados, os voluntários brasileiros optaram por passar a produzir

jornais-murais, em tamanho A3 com uma periodicidade mais ou menos regular, afixados em muros,

319 Ver arquivo das emissões em http://ftaaimc.org/or/static/radio_en.shtml.320 Disponível em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/05/253927.shtml.

199

paredes e paragens de autocarro de cidades como Rio de Janeiro, Fortaleza e Florianópolis. Ortellado

considera que esta solução permite aumentar o número de leitores com um custo muito baixo.

O CMI-Brasil actua ainda ao nível da inclusão digital através da constituição de centros de acesso

público à Internet com computadores equipados com software livre, semelhantes aos Autolabs e aos

Telecentros. Em São Paulo, o colectivo local instalou um cibercafé numa ocupação urbana -

"actualmente funciona em conjunto com a ONG Ação Educativa - que resultou na criação de uma

rádio livre com transmissão via Internet montada por crianças de oito a 12 anos, após a participação

num curso ministrado no local (Ortellado, 2003; Cabral, 2005). Mas de acordo com Ortellado, o

objectivo é abrir mais cibercafés CMI noutras cidades. De forma a adaptar o software livre para

produção mediática já existente para português, está a ser desenvolvida uma distribuição de Linux

específica chamada Indymix que deverá ser implementada nos futuros centros de acesso público.

Adaptando o conceito dos cibercafés CMI para um cenário "no terreno", os colectivos têm vindo a

desenvolver laboratórios temporários de media em eventos especiais. Estes espaços ministram um

conjunto de cursos integrados e colectivos dos quais resulta uma produção constante e contínua de

conteúdos de media com participação livre e aberta a todos. As primeira experiências do CMI-Brasil

com laboratórios de media decorreram durante a terceira edição do Fórum Social Mundial de Porto

Alegre, em Jameiro de 2003 e durante o Primeiro Fórum Social Brasileiro, que teve lugar em Belo

Horizonte no mês de Novembro desse mesmo ano. No último caso, tratou-se da Casa Macunaíma, um

local onde vários comunicadores e jornalistas que estavam a fazer a cobertura do Fórum se puderam

congregar e colaborar na produção de peças audiovisuais, representando "um espaço colectivo de

comunicação democrática" (Cabral, 2005) que contou com o apoio da Associação Brasileira de

Radiodifusão Comunitária (ABRACO) - órgão representante das rádios comunitárias brasileiras. O

êxito da iniciativa levou à criação de um novo espaço Macunaíma durante o Fórum Mundial da

Educação que decorreu em São Paulo em Abril de 2004. Posteriormente, foi ainda implementado um

outro laboratório de media, o Polimídia321, que integrou a programação oficial da 4ª Conferência da

Rede OurMedia, dedicada ao estudo e investigação dos media alternativos e independentes, realizada

em Julho de 2004 novamente em Porto Alegre. Nesse espaço, activistas do CMI, produtores

independente e investigadores académicos puderam efectuar colaborativamente experiências práticas

de comunicação e desenvolvimento e trocar conhecimentos, através de workshops e apresentações de

projecto relacionados com a utilização autónoma e comunitária do vídeo, da rádio e da Internet

(idem).

321 Ver wiki do Polimedia Lab em http://docs.indymedia.org/view/Global/NossoMidiaLab.

200

1.6 – Brasil, Nação Hacker

O que resulta da análise do trabalho de todos os projectos aqui referenciados é uma tentativa de

transposição daquilo a que poderíamos chamar "jeitinho" brasileiro para o domínio dos media e das

tecnologias digitais. Esta expressão popular pode ser definida como uma "maneira hábil, esperta,

astuciosa de conseguir alguma coisa, especialmente algo que à maioria das pessoas se afigura

particularmente difícil", recorrendo à economia informal ou mesmo marginal. A "gambiarra" ou

"gato" é um dos exemplos desse "jeitinho" aplicado na prática que os elementos do Midia Tática

referem no site do Digitofagia e que se insere na cultura antropofágica de apropriação daquilo que é

do outro. Trata-se de "uma extensão puxada fraudulentamente para furtar energia eléctrica"322

geralmente utilizada em favelas ou ocupações de casas e terras.

A "gambiarra", tanto em sentido literal ou como metáfora para a subversão da tecnologia e dos media

- como se se tratasse de um hack -, na nova interpretação que o colectivo Mídia Tática faz da palavra,

apresenta-se assim como um dos exemplos mais concretos e realistas das astúcias tácticas que Michel

de Certeau assinalou, uma vez que elas são incorporadas pelas populações no seu quotidiano. Em Arts

de Faire, o autor francês chega mesmo a fazer várias referências ao modo como a cultura popular

brasileira resiste à assimilação pelo outro, um poder externo, recorrendo a linguagens e crenças

populares próprias para subverter a língua imposta pelo colonizador e a religião imposta pelo

missionário, chamando a esse tipo de sabedoria um misto de estratagema - trampolinagem323 - e de

trapaçaria, isto é, astúcia e esperteza no modo de utilizar ou de esquivar-se aos termos do contrato

social (Certeau, 1990 [1980]: 34). Mas estas "mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro"

representam, na nossa opinião, mais que "um prazer em alterar as regras do espaço opressor" (idem).

Apesar da alegria e o gozo estarem habitualmente presentes, o que está em questão é quase sempre a

sobrevivência no dia a dia. O mesmo se passa com as novas "gambiarras" digitais. Dados os enormes

problemas que a população brasileira tem que enfrentar, a resposta não reside num mero pessimismo

mas num "talento interminável para a improvisação, para vislumbrar (e criar) possibilidades", tal

como salienta David Garcia que inventou a apropriada designação de "terra do possibilismo" para

descrever o ambiente que, "contra todas as probabilidades", encontrou no Brasil (Garcia, 2004a).

Assim não podemos ver estas práticas Do-It-Yourself que identificámos neste capítulo como meros

media tácticos mas "como um método prático de fazer coisas para alterar os sistemas, de não esperar

para que o governo ou as instituições façam o trabalho", nas palavras de Brunet (2005). Falando como

brasileira, esta autora faz questão de salientar que "no Brasil, nós temos que lutar para obter estas

322 Citações retiradas das entradas"jeitinho" e "gambiarra" do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2003), IVº volume, Lisboa, Círculo de Leitores.

323 Certeau explica que este termo consiste num jogo de palavras que associa a acrobacia de um saltimbanco com a sua arte de saltar no trampolim (Certeau, 1990 [1980]: 34).

201

coisas (alimentação, educação e saúde). Não sobrevivemos se esperarmos pelo governo. É por isso

que aqui surgem muitos estilos de vida alternativos" (idem). Essa luta pela sobrevivência face aos

graves problemas económicos do país e à dificuldade em arranjar emprego na economia formal têm

levado milhões de brasileiros a recorrerem a esquemas mais ou menos ilícitos no domínio da

economia informal. Em 2004, 60 por cento da população activa, isto é, 47,5 milhões de pessoas,

estavam na informalidade324. Felipe Fonseca chama a esse "mundo alternativo de trabalho" de

"economia pirata", caracterizada pela criatividade e pelo dinamismo, um "empreendedorismo" na

gambiarra, tendo um círculo próprio de produção e distribuição (Fonseca, 2005). Uma das suas

figuras é o "camelô", o vendedor ambulante ou instalado num local fixo que, por conta própria e

frequentemente desafiando a lei - escapando ao pagamento de impostos -, comercializa produtos

contrabandeados e até falsificados em barracas ou bancas pelas praças e ruas das cidades do país325.

Felipe Fonseca descobre um elo de ligação entre o camelô e os "media tácticos do primeiro mundo, na

medida em que ao optar pela venda de CDs, DVDs e jogos pirateados para obter a sua subsistência,

aquele "também chega (...) a questionar os domínios da propriedade intelectual e do poder dos media

de massas, em especial, o branding empresarial" (idem) 326

Mas da mesma forma que o "jeitinho" brasileiro é simbolizado pelas "gambiarras", as astúcias e

manhas dos fracos para fugir aos espaços e muros erguidos pelos outros, também o é pela

colaboração, pela generosidade e pela criação de solidariedades entre identidades distintas mas que

partilham a sua condição de excluídos, tendo por isso um interesse comum: sobreviver no quotidiano.

Os activistas tácticos brasileiros possuem uma consciência profunda de que no Brasil "a periferia é o

centro" (Dimantas, 2004 e 2005; Estraviz, 2001), na medida em que "lá a comunidade se organiza"

(Estraviz, 2001) e colabora colectivamente327. Do mesmo modo que as "gambiarras" DIY, "a

colaboração aqui (no Brasil) é sempre uma estratégia de sobrevivência", afirma Hernani Dimantas,

que acrescenta: "O que seria deste país se não fosse a gentileza entre pessoas que jogam na mesma

324 Ver Pastori, José (2005), "Perspectivas e Problemas do Emprego no Brasil", Seminário Brasil-Canadá: Desafios para a Criação de Empregos, CEBRI, Brasília, 10 de Março. Disponível em http://www.cebri.org.br/pdf/232_pdf.pdf (acedido a 13 de Janeiro de 2006). Este sociólogo brasileiro refere ainda que "em 1985 havia um emprego formal para cada 2,7 trabalhadores; em 2002, essa proporção subiu para 1 emprego formal para cada 3 trabalhadores".

325 Porém, esta percepção de que o número de vendedores ambulantes no Brasil extremamente grande contrasta com os dados relativoa a 2003 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Serviço Brasileiro de Apoio âs Micro e Pequenas Empresas (SEPRAE), segundo os quais, apenas existem 711,8 mil "camelôs" no Brasil, o que corresponde a 6,9 por cento das 10,3 milhões de empresas informais. Contudo, este estudo sobre a Economia Informal Urbana apenas considera como empresas informais as que que tenham até cinco empregados e não separam a sua contabilidade da do proprietário. Ver estudo em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/ecinf/2003/default.shtm (acedido a 13 de Janeiro de 2006).

326 Com a intenção de oferecer um retrato pitoresco e irónico da economia informal brasileira ao resto do mundo, a delegação brasileira no festival Next Five Minutes de 2003, em Amesterdão, composta por Felipe Fonseca, Ricardo Rosas, Ricardo Ruiz e Tatiana Wells teve a ideia de fazer uma instalação/intervenção "à entrada do De Balie, o centro do evento que consistitu numa banca de 'camelô' com o câmbio invertido: os europeus só podiam comprar com reais, que custavam três euros cada" (Fonseca, 2005).

327 Esta posição assemelha-se também em parte à filosofia de actuação do colectivo Mídia Tática de, com o Autolabs, alcançar o centro a partir da periferia no sentido de provocar mudanças nas políticas públicas de inclusão digital (Garcia, 2004a e Rosas, 2004).

202

equipa da miséria, os agora chamados 'excluídos'" (Dimantas, 2005). Essa ideia fica bem expressa na

cultura popular brasileira através do conceito de "mutirão", que pode ser definido como "qualquer

mobilização colectiva e gratuita de cidadãos para execução de um serviço que beneficie a

comunidade"328. Este termo é frequentemente utilizado pelos membros do Metáfora e do

Metareciclagem para descreverem as suas acções com a tecnologia digital e a sociedade brasileira.

Para Dimantas, por exemplo, a periferia é o centro" porque "vive de mutirão, respira colaboração"

(idem). Um mutirão tanto pode ser uma acção conjunta de limpeza das ruas de um bairro, a pintura de

uma creche ou uma escola de samba. O "puxadinho" ou "puxada" é, no entanto, talvez o exemplo

mais pertinente do que um "mutirão" pode ser na prática, referindo-se ao costume de "acrescentar

uma ou duas divisões de uma casa, aproveitando uma das paredes externas"329 quando uma família se

torna mais numerosa através do casamento de um filho ou do nascimento de mais outro. Esta é assim,

tal como a "gambiarra" uma forma de improvisar e solucionar um problema concreto do quotidiano

de milhões de brasileiros: a falta de espaço para habitação e de recursos financeiros para comprar uma

nova casa.

A importância da colaboração entre pessoas repercutiu na tentativa dos activistas brasileiros

trabalhando com media tácticos de adaptarem este e outros conceitos originalmente criados na Europa

e América do Norte para o contexto brasileiro. "Em termos de colaboração, nós, elite cultural

revoltadinha brasileira, temos mais a aprender do que a ensinar com as culturas populares", refere

Felipe Fonseca (2005). A proposta destes colectivos pode, efectivamente, ser vista como uma

digitofagia, uma antropofagia das tecnologias digitais e dos media analógicos mais acessíveis que

combina traços comuns da cultura popular brasileira com a ética hacker: colaboração,

descentralização, ênfase na reputação e informalidade (idem)330. Através de uma nova abordagem da

inclusão digital que vai para além do mero acesso às tecnologias digitais, os projectos atrás referidos,

assim como o Metáfora/Metareciclagem, tentam oferecer à população de baixos rendimentos e que

vive na periferia meios para ampliar sua voz, para se reapropriar da tecnologia tendo em conta as suas

necessidades e os seus interesses. Porque apesar de essas pessoas estarem excluídas do acesso às

ferramentas tecnológicas, elas não estão excluídas da cultura da colaboração, da criatividade e da

sobrevivência (Dimantas, 2005). Elas “são capazes de tomar as próprias rédeas, andar sozinhas e

protagonizar suas próprias vidas” (Dimantas, 2004). Com vista à reapropriação da tecnologia pela

328 Ver entrada para "mutirão" em Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (2003), tomo V, Lisboa, Círculo de Leitores. Este dicionário apresenta ainda outras definições semelhantes de "mutirão": "mobilização colectiva para auxílio mútuo de carácter gratuito, especialmente entre trabalhadores do campo, por ocasião da roçada, colheita, etc. (...) Serviço sem ónus prestado por membros de uma comunidade, geralmente visando a construção ou o melhoramento de um imóvel".

329 Ver entrada para "puxada" no Dicionário de Língua Portuguesa (2003), idem. Outros sinónimos do mesmo termo referidos por este dicionário são "puxá", "puxado" e "puxação".

330 A este propósito Felipe Fonseca afirma terem exisitido raízes culturais hackers no país desde muito antes da criação do primeiro computador (Fonseca, 2005).

203

sociedade brasileira, Felipe Fonseca sugere que em vez de tentarem transformar um "camelô" num

funcionário de escritório, os coordenadores de projectos públicos e do terceiro sector de inclusão

digital deviam pensar como é que a tecnologia pode melhorar a sua actividade de venda em locais

público (Fonseca, 2005a). Fonseca propõe ainda que se aproveite as características culturais

brasileiras para obter o máximo das tecnologias fomentando o recurso à Internet por essas pessoas da

periferia onde se estabeleça "a troca de conhecimentos, a colaboração e a mobilização colectiva"

(idem). Em lugar de uma “inclusão digital” que entende o computador e a Internet como ferramentas

de empregabilidade, projectos como o Metáfora/Metareciclagem apontam para um caminho

alternativo em que a tecnologia facilita a comunicação das pessoas da periferia entre si e destas para

com a sociedade.

204

2 – Projecto Metáfora: Caos e Ordem numa Inteligência Colectiva

Hoje em dia, a maior dificuldade para começar um projeto de pesquisa é a definição do nome. Que nome dar a um projecto que tem por objetivo entender e propor aplicações para uma realidade em que passaremos do online/offline para uma cultura permanentemente conectada? Como definir uma cultura em que definir o nome de um projecto é mais difícil do que estabelecer um fórum de comunicação entre os seus membros? E isso é só o começo. Virtualização da presença, k-logs331, m-log332s, RSS, telecentros comunitários, inteligência colectiva, o novo nomadismo, são alguns dos assuntos que vão nos guiar.

- Felipe Fonseca, “Metáfora”

Foi com esta frase em epígrafe enviada para uma nova lista de discussão por email que se deu início

ao projecto Metáfora, a 28 de Junho de 2002333. O objectivo era trocar ideias e talvez conceber

tecnologias que incorporassem na prática noções como conhecimento livre, redes sociais, colaboração

e copyleft334. Na origem do Metáfora esteve outra lista, a Joelhasso, que também servia de nome a um

blog criado por Felipe Fonseca em 2001, que trabalhava na altura na indústria da publicidade. Aí se

congregaram virtualmente os integrantes de outras listas brasileiras sobre marketing e comunicação,

entre os quais Hernani Dimantas, Paulo Bicarato e Charles Pilger, que viriam mais tarde a fazer parte

do Metáfora. Como conta Fonseca, os assuntos em discussão na Joelhasso abrangiam a Internet sem

fios, dispositivos em rede, XML, integração de equipamentos e conversações (2005). Desagradados

pelo que consideravam ser o atraso da indústria tecnológica brasileira, Fonseca e Dimantas criaram

em jeito de resposta a primeira mailing-list Metáfora com o intuito, nas palavras do primeiro, de

"tentar consolidar as novas ideias que um monte de gente estava gerando". Na entrevista que

realizámos, Fonseca esclarece que o Metáfora surgiu como uma saída para a frustração que sentia no

seu emprego na altura: “O Projecto Metáfora tornou-se o ambiente onde a criatividade não enontrava

limites e onde começavam a aparecer pessoas que tinham interesses e perspectivas em comum

comigo” (Fonseca, 2005b). Hernani Dimantas complementa essa afirmação, afirmando que “o

carácter aberto do projecto deu ao grupo as possibilidades para o exercício total da criatividade”

(Dimantas, 2004).

Tendo em conta um "quotidiano hiperconectado", a lista visava estimular o debate sobre "os limites

cada vez mais ténues entre online e offline, entre digital e analógico, e o conhecimento livre como

331 Utilização de weblogs no ambiente corporativo com a finalidade de estimular a colaboração e a organização pessoal do conhecimento.

332 Utilização de weblogs em empresas para serviços de marketing junto de clientes. 333 Grande parte do arquivo desta lista encontra-se disponível em

http://metareciclagem.org/metafora/temp/lista_ygroups/. O arquivo está dividido em cinco ficheiros: o primeiro – grab.htm - vai até à mensagem nº 1501, o segundo – grab2.htm - vai da 1502 à 3001, o terceiro – grab3.htm – vai da 3002 à 4501, o quarto – grab4.htm – vai da 4502 à 6001 e o quinto – grab5.htm – vai da 6002 à 7501. Este arquivo não contém, contudo as mensagens datadas desde o final de Março até ao final de Junho de 2003, isto é, cerca de 2500 do total de 10 mil enviadas para a lista.

334 Forma de protecção dos direitos de autor que tem como objectivo prevenir que sejam colocadas barreiras à utilização, difusão e modificação de uma obra criativa devido à aplicação clássica das normas de Propriedade Intelectual. A General Public Licence, licença que protege a maior parte do software livre, é uma forma de copyleft.

205

metodologia de colaboração" em que se passasse para além da crítica, no sentido da apresentação de

alternativas concretas (Fonseca, 2005). No mesmo texto, Fonseca recorda o processo de formação da

nova comunidade online: "Criei a lista de discussão no Yahoo! Groups e convidei 12 pessoas. Quase

todas aceitaram" (idem). Dimantas afirma a este propósito que ambos combinaram inicialmente que

ele faria a articulação externa e Fonseca ficaria a cargo da articulação interna. "Abri o diálogo do

Meta com instituições do governo, algumas ONGs mais institucionalizadas e com participação

política e a academia", refere no questionário que elaborámos. Por seu lado, Fonseca – que utilizava

nesses primeiros tempos a alcunha Izquierdo, El Horrible - incentivava as pessoas que iam chegando

à lista a conversarem entre si.

A lista começou por ser uma conversa entre um grupo de 15 pessoas, mas no período de um mês já

tinham sido aí publicadas mais de 1200 mensagens entre 45 elementos. Foi assim criada uma wiki

onde começaram a ser guardados os inúmeros bookmarks de notícias e artigos que eram debatidos na

lista (Fonseca, 2003). De seguida, foi redigido o rascunho de um projecto. Três dias mais tarde, este

rascunho transformou-se na descrição completa de um projecto, tendo os participantes começado a

elaborar projectos colaborativos a partir da wiki (idem). O Metáfora viria a acabar em Outubro de

2003. Um mês antes, durante a sua intervenção no N5M, em Amesterdão, Felipe Fonseca afirmava

que o Metáfora contava com “cerca de 200 pessoas, desde lurkers335 a gestores de projectos, e mais de

25 projectos, estando actualmente quase metade deles a serem desenvolvidos”, todos eles

funcionando graças ao voluntariado dos participantes (ibidem). Embora a grande maioria dos

elementos mais activos do Metáfora tenha pertencido à região de São Paulo, o projecto alastrou-se

também a outras cidades brasileiras como Belo Horizonte e Rio de Janeiro, contando ainda com

participantes nos Estados Unidos.

De início, as conversas na lista, versando sobre telemóveis ligados à Internet, m-blogs, PDAs e

computadores de bolso, evidenciavam um certo pendor para o tecno-narcissismo que, como Matteo

Pasquinelli acusa (2002), predomina em muitos projectos autónomos trabalhando com media e

tecnologia. Gradualmente, no entanto, assistiu-se a um desviar da atenção sobre a tecnologia em si

para uma maior consciencialização sobre as necessidades reais das pessoas comuns de forma a ir de

encontro a elas336.

Tal como outros grupos abordados anteriormente, o Metáfora conseguiu juntar no mesmo projecto

hackers, filósofos, jornalistas, artistas, antropólogos e designers, todos eles actuando em quatro

335 Meros leitores das mensagens enviadas para a lista de discussão, que nunca intervêm publicamente. 336 Ver mensagens nº 7, 8 e 9 do arquivo trocadas entre Paulo Colacino e Felipe Fonseca e a mensagem nº 1191 que

contém uma reflexão do primeiro sobre o que tinha sido a evolução da lista até então. No questionário por email que realizámos, Tupi Namba assemelha o discurso inicial do Metáfora com “o empreendedorismo geek flower power de Silicon Valley e do anarquismo do periodo punk".

206

grandes àreas: comunicação, tecnologia, educação e arte. “O Metáfora é totalmente independente. É

aberto e flexível. Não é um projeto académico. É uma nova forma de gerar conhecimento. O nosso

enfoque é o incentivo de projectos pessoais através da colaboração entre os participantes”, explicou

Hernani Dimantas (2004). O carácter transdisciplinar do projecto é recordado por Felipe Fonseca:

“Baseados em tecnologia que hoje (Novembro de 2005) até parece pouco sofisticada (uma wiki e uma

lista de discussão), fomos capazes de mobilizar efectivamente mais de uma centena de pessoas

dispostas a experimentar novas formas de lidar com o conhecimento e de encontrar soluções para

problemas em comum” (Fonseca, 2005b). Esta convergência de esforços resultou naquilo a que o

colectivo denominou de aprendizagem distribuída em que “um grande número de pessoas com os

mais variados repertórios, esforçando-se por fugir aos jargões e por expressar-se de uma maneira que

todos compreendessem, foram responsáveis por uma disseminação multilateral de conhecimento com

um ritmo que eu nunca tinha visto” (idem). Na base desta “comunicação multi-facetada, multi-lateral,

interactiva e independente” (Dimantas, 2004) esteve a ideia de “xemelê”, que Fonseca define como

sendo “um esforço positivo no sentido de manter um nível de linguagem que pudesse ser mutuamente

compreensível” de modo a que todos pudessem participar nas discussões (Fonseca, 2005)337. O termo

remete para um episódio concreto da história do Metáfora, quando Dalton Martins enviou uma

mensagem para a lista sobre computação distribuída e Fonseca respondeu: “xemeleia aí que eu não

entendi nada”338. Xemelê viria a ser, aliás, o nome da segunda lista do Metáfora, criada em meados de

Junho de 2003, quando a primeira lista, alojada no serviço de alojamento eGroups do Yahoo! estava

prestes a ultrapassar o limite de armazenamento de emails - dez mil mensagens - imposto por aquela

empresa339.

Em pouco mais de um ano, o Metáfora passou de uma mailing-list a um grupo de acção para um

conceito de colaboração, uma infra-estrutura ou incubadora para a criação de projectos colaborativos,

em que os próprios projectos, como explicou Felipe Fonseca (2003) “criam grupos de acções, como

se do caos surgisse uma ordem fractal”. Aliás, um dos termos mais empregues pelos participantes do

Metáfora para definir o processo de funcionamento do projecto era o de ‘caordem’, uma mistura de

caos com ordem, que nos faz remeter para conceitos como rizoma, swarming e multidão já abordados

anteriormente340. Outro conceito essencial para compreender o Metáfora é o de Inteligência Colectiva,

337 Esta intenção de adequar a linguagem do discurso ao resto da sociedade está patente numa mensagem de Felipe Fonseca enviada para a lista a 24 de Julho de 2002 (nº 1059):

Acho que a nossa história aqui, como eu postei antes, xemlê de ideias, e tal, é fazer o meio termo de algumas coisas. Não ser tão geek, nem tão mercado, nem tão jornalixta, nem tão revolucionário que impeça o diálogo com os outros e com a sociedade (que, ao menos na minha opinião, é uma das motivações de projectos abertos como nosso grupim).

338 Ver mensagens nº 5651 (Dalton Martins) e 5661 (Felipe Fonseca) no arquivo da lista. 339 Ver arquivo quase completo da lista em http://amsterdam.servershost.net/pipermail/xemele_projetometafora.org.

Deste arquivo não constam as mensagens enviadas para a lista na segunda quinzena de Setembro de 2003. O backup original do arquivo desapareceu irremediavelmente em 2004.

340 A ideia de caordem foi introduzida na lista, logo no início, por Paulo Colacino, numa mensagem enviada para a lista sobre o modo de organização que iria reger a lista:

207

introduzido por Pierre Lévy, segundo o qual estamos a assistir à emergência de uma nova era do

conhecimento que irá produzir uma consciência humana global341. No texto de apresentação342 do

colectivo, pode-se ler: “Metáfora é uma inteligência colectiva para gerar inteligências colectivas. Um

projecto aberto de pesquisa e desenvolvimento em diversas áreas do conhecimento, baseado em

algumas premissas do modo de produção open source.” Mais à frente, verifica-se que o plano de

actuação do projecto passava pela realização de “acções multiplicadoras de inteligência colectiva

envolvendo o uso de redes de informação”. Do mesmo modo, Hernani Dimantas enfatizava essa visão

do Metáfora inteligência colectiva num artigo publicado na revista electrónica Nova-E ainda durante a

fase inicial do projecto343.

Primeiramente valeu Felipe pela criação do espaço. Vamos provar aqui que várias cabeças, dão mais cabeçadas que uma só e juntas cabeceam melhor do que sozinhas. É isso aí.

O segundo desafio é organizar isso aqui, se é que será possível. Vamos ter um diretriz, projetos, um objetivo, ou vamos discutir à esmo ? Caos ? Ordem ? Ou caordem ?

Felipe Fonseca respondeu de forma contundente:

Caordem.

Arquivos e Bookmarks: Caordem também. Cadum faz do jeito que quiser. Desde que passe o recado.

Ver mensagens nº 3 e 6 do arquivo da lista. O termo vem do inglês chaord introduzido por Dee Hock, fundador e director-executivo emérito da Visa, para designar qualquer organismo, organização ou sistema, tanto fisíco, biológico como social, que seja complexo, não-linear, auto-organizado e capaz de se adaptar ao seu meio-ambiente apresentando um comportamento que funde harmoniosamente características de caos e ordem. Uma chaord seria também qualquer entidade cujo comportamento revela padrões e probablidades observáveis que não são controlados ou explicados pelo comportamento das suas partes. Hock aplicou o conceito de “organização caórdica” à Visa, seguindo os princípios organizativos fundamentais da natureza. Ver Hock, Dean (1999), “Birth of the Chaordic Age”, Berrett-Koehler Publishers.

341 Inspirado no conceito de noosfera teorizado pelo jesuíta francês e paleontólogo francês Teillard de Chardin relativo a uma esfera do pensamento humano composta por todas as inteligências humanas que evolui em direcção a uma maior integração, Lévy argumenta de um modo optimista que as redes de computador, os ambientes virtuais e o multimédia estão a possibilitar o surgimento de um espaço do conhecimento que irá unir as nossas mentes num todo que será potencialmente maior que a soma das partes:

O que é a inteligência colectiva? É uma inteligência globalmente distribuída, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que conduz a uma mobilização efectiva das competências (...) O fundamento e o fim da inteligência colectiva é o reconhecimento e o enriquecimento mútuo das pessoas e não o culto de comunidades fetichisadas ou hipostasiadas (Lévy, 1997 [1994], 38).

Empregando um discurso teórico que será mais tarde explorado por Hardt e Negri no conceito de “Multidão”, embora numa perspectiva mais marxista (2000 e 2004), Lévy escreve:

O colectivo inteligente não submete nem limita as inteligências individuais; pelo contrário, exalta-as, fá-las frutificar e abre-lhes novas potencialidades (...) Faz crescer uma forma de inteligência qualitativamente diferente, que vem juntar-se às inteligências pessoais, uma espécie de cérebro colectivo ou de hipercórtex.

Hipercórtex foi, aliás, o nome de um dos projectos individuais de Felipe Fonseca antes do Metáfora, e que seria uma “combinação de enciclopédia, jornal, dicionário, fórum e chat” construída pelos utilizadores, partindo do modelo do Slashdot. Fonseca iria retomar o termo como nome de um blog.

342 Disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?Apresenta%E7%E3o.343 Cópia de arquivo do texto “Metáfora: incubadora colaborativa” disponível em

http://web.archive.org/web/20021223221540/http://www.novae.inf.br/neuraldigital/metafora.html.

208

Os projectos do Metáfora abrangiam desde soluções para acesso à internet até alternativas para

estimular o espírito empreendedor das comunidades desfavorecidas. Tais iniciativas estavam baseadas

numa organização conceptual denominada a Tríade da Informação:

· Infra-estrutura física: computadores pessoais, modems, routers, cabos, hubs, gateways;

· Infra-estrutura lógica: padrões de interligação, sistemas de publicação online, gestão de

conhecimento, redes de processamento distribuído, protocolos;

· Interacção: colaboração, capital social, formação, conhecimento partilhado, mobilização,

participação.

Este modelo baseia-se em parte no conceito dos três níveis dos sistemas de comunicação introduzido

pelo jurista Yochai Benkler e retomada por Lawrence Lessig (2001: 23-25), compostos por um nível

físico, situado em baixo, um nível intermédio lógico ou relativo ao código e um nível superior,

relativo ao conteúdo. A diferença substancial situa-se nesta última camada: enquanto Benkler e Lessig

utilizam o termo conteúdo, os elementos do Metáfora preferem recorrer ao conceito de interacção de

modo a fomentar a autonomia das comunidades344. “Sempre me pareceu pretensão a visão segundo a

qual um grupo de pretensos especialistas definem qual o 'conteúdo' interessante para um determinado

grupo”, refere a este respeito Felipe Fonseca na entrevista (2005b).

Apesar da sua curta duração, de apenas 15 meses, o Metáfora deixou um legado bastante valioso de

projectos que ainda hoje subsistem. Destes, o MetaReciclagem foi o que obteve maior êxito, tendo

chegado a todas as grandes cidades brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto

344 Inicialmente, o modelo da tríade incluia o conteúdo em lugar da interacção, de acordo com a mensagem nº 967 de Daniel Pádua enviada para a lista a 22 de Julho de 2002 relativo à proposta de criação da UTIL (União pela Tríade da Informação Livre, que não veio a ser posta em prática. Em reacção às tentativas das indústrias de tecnologia e entretenimento de controle e vigilância através de tecnologia supervisionada por extensões de hardware, software proprietário e conteúdos de acesso restrito, a UTIL deveria ter uma missão de “evangelização” no sentido de alertar os utilizadores para a necessidade de uma estrutura de comunicação online livre assente em: 1) tecnologia reciclada e redes comunitárias sem fios; 2) software livre; 3) blogs, redes P2P e conteúdos abertos e livres. Ver página do projecto na wiki em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?UTIL.

Felipe Fonseca iria mais tarde, a 14 de Agosto, surgerir que a estrutura da tríade servisse como modelo das actividades do Metáfora, dado que a maioria dos projectos podia ser encaixada em cada uma das três partes (mensagem nº 1626). Em resposta, Paulo Colacino (mensagem nº 1627) propôs a inclusão da interacção ao esquema, de modo a salientar a importância das relações entre nós humanos. O logotipo do Metáfora, um círculo com três setas viradas para o centro – consiste numa representação gráfica do conceito da tríade implementada por Tupi Namba – aprovada pelo colectivo através de uma votação -, a partir de uma ideia de Bernardo Schepop (mensagem nº 1991). Ver página na wiki em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?IdentidadeVisual.

209

Alegre, Recife, Salvador, Brasília, Curitiba, Manaus, etc. Como o nome indica, o MetaReciclagem

dedica-se à reciclagem de computadores obsoletos doados, equipando-os com componentes usados

que estejam em condições de funcionamento e instalando-lhes software livre. Depois de

reapetrechadas, as máquinas são pintadas por artistas plásticos e cedidas a associações e centros

comunitários de bairros periféricos. O colectivo desenvolve ainda nessas comunidades laboratórios de

reciclagem onde os jovens aprendem a utilizar não só Linux mas também o próprio processo de

reciclagem de PCs, demonstando e remontando os computadores. Pretende-se assim fomentar a

reapropriação da tecnologia visando a transformação social.

Uma das influências na criação do MetaReciclagem foi o Lowtech.org345, uma ONG britânica surgida

em 1997 a partir do grupo de artistas Redundant Technology Initiative (RTI) de Sheffield que recicla

computadores doados e resgata componentes informáticos da sucata para desenvolver manifestações

artísticas a partir destas máquinas como instalações de video-walls, trabalhando também

exclusivamente com software livre. Possui um laboratório de media, o Access Space, onde

disponibiliza acesso à população e ministra cursos de formação em tecnologias aplicada às artes.

2.1 – Eventos e Projectos

Tendo em conta a visibilidade que o MetaReciclagem obteve - sobretudo graças aos apoios junto de

autarquias, ONGs e do governo346 -, grande parte dos projectos desenvolvidos no Metáfora caíram

num relativo esquecimento. Questionado sobre as razões da projecção pública do MetaReciclagem em

particular. Felipe Fonseca sugere como um dos motivos o facto de os outros projectos terem sido

muito abstractos, ao passo que a metodologia da reciclagem de computadores teve sempre uma

aplicação mais concreta:

A (actividade) da MetaReciclagem, apesar de ter vários níveis de compreensão, pode ser entendida mesmo por quem não tem nenhum interesse em media alternativos, activismo ou acção social. Trata-se da desconstrução de tecnologias que costumam ser vistas como monolitos inalcançáveis. O funcionamento é esmiuçado, novas combinações são propostas. A 'tecnomagia' está ao alcançe de qualquer um e de todos. Os apoios que a MetaReciclagem alcançou em diversas instâncias da sociedade - instituições e governo – se devem em grande parte à sua facilidade de entender pelo menos uma parte dela (Fonseca, 2005b)

Ao analisarmos as mensagens trocadas na lista e as páginas da wiki concluímos, no entanto, que o

Metáfora não deve ser encarado como um mero “embrião” do MetaReciclagem.. Deste modo, é nossa

345 Site disponível em http://www.lowtech.org. Durante as discussões na lista que deram origem ao MetaReciclagem, Schepop indicou o exemplo desta ONG como uma possível referência para o novo projecto (mensagem nº 335 e 553.

346 Ver o arquivo de notícias publicadas sobre o MetaReciclagem em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/Clipping.

210

intenção demonstrar nas próximas páginas a importância das outras iniciativas esboçadas ou

implementadas pelo colectivo do Metáfora, na medida em que – em alguns casos - subsistiram por si

próprias, mas sobretudo, porque as suas ideias e práticas marcaram não só o ambiente dos media

tácticos brasileiros, mas também as próprias políticas públicas de tecnologias da informação e

comunicação do Brasil, nomeadamente, a nível governamental.

A primeira iniciativa que resultou do Metáfora foi o BlogChalking347, um sistema de busca no

Blogger348 que permitia procurar blogs por país, cidade e até por bairro a partir de um motor de

pesquisa, utilizando meta tags349. Baseado no sistema Warchalking de símbolos feitos com giz nas

paredes de prédios ou no chão das ruas para assinalar a existência de pontos de acesso sem fios à

Internet desprotegidos, esta pequena ferramenta criada por Daniel Pádua a 5 de Julho de 2002 obteve

um enorme sucesso por todo o mundo350. Em poucos dias, o site subiu ao primeiro lugar das listas dos

links mais citados pelos blogs de todo o mundo, como o Daypop e o Blogdex, tendo sido ainda

divulgado em vários grandes órgãos de comunicação social brasileiros como os jornais O Globo e

Estado de S. Paulo. Actualmente, o Blogchalking continua a ser empregue por muitos bloggers351.

Pádua explicou-nos que se tratou de "uma brincadeira massiva de auto-localização geográfica". Na

sua opinião, a exposição alcançada pelo sistema nos media comerciais ofereceu uma maior

visibilidade ao Metáfora, o que levou a um rápido crescimento do número de assinantes da lista.

Outro membro da lista, Tupi Namba, sugeriu algumas semanas mais tarde, a 24 de Julho, uma

347 Site disponível em http://www.blogchalking.com. A versão original ainda está disponível em http://www.blogchalking.tk. A página do projecto na wiki do Metáfora está disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?BlogChalking. Foi também criado um blog para anunciar as novidades do projecto em http://blogchalking.blogspot.com.

348 Serviço de alojamento gratuito de weblogs. Disponível em http://www.blogger.com. 349 Dados inseridos no código HTML de páginas Web que descrevem os dados aí contidos. 350 Pádua explica o funcionamento do BlogChalking numa mensagem enviada para a lista Metáfora :

Já há algum tempo, eu sinto falta de um sistema de busca no Blogger que me permita procurar blogs por país, cidade e até bairro. Qual seria a graça desse sistema? Bom, eu leio o blog de vocês, fico conhecendo um pouco mais destes seres humanos e a distância impede muitas vezes encontros reais que poderiam trazer vários momentos felizes para a minha vida. Mas, se eu pudesse também vasculhar a rede em busca de pessoas próximas de mim (mesma cidade no mínimo), isso aumentaria o potencial de interconexão (...) E também seria legal se quando eu entrasse num blog desconhecido, ao passar o mouse sobre uma gif - imagem - no blog, a caixinha alt da gif exibisse um rápido sumário sobre aquela pessoa, tipo língua que ela fala, cidade que mora, idade, etc.

Daí que observando a lógica do 'todo-mundo-se-ajuda' do http://warchalking.org eu pensei: porque não criar um sistema que possibilite às pessoas colaborar umas com as outras para gerar essa mútua indentificação? (...) A idéia é que, dentro de umas duas/três semanas depois da inserção da meta tag, seja possível entrar no Google, por exemplo, e fazer uma busca assim: blogchalk 21-25 Brazil Belo Horizonte o que me retornaria uma lista de blogs de pessoas de 21 a 25 anos que moram aqui em BH.

Ver cópia da mensagem em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?BlogChalking%2FSumario.351 Uma pesquisa pelo termo "blogchalk" efectuada a 23 de Janeiro de 2006 no Google indicava 514 mil resultados.

211

derivação do projecto, o Blogchalking Reverse352, que consistia numa tentativa de transpor o sistema

de identificação online de bloggers para o ambiente offline, através de uma linguagem de símbolos de

giz, tal como o Warchalking. Da mesma forma que o Blogchalking utilizava sinais offline para

localizar blogs no ambiente online, o Blogchalking Reverse visava localizar blogs no mundo real

empregando símbolos da Web. A segunda versão do site blogchalking.tk lançada por Pádua a 19 de

Agosto incluia já o alfabeto hobo proposto por Tupi Namba.

Outro projecto que, tal como o Blogchalking, também se autonomizou do Metáfora foi o

MetaONG353, uma comunidade de notícias e informações sobre e para o sector das organizações não-

governamentais sem fins lucrativos que surgiu a partir de uma ideia de Felipe Albertão354. O projecto

resultou de outra acção do Metáfora, o MetaComunidade355, iniciada por Felipe Fonseca e que

consistiu numa adaptação para o português do Brasil, tendo em conta as necessidades das

comunidades locais do país, do software open-source Drupal de gestão e produção de conteúdos

online que permite um modelo de publicação e edição aberta semelhante ao Kuro5hin e ao Digg, onde

qualquer utilizador pode submeter notícias e outros artigos, que serão moderadas pelos outros

utilizadores: as notícias vão para uma fila e os utilizadores aprovam quais os artigos que serão

incluídos na página inicial e os que são eliminados do arquivo do site. Actualmente (Janeiro de 2006),

o site permanece ainda em funcionamento, embora com um nível reduzido de actualização. No total

foram ai publicados até hoje 742 textos, encontrando-se estes dividindo nos seguintes assuntos:

ambientalismo (56), captação de recursos (45), cidadania (115), cultura (40), desenvolvimento

sustentável (72), ecologia digital (4), empreendedorismo (121), gestão (55), inclusão digital (92),

informática (12), legislação (7), microcrédito (22), política (13), sustentabilidade (22) e voluntariado

(42). Notícias (184), estudos de caso (146) e artigos (129) são o tipo de conteúdos mais

predominante.

A Buzzine356 foi outro projecto criado no seio da "incubadora colaborativa" chamada Metáfora,

segundo a expressão de Hernani Dimantas (2004), de quem partiu a ideia desta revista electrónica.

Esta e-zine inspirava-se na ética open-source e no modelo de negócios introduzido pelo Manifesto

Cluetrain, uma das principais referências da nova economia da Internet e outra das grandes

352 Página do projecto no Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?BlogChalking%2FTarefa006. Arquivo do site disponível em http://web.archive.org/web/20030605130557/http://www.dpadua.org/blogchalking/reverse.

353 Site disponível em http://www.metaong.info.354 Ver mensagem nº 588 de 16 de Julho de 2002 e 2400 de 6 de Setembro de 2002 do arquivo da lista Metáfora. 355 Página do projecto na wiki do Metáfora disponível em

http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?MetaComunidade. Ver mensagem nº 314 enviada para a lista por Felipe Fonseca a 11 de Julho de 2002.

356 Ver arquivo do site em http://web.archive.org/web/20040526094553/http://www.buzzine.tk/. A página da Buzzine na wiki do Metáfora está em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?Buzzine.

212

influências do Metáfora357. Baseada na plataforma Drupal, a Buzzine permitia a publicação de um

modo aberto de artigos de opinião e notícias sobre os mercados e a cultura digital, sendo a moderação

efectuada colectivamente. No cômputo geral, contudo, a participação na revista electrónica foi

escassa, tendo o nível de actualização sido reduzido, o que levou ao seu desaparecimento em 2004.

No ano seguinte, Dimantas retomou o nome para o seu novo blog individual358.

Um dos projectos do Metáfora especificamente no domínio da arte e tecnologia foi o Memelab359, que

partiu de uma ideia de Bernardo Schepop. Inicialmente designado de GrafoConexo360 ou MetaMedia

Lab, a iniciativa destinava-se à realização de intervenções artísticas e a experimentações mediáticas

de forma colaborativa relacionadas com interacção, arte e narrativas não-lineares em ambientes

digitais. Como se pode ler no texto de apresentação disponível na wiki, o Memelab pretendia ser um

espaço "aberto à experimentação, na interacção homem-máquina, indivíduo-conhecimento, indivíduo-

ambiente, indivíduo-indivíduo, sempre procurando explorar diferentes maneiras de 'contar uma

história', seja esta ficcional ou real, individual ou colaborativa"361. O ênfase era dado mais uma vez ao

software livre, a soluções não proprietárias e a licenças de autoria semelhantes à GPL. Todas as obras

e intervenções elaboradas no âmbito do Memelab deveriam ser assinadas em nome colectivo dado

que "a autoria, no âmbito artístico, tende a uma individualização da obra, o que não nos interessa".

Este questionamento da conceito de propriedade intelectual está bem patente em Wikifiction, uma

wiki de experimentações narrativas ficcionais baseado num cenário de fragmentação da comunicação

e de caos semiótico que apresentava um modelo semelhante ao colectivo italiano Luther Blissett de

produção descentralizada, onde se tornava impossível designar o autor de uma ideia e a obra criativa

deixava de ser algo estável e perene. Esta wiki, contudo, já não está online362. Apesar dos planos

ambiciosos do Memelab - pretendia-se estabelecer uma rede de parcerias com instituições

357 O manifesto, escrito por Chris Locke, David Weinberger, Doc Searls e Rick Levine, decreta o fim da estrutura tradicional do sector empresarial devido ao impacto da Internet que potencia o surgimento de um mercado interconectado, aberto e transparente e uma comunicação directa entre os consumidores e as organizações. As novas tecnologias estão a levar as pessoas a compreenderem que "os mercados são conversações": “Começou uma poderosa conversa global. Através da Internet, as pessoas estão a descobrir e a inventar novas modos de partilhar rapidamente conhecimento relevante. Em resultado directo disso, os mercados estão a ficar mais espertos — e mais espertos que a maioria das empresas". O documento surgiu pela primeira vez online em Abril de 1999 em http://www.cluetrain.com. O site contém uma versão portuguesa que foi traduzida por Felipe Albertão do Metáfora: http://www.cluetrain.com/portuguese/index.html. Em 2000 foi publicado em livro pela editora Perseus com o subtítulo The End of Business as Usual ("O Fim dos Negócios como os Conhecemos"), que desenvolve as 95 teses do manifesto.

358 Site disponível em http://www.buzzine.info.359 Site disponível em http://www.memelab.org. A wiki do Memelab está disponível em http://wiki.memelab.org. 360 Ver mensagem nº 1974 de 24 de Agosto de 2002 em que Schepop publica uma definição de grafo e grafo conexo. 361 Schepop aborda um pouco mais em detalhe as ideias sobre a relação entre arte e tecnologia que deveriam guiar o

MemeLab no documento de apresentação Memefesto onde faz referência à obra pioneira de RoyAscott no domínio da telemática durante os anos 60 e à questão da poética tecnológica. Ver texto em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?memeFesto.

362 Página do projecto na wiki do Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?WikiFiction. Ver cópia de arquivo da wiki em http://web.archive.org/web/20030813055806/wikifiction.memelab.org/HomePage.

213

estabelecidas e convidar artistas para a elaboração de pesquisas e trabalhos comuns -, o projecto não

chegou a registar muita actividade, continuando após o fim do Metáfora como espaço de alojamento

de iniciativas individuais de Schepop e de outros membros do Metáfora, como o Colectivo de

Histórias Digitais de Tatiana Wells, que produz e recolhe narrativas digitais colaborativas de cariz

literário ou jornalístico a partir de histórias pessoais elaboradas por jovens da periferia de São Paulo

em workshops como os do Autolabs363.

Para além destes, o Metáfora também contava com projectos de cariz mais activista, como o

Recicle1Político364, uma iniciativa que teve origem numa proposta de Tupi Namba através de uma

mensagem enviada para a lista Metáfora a 2 de Outubro e visava alertar para a poluição visual gerada

pela propaganda política e para o desperdício que esta representava através da recolha dos cartazes,

faixas, panfletos e outro ‘lixo’ composto de material impermeável e não-biodegradável deixado pelas

ruas das cidades nas vésperas das eleições presidenciais brasileiras de Outubro e Novembro de 2002.

Depois de recortado, o material seria reciclado e reaproveitado, transformando-o em arte urbana, land

art e instalações de arquitectura nómada como um circo, máscaras, um acampamento para os sem-

terra, cabanas para os sem-abrigo, toldos para bailes funk, concertos de hip-hop, moínhos de vento,

entre outros objectos. Este tipo de zonas temporárias autónomas (TAZs) decorreram em São Paulo e

Belo Horizonte365. Nesta última cidade, o Recicle1Político terminou com uma intervenção no âmbito

do evento ProvOs366 de Novembro de 2002, coordenado por Daniel Pádua e Adriana Veloso – que

também fazia parte do Metafóra. Este festival, o primeiro de media tácticos no Brasil, abrangeu um

conjunto de acções descentralizadas semelhantes a TAZs visando a democratização da informação e

do acesso aos media367. Numa acção de reciclagem de cartazes, o colectivo artístico local Renúncia

realizou uma instalação denominada “Argumentos” no edíficio que alojava o evento368, enquanto que

o artista plástico André construiu máscaras com mensagens de crítica social a partir de autocolantes

dos candidatos eleitorais369. Apesar do fim do Metáfora, o Recicle1Político foi retomado em Agosto

363 Antes das oficinas dos Autolabs, Wells tinha já coordenado outra iniciativa no âmbito do CHD ainda durante o período do Metáfora, o Livro Vivo, que visava resgatar a história das famílias dos jovens pertencentes a comunidades periféricas, ensinando-os simultaneamente a trabalhar com as novas tecnologias. Foi assim realizado um workshop de literatura interactiva com os alunos do Instituto Dom Bosco, uma ONG de apoio a crianças e jovens de famílias em situação de exclusão social em São Paulo. Ver página do Livro Vivo na wiki do Metáfora em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?LivroVivo.

364 O site do projecto já não se encontra disponível, mas é possível consultar a sua página na wiki do Metáfora em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?Recicle1Politico.

365 Ver registos das acções em São Paulo em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?Recicle1politico.tk%2Facompanhe. Algumas imagens das colchas de retalhos elaboradas com o material reciclado em Belo Horizonte estão disponíveis em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?Recicle1Politico%2FEstrategia.

366 O nome destinava-se a homenagear o movimento ProvOs de contracultura surgido na Holanda nos anos 60.367 Incluem-se aqui mesas redondas sobre software livre, media tácticos e rádios comunitárias e livres, peças de teatro,

declamação de poesia, uma exposição do artista gráfico Latuff e um workshop de edição e produção mp3 com o colectivo Re:combo, para além de intervenções urbanas anti-propaganda por parte do grupo local Renúncia. Para acompanhar a programação do ProvOs foi criado um blog que pode ser acedido em http://prov0saction.blogspot.com. Ver, em especial, o arquivo de Novembro de 2002.

368 Ver imagens da instalação em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2002/11/42706.shtml. 369 Ver imagens das máscaras de André em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2002/11/42711.shtml.

214

de 2004 pelo movimento Midia Tatica Brasil370.

Inserindo-se também no domínio do activismo mas de uma forma mais simbólica, o Protest'o'371 foi

um projecto individual criado por Tatiana Wells nas vésperas da Guerra do Iraque. Depois de ter

recebido por email várias cartas de protesto contra a guerra, Wells decidiu construir uma página na

wiki do Metáfora para disponibilizar essas mensagens de forma a que não perdessem o seu valor ou

fossem consideradas fenómenos isolados e onde qualquer pessoa podia também publicar o seu

depoimento contra a guerra ou links para notícias sobre manifestações de protesto que iam ocorrendo

em todo o mundo, bem como convidar amigos e conhecidos a participarem na iniciativa a partir de

um modelo de uma mensagem-convite.

É necessário reconhecer, contudo, que no cômputo geral o número de projectos do Metáfora que

ficaram meramente sob a forma de rascunhos na wiki foi bastante superior ao dos que foram

concretizados na prática. Um desses projectos foi o GASLI (Grupo de Argumentação para o

Software Livre)372, grupo de trabalho e pesquisa que apenas começou a ser iniciado e visava a criação

de um site que serviria para esclarecer a opinião pública brasileira das vantagens do software livre. Na

altura, antes da subida ao poder do governo de Lula e do PT, um grupo de deputados do Congresso

brasileiro estava a tentar a aprovação de um projecto de lei que tornaria prioritária a utilização de

alternativas livres no Estado. Funcionando como um instrumento de lobbying, o site deveria incluir

um guia que explicaria o conceito de software livre e recolheria os argumentos técnicos, sociais e

económicos para a utilização deste tipo de aplicações informáticas, para além de notícias e ligações

para estudos e pesquisas semelhantes, bem como um abaixo-assinado. Todo este material seria no

final enviado aos deputados e media comerciais.

Mas a importância concedida ao conceito de conhecimento livre não se restringia apenas ao mundo do

software e da tecnologia. Desde o início, aliás, se pôde sentir na lista uma forte pulsão para alargar a

filosofia do copyleft incorporada na GPL a domínios como a cultura e a educação. Um esforço nesse

sentido foi a MetaLicença373, uma licença de propriedade intelectual criada por Felipe Fonseca em

Julho de 2002 que deveria abranger todos os documentos publicados na wiki do Metáfora e os

projectos criados a partir daí. Antes mesmo da introdução de uma versão das licenças Creative

Commons no Brasil374, a MetaLicença autorizava o acesso, reprodução e modificação de todas as

370 A página que alojava esta iniciativa, http://recicle1politico.midiatatica.org, já não se encontrava, porém, disponível em Janeiro de 2006-

371 Página na wiki do Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?Protest%B4o%60.

372 Página na wiki do Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?GASLi. Uma cópia de arquivo do site original do projecto está disponível em http://web.archive.org/web/20030901123624/http://gasli.tk.

373 Página na wiki do Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?MetaLicenca.374 O processo de adaptação da Creative Commons, efectuado pela Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro,

215

obras licenciadas nos seus termos desde que a sua autoria fosse atribuída ao criador original e que não

fossem disponibilizadas sob a forma de conteúdo fechado ou pago. Contudo, este projecto nunca

chegou a ser completado.

Outro projecto que ficou pelo caminho foi o MetaLearning375, um sistema de aprendizagem

distribuída que se pretendia que fosse uma aplicação prática das ideias teorizadas na lista a este

respeito. Baseado no MetaComunidade, o MetaLearning partia do pressuposto que “cada indíviduo

que trabalha em qualquer área tem o potencial de se tornar num educador nos seus assuntos de

interesse”, possibilitando que estas pessoas actuassem como “facilitadores de conhecimento”. Este

conhecimento compartilhado seria permanentemente avaliado pelos outros utilizadores e o que fosse

considerado como válido seria ao fim de um certo tempo disponibilizado a todos. Os participantes

podiam escolher o que aprender e com quem, bem como os assuntos sobre os quais desejavam falar,

sem distinção entre professor e aluno. A aprendizagem seria realizada entre pares ou grupos auto-

definidos. A avaliação assentaria num sistema de reputação por pontos – karma – semelhante ao do

Slashdot.

À medida que o Metáfora ia crescendo quer em número de sub-projectos, como de mensagens

trocadas na lista e de participantes inscritos, foram sendo criados núcleos especializados de modo a

auxiliar as outras iniciativas. Um deles foi o MetaDev376, o núcleo de desenvolvimento tecnológico do

Metáfora, composto por programadores e outros voluntários dotados de uma formação especializada

que davam resposta às necessidades técnicas de outros projectos, como a construção de módulos

adicionais377 para o MetaComunidade. Tendo em conta o esquema da tríade, o MetaDev representava

assim a infra-estrutura lógica do Metáfora. Apresentando-se como “os arquitectos da caordem”

Metáfora, o MetaMeme378, por seu lado, estava encarregado da comunicação do grupo com o mundo

exterior, para fins de divulgação, obtenção de recursos financeiros e captação de novos voluntários

não-inscritos nas listas de discussão. Este núcleo organizava e distribuía ainda toda a informação

necessária sobre os projectos do colectivo, para além de assumir o contacto com os media comerciais.

2.2 - A Participação no Midia Tática Brasil

A participação do Metáfora no festival Midia Tática Brasil, em São Paulo, no mês de Março de 2003,

assegurou uma maior projecção pública ao projecto, apenas conhecido até então por um núcleo

iniciou-se em Maio de 2003 e a sua implementação ocorreu em Junho de 2004. Ver arquivo da lista de discussão em http://lists.ibiblio.org/pipermail/cc-br/ e site da Creative Commons Brasil em http://www.creativecommons.org.br/.

375 Página na wiki do Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?MetaLearning.376 Página na wiki do Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?MetaDev.377 Página na wiki do Metáfora disponível em

http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?MetaForaComunidade%2FModulos.378 Página na wiki do Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora.wiki/index.php?MetaMeme

216

restrito de pessoas – sobretudo bloggers, uma vez que os dois fundadores do colectivo mantinham

blogs379. Numa sala da Casa das Rosas, a sede do evento, o colectivo montou um laboratório com

computadores reciclados – um servidor e cinco estações de trabalho – ligados em rede a partir dos

quais os visitantes podiam aceder às páginas dos projectos na wiki380. Apesar da apresentação ter sido

um pouco desorganizada381, os workshops sobre colaboração online desenvolvidos no âmbito do

programa do festival em três telecentros da Prefeitura de São Paulo em Guaianases, Lajeado e Cidade

Tiradentes foram bastante importantes na medida em que representaram a concretização de uma das

premissas iniciais do projecto: o contacto directo com a periferia e as suas comunidades. Alguns dos

assuntos abordados foram as ferramentas de construção colaborativa do conhecimento como os blogs,

as wikis e os fóruns de discussão, a reputação, o conhecimento livre e as trocas de informação. Os

participantes nos workshops puderam, mediante registo, participar num site colaborativo382

desenvolvido previamente, baseado na plataforma Drupal. Para além de permitir a publicação de um

blog pessoal, possibilitava ainda outras formas de acção como um livro colaborativo, sala de

conversa, fóruns, publicação de artigos, mensagens pessoais e agregação de conteúdos através de

RSS. Contudo, o comportamento dos utilizadores face à tecnologia disponibilizada gerou alguma

frustração junto dos voluntários do Metáfora, como relata Felipe Fonseca: “Eles entravam, escreviam

um pouco sobre as suas vidas, comentavam o que os outros escreviam. Mas depois de alguns minutos,

muitos deles voltavam ao bate-papo do UOL ou a algum site de notícias” (2003c). Essa

“subutilização” da tecnologia devia-se, na sua opinião, ao facto de as pessoas não estarem

acostumadas a escrever livremente desde a escola, ao nível de experiência que os ambientes

colaborativos exigiam e à falta de intuitividade da interface dos sistemas de colaboração para os

leigos (idem). Apesar dos resultados da iniciativa terem ficado àquem do previsto, as lições retiradas

daí seriam aproveitadas em projectos do MetaReciclagem, após o fim do Metáfora.

2.3 – A Tentativa de Criação de uma ONG e o Fim

Com o desenrolar das conversas e o crescimento do número de esboços de projectos, surgiu também a

ideia de conceder um carácter mais institucional ao Metáfora e às suas iniciativas, através da criacção

de uma organização não-governamental e sem fins lucrativos que servisse para angariar recursos

financeiros de modo a colocar em prática as iniciativas do colectivo. Houve, contudo, desde sempre

379 Deve-se também salientar aqui a reputação que Hernani Dimantas granjeava na época na Internet brasileira graças ao seu blog Marketing Hacker (www.buzzine.info/marketinghacker), que veio a dar origem ao livro com o mesmo nome e o subtítulo A Revolução dos Mercados, publicado em 2003 pela editora Garamond. Outro blog que contribuiu para a divulgação do Metáfora foi o Interney (www.interney.net) de Edney Souza, que em Fevereiro de 2006 surgia em oitavo lugar na lista TopLinks dos sites com maior número de ligações (280 – à frente de todos os outros blogs) por parte dos bloggers brasileiros desde todos os tempos, disponível em http://toplinks.idearo.com.br/todos.php.

380 Ver mensagem nº 6748 enviada para a lista por Bernardo Schepop, fazendo o balanço da primeira reunião física oficial do Metáfora a 24 de Fevereiro de 2003 no “galpão” do Agente Cidadão.

381 Como reconheceu mais tarde Felipe Fonseca (2003c). 382 Cópia de arquivo disponível em http://web.archive.org/web/20030608043454/www.memelab.org/telecentros.

217

uma forte divisão no interior do grupo face a essa questão da institucionalização. Aliás, como iremos

referir mais a frente na análise dos questionários realizados aos antigos integrantes do projecto, vários

dos inquiridos mencionam a tentativa de constituição de uma ONG como factor motivador de

disputas internas. Com efeito, se a dissolução do grupo se deveu directamente à desistência de Felipe

Fonseca do cargo de moderador das listas e dos projectos, podemos, no entanto, concluir que a

decisão de Fonseca teve origem numa situação de atritos que já se arrastava desde há alguns meses,

somada à multiplicação caótica de projectos colectivos ou individuais associados ao Metáfora.

A vontade de constituir uma ONG a partir do Metáfora surgiu logo no início do projecto. O primeiro

membro do colectivo a colocar esta hipótese na lista foi Daniel Pádua, na mensagem nº 130 datada de

5 de Julho de 2002:

Uma ONG para distribuir computadores 'open-sourced' já preparados para funcionar em redes livres?

Uma ONG para divulgar e ensinar tecnologia aberta na sociedade, através de palestras e workshops de grátis (oo não)?

Uma ONG para fomentar um debate sobre a evolução da inteligência coletiva na sociedade brasileira (inicialmente, mas quem sabe na sociedade mundial)?

Uma ONG para educar os partidos políticos, o congresso e o escambau a quatro(...)?

Uma ONG para pensar, propor, desenvolver e experimentar meios de um cotidiano 100% online?

Face a este repto lançado por Pádua, outros elementos tinham, porém, uma posição mais cautelosa: Colacino

considerava que seria mais adequado numa fase inicial conceber o Metáfora como uma ONG virtual que

desenvolvia “projectos .ORG” e mobilizava pessoas em torno dessa causa, estabelecendo progressivamente

ligações e contactos com o resto da sociedade: associações, empresas, universidades e media comerciais, em

vez de uma ONG tradicional, não descurando no entanto a hipótese de o projecto evoluir nesse caminho383.

Fonseca assertou que a ideia da institucionalização seria ainda um pouco precipitada e sugeriu desdobrar as

ideias propostas por Pádua em projectos individuais384. Felipe Albertão colocou a possibilidade de o grupo

fundar uma ONG especificamente direccionada para a prestação de serviços de formação, consultoria e

assistência técnica em informática utilizando open-source para outras instituições não-lucrativas385. O assunto

foi, no entanto, esquecido nas semanas seguintes.

Retomando esta questão a 4 de Setembro a propósito da doação de computadores reciclados para concretizar

os planos do MetaReciclagem, Bernardo Schepop salientou a necessidade de formalizar o Metáfora sob a

383 Ver mensagens nº 293 de 11 de Julho e 473 de 15 de Julho de 2002.384 Ver mensagem nº 321 de 11 de Julho de 2002. 385 Ver mensagens nº 327 de 11 de Julho, 330 de 12 de Julho e 482 de 15 de Julho de 2002. Albertão veio inclusive a

criar um projecto na wiki do Metáfora relativo à formação de uma ONG que prestaria serviços de consultoria em software open-source a outras ONGs através de voluntários com formação técnica adequada, o UnusMundus, em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?UnusMundus.

218

forma de uma ONG que se responsabilizasse pelos compromissos assumidos com as empresas doadoras, de

forma a que estas se assegurassem que qualquer utilização das máquinas cedidas não pudesse resultar num

processo legal contra elas. Alertou contudo para o facto de que a institucionalização do Metáfora poderia

acarretar, por um lado, uma lentidão burocrática que atrasaria a velocidade de difusão de novas ideias e, por

outro, um fechamento do ambiente aberto e colaborativo do projecto. Outra alternativa seria continuar como

um colectivo que apoiasse iniciativas de outras entidades, embora isso significasse um menor grau de

autonomia, pois os voluntários teriam que “depender sempre de uma segunda instituição para assinar e

assumir as consequências”. Face a este dilema, Schepop perguntava se havia um caminho intermédio386.

Essa via é desenvolvida por Felipe Fonseca através de um plano que passava pela criação de ONGs

independentes do colectivo por alguns dos elementos individuais do Metáfora de forma a implementar

projectos específicos – em linha com a ideia proposta semanas antes por Albertão. Mais do que uma TAZ

efémera ao jeito do modelo teorizado por Hakim Bey (2001 [1991]) ou uma ONG com estatuto e regras, o

Metáfora seria, na sua opinião, “uma nuvem espalhando-se sobre ONGs, prefeituras, associações de bairro,

empresas e cada um de nós” ou ainda “uma biblioteca onde a gente pega as ideias e escolhe as pessoas para

desenvolver cada uma delas, mas não a estrutura que viabiliza cada uma delas”387.

Adriana Veloso, por seu lado, afirmava: “Gosto da caordem daqui e não me agrada a institucionalização

deste projecto, mas todos passamos por isso. Há modelos organizacionais horizontais, que funcionam por

consenso que acredito serem mais interessantes”388. A necessidade a médio prazo de captar apoio financeiro,

receber equipamentos e de garantir a protecção legal dos projectos desenvolvidos obrigava, contudo, para

Paulo Colacino, à constituição de uma ONG. Na sua opinião, era possível montar uma estrutura económica

que permitisse a viabilização das actividades do grupo e manter a criatividade sob a forma do “xemelê de

ideias” na lista e na wiki389. Antes da formalização em larga escala do núcleo do colectivo, deveria-se,

contudo, segundo Daniel Pádua, pensar primeiro em implementar um trabalho comunitário concreto e que,

para tal, não seria preciso uma estrutura jurídica que levaria obrigatoriamente a uma perda de espontaneidade

e capacidade de transformação da comunidade. Assim, numa perspectiva “caórdica”, o Metáfora funcionaria

como uma conversação livre empregando ferramentas online a partir da qual surgiriam núcleos

descentralizados mas interligados entre si através de um consenso gerado na lista. Estes núcleos poderiam ser

formalizados pelos interessados, podendo outras pessoas que quisessem participar juntar-se a essa

entidade390.

Esse seria o modelo a ser seguido até ao fim do Metáfora, em projectos como o MetaONG e o

MetaReciclagem, embora ambos nunca tenham chegado a efectivar uma verdadeira

institucionalização. Em vez disso, no caso deste último em particular, o colectivo estabeleceu uma

relação de colaboração com uma ONG, o Agente Cidadão, através do qual recebeu as suas primeiras

doações de computadores. Houve, contudo, nos últimos meses do Metáfora, um esforço concreto de

386 Ver mensagem nº 2326 de 4 de Setembro de 2002. 387 Ver mensagens nº 2330, 2331e 2358 de 4 e 5 de Setembro de 2002. 388 Ver mensagem nº 2332. 389 Ver mensagem nº 2357 de 5 de Setembro. 390 Ver mensagem nº 2373 de 5 de Setembro.

219

criação de uma entidade sem fins lucrativos. Para tal, foi aberta uma lista de discussão separada da

principal – da qual já não existe registos -, de acesso restrito e Bernardo Schepop chegou mesmo a

redigir um estatuto e organigrama da futura instituição que se deveria chamar Co:Lab391. A ONG

deveria destinar-se ao desenvolvimento de projectos e redes sociais colaborativas, tendo por

objectivos a realização de estudos e pesquisas em tecnologias livres e abertas de modo a fomentar o

desenvolvimento social, o apoio especializado de outras ONGs, a promoção da partilha livre do

conhecimento e a defesa dos direitos civis. Schepop recorda esse período no questionário que

realizámos:

Quis muito que o Metáfora se viabilizasse como uma alternativa. Cheguei a elaborar junto com os demais um possível estatuto para uma futura ONG Metáfora. Isso envolveu um grande número de encontros e debates (...) O grupo concluiu que seria melhor não oficializarmos nada. Deixar o Metáfora neste instante flutuante (...) Mas, neste ponto, sem intenções de se estabelecer definitivamente, o 'projecto' diluiu-se

Num texto escrito em 2005 onde faz um resumo da história do Metáfora, Felipe Fonseca dá a

entender que a ONG não foi a avante devido a outros problemas gerados dentro do grupo392:

Complicações em alguns projectos começaram a acicatar atritos que até então estavam sublimado, as brigas feias começaram a acontecer quase diariamente. Percebemos que uma ONG não era o caminho. A nossa principal força eram as acções descentralizadas mas coordenadas. Mas os atritos persistiram ainda por algum tempo (Fonseca, 2005).

Em entrevista, Fonseca acrescenta:

Sempre tivemos essa predilecção pela mobilidade, pelo nomadismo psíquico como diz o outro... Hoje também vejo que, constituindo uma pessoa jurídica, é possível que tivéssemos que definir um foco de actuação mais limitado. Talvez tivéssemos escolhido trabalhar só com reciclagem de computadores. E isso teria limitado muito a nossa actuação (Fonseca, 2005b).

No início de Outubro de 2003, poucas semanas depois do seu regresso de Amesterdão para integrar a

delegação brasileira do festival N5M, Felipe Fonseca publicou uma mensagem na lista Xemelê e no

seu blog da altura, o hipocampo, a anunciar que desistia de ser moderador e que cedia essa função a

quem tivesse interessado393:

391 Ver página da wiki em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?Co%3ALab. O termo CoLab, que remete através do prefixo “co-” para companhia, cooperação e colaboração e através do sufixo “-Lab” para experimentação, pesquisa ou laboratório, foi também pensado por alguns elementos do colectivo – André Passamani/Maratimba e Felipe Fonseca - para designar um espaço que funcionaria como um misto de café, bar, restaurante, sala de conferências e debates, ponto de acesso à Internet sem fios e livraria/bibilioteca. Fonseca teve a ideia para este espaço, que serviria como “uma extensão das conversações online” após a sua participação em Setembro de 2003 no festival N5M, em Amesterdão (2005). Ver página relacionada na wiki do Metáfora em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?OpenSpace.

392 Um dos casos onde a tensão entre os elementos do grupo foi mais evidente consistiu nas discussões travadas na lista Xemelê em finais de Junho de 2003 a propósito do ConecTAZ, o evento que estava a ser planeado para Outubro/Novembro desse ano e que deveria marcar o lançamento da nova ONG CoLab.

393 Lamentavelmente, esta mensagem original já não está disponível excepto no texto posterior que Fonseca escreveu.

220

Como eu acredito que vocês devem ter percebido, a lista Xemelê parou. Quero contar para vocês o que eu estou fazendo a respeito: Nada. O fato é, eu cansei de ser moderador da Xemelê. Principalmente porque ela deixou de fazer jus ao nome. Não vi mais xemelê por ali, e não vou me esforçar em resgatar um cadáver (Fonseca, 2005).

No mesmo texto posterior já mencionado, Fonseca adianta uma das motivações por detrás dessa

decisão: “As brigas dentro da lista do ProjetoMetáfora tornaram-se diárias e eu continuava tentando

ouvir todos os lados antes de dar a minha opinião (...) Passava muito tempo tentando apaziguar as

brigas e não podia dedicar-me a nenhum projecto específico” (idem). Por outro lado, sentia que certos

participantes da lista estavam-se a apropriar do nome do projecto e da sua reputação para se

apresentarem em iniciativas individuais como 'integrantes do Metáfora' sem terem realizado um

trabalho válido no interior do colectivo”. Na sua opinião, o Metáfora era um conceito de producção

colaborativa e não um grupo de acção, sendo composto por colaboradores e não por membros. “Peço

mais uma vez: não usem o nome do projetometafora. Minha opinião: Ninguém pode se definir como

Fulano do MetaFora ou vender o nome do metafora como realizador de um projeto. Não o façam e

não aceitem que o façam” (idem). De um modo aparentemente involuntário, contudo, pode-se

concluir que o gesto de Fonseca precipitou o fim do projecto. “Para minha decepção, depois dessa

mensagem recebi quase uma dezena de e-mails de membros-chave do projecto dizendo que também

estavam cansados das brigas e que saíriam comigo do ProjetoMetaFora”, escreveu ele mais tarde

(idem). Pode-se ver por aqui que apesar da valorização atribuída à abertura e à colaboração, o papel

de coordenador de todos os sub-projectos desempenhado por Fonseca era considerado essencial pelos

outros voluntários. Para assinalar a despedida do Metáfora foi colocado um texto na página inicial do

site do Metáfora:

MetaFora não é mais o que era. A máfia que controlava as senhas foi pra Croatã. Deixaram algumas coisas de herança para o mundo:

- Um wiki recheadaço. - Uma pá de idéias para projetos coletivos. - Um método de produção colaborativa. - Os arquivos das listas MetaFora e Xemele. - Três listas em funcionamento: infrafísica, infralógica e ações.

Apropriem-se.

Alguns projetos que nasceram aqui e descolaram como esporos de uma samambaia:

- MetaReciclagem. - MeMeLab. - Co:Lab. - Buzzine. - MetaOng. - MidiaTaticaBrasil

221

Estão sendo realizados eventos abertos em todo o mundo para comemorar o fim da ditadura no MetaFora.

Se fores justo, serás avisado394.

O título original do texto, “Dispersando, cambada!” foi depois alterado para “Reagrupai e esporificai-vos”,

por sugestão de André Passamani/Maratimba. A frase sintetiza com clareza aquilo que foi desde o princípio a

filosofia de actuação, o lema do projecto Metáfora, de servir como incubadora de projectos colaborativos que

deveriam crescer e replicar-se de uma forma autónoma por toda a sociedade.

2.4 - Liderança e Motivação numa “Caordem”

O texto de despedida do Metáfora também remete para as relações de liderança no interior do projecto

– ainda que de forma invertida e com uma grande dose de auto-ironia... Felipe Fonseca assumiu desde

o início a função de “ditador benevolente”395. Humoristicamente e com camaradagem, muitos

elementos do Metáfora reconheciam-no legitimamente como tal396. Porém, o único poder efectivo que

Fonseca chegou a exercer, e apenas durante um curto período de tempo, foi o de moderar as

mensagens enviadas pelos novos subscritores da lista. O termo “ditador benevolente” está associado

ao papel desempenhado pelo líder ou comité de líderes nos projectos de software livre que decide em

definitivo quais as peças de código a integrar na versão oficial do programa. Segundo Manuel de

Landa, estes “ditadores benevolentes” possuem uma autoridade inquestionável que lhes advém do

facto de facilitarem e fomentarem a criação de uma comunidade de apoio ao projecto e não tanto de

concentrarem em sim o processo de tomada de decisões (Landa, 2001). Tal como Eric Raymond

constatou a propósito do modelo de desenvolvimento implementado por Linus Torvalds no Linux –

baseado no lançamento constante de novas partes do código (release early, release often) e na

delegação de responsabilidades a outros interessados -, a existência de líderes é indispensável em

qualquer projecto de software livre, mesmo em colectivos com uma estrutura organizativa horizontal,

descentralizada e baseada no consenso. Do mesmo modo que no campo da programação informática,

no Metáfora Felipe Fonseca desempenhava esse cargo tentando ser o menos egocêntrico possível, no

sentido de promover a colaboração entre todos397, tendo apelado várias vezes aos outros voluntários

que assumissem a liderança das diferentes iniciativas do Metáfora de forma a levá-las a cabo:

O bom dos projetos colaborativos é a liberdade e toda aquela onda de inteligência coletiva e tal. Mas para começar qualquer projeto é necessária uma pessoa disposta a se

394 Uma cópia da página inicial do site do Metáfora está disponível em http://www.metareciclagem.org/metafora. 395 Ver a mensagem nº 96 de Felipe Fonseca enviada para a lista a 4 de Julho de 2002 em que este rectifica Paulo

Colacino por lhe ter chamado de Imperador. 396 Ver mensagens nº 149, 174, 220, 442, 501, 1268, 1699, 1708, 1771, 2186, 2197, 2971, 3567, 3925 e 6194 da lista

do Yahoo!. Ver também na lista Xemelê: http://amsterdam.servershost.net/pipermail/xemele_projetometafora.org/2003-June/000050.html e http://amsterdam.servershost.net/pipermail/xemele_projetometafora.org/2003-July/000413.html.

397 No decurso do projecto, foram sendo lançadas várias “pesquisas de opinião” de forma a aprovar, rejeitar ou escolher determinadas propostas que alguns dos voluntários sugeriam em relação ao núcleo central do Metáfora.

222

dedicar pelo menos a estimular a colaboração (...) É necessário (...) um 'champion', um líder para o projeto398.

Muitas vezes, porém, mesmo quando as ideias eram executadas na prática, havia uma tendência para

os projectos serem abandonados ou para evoluírem de uma forma independente do resto do grupo,

como Fonseca se queixava:

Já repeti um milhão de vezes que cada projeto precisa de um líder. As coisas têm funcionado assim, até agpra. Mas eu sinto a falta de um feedback para o grupo. Os projetos saem daqui e não voltam (...) acredito que o líder de cada projeto interno, ou o representante metafórico de cada projeto externo precisam relatar periodicamente por aqui o que acontece399.

Em contraste com esta posição estava Adriana Veloso, que questionava a noção de líder:

Num grado muito de concentrar as coisas em um indivíduo principalmente quando se trata de projetos colaborativos em que há nucleos (ou pelo menos pessoas) de diversos locais. Essa coisa de representatividade e liderança é resquício da nossa cultura política que precisa de uma hierarquia pra poder pensar em organização. Mas entendo o que vc quer dizer com o relato. Acho que em cada projeto há um nível de envolvimento que nem sempre é contínuo. As pessoas empolgam com as coisas e depois já tem idéia melhor ou outro o que fazer. É esse nível de envolvimento com o projeto e com o grupo que levam o indivíduo a dar esse feedback que você está sugerindo (...) Num sei se vocês repararam na organização do ProvOs, mas (...) tá todo mundo no mesmo nível como um rizoma. Num tem representatividade. As decisões são tomadas de acordo com o nível de envolvimento de cada um dos voluntários e está tudo aberto para críticas e ajuda400.

Em resposta, Fonseca retorquiu:

Concordo que projetos colaborativos têm como grande força a descentralização. Mas hás de concordar que, se não fosse o albertão, metaong não existiria; se não fosse dri (Adriana Veloso) e dpadua, provOs não existiria; se não fosse tupi e dri, recicle não existiria... é necessário um impulso inicial. E isso não é resquício de autoritarismo ou ditadura ou hierarquização. Ou, ok, é uma hierarquização, mas temporária e para um assunto específico. Não acredito muito em igualdade a priori. Cada indivíduo vai ter um interesse maior em um determinado assunto, e os projetos só vão sair se esse cara conseguir conquistar pessoas suficientes para realizar o projeto (...) Sou contra a autoridade pré-definida, mas um grau de autoritarismo está presente em cada ato de comunicação (...), e temos que ter consciência disso e saber lidar401.

Adoptando uma posição conciliatória, Daniel Pádua dizia partilhar da mesma opinião de Veloso,

salientando porém que as lideranças que tinham funcionado até então no Metáfora eram de pessoas

com interesse no projecto que tomavam a iniciativa para o levar à avante. “Mas para isso acontecer,

não adianta 'eleger' um líder, o que seria burlar a caordem”, pois “a liderança que um projeto precisa

398 Ver mensagens nº 2988 enviada para a lista por Fonseca a 18 de Outubro de 2002. Ver também as mensagens nº 2576 de 10 de Setembro de 2002 e 4570 de 24 de Outubro de 2002.

399 Ver mensagem nº 5619 de 17 de Dezembro de 2002. 400 Ver mensagem nº 5631 de 17 de Dezembro de 2002. 401 Ver mensagens nº 5638 e 5640 de 18 de Dezembro de 2002.

223

surge do caos”, concluía402. Fonseca salientou em seguida que não se tratava de uma questão de

eleição, mas da necessidade de encontrar uma estrutura que permitisse ao responsável pelo projecto

incentivar mais voluntários a participarem e comunicarem com o resto da rede colaborativa403.

A falta de envolvimento de mais pessoas para além do líder era também criticada por André

Passamani/Maratimba, para quem não faltavam líderes para os projectos, mas sim um consenso,

havendo em troca um excesso de egocentrismo dos outros colaboradores. “Não espero que um líder

seja responsável pelo consenso, quero isso do grupo”, na medida em que “o cara que finaliza e o cara

que tem a ideia original têm o mesmo valor”, acrescentava404.

Com base na análise das listas de discussão e da wiki, podemos verificar que, não obstante a

existência da figura do “ditador benevolente” encarnada na pessoa de Felipe Fonseca, o processo de

liderança emergindo do caos a que Daniel Pádua fazia referência pode ser encaixado na organização

do Metáfora durante a sua existência. Esse modelo organizativo fica explícito numa declaração de um

autor anónimo recolhida por Paulo Bicarato sobre o modo como o festival Midia Tática Brasil foi

montado:

Foi construído de cima para baixo. As lideranças são aquelas obedecidas a milanos, as lideranças naturais que simplesmente vêm e dizem: eu fiz o que era para ser feito pro evento rolar pra todo mundo. O líder natural que vem servir ao coletivo, um coletivo que não precisa de muitas palavras para reconhecer a verdade405.

Este depoimento reflecte o espírito que se sentiu nos 15 meses de existência do Metáfora. Mais ainda,

há que salientar que a lista do projecto serviu de fórum para muitas das discussões preparativas do

Midia Tática Brasil, havendo muitos colaboradores comuns a ambas as iniciativas. Em último caso,

contudo, pode-se dizer que a desistência de Fonseca e o consequente fim do Metáfora se deveu a uma

fraqueza inerente ao modelo organizativo da “caordem”. Com a profusão de projectos, muitos dos

quais permanecendo apenas na fase de rascunho e abrangendo àreas tão diferentes entre si, como arte,

media, tecnologia, educação, cultura, activismo político e intervenção social, o núcleo central do

Metáfora desagregou-se e deixou de haver um elo de ligação entre esses projectos. Mas, ao mesmo

tempo, a “caordem” estabelecida no interior do colectivo foi também a maior mais-valia do Metáfora,

uma vez que permitiu a autonomização e a replicação de um novo tipo de paradigma e metodologia

baseados na partilha do conhecimento livre, como foi o caso mais vísivel do MetaReciclagem406. 402 Ver mensagem nº 5640 de 18 de Dezembro de 2002. 403 Em Março de 2003 viria a ser implementado um sistema de comunidade online baseado na plataforma Drupal de

forma a dar resposta a essa necessidade de uma maior comunicação interna e externa. Este sistema, integrado no site do Metáfora, já não se encontra disponível. Ver cópia de arquivo em http://web.archive.org/web/20031022213440/http://drupal.projetometafora.org/

404 Ver mensagem nº 5669 de 19 de Dezembro de 2002.405 Ver mensagem nº 6982 de 28 de Fevereiro de 2003. 406 No início de 2005, Felipe Fonseca retomou a ideia do Metáfora sob o nome de CoLab, através de uma lista de

discussão e de uma wiki. Ver arquivos da lista em http://www.colab.info/cgi-bin/mailman/listinfo/lista e wiki em

224

http://www.colab.info/wiki/index.php/Pagina_Inicial. Apesar do ímpeto inicial na troca de ideias, um ano depois o projecto encontrava-se estagnado, servindo apenas para discussões de ideias não relacionadas com os assuntos debatidos na lista do MetarReciclagem. Entre as iniciativas apresentadas no âmbito do CoLab contam-se:

● Academia Livre - visava a montagem de espaços de interacção presencial baseados no conceito de aprendizagem distribuída do MetaLearning, de forma a possibilitar o debate e a produção de conhecimento livre. O financiamento de cada espaço seria assegurado através de um modelo de sustentabilidade baseado em cotas de associados e numa moeda virtual. Ver página em http://www.colab.info/wiki/index.php/AcademiaLivre.

● CursosCoLab – ambiente online baseado na plataforma open-source Moodle destinado à criação e frequência de cursos de estudo relacionados com os colectivos de media tácticos brasileiros. Até ao início de 2006 tinham sido criados oito cursos abordando temas como produção mediática autónoma e independente, construção de distribuições GNU/Linux, sistemas colectivos de bookmarks e RSS, tecnologia social, semiótica, design gráfico e animação digital.

● MochilaWiFi – projecto para a criação de uma mochila equipada com um computador rodando Linux, uma placa USB WiFi e uma antena repetidora de sinal, em que esse terminal estaria ligado a um módulo de mão formado por um monitor e um teclado de um telemóvel usado. Esta mochila permitiria partilhar o acesso à Internet sem fios em zonas periféricas não abrangidas pelos serviços das empresas de telecomunicações.

Na entrevista que realizámos, Fonseca explica a suspensão do CoLab da seguinte forma: “Talvez colab tenha sido um pouco de ingenuidade. Aliás, começamos como ProjectoMetáfora/dois, tentando ressuscitar a agitação que acontecia no Projecto Metafora. Mas o momento já era outro. Não fazia sentido pensar que tinhamos feito uma pausa e que seria só carregar em play novamente.”

225

3 - MetaReciclagem: Reapropriação da Tecnologia para Fins de Transformação Social

Somos low tech por posicionamento.

Somos low tech por ideologia

Somos low tech por posicionamento político

Somos low tech porque temos fome

Somos low tech porque criamos cubos mágicos em espaços abstractos

Somos low tech porque esporificamos verborragias

Sejamos ousados.

Pensemos, a cada minuto, a quem servimos.

- Dalton Martins, “Low Tech”

A reciclagem de computadores surgiu pela primeira vez no Metáfora numa mensagem de Daniel Pádua

enviada para a lista a 3 de Julho de 2002407. a propósito de uma discussão anterior sobre redes comunitárias

sem fios. Na sua opinião, a resposta para a criação de uma rede completamente livre e descentralizada entre

pares (P2P), que passasse completamente ao lado dos media comerciais e dos fornecedores de acesso à

Internet tinha que começar numa infra-estrutura física de conectividade que aproximasse a tecnologia das

comunidades periféricas. Como solução, Pádua sugeria a criação de um protótipo de uma rede local sem fios

usando placas WiFi em segunda mão, antenas repetidoras feitas com latas de batatas Pringles e computadores

reciclados correndo Linux que poderiam ser obtidos em armazéns de equipamento usado, funcionando como

pontos de acesso a essa rede em escolas públicas e associações comunitárias.

A única entidade que na altura se dedicava à reciclagem de computadores com objectivos sociais era o

Comité para a Democratização da Informática (CDI)408. Contudo, essa ONG apenas utilizava na altura

software proprietário como o Windows, para além de ser patrocionada pela Microsoft409. Dado o interesse do

Metáfora em criar instrumentos de inteligência colectiva, o recurso a tecnologias open-source e mesmo livres

era considerado prioritário. Alguns elementos do grupo, como Daniel Pádua, justificavam essa posição

argumentando que a inteligência colectiva se baseia em fluxos livres de informação, ao passo que as soluções

407 Ver mensagem nº 63. Paulo Colacino fez um apanhado das mensagens enviadas para a lista do Metáfora que dão conta das origens do MetaReciclagem e que está disponível em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/LivroVerdeOrigens

408 Site disponível em http://www.cdi.org.br. A CDI foi criada em 1993 no Rio de Janeiro por Rodrigo Baggio a partir de uma BBS (Bulletin Board System) com a intenção de fomentar o uso das tecnologias de informação como meio de integração social junto da população desfavorecida do Rio de Janeiro. Em 2005, possuía cerca de 1000 Escolas de Informática e Cidadania espalhadas por 19 estados brasileiros, bem como em mais 10 países, contando com 1800 educadores, mais de meio milhão de educandos formados, seis mil computadores instalados e 1200 voluntários.

409 Ver notícia “CDI chega a mais cinco países” publicada no Jornal do Brasil a 8 de Março de 2001 disponível em http://www.cdi.org.br/midia/midia_20010308.htm, que faz menção a uma doação da Microsoft de cinco milhões de dólares. A partir de 2003, contudo, a CDI tem disponibilizado alguns computadores com arranque duplo em Windows e Linux. Ver Cornils, Patrícia e Couto, Verônica (2005), “Reciclagem: o computador com atitude”, Revista A Rede, nº 2, Maio. Disponível em http://www.arede.inf.br/index.php?option=com_content&task=view&id=20&Itemid=99.

226

proprietárias controlam a informação410. Poucos dias depois, a 16 de Julho, Dalton Martins – que viria a

assumir a coordenação do MetaReciclagem - entrava na lista e sugeria que se tentasse solicitar doações de

computadores411.

Depois de uma tentativa falhada de receber doações de uma ONG norte-americana especializada na

reciclagem de computadores412, no final de 2002 Felipe Fonseca conseguiu obter uma parceria com o

Agente Cidadão413, uma ONG de São Paulo criada por Ike Moraes e Adilson Tavares que transporta

material doado, encaminhando-o para projectos e instituições sociais. Inicialmente com o nome de

Roupa Velha, esta entidade começou por recolher apenas roupa, tendo mais tarde ampliado a sua

actividade de “logística da cidadania” para mobílias, colchões e todo o tipo de objectos domésticos414.

Na altura, Moraes e Tavares disseram a Fonseca que tinham recebido dois computadores mas que não

sabiam o que fazer com eles. A partir de Janeiro de 2003, o Metáfora/MetaReciclagem passou assim a

ocupar um espaço num armazém onde o Agente Cidadão tinha o seu depósito, num centro comercial

na zona noroeste de São Paulo. Dalton Martins assumiria a responsabilidade técnica do laboratório de

media instalado no “galpão”, onde as máquinas que iam chegando eram triadas e reequipadas,

passando a funcionar com Linux415. Os equipamentos que não podiam ser aproveitados eram vendidos

ou trocados por outros componentes nos “cemitérios” de peças de computador da Rua de Santa

Efigénia, uma artéria de São Paulo famosa pelas suas lojas e camelôs de produtos electrónicos. O

material de plástico e ferro que sobrava servia para construir objectos decorativos ou instalações

artísticas, sendo, em último caso, levado para a reciclagem de lixo. Esta metodologia tornou-se o

modelo de trabalho das actividades do MetaReciclagem. Em meados de Março, o projecto recebia a

sua primeira grande doação, cerca de 100 computadores cedidos por uma empresa416.

Juntamente com o Agente Cidadão e já posteriormente à dissolução do Metáfora, o MetaReciclagem

montou o Cybersocial, um telecentro temporário no âmbito do Mês Social do SP Market, o centro

comercial onde aquela instituição estava instalada. Este evento abrangeu uma exposição e uma feira

de produtos fabricados por ONGs da região de São Paulo. Para o telecentro, foi utilizado um servidor

410 Ver mensagem nº 544 de Pádua, bem como a 122 de Colacino e a 124 de Fonseca. 411 Ver mensagens nº 510 e 535. Fonseca tinha já criado anteriormente, a 11 de Julho, uma página na wiki com o nome

de MetaReciclagem, contendo a proposta de Pádua. Ver mensagens nº 292 e 527. 412 Adriana Veloso, que era também voluntária do CMI-Brasil, tinha enviado a 26 de Agosto de 2002 um mensagem

para a lista (nº 2004) avisando que o Alameda County Computer Resource Center (ACCRC – www.accrc.org), uma ONG da Califórnia que recebe computadores e outro equipamento informático usado, reciclando-os e doando-os em seguida a projectos sociais espalhados por todo o mundo, tinha enviado um carregamento de 500 PCs, material de rádio e placas WiFi para os centros da Indymedia na América Latina, sendo que alguns seriam redistribuídos a outros movimentos. Essa hipótese não se veio, contudo, a realizar, devido ao custo elevado do frete e do processo de legalização e ao facto de o Metáfora não ter o estatuto de uma ONG. Ver mensagens nº 5597 enviada por Veloso a 16 de Dezembro de 2002 e nº 7000 enviada por Tatiana Wells a 1 de Março de 2003, redireccionando um email de Pablo Ortellado, do CMI-Brasil.

413 Site disponível em http://www.agentecidadao.org.br.414 Ver mensagem nº 5592 enviada para a lista por Fonseca a 16 de Dezembro de 2002. 415 Ver mensagem nº 5998 em que Martins faz um relato dos trabalhos iniciais de metareciclagem no “galpão”. 416 Ver mensagem nº 7337 de 18 de Março enviada por Dalton Martins.

227

médio que exportava o ambiente gráfico e as aplicações para terminais reciclados sem disco rígido e

com as caixas e os monitores pintados417. Este tipo de rede de thin clients418 seria utilizado

futuramente noutros projectos temporários do MetaReciclagem. Durante dois meses, o CyberSocial

disponibilizou cursos abertos de introdução à informática a mais de uma centena de pessoas (Fonseca,

2005).

A participação do MetaReciclagem nos Autolabs, de Fevereiro a Julho de 2004, em parceria com a

ONG La Fabbrica, a Perfeitura de São Paulo e o colectivo Midia Tática foi também assegurada graças

a uma doação de 45 computadores pelo Agente Cidadão que foram montados em três laboratórios de

media na zona leste de São Paulo. Para além da realização de workshops de reciclagem de máquinas

aos 300 jovens inscritos no programa, o MetaReciclagem oferecia ainda orientação aos finalistas que

quisessem criar a sua própria empresa de suporte e assistência técnica, com a promessa de que

receberiam da autarquia o apoio financeiro necessário – uma bolsa-trabalho. Apesar dos objectivos

ambiciosos – ver capítulo anterior -, o balanço que Felipe Fonseca fez dos Autolabs é bastante

negativo:

Devido a diversos factores que envolveram complicações com a coordenação do projeto, má-vontade de alguns instrutores com o software livre e microdisputas de poder, o projecto pode por um lado ser considerado um fracasso retumbante. Dos 300 jovens que se inscreveram, pouco mais de dez tentaram desenvolver acções depois de encerrado o processo, e, sem o apoio de que precisavam para ir adiante, acabaram de mãos vazias (Fonseca, 2005).

A parceria com o Agente Cidadão iria durar até depois do fim do Metáfora, tendo terminado em

Outubro de 2004, quando a nova direcção da ONG perdeu parte do espaço que ocupava no centro

comercial e decidiu acabar com a actividade de manutenção e reparações. Em consequência, o

MetaReciclagem deixou de ser uma estratégia da ONG - embora continue a receber doações dessa

entidade -, tendo o laboratório no “galpão” sido desmontado419.

Dalton Martins e Hernani Dimantas tinham entretanto começado a implementar em Agosto de 2003

um segundo núcleo do MetaReciclagem no Parque Escola, um projecto da Prefeitura de Santo André,

uma cidade de 665 mil habitantes nos arredores de São Paulo que conta com uma administração do

Partido dos Trabalhadores. O Parque Escola é um complexo de jardins botânicos concebido pelo

arquitecto Henrique Zanetta como se fosse um quebra-cabeças, tendo sido completamente construído

com materiais reciclados. Restos de obras, pneus gastos, contentores, portões descartados e até um

carro de bombeiros foram transformados em edifícios e salas de aula. O projecto dedica-se a 417 Algumas imagens do Cybersocial estão disponíveis em http://metareciclagem.org/midia/imagens/cybersocial.418 Computadores-cliente que integram uma rede de arquitectura cliente-servidor e que possuem pouco ou nenhum

poder de processamento, dependendo de um servidor central que corre as aplicações. 419 Ver página da wiki do MetaReciclagem em http://xango.metareciclagem.org/wiki/index.php/Agente_Cidadão. Esta

informação foi também retirada de Rinaldi (2005).

228

actividades de reciclagem e educação ambiental de forma a promover a importância da preservação

ecológica (Rinaldi, 2005 e Fonseca, 2005).

A ideia de criar um centro de reciclagem no Parque Escola partiu de um encontro de Dalton Martins,

Felipe Fonseca e Hernani Dimantas com Solange Ferrarezi, secretária-adjunta de Educação da

autarquia de Santo André, durante a segunda edição da Oficina de Inclusão Digital, que decorreu em

Maio de 2003 em Brasília. Através dela, os voluntários conheceram Zanetta e ambos chegaram à

conclusão que o MetaReciclagem e o Parque Escola partilhavam de uma mesma visão social e

ecológica baseada na reciclagem. O laboratório de media instalado pelo grupo num dos contentores

disponíveis no complexo recebeu do Agente Cidadão uma doação de 50 computadores e foi aí

desenvolvido um curso de Informática dirigido às cooperativas apoiadas pela incubadora de

empreeendedorismo social da autarquia420. Resultando de uma proposta de Jorge Gouveia, do

Departamento de Geração de Renda e Trabalho do município, esta acção de formação que decorreu

entre Dezembro de 2003 e Fevereiro de 2004 abrangeu 16 trabalhadores de oito associações com

actividades de venda de flores, reciclagem de lixo e papel e confecção têxtil que aprenderam a utilizar

aplicações de escritório (processador de texto e folha de cálculo) e a aceder a informação na Internet.

No final, foram doados alguns computadores a essas associações (Rinaldi, idem). Contudo, cinco das

cooperativas não fizeram uso das máquinas, tendo-se queixado da falta de impressoras para imprimir

documentos. Como refere Rinaldi (ibidem), as cooperativas brasileiras, tal como muitas companhias

do país, continuam a depender em grande parte de documentos impressos na sua actividade, enviando

cartas de correio postal e preenchendo impressos burocráticos para ser entregues ao Estado. Dalton

Martins, que foi contratado pela autarquia para coordenar a iniciativa, concluiu mais tarde que esta

iniciativa teria corrido melhor se tivessem sido incluídas impressoras junto com os computadores

doados. As três restantes associações conseguiram, contudo, arranjar impressoras e passaram a utilizar

regularmente as máquinas doadas.

Todos estes computadores foram pintados por Glauco Paiva, um artista local de Santo André. A

participação de Paiva deu um novo sentido às acções do MetaReciclagem421. Como referiu Hernani

Dimantas a Beatriz Rinaldi (2005), o projecto “obteve uma nova forma de expressão. Um computador

é transformado numa obra de arte, não interessa se é novo ou não. Até então, a linguagem da

reciclagem era cinzenta”. Para além da desconstrução técnica através da reciclagem, as pinturas

realizadas nas máquinas com cores vivas e motivos decorativos ligados à cultura popular brasileira

permitem a “desmistificação do hardware”, visando tornar a aquisição de conhecimento um processo

420 Dalton Martins escreveu sobre a abertura do laboratório à população local e sobre o início do curso de formação em http://dmartins.blogspot.com/2003/12/muito-tempo-sem-escrever.html e em http://dmartins.blogspot.com/2003/12/comecou-nessa-terca-feira-o-curso-de.html, respectivamente.

421 Ver imagens dos computadores reciclados no Parque Escola de Santo André em http://201.6.103.134/gallery/parqueescola.

229

mais divertido (Paiva, 2005). A incorporação da arte no hardware reciclado transformou-se

gradualmente num dos elementos fundamentais da metodologia de reapropriação da tecnologia do

MetaReciclagem, em que as pinturas adquirem um cariz pedagógico na medida em que aproximam as

máquinas de pessoas que têm muitas vezes receio da tecnologia (idem). Nos workshops do

MetaReciclagem junto das comunidades locais de bairros periféricos, os formadores conversam com

os formandos sobre os motivos a serem trabalhados, explicam o processo de formulação das cores e

dão algumas noções de história de arte. Os alunos são depois incentivados a recorrerem a temas locais

relativos à memória da sua comunidade nas “obras” com que estão a trabalhar. Os materiais

empregues consistem em pincéis e tintas, aerógrafo422 e compressor. Estamos assim perante uma

produção colectiva que estabelece uma relação entre o equipamento, as pessoas e o espaço em causa –

o centro ou associação social onde esses computadores vão ser utilizados pela população (ibidem). As

experiências de interligação entre arte e tecnologia levaram à criação de totems, isto é, terminais de

acesso à Internet que consistem em esculturas feitas a partir de sobras e outras peças dos

computadores. Ao tornarem a máquina num objecto ainda mais descontraído e atraente, estas

construções artísticas demonstram, segundo Paiva, “que as pessoas podem sim assimilar este

conhecimento de uma forma aprazível e rápida e aí dá-se o apoderamento” (ibidem).

No Parque Escola, o MetaReciclagem montou ainda um videowall interactivo com nove monitores

funcionando a partir de computadores Pentium MMX de 200 Mhz e uma antena WiFi

disponibilizando Internet sem fios a todo o perímetro do parque e uma àrea de cinco quilómetros em

redor. Esta tecnologia de comunicações visava possibilitar a implementação de uma rede de

telecentros municipais – seguindo em parte o modelo da rede livre e descentralizada idealizado por

Daniel Pádua ainda durante o Metáfora.

Depois da formação prestada às cooperativas, o MetaReciclagem organizou com o suporte do

gabinete de apoio à juventude da autarquia de Santo André um curso de reciclagem de computadores

dirigido a 12 jovens do núcleo habitacional de Sacadura Cabral, uma favela de 3200 habitantes que

tinha sido recentemente reurbanizada pela Prefeitura. Dalton Martins coordenou o curso que contou

com a colaboração de Julio Milan para ministrar as aulas que decorreram diariamente durante o mês

de Abril de 2004, onde os alunos poderam aprender a realizar a manutenção das máquinas, a montá-

las e a instalar e utilizar Linux. Na base desta iniciativa, esteve uma filosofia de emprendedorismo de

social, de auto-gestão, que tinha sido uma das pedras de toque do colectivo já desde o Metáfora. Mais

do que a mera formação, visava-se a autonomia das comunidades, isto é, fomentar e apoiar a criação

de micro-empresas e cooperativas.

422 Espécie de pistola de ar comprimido que funciona como instrumento de pintura através de jactos de tinta.

230

No final, dois alunos, André Garrão e António Bento Edson Dias Ferreira, abriram uma cooperativa

chamada InforMeta423, dedicada à venda de máquinas recicladas a preços acessíveis e à prestação de

serviços de assistência técnica. Os computadores para comercialização são obtidos através de doações

do MetaReciclagem e reciclados por pessoas da comunidade. Os preços são de 300 reais (117 euros)

para os modelos mais fracos (Pentium com 32 Mbytes de memória, 1 Gbyte de disco e drive de

disquetes) ou de 500 reais (195 euros), para uma linha mais avançada (Pentium com 64 Mbytes de

memória, 3 Gbytes de disco, drive de CD-ROMs e de disquetes, placas de rede e de som), podendo

ser em ambos os casos adquiridos em prestações de 100 reais por mês (cerca de 40 euros) (Cornlis e

Couto, 2005). A InforMeta pretendia atrair como clientes jovens do ensino secundário, pequenas

empresas e utilizadores domésticos com rendimentos médios ou baixos. Porém, ultimamente, tem tido

mais sucesso com o seu serviço de acesso pago à Internet em rede local para fins de jogos em rede. A

receita obtida pela cooperativa é suficiente para pagar os salários de três pessoas. António Bento

tentou também instalar um telecentro no centro comunitário local, que deveria ser financiado pelos

recursos gerados pela InforMeta. Nesse espaço, o MetaReciclagem possuia um laboratório de

reciclagem de máquinas onde os voluntários do projecto deram alguns cursos424. O plano não foi, no

entanto, bem sucedido. Devido a dificuldades para colocar em funcionamento uma rede Linux

composta por um servidor e terminais sem disco, os organizadores mudaram para Windows. “Como

não conseguimos encontrar alguém para dar um melhor conteúdo às crianças, nem para tomar conta

do local, tirámos a rede do ar”, explicou António Bento à revista electrónica A Rede (Cornils, 2006).

Ainda no Parque Escola, o MetaReciclagem começou a colaborar com a autarquia de Santo André na

implementação da infra-estrutura física e lógica da Escola Parque de Arte e Ciência (EPAC), um

projecto de popularização da ciência e tecnologia destinado aos estudantes e professores das escolas

públicas. O EPAC funcionaria em simultâneo como um parque público, escola modelo, centro

multimédia e de formação de professores, museu de ciência, galeria e biblioteca. Dalton Martins e

Glauco Paiva começaram a desenvolver experiências sobre reciclagem tendo a tecnologia, a arte e a

educação como denominadores comuns.

As eleições autárquicas de Novembro de 2004 vieram, porém, a interromper a participação do

MetaReciclagem em iniciativas públicas na cidade de Santo André. Apesar de o prefeito da autarquia

local ter sido reeleito, ele alterou toda a sua equipa de direcção. Em resultado, o EPAC transitou da

Secretaria da Administração da Educação para a dos Serviços Públicos. O projecto perdeu o seu

laboratório no Parque Escola, parte das doações de computadores aí recebidas e o acesso à infra-

estrutura425.

423 Site disponível em http://www.informeta.com.br/.424 Ver imagens do telecentro de Sacadura Cabral em http://201.6.103.134/gallery/sacadura.425 Ver o resumo que Felipe Fonseca fez da situação do MetaReciclagem a 4 de Maio de 2005 no seu blog em

http://www.metareciclagem.org/fff?p=1151.

231

Nos primeiros meses do MetaReciclagem, antes do fim do Metáfora, a distribuição do Linux que era

utilizada nos PCs reciclados era a Kurumin, uma versão brasileira do Knoopix, que não necessita de

ser instalado no disco rígido para ser testada num PC – daí se chamar a esse tipo de distribuições de

LiveCDs. Argumentando que o Kurumin tinha uma série de programas inúteis para o trabalho

realizado pelo grupo, um novo voluntário, Fernando Henrique, decidiu em Maio de 2003 desenvolver

o MetaLinux426, uma distribuição dirigida especificamente a computadores mais antigos como os que

eram recebidos no “galpão” (Pentiums com uma velocidade entre 75 e 200 Mhz, 16 a 32 Mbytes de

memória e disco rígido com menos de 2 Gbytes) e, ao mesmo tempo, com um interface mais

apelativo e fácil de utilizar para utilizadores com pouco ou nenhum contacto prévio com a

informática. A primeira versão disponibilizada publicamente, a 0.5, utilizava como base a Gentoo por

ser uma plataforma conhecida pelo seu bom desempenho em jogos e multimédia. A terceira e última

versão do MetaLinux, lançada após o fim do Metáfora em Janeiro de 2004, chegou a incorporar várias

características de outras distribuições do Linux, como um LiveCD de 50 Mbytes.

Devido a uma falta de comunicação entre Fernando Henrique – então, o único responsável pela

distribuição - e os outros elementos do MetaReciclagem, as novas acções desenvolvidas pelo

colectivo passaram a utilizar a plataforma Slackware em vez do MetaLinux. O programador propôs a

elaboração de uma documentação que designou de Komain que ensinava a criar uma distribuição

Linux a partir do zero – de uma forma auto-didacta e Do-It-Yourself, de forma a compartilhar o

conhecimento que possuia aos potenciais interessados para que estes pudessem contribuir para o

MetaLinux427. Henrique enviou a documentação para a nova lista do MetaReciclagem mas o interesse

suscitado não foi muito grande. Em resultado da fraca adesão, decide extinguir o desenvolvimento do

MetaLinux e continuar com o Komain como um hobby pessoal lateral ao MetaReciclagem. Mas numa

reunião com os outros voluntários do projecto em que é levantada a necessidade de uma distribuição

própria, Henrique propõe o desenvolvimento conjunto do Komain com o grupo428. Em 2005, a

distribuição contava com oito programadores, sendo apenas dois activos.

426 Site disponível em http://metalinux.codigolivre.org.br/index.html. Na wiki do MetaReciclagem, Fernando Henrique conta a história da evolução do MetaLinux: http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/MetaLinux. Foi também criada uma lista de discussão em http://listas.cipsga.org.br/pipermail/metalinux/

427 Ver mensagem de Henrique enviada para a lista MetaLinux a 15 de Junho de 2004 em http://listas.cipsga.org.br/pipermail/metalinux/2004-June/000029.html. O site do Komain está disponível em http://komain.sourceforge.net. Fernando Henrique explica um pouco a origem e história do Komain numa página da wiki do MetaReciclagem em http://metareciclagem.org/wiki/index.php/Komain.

428 Ver mensagem de Henrique enviada para a lista MetaLinux a 19 de Julho de 2004 em http://listas.cipsga.org.br/pipermail/metalinux/2004-July/000049.html.

232

3.1 - A Replicação da Metodologia da MetaReciclagem

No início de 2005, com a perda dos laboratórios que o colectivo ocupava no “galpão” do Agente

Cidadão e no Parque Escola de Santo André, o MetaReciclagem começou uma nova fase. Como

reconheceu Felipe Fonseca, “sem um espaço próprio disponível o MetaReciclagem não conseguiu

subsistir enquanto grupo”429. Mas, na verdade, alguns dos voluntários do projecto como o próprio

Fonseca – seguindo o modelo herdado do Metáfora -, concluíram que nunca tiveram como objectivo

constituirem-se como grupo de inclusão digital ou mesmo uma ONG, considerando em vez disso que

a sua actividade podia ser definida como uma acção descentralizada, uma metodologia emergente de

trabalho para a reapropriação da tecnologia visando a transformação social (Fonseca, 2005). O

fracasso do modelo de actuação como grupo levou esses elementos a encararem o projecto como

“uma aglutinação de pessoas que fazem MetaReciclagem (...) uma maneira de lidar com a

tecnologia”. Foi então alcançado um consenso mínimo sobre uma definição conceptual desse

processo da MetaReciclagem que, segundo a wiki do projecto, consistiria em:

Construir junto de comunidades um processo de autonomia tecnológica baseada em princípios da reciclagem e do software livre, abrir canais de geração de trabalho e rendimento com base nos produtos desse processo, obter não apenas o acesso à tecnologia, mas a efectiva apropriação da mesma como meio de desenvolvimento e criação. Dessa forma, comunidades iniciam a venda de produtos de tecnologia a baixo custo para um público interno, ocupam espaços em Centros Comunitários criando TeleCentros para acesso a tecnologia reciclada, laboratórios de reciclagem transformam-se em centros de formação profissional local430.

Uma vez mais, tal como nos tempos do Metáfora, a ideia de descentralização e disseminação por

esporos era valorizada em detrimento de uma territorialização num local específico e próprio, dado

que, segundo os elementos do núcleo-fundador do projecto, esta última abordagem implicaria

necessariamente um certo grau de institucionalização. A MetaReciclagem seria assim uma “ocupação

pirata de acções governamentais relacionadas com inclusão digital, educação e 'geração de

rendimentos'“ que colaborava simultaneamente com ONGs e outros projectos independentes. O

conceito assemelhar-se-ia mais a um meme que dissemina a ecologia de reciclagem de computadores

como instrumento de desenvolvimento social e autonomização criativa e financeira por todo o Brasil

do que um grupo coeso, fixo e estável composto por técnicos e dividido em filiais. A este propósito,

Felipe Fonseca comentou na entrevista:

Acreditámos desde o começo na descentralização integrada por questão de princípio: não

429 Fonseca, Felipe (2005), “Outro Balanço”, 4 de Maio de 2005. Disponível em http://metareciclagem.org/fff/?p=1151. Nesse mesmo mês de Maio, o MetaReciclagem perdeu o servidor que alojava a lista de discussão até então, o que levou à perda do arquivo. O novo arquivo da lista está disponível em http://dischosting.nl/pipermail/metarec/ e em http://dir.gmane.org/gmane.politics.organizations.metareciclagem.

430 Ver página sobre replicação do conceito de metareciclagem na wiki do projecto em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/Replicação. Aí se encontra também uma descrição mais completa da metodologia de trabalho implicada neste conceito, através de uma divisão em 11 etapas.

233

queriamos tornar-nos em especialistas ou únicas referências. A rede continua a crescer como rede, a sua topologia muda a cada momento. Dessa forma, pudemos manter o nosso ritmo de inovação e recriação (Fonseca, 2005b).

Tendo em conta esta nova concepção do MetaReciclagem como meme, foi estabelecido um esquema

de actuação que se articula em três níveis:

• Esporos – laboratórios físicos onde pessoas fazem MetaReciclagem. Nestes espaços também

são realizadas acções de investigação e desenvolvimento, tanto técnico como teórico sobre

MetaReciclagem. Um exemplo de esporo seria o “galpão” no espaço do Agente Cidadão ou o

Parque Escola de Santo André.

• Infra-estrutura online – ambiente onde decorrem as conversações sobre MetaReciclagem. Esta

camada - que corresponde à infra-estrutura lógica do Metáfora – assegura a comunicação e o

contacto entre as várias partes do projecto, compreendendo a lista de discussão, a wiki, os

blogs pessoais dos diferentes elementos e outros espaços de interacção online criados para um

evento ou acção específica. Uma vez que, sendo um projecto descentralizado, cada pessoa

pode empregar a plataforma que prefere, foi criado um agregador de RSS para disponibilizar

de forma integrada e numa única página da Web toda a informação que for sendo

produzida431.

• ConecTAZes – laboratórios temporários ou permanentes, fixos ou móveis, que “beneficiam”

de acções de MetaReciclagem. Estes podem abranger tanto workshops de colaboração com

recurso apenas a papel e lápis, como a uma Linux InstallFest432 ou a uma sessão de exibição

de vídeos. As ConecTAZes podem-se tornar em telecentros multimédia independentes, como

ocorreu com os Autolabs. Outros espaços que se enquadrariam nesta categoria seriam a

ocupação no Midia Tática Brasil e o Cybersocial.

É a partir deste novo modelo de articulação descentralizada que se insere a integração da prática de

reapropriação tecnológica do MetaReciclagem no projecto Pontos de Cultura da responsabilidade do

Ministério da Cultura (MinC), através da sua estratégia Cultura Viva. Organizado por um grupo de

articuladores433, o Pontos de Cultura consiste numa série de centros culturais promovendo o

desenvolvimento da produção cultural, em particular na inserção das culturais locais em rede através

de tecnologias da informação e da produção de software livre. Como explicam Freire, Foina e

Fonseca, pretende-se desta maneira criar “uma rede descentralizada de produtores culturais

431 Agregador disponível em http://agregador.metareciclagem.org. Existe ainda um weblog colectivo em http://blog.metareciclagem.org.

432 Evento onde qualquer pessoa pode trazer o seu computador de modo a que voluntários instalem nele Linux e outro software livre.

433 Este grupo de articuladores foi formado em meados de 2003 a partir de colectivos autónomos e que tinham sido convidados por Cláudio Prado, coordenador de políticas digitais do MinC, a desenvolver acções direccionadas para a apropriação de tecnologias digitais à escala nacional através do projecto BACs (Bases de Apoio à Cultura). Como vimos anteriormente, este projecto viria a ser substituído pelos Pontos de Cultura.

234

intercambiando experiências sobre os mais diversos contextos culturais do Brasil” (2005). Até ao

final de 2005 já tinham sido seleccionados 264 centros, mas espera-se que este número aumente para

400 até ao final de 2006:

Um Ponto de Cultura é, ao mesmo tempo, produtor e consumidor cultural. É uma casa, uma sala, um depósito, uma estrutura física localizada estrategicamente em qualquer lugar onde haja uma produção cultural local. O projeto propõe-se captar essa produção cultural e irradiar seu conteúdo a todos os demais Pontos ao redor de todo o país (...), e também, possibilitar uma infra-estrutura básica, permitindo que se produza bens culturais utilizando-se programas de Software Livre e de Código Aberto, distribuindo essa produção em uma rede de Pontos por meio de licenças Creative Commons e CopyLeft, de forma a permitir a remixagem e a colaboração com outros Pontos (Freire, Foina e Fonseca, 2005).

Estes centros são baseados em iniciativas locais já existentes, que contarão com a doação de um kit de

tecnológico para produção multimédia (áudio, vídeo, produção gráfica, desenvolvimento de software

e apropriação de hardware)434 e que serão interligados através de uma ferramenta de publicação

online empregando uma rede de distribuição P2P435. No contexto dos Pontos de Cultura, a aplicação

da metodologia da MetaReciclagem assegura a disponibilização do hardware que os elementos das

comunidades locais com maior incidência de exclusão social e pobreza necessitam para desenvolver

as suas próprias produções culturais. Alguns dos elementos do MetaReciclagem foram já contratados

como consultores do projecto, colaborando no planeamento conceptual e técnico, bem como na

implementação e suporte dos diversos centros436. Tal como os outros integrantes do grupo dos

articuladores, a equipe ligado ao MetaReciclagem começou por colaborar com o governo apenas de

uma forma voluntária por acreditarem que os Pontos de Cultura seria a única forma de aplicar na

prática e a nível nacional as ideias planeadas em projectos autónomos como o Metáfora que careciam

dos recursos financeiros necessários.

Este grupo de pessoas que iniciou todo o esforço coletivo de pensar/trabalhar, não tem necessariamente comprometimento com o governo em si, ou com a sua ideologia. O que não significa que não considerem o projecto como essencialmente de natureza política, mas que agem como uma invasão hacker dentro do sistema, com gestão própria e objectivos bem definidos. A maioria só quer ver o projeto funcionando, pontos de cultura organizados em rede, autónomos e sustentáveis, distribuidos pelo país, colaborando e compartilhando sua produção cultural livre (Freire, Foina e Fonseca, 2005).

A promessa é que, depois de constituída a rede descentralizada de centros espalhados pelo país, esta

434 Este kit é composto por um servidor de rede, uma estação de trabalho multimédia, uma câmera de filmar mini-DV e equipamento de som. Ver mais informação no post “Sobre a 'novela' dos kits previstos no primeiro edital do Cultura Viva” publicado por Vítor Cheregati, um dos articuladores do projecto, a 5 de Dezembro de 2005 em http://converse.org.br/sobre_a_novela_dos_kits_previstos_no_primeiro_edital_do_cultura_viva.

435 No início de 2005 começou a funcionar o Conversê (http://converse.org.br), um site colaborativo baseado em Drupal que funciona como um ambiente online de interacção entre os diferentes pontos de cultura e fomentar a sua articulação em rede.

436 Incluem-se aqui Felipe Fonseca, Dalton Martins, Glauco Paiva e Fernando Henrique.Outros colectivos associados aos Pontos de Cultura são o Estúdio Livre (www.estudiolivre.org) – encarregue de testar, adaptar e implementar soluções multimédia totalmente baseadas em software livre, o movimento de rádios livres radiolivre.org, assim como o grupo Midia Tática.

235

venha a funcionar de forma auto-suficiente, sem o apoio financeiro do Estado, de forma a que não

seja vulnerável a uma eventura futura mudança de governo. O conceito baseia-se numa ampliação a

nível de todo o Brasil da experiência dos Autolabs realizada em parceria com a Prefeitura de São

Paulo, que Ricardo Rosas descreveu como uma “subversão prática”, uma invasão alienigena do

sistema político (Rosas, 2004). Iniciativas como o Autolabs e os Pontos de Cultura constituem, nesta

mediada, hacks de projectos governamentais (Freire, Foina e Fonseca, 2005)437. Refutando os dilemas

do risco de cooptação e recuperação que a colaboração com o governo e outras entidades com uma

agenda própria colocam habitualmente a colectivos activistas autónomos, Felipe Fonseca afirmou-nos

em entrevista:

Na medida em que sempre nos baseámos na ideia de conhecimento livre, um dos nossos objectivos é a cooptação. Mantendo-se certos princípios, qualquer apropriação das nossas ideias (a apropriação da reapropriação?) é desejada (...) Melhor que ter uma ideia genial e convencer actores de peso da pertinência dela, é fazer esses actores acreditarem que tiveram uma ideia genial. Antes que persuadir, influenciar. MetaReciclagem hoje está dos dois lado do principal debate político: simultaneamente dentro de projectos do Partido dos Trabalhadores e do PSBD438. Simultaneamente num projecto nacional do governo (...) e com militantes anarco-punks. Simultaneamente no Ministério das Comunicações, comandado por um imbecil439, e dentro de grupos que combatem a actuação do mesmo ministério. Quando, buscando esse tipo de influência, precisamos parecer uma ONG, temos cartões de visita, fato e gravata. Quando estamos no nosso ambiente, em campo, estamos de havaianas e camiseta. A nossa mobilidade confunde, mas alcança os seus objectivos. Somos múltiplos..Eu tenho muitos 'sobrenomes' (Fonseca, 2005b).

Para o desenvolvimento e implementação dos Pontos de Cultura foi criado um centro experimental na

galeria Olido, um antigo cinema localizado na zona central de São Paulo. O complexo conta

actualmente com cinema, salas de ensaio e apresentação de dança, galeria de exposições, telecentro e

outras actividades. Aí funciona também desde meados de 2004 um esporo do MetaReciclagem440,

437 Saliente-se que a questão da cooptação foi o tema de um painel da conferência sobre media tácticos Submidialogia que teve lugar em Outobro de 2005 na Universidade de Campinas. Neste painel, intitulado “quando meus amigos se tornaram .gov – problemas e soluções ”, tentou-se responder às seguintes questões.

Num curto período de tempo, dezenas de iniciativas e centenas de pessoas que participavam de movimentos de comunicação independente, media tácticos, software livre e movimentos de base foram, directa ou indirectamente, incorporados nas agendas e contratos governamentais. Qual o motivo dessa rápida incorporação? Como direcionar tais acções num governo como o brasileiro? quais as consequências? E como é que o governo tem lidado com os projectos e ideologias dos envolvidos com as pesquisas e implantações? Qual a actual situação de projectos como o da TV Digital e GESAC (Ministério das Telecomunicações) e Pontos de Cultura (Ministério da Cultura).

Ver programação em http://www.midiatatica.org/wakka/wakka.php?wakka=ProgramacaoSubmidialogia.438 Partido da Social Democracia Brasileira – principal força política de oposição ao governo de Lula da Silva. O ex-

presidente Fernando Henriques Cardoso foi um dos fundadores deste partido que pode ser situado ao centro do espectro político. Um dos seus dois candidatos às eleições presidenciais de 2006 é José Serra, actual prefeito de São Paulo.

439 Fonseca refere-se aqui a Hélio Costa, ministro das Comunicações. O MetaReciclagem encontra-se presente no Ministério das Comunicações através do programa GESAC (Governo Electrónico – Serviços de Atendimento ao Cidadão) que disponibiliza acesso à Internet de banda larga por satélite em aldeias indígenas e comunidades rurais localizadas em zonas não abrangidas pelas redes das empresas de telecomunicações. Nesses locais realizam-se cursos de metareciclagem abertos à população. Ver site do GESAC em http://www.idbrasil.gov.br.

440 Ver fotografias do espaço em http://metareciclagem.org/gallery/mezanino.

236

graças a uma parceria com a Secretaria Municipal de Cultura e do Governo Electrónico da Prefeitura

de São Paulo, o projecto Cibernarium441. Nesse espaço têm lugar acções de reciclagem de

computadores e seminários técnicos. Em Outubro de 2004, Felipe Fonseca e Elly Chagas ministraram

aí um workshop sobre colaboração, comunicação em rede e low-tech para 27 elementos de

organizações não-governamentais pertencentes à Corrente Viva442, uma incubadora de ONGs que

conta com 23 associações espalhadas pela cidade de São Paulo443. Esta acção resultou numa parceria,

através da qual o MetaReciclagem desenvolveu já um site para a Corrente Viva, estando ainda em

paralelo a ser desenvolvido um projecto de implementação e formação em tecnologias de informação

em todas as ONGs atendidas por esta rede.

No domínio da infra-estrutura lógica online, uma das ferramentas ligadas ao MetaReciclagem foi o

LigaNois444, um site colaborativo baseado em Drupal que esteve online entre finais de 2003 e de 2004

destinado aos utilizadores e monitores dos telecentros da Prefeitura de São Paulo, expandido assim a

experiência do fórum criado ainda na época do Metáfora, no âmbito do festival Mídia Tática Brasil. O

objectivo, como explica Felipe Fonseca, era mostrar ao utilizador desse e doutros projectos de

inclusão digital no Brasil que “a Internet era principalmente um ambiente de interacção com outras

pessoas” (Fonseca, 2003c). O site chegou a ter 800 utilizadores registados e cerca de 600 visitantes

por dia (Rinaldi, 2005).

De modo a recuperar a discussão conceptual dos tempos do Metáfora, foi também implementado

outro site. Denominado Xemelê445, numa alusão à segunda lista da incubadora de projectos, aquele

espaço online acabou por tornar-se, no entanto, no sistema de conversações, publicação, gestão de

contactos e partilha de arquivos destinado a integrar os pontos de cultura (Fonseca, 2005). No mesmo

domínio está também alojada a plataforma de pesquisa446 estabelecida entre o Midia Tatica, o

MetaReciclagem, a Sociedade Waag e o laboratório de media Sarai.

As parcerias do MetaReciclagem com grandes instituições públicas têm também continuado, embora

numa vertente mais focada na implementação de ConecTAZs. No segundo semestre de 2004, em

colaboração com a Sampa.org447 e o Banco do Brasil, foram instalados dois telecentros na região de

São Paulo. Um situa-se em Capão Redondo, distrito que é considerado uma das áreas mais pobres e

441 Este projecto, que integra a @lis (Alliance for the Information Society”, é uma iniciativa da União Europeia no campo da divulgação e capacitação digital de carácter pedagógico que actua em nove cidades europeias e da América Latina no sentido de combater a exclusão digital. Ver site em http://www.alis-cibernarium.org.

442 Site disponível em http://www.corrente.org.br.443 Ver alguns testemunhos de participantes nesse workshop em

http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/OficinaColaboracaoCorrenteViva.444 Ver cópia de arquivo do site em http://web.archive.org/web/20040327142816/http://www.liganois.com.br.445 Site disponível em http://xemele.org.446 Site disponível em http://platform.xemele.org.447 ONG brasileira que trabalha com projectos de inclusão digital que abriga iniciativas que trabalham nas áreas da

educação, cultura, formação técnico-profissional e comunicação. Site disponível em http://www.sampa.org.

237

violentas da cidade. Juntamente com a associação Chico Mendes, uma colectividade local, foi

montado um espaço equipado com computadores doados pelo governo federal e reciclados pelo

MetaReciclagem. Uma semana após a abertura todos os computadores foram roubados. Desde então,

o telecentro encontra-se encerrado (Rinaldi, 2005)448. A outra ConecTAZ foi implementada em

Jarimu, uma pequena vila rural a 70 quilómetros de São Paulo. Dalton Martins, Glauco Paiva e Elly

Chagas abriram um telecentro equipado com 30 computadores numa sala da Associação das Mulheres

de Jarinu. Mais recentemente, o projecto do governo federal Casas Brasil começou a ministrar cursos

de metareciclagem em todos os seus 90 telecentros dotados de uma infra-estrutura multimédia e

laboratórios de reciclagem de computadores.

Durante o ano de 2005, o número de esporos independentes assinalou um crescimento notável449. Para

além do centro de media IP://, no Rio de Janeiro, criado por Tatiana Wells e Ricardo Ruiz, surgiram

também mais laboratórios de reciclagem em zonas como: Salvador (em associação com a Faculdade

Ruy Barbosa); Arrail D'Ajuda, na costa histórica da Baía, através do colectivo Bailux450; no Recife451;

Teresina, no Piauí452; Manaus, no estado do Amazonas453; no centro do Movimento Humanista no

bairro de Santa Cecília em São Paulo.

Segundo Felipe Fonseca, em Março de 2006, o MetaReciclagem integrava um núcleo-base de uma

dúzia de participantes activos que dedicam grande parte do seu tempo ao projecto; outro grupo de 20 a

30 pessoas que colaboram regularmente – uma vez por semana ou de quinze em quinze dias454. A lista

de correio electrónico possuia 158 subscritores. Estes números não incluem, é claro, as pessoas que

realizam acções de metareciclagem nos esporos espalhados pelo país.

448 Ver também relato de Elly Chagas em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/ChicoMendes.449 Ver lista de esporos em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/Esporos e lista de ConecTAZes em

http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/ConecTaz.450 Site disponível em http://bailux.wordpress.com.451 Site disponível em http://recife.metareciclagem.org.452 Este esporo, que fornece a infra-estrutura para a criação de três telecentros, situa-se no Centro de Referência da

Cultura Hip Hop, da responsabilidade do Movimento Hip-Hop Organizado Brasileiro (MHHOB). O Piauí é o estado mais pobre do Brasil.

453 Site disponível em http://manaus.metareciclagem.org.454 Os dados constam de uma mensagem de email enviado por Fonseca para a lista de discussão a 24 de Março de 2006,

disponível em http://article.gmane.org/gmane.politics.organizations.metareciclagem/3101/match=ars+electronica.

238

4 - Análise dos Dados Obtidos por Questionário

4.1 - Perfil dos Colaboradores do Metáfora e do MetaReciclagem

Em seguida apresentamos os dados que obtivémos do questionário realizado por email junto de 22

elementos do núcleo-inicial do Metáfora e do MetaReciclagem, do qual recebemos 11 respostas455.

Por opção metodológica, decidimos, ao contrário do que temos vindo a fazer neste capítulo, não

nomear individualmente nenhum dos inquiridos no que diz respeito ao conjunto de questões fechadas

e semi-fechadas destinadas a obter um perfil global dos colaboradores do Metáfora e do

MetaReciclagem. A não-discriminação deve-se a uma questão de ética do investigador no sentido de

respeitar a privacidade dos inquiridos quer em relação a terceiros, quer em relação aos outros

elementos dos colectivos.

Dos inquiridos que responderam, nove (81,8%) pertencem ao sexo masculino e dois (18,2 %) são do

sexo feminino. Em relação à idade, os colaboradores do Metáfora divididem-se nos seguintes

escalões etários:

• 25-29 anos: 5 (45,4%)

• 30-34 anos: 3 (27,3%)

• 35-39 anos: 1 (9,1%)

• 40-44 anos: 1 (9,1%)

• 45-49 anos: 1 (9,1%)

A partir dos dados fornecidos pelos inquiridos, cálculámos que a sua média de idades ronda os 32

anos (31,7 anos). É preciso, no entanto, recordar que o período de actividade do Metáfora – entre o

final de Junho de 2002 e o início de Outubro de 2003 – esta média seria de cerca de 29 anos.

Outro traço de identificação que quisemos obter junto dos elementos do núcleo inicial do Metáfora

foi a sua cidade/região de residência. Tendo já conhecimento, a partir da leitura das listas e da wiki,

de que uma grande parte destes residiam na altura na zona de São Paulo e arredores, pretendíamos

determinar qual a importância da participação dos residentes nesta cidade nas actividades do projecto

e se registou alguma alteração a este quadro nos últimos anos após o fim do Metáfora e a expansão do

MetaReciclagem. Assim, nota-se que uma grande parte dos inquiridos, isto é, seis (54,6%), afirmam

455 Uma vez que esta investigação incide sobre o Metáfora e o MetaReciclagem, não incluímos neste questionário todas as pessoas que fazem MetaReciclagem. Beatriz Rinaldi realizou um inquérito dirigido a todos os “metarecicleiros”, no qual nos baseámos em parte e que está disponível em http://ogum.metareciclagem.org/wiki/index.php/LevantamentoMetarecicleiros.

239

residir em São Paulo456 e os restantes cinco (45,4%) podem-se enquadrar numa categoria de nómadas

- como uma das inquiridas se designou a si própria – na medida em que mudaram uma ou mais vezes

de cidade nos últimos três anos.

Tendo também em conta o facto de as acções associadas ao Metáfora e das ideias discutidas na lista

se terem disseminado inicialmente457 através da blogosfera brasileira, por intermédio dos blogs dos

próprios fundadores do projecto e de outros bloggers que pertenciam à sua rede social, quisémos

averiguar qual o número de inquiridos que possuiam blogs e há quanto tempo é que os mantinham.

Confirmando as expectativas, nove dos inquiridos (81,8%) disseram que já tiveram um ou mais blogs

e somente dois (18,2%) responderam negativamente458. No que toca à data em que iniciaram o seu

primeiro blog, as respostas podem ser enquadradas nos seguintes anos:

• 2000 – 1 (11,1%)

• 2001 – 4 (44,4%)

• 2002 – 3 (33,3%)

• 2003 – 1 (11,1%)

Por aqui se pode ver que uma parte significativa dos colaboradores mais activos do Metáfora já

possuia um blog antes do início do projecto. Fazendo uma leitura destas respostas, podemos dizer que

o projecto resultou da “linkania” proporcionada pela blogosfera brasileira que na altura (2002-2003)

começava a florescer459.

456 Note-se que todos estes elementos do Metáfora já residiam na altura do início do Metáfora em São Paulo. 457 Antes das primeira doacções de computadores reciclados recebidas do Agente Cidadão e do festival Midia Tática

Brasil, que geraram alguma repercussão nos media comerciais brasileiros.458 Sendo que, destes dois, um respondeu que já tentou manter um blog mas que reconheceu não ter um perfil de

blogger.459 Numa interpretação literal, o termo “linkania” diz respeito ao costume praticado entre os bloggers de fazer ligações

para os blogs de outros bloggers. A inclusão de ligações a outros diários da Web é habitual quando o autor leu um post que achou interessante, por mera questão de reciprocidade ou quando o outro blogger é um amigo ou colega seu. O blogroll, a lista colocada num menu lateral do blog que contém os blogs favoritos e mais visitados do autor, é nesta perspectiva o local onde se consolidam todas estas ligações de amizade, trabalho ou interesses comuns.

Apontando para uma definição mais vasta que se aproxima do rizoma de Deleuze e Guattari e dos princípios do manifesto Cluetrain de que “os mercados são conversações” e que “os hiperlinks subvertem a hierarquia”, Marcelo Estraviz – presença irregular nas listas do Metáfora e responsável pelo blog Tipuri - escreveu um artigo muito influente na blogosfera brasileira em que propunha a “linkania” como uma nova expressão de cidadania, visando ocupar o vazio deixado pelo discurso desta num mundo cada vez mais desterritorializado e online (Estraviz, 2001a). Segundo ele, a “linkania” pode ser definida da seguinte forma:

É a cidadania sem cidades (...) A acção dá-se localmente mas a ligação é global. É o link do amigo, do vizinho. É a dica. É o negócio entre duas empresas de 2 continentes diferentes. É a ajuda que o teu primo te dá de Madrid por email. É a discussão que circula na lista para visitar tal exposição, e o link para a exposição, que imprimem e colocam no mural da creche. Tudo isso é link. É a matéria que um blogueiro comenta e que te faz pensar. É a descoberta valiosa do desempregado que vai a um infocentro e regista-se num programa do governo que lhe irá dar um emprego. E foi o vizinho que disse. Deu a dica, o link (idem).

Hernani Dimantas aprofundou mais tarde a metáfora de “linkania” sob a forma de “multidão hiperconectada”. Na

240

Um dos indicadores que revela a dedicação e o grau de “profissionalização” de um blogger é o facto

do seu blog possuir um domínio próprio – www.projetometafora.org, por exemplo -, o que implica o

registo anual desse endereço da Web por uma determinada quantia, ou se, pelo contrário, está alojado

num serviço gratuito de alojamento de blogs como o Blogger - com um endereço

projetometafora.blogspot.com, por exemplo. Nesse sentido, é sintomático que, dos nove inquiridos

que mantêm um blog, sete (77,8%) tenham respondido que possuem um domínio próprio, enquanto

dois (22,2%) afirmaram que o seu blog está alojado no Blogger.

A totalidade dos membros do Metáfora que participaram neste questionário declararam utilizar

regularmente software livre, o que demonstra o verdadeiro grau de adopção deste tipo de aplicações

junto do colectivo. O tipo de utilização, contudo, varia muito entre cada inquirido: assim, enquanto

um disse trabalhar com um sistema operativo proprietário mas correndo aplicações open-source por

cima, outro afirmou correr Linux e Windows no mesmo computador por necessidades de

compatibilidade de formatos e outros três responderam que recorrem também a opções não-

proprietárias como a linguagem de desenvolvimento PHP e a base de dados MySQL em servidores

Web para alojamento de sites. A situação mais frequente é, todavia, o recurso ao Linux num ambiente

de desktop – computador de secretária – e a outro software aberto como o navegador da Web Firefox,

o editor de imagens Gimp e o pacote de ferramentas de escritório OpenOffice.

Uma vez que o Metáfora teve desde o começo, um interesse em espalhar as suas ideias e projectos

através de associações com ONGs e que o MetaReciclagem se tem destacado por um trabalho de

contacto directo com esse tipo de instituições, não surpreende muito que sete (63,6%) dos inquiridos

tenham afirmado que colaboram com alguma ONG ou outro tipo de associação semelhante. Pelo

contrário, apena quatro (36,4%) responderam negativamente. Por outro lado, dado que o Metáfora e o

MetaReciclagem tiveram sempre uma preocupação muito grande com a questão da inclusão digital –

se bem que na sua perspectiva mais holística de reapropriação da tecnologia para fins de

transformação social –, através de acções concretas que se vieram a repercutir nas políticas públicas

do sector, queríamos também determinar em que medida é que esta influência no interior do governo

resultou em contratações dos colaboradores do núcleo inicial do Metáfora. Neste aspecto, apenas

quatro (36,4%) dos inquiridos disseram possuir qualquer tipo de vínculo laboral com a administração

pública, sendo que sete (63,6%) deram uma resposta negativa.

sua opinião, a “linkania” é “um movimento de auto-organização do caos (...) Um pensamento, uma inserção no mundo das ideias e das coisas”. Trata-se de um conceito imanente, ligado às pessoas. Por isso, acrescenta, o termo não deve ser confundido com uma mera relação de links como a que se encontra na blogosfera ou no software social – como o agregador social de bookmarks Del.ici.ous. (http://del.ici.ous) -, devendo ser encarado como “a generosidade de linkar (...) o acto, o prazer, o amor de buscar na colaboração uma nova forma de produzir e ser feliz. De se compreender como um link. Mais ainda, ela deve ser também vista como “a expressão do engajamento – participação activa – das pessoas em rede. Uma troca generosa de links que catalisa a conversação, provoca e solidifica o engajamento” (Dimantas, 2005).

241

No que toca ao modo como tiveram conhecimento da lista do Metáfora no Yahoo!, três dos inquiridos

afirmaram que já conheciam os fundadores (Felipe Fonseca e Hernani Dimantas) dos tempos da

Joelhasso, a lista precedente mantida por Fonseca; dois disseram que conheceram a lista através de

contactos pessoais com outros membros e três que tiveram conhecimento do colectivo através da

Web.

Em relação às listas de correio electrónico associadas ao projecto Metáfora e seus descendentes –

MetaReciclagem e CoLab - que os inquiridos assinaram e/ou assinam, a lista inicial no Yahoo!

eGroups foi assinada por todos, enquanto que a Xemelê e a lista do MetaReciclagem foi subscrita por

nove, ao passo que a CoLab foi assinada por dez. Destes dados pode-se depreender que a colaboração

no Metáfora não foi completamente efémera, apesar da curta duração do projecto, tendo, na maior

parte dos casos, os laços estabelecidos naquele projecto perdurado ao longo dos anos seguintes. É

preciso notar, todavia, que dos participantes no questionário que responderam que já tinham subscrito

a lista do MetaReciclagem e a CoLab, um acrescentou que tinha, entretanto, deixado de participar em

qualquer das listas associadas ao antigo Metáfora, ao passo que outro caracterizou o seu contacto com

os outros elementos do MetaReciclagem como sendo actualmente muito eventual.

Na medida em que a subscrição das listas não é um indicador completo da participação dos elementos

nos diferentes projectos, tentámos também obter um número de encontros e reuniões presenciais do

Metáfora e do MetaReciclagem em que os inquiridos participaram. Aqui, as respostas variaram muito.

A maior parte, contudo, disse não ter uma noção precisa de quantas reuniões frequentou e quantas

foram realizadas. Uns foram mais vagos, dando respostas como “não tenho a menor ideia”, “não

lembro” ou “inúmeras”. Outros adiantaram um número aproximado:

“Praticamente todas... não saberia estimar. Encontros mais gerais, diria que meia

centena.”

“Nem sei contar, mas certamente, perto de uma centena.”

“Reuniões 'formais' foram talvez uma dezena, mais ou menos. Já as 'informais' são

incontáveis...”

“Do Metáfora, acho que todas (não me lembro quantas houveram). Do Metareciclagem,

devo ter participado de aproximadamente 15-20 reuniões.”

Três dos inquiridos deram, no entanto, um número exacto:

242

“Umas oito.”

“4.”

“Reunião formal 0, encontro com participantes em outros eventos relacionados 2 (de

forma anónima).”

Como se podia esperar, os elementos com uma menor presença em reuniões dos projectos são os que se

lembravam melhor do número de encontros realizados. Apesar da imprecisão dos números avançados,

podemos concluir pela existência de dois grandes grupos de colaboradores do Metáfora e do

MetaReciclagem460: um composto por voluntários com uma participação esporádica e irregular nos projectos

– embora tenham, quase todos, permanecido subscritores de todas as listas - e outro constituído por aquilo a

que podemos chamar um “núcleo” duro de elementos que continuaram presentes no MetaReciclagem após o

fim do Metáfora e para quem este projecto constituiu uma “experiência transformadora nas suas vidas”, nas

palavras de um inquirido461. Esse “núcleo”, localizado maioritariamente na região de São Paulo, teve, por sua

vez, a capacidade de catalisar por via online e offline a participação de outros interessados na metodologia da

metareciclagem. Estes novos voluntários – muitos dos quais desconhecem sequer a origem do

MetaReciclagem - actuam como agentes de replicação da prática dentro das suas comunidades espalhadas

pelo país de forma a estimular o interesse das pessoas locais. Embora o MetaReciclagem assuma um carácter

descentralizado, a função dos elementos desse “núcleo” inicial pemanece importante pois são eles que

articulam os diferentes esporos independentes e facilitam a comunicação entre eles.

4.2 - Opiniões em Relação ao Metáfora e MetaReciclagem

4.2.1 - Inspiração Política dos Projectos

Uma segunda parte do questionário que enviámos por email aos participantes activos do Metáfora e do

MetaReciclagem foi constituída por questões abertas, de âmbito mais vasto, que visaram obter a sua opinião

em relação a ambos os projectos. Assim, comecámos por perguntar se consideravam que as duas iniciativas

tiveram/têm algum cariz político e em que medida. Neste ponto, encontrámos três tipos de respostas:

enquanto alguns realçaram que tudo é político462, outros foram da opinião que o Metáfora e o

460 Não incluimos aqui, obviamente, os lurkers que assinam as listas dos projectos e as pessoas que participaram e participam nas discussões travadas nas listas.

461 Um depoimento semelhante ilustra de modo exemplar a importância que a experiência colaborativa do Metáfora teve nas vidas desse “núcleo”:

Minha vida inteira foi transformada pelas relações que estabeleci a partir do Metáfora. Já morei, trabalhei, namorei com diversas pessoas que estavam lá, e as relações com todas elas continuam até hoje, de diversas maneiras, transformando a vida de todos diariamente.

462 Incluem-se aqui Felipe Fonseca (“acho que qualquer acção humana tem um viés político”), Bermardo Schepop (“qualquer acção que extrapola o espaço privado é uma acção política”) e Daniel Pádua (“tudo o que fazemos tem impactos políticos, uma vez que usamos instrumentos diversos para conjurar mobilizações sociais e arranjos produtivos autónomos diversos”).

243

MetaReciclagem evoluíram progressivamente no sentido de uma apropriação política:

Acho que passaram a ter (um cariz político). Antes, quando eu falava de democracia directa, anarquismo e revolução escutava de volta que precisávamos ganhar dinheiro. O MetaReciclagem foi sendo delineado com inspirações políticas, mas realmente foi ganhando essa cara aos poucos (Adriana Veloso).

O meta é um projecto que visa impactar a microfísica do poder; actuamos num espaço informacional sob uma ética hacker de apropriação e ocupação desses espaços (Hernani Dimantas)

Acho que os assuntos abordados (mais que os projectos), como software livre, reciclagem, media tácticos e democratização da informação tinham abordagens políticas e que ao longo do percurso, alguns transformaram-se ou já eram medidas de políticas públicas. Isso facilitava a absorção, cooptação ou mesmo uma colaboração com algum trabalho político (Giseli Vasconcelos)

Uma terceira corrente de opiniões reconheceu nos dois projectos uma componente política em sentido

amplo:

Se tomarmos o termo 'político' no seu sentido mais amplo, sim. Isto porque cada projecto (...) traz embutidos vários conceitos revolucionários, a grande maioria deles voltados para a democratização da informação, a facilitação e capacitação do acesso às novas tecnologias, a formação de redes sociais e a geração de autonomia/apoderamento, entre outros (Paulo Bicarato)

Acho que os projectos têm relações políticas, sim, na medida em que se propôem a mostrar alternativas às políticas públicas em relação à inclusão digital. Somos um grupo que tem por objectivo experimentar, criar, além dos horizontes que o poder público possui para a articulação e desenvolvimento. É claro que temos por objectivo influenciar esse poder público nas suas políticas, como no caso dos Pontos de Cultura (Dalton Martins).

4.2.2 - Distinção entre Inclusão Digital e Reapropriação Social da Tecnologia

Face à questão do MetaReciclagem visar a inclusão digital, a opinião dominante foi que a sua acção

tem um alcance mais vasto do que o que é normalmente abrangido pelos projectos públicos e de

ONGs que se identificam com esse conceito. Esse âmbito mais alargado é onde se pretende, como o

projecto refere na página de apresentação da sua wiki463, que ocorra a prática da reapropriação da

tecnologia com vista à transformação social. Tendo em conta que, como os próprios referem, se trara

de um objectivo controverso e um pouco vago e abstracto, interessou-nos também saber, na

perspectiva de cada um dos elementos do colectivo, o que é que aproxima e separa essa reapropriação

da inclusão digital. Na opinião de Felipe Fonseca, os dois termos “não são conceitos excludentes”,

embora o primeiro “tenha uma escala mais experimental e uma maior profundidade”. Fonseca

desenvolve esta distinção no texto “O Fantasma da Inclusão Digital”:

463 Ver página em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/MetaReciclagem.

244

A proposta da Metareciclagem é algo muito mais profundo. Trata-se da apropriação de tecnologia e da reapropriação de tecnologia tida como obsoleta, proporcionando e fomentando o uso crítico das ferramentas de comunicação com o objectivo de transformação social. O corte é outro, não o do excluído e do incluído, mas o do uso meramente instrumental contra o uso consciente, engajado e criativo. Exactamente por isso, o nosso caminho nunca foi a montagem em série de telecentros, mas a constante re-invenção, pesquisa e desenvolvimento de novos caminhos. Exactamente por isso, nunca nos concentrámos na equação montagem de estrutura + capacitação e sim em mudar os nossos próprios hábitos de uso da rede464.

Para Dalton Martins, o MetaReciclagem introduz uma nova concepção de inclusão digital na medida

em que “visamos o desenvolvimento da sensibilidade em relação à tecnologia”, através da criação de

autonomia, da promoção da colaboração e da espiritualização das tecnologias. Na sua opinião, a

reapropriação da tecnologia para fins de transformação social é um processo que permite “entender e

compreender as tecnologias descartáveis como estratégias para o desenvolvimento de projectos

pessoais, como possibilidade de geração de trabalho e rendimento, como meio de alavancar

articulações entre pessoas”, indo muito mais fundo que a inclusão digital, “que normalmente tem por

objectivo apenas fornecer o acesso à tecnologia”.

Uma perspectiva semelhante tem Paulo Bicarato, para quem a inclusão digital é uma expressão pobre

relativa a apenas um aspecto mais vísivel entre várias outras questões envolvidas no MetaReciclagem:

“apoderamento (capacitação e valorização de pessoas, gerando oportunidades de rendimento e

trabalho), preservação ambiental (o lixo tecnológico é altamente poluente, e a sua reciclagem reduz

esse potencial), entre outros." Bicarato acrescenta ainda que “obviamente, a simples doação de

máquinas e computadores a uma determinada comunidade não quer dizer absolutamente nada.

Quando esta doação de máquinas vem acompanhada de software proprietário, o problema intensifica-

se: a comunidade, ou as pessoas atendidas, correm o sério risco de tornarem-se reféns de um sistema

monolítico."

De acordo com Hernani Dimantas, o MetaReciclagem trabalha com a inclusão digital de um ponto de

vista colaborativo e emergente que diverge da perspectiva de cima para baixo proposta pelo governo,

pela academia e pelas ONGs.

Na opinião de Daniel Pádua, “a” metareciclagem enquanto reapropriação da tecnologia visando a

transformação social “é uma prática de reconstrução cognitiva constante da linguagem, dos artefactos

e das relações”. Para Pádua, “metareciclar é repensar o mundo a todo instante, em função da

necessidade pessoal, e tornar esta perspectiva imaginária em realidade através da acção colaborativa

sobre ele." Na medida em que este processo “passa por expandir a fronteira da redes telemáticas em

464 Reflexão disponível em http://metareciclagem.org/weblog/?p=4 e redireccionada por Fonseca como resposta à pergunta em causa na entrevista por email que realizámos.

245

todas as direcções, então pode-se dizer que há 'inclusão digital'”.

Por seu lado, Tupi Namba concede que embora o MetaReciclagem vise tal como outras iniciativas de

inclusão digital, “a possibilidade do acesso à Internet e a hardware para os menos favorecidos”, o

projecto distinguiu-se dessas iniciativas que apenas constituem uma continuação do modelo de acesso

das corporações da indústria de telecomunicações centrado nos consumidores e na audiência e da

formação profissional para essas empresas. A aposta do MetaReciclagem está, pelo contrário, na

“capacitação dos agentes como protagonistas e empreendedores de uma forma autónoma e

descentralizada, com conhecimento livre e aberto”.

Na acepção de Adriana Veloso, a reapropriação social da tecnologia “significa pegar uma latinha de

pringles e fazer uma antena, pintar um computador velho e fazer uma instalação num bairro pobre,

sujo e feio, reciclar videocassetes para fazer transmissores de TV, etc. Acho que inclusão digital é

feito como um favor, uma obrigação, um trabalho, etc. Metareciclagem é feito por vontade, por

desejo."

Fazendo uma interpretação mais material, Edney Souza argumenta que "a inclusão digital pura e

simples necessita de investimentos financeiros que serão convertidos em acesso digital”, enquanto

que “a reapropriação da tecnologia requer capital humano para transformar sucata em vias de acesso

digital.” Já André Passamani/Maratimba salienta que a reapropriação proposta pelo MetaReciclagem

é uma abordagem libertária do mesmo tema da inclusão digital “no sentido de não haver um

conformismo... uma acomodação ao status quo”.

Alguns inquiridos, contudo, não concebem de todo o MetaReciclagem como uma acção de inclusão

digital. É o caso de Giseli Vasconcelos, para quem "a reapropriação tecnológica é de transformação

quando conjuga a consciência (política e social) do uso da tecnologia com a habilidade (que pode ser

mínima) de recondicioná-la ou transformá-la para dar voz, disseminar e democratizar. A

(re)apropriação é um instrumento amplo que não determina quem está ou não incluído (...)

dinamizando possibilidades mais abrangentes para quem está a frente ou não das máquinas".

Após apresentadas estas diferentes perspectivas sobre o que é a reapropriação da tecnologia para fins

de transformação social e o que a distingue da inclusão digital, a ideia que transparece é que se

tratam, como afirma Bernardo Schepop, de questões complexas para as quais não existem respostas

objectivas. Em lugar destes conceitos, Schepop prefere empregar a palavra inclusão em sentido amplo

– atribuindo pouca importância ao adjectivo “digital” - na medida em que “para conseguir o

envolvimento dos grupos 'participantes' tem que se ir muito além dos computadores. Só os uns e zeros

246

não dão conta do recado de incluir quem quer que seja”.

4.2.3 - Avaliação dos Pontos Fortes e Fracos

De forma a obter um retrato mais pessoal das experiências obtidas por intermédio do Metáfora e do

MetaReciclagem que permitisse ao mesmo tempo distinguir claramente entre um projecto e outro,

questionámos os inquiridos sobre o que consideravam melhor e pior nos dois colectivos e, no caso do

MetaReciclagem, quais as eventuais sugestões que propunham para colmatar esses problemas.

Um dos aspectos positivos do Metáfora mais mencionados foi a afinidade criada entre os seus

participantes, simultaneamente resultado e consequência da troca de ideias na lista e dos projectos

desenvolvidos. Do lado oposto, a dispersão e o egocentrismo resultante foram alguns dos aspectos

negativos mais citados pelos inquiridos.

Paulo Bicarato, por exemplo, destaca como mais positivo “o envolvimento apaixonado da maioria dos

integrantes e a intensa discussão conceptual que sempre norteou todo o grupo”. Mas na sua opinião

essa “mesma paixão (...) levou por vezes à dispersão de parte dos integrantes. E faltaram,

naturalmente, em determinados momentos, recursos financeiros inviabilizando determinados acções”.

As amizades estabelecidas e os “metaprojectos” levados a cabo são favoravelmente destacados por

Adriana Veloso, para quem os piores aspectos do colectivo foram o “egocentrismo” e “as críticas

levadas para o lado pessoal que decorreram em brigas”.

As afinidades estabelecidas entre os participantes e a organização colaborativa de eventos como

festivais, encontros e projectos são referidos por Giseli Vasconcelos como pontos fortes do projecto.

Na sua opinião, os pontos fracos consistiram nas “brodagens (compadrio) e hierarquias” que se foram

desenvolvendo naturalmente, “criando dissidências constantes (principalmente entre projectos)”. De

modo semelhante, Daniel Pádua salienta como mais positivo “o encontro das pessoas” e negativo “a

fragmentação das relações estabelecidas horizontal e descentralizadamente, devido a algumas sub-

organizações autoritárias e altamente estruturadas”.

A falta de uma estrutura organizativa mais estável é criticada por Tupi Namba, em particular a

“dependência de articuladores presenciais, a ausência de inventário e património digital” como

“software, serviços online, arquivos dos sites e conversas”, para além da inexistência de “um modelo

de sustentabilidade e de distribuição de recursos” que fosse “transparente, autónomo e

desterritorializado”. Em compensação, Tupi realça pela positiva o MetaReciclagem e os projectos

realizados em cooperação com autarquias.

247

Para Dalton Martins, por seu lado, “o melhor foi a multidisciplinaridade e o carinho que as pessoas

tinham por aquelas discussões. O pior foi quando tentamos virar uma ONG. Aí apareceu muitos lados

que não foi legal ter conhecido de algumas pessoas”. Edney Souza assinala ainda que o Metáfora fez-

lhe “perceber que o esforço de cada indivíduo faz a diferença e pode transformar vidas. Contudo, não

deixa de registar como desagrável o facto de ter havido pessoas que “utilizaram as criações do

colectivo para a sua própria ascensão profissional”. A visão mais optimista da experiência do

Metáfora encontra-se, no entanto, no testemunho de Bernardo Schepop: “Não teve nada de pior. Foi

o que tinha que ser.” Schepop destaca como mais positivo a união de ideias possibilitada pelo

projecto.

Fazendo a mesma questão a respeito do MetaReciclagem, Adriana Veloso considera que “a expansão

do projecto” foi o seu ponto forte, criticando por outro lado a tendência para a centralização que este

revela. De modo a resolver este problema, sugere a documentação do que foi feito até agora e a

adopção de uma metodologia formatada de modo a “dar suporte aos esporos”. A “universalidade” do

projecto é também outra característica salientada por Paulo Bicarato, na medida em que “pode ser

ampliado para qualquer lugar do mundo (...) A inclusão do MetaReciclagem em projectos do

Ministério da Cultura, do Governo Federal, também mostra como os conceitos podem ser absorvidos

como políticas de Estado, independentemente de questões partidárias”. Dalton Martins refere-se a

esse modelo de replicação como “livre” e “solto. Na sua opinião, “o pior é sempre a incerteza dos

rumos a tomar, embora também usamos isso como forma de aprendizagem. Minha sugestão é: crie

livre, experimente livre que as coisas (...) podem seguir cursos extremamente interessantes...”.

O “carácter anti-autoritário e anti-consumista” das acções é, para Daniel Pádua, o melhor do

MetaReciclagem, sendo o pior “o excessivo condicionamento às linguagens digitais”. Por isso

propõe: “Conversem com outras linguagens – expressão corporal, escrita -, aprendam a compartilhar

conversando sem o computador”. O defeito de “um certo tecnocentrismo” é também reconhecido por

Felipe Fonseca, segundo o qual a parte mais positiva é “o dinamismo e as provas concretas de que o

conceito de esporos funciona realmente”. Apesar de ter aberto espaço para outros projectos no sentido

da esporificação, o MetaReciclagem, admite Hernani Dimantas, “está a perder a capacidade de auto-

crítica e de mediactivismo ao ficar ensismado em metodologias que nem sempre são tão colaborativas

como pregadas pela articulação”.

Na perspectiva de André Passamani/Maratimba, mal grado “as oportunidades e liberdade

conquistadas”, existe “uma falta de método” e de “continuidade nos projectos”. Já TupiNamba

identifica como mais positivo o intercâmbio com movimentos do exterior (Holanda e Índia), o

248

laboratório de media tácticos IP:// no Rio de Janeiro e a projecção das lideranças nos media

comerciais e instituições. Alerta no entanto, para um “excesso de discussão teórica e ajuste ao direito

estabelecido, falta de desobediência civil e articulação com movimentos populares” como

“cooperativas de reciclagem, Movimento Sem Terra, sem-teto, vendedores ambulantes, motoristas,

autonómos”. Tal como na resposta à pergunta anterior, Bernardo Schepop não destaca nenhum

aspecto negativo: “A iniciativa em si é o melhor do projecto (...) Alguns insucessos decorrentes de

tentativas fazem parte, são ensinamentos importantes”.

4.2.4 - Visões Pessoais Sobre o Metáfora e o MetaReciclagem

Por último, procurámos obter dos inquiridos a sua opinião pessoal e resumida sobre o que foi o

Metáfora e o que é actualmente o MetaReciclagem. Alguns dos participantes encaram ambas as

iniciativas como TAZs efémeras onde “o ciclo de colaboração só pode existir com a impermanência

das acções”, como Dimantas refere, uma vez que “a continuidade traz consigo a burocratização das

acções e a falta de diálogo”:

O Metáfora abriu as possibilidades de reapropriação de ideias e a catalização dos conhecimentos. O MetaReciclagem deu continuidade ao processo, tende a extinguir-se com o próprio crescimento (Hernani Dimantas)

(Foram) projectos de vida :) Em primeiro lugar, uma vivência colectiva radical, de questionamento profundo sobre as fronteiras da criatividade e do trabalho colectivo (Felipe Fonseca).

Uma maioria de inquridos faz no entanto uma distinção clara de um projecto do outro, concebendo o

Metáfora como um laboratório de ideias, provisório e temporário, e o segundo como o resultado

concreto dessa “incubadora colaborativa” que subverte a lógica tradicional dos projectos de inclusão

digital. Um testemunho representativo é o de Tupi Namba, que entende o Metáfora como tendo sido

um “lugar para conversar sobre alternativas terceiro-mundistas de uso de tecnologia, caminhos para

inclusão social adaptados às mudanças do sistema económico” e onde os media tácticos e o software

livre eram compreendidos como “instrumentos de transformação económicos e social”. Mais ainda,

na sua opinião, este espaço serviu para colocar em prática alguns projectos e performances. Segundo

Tupi, o MetaReciclagem constitui uma “alternativa não-corporativa aos programas de inclusão

digital”, bem como um “possível embrião de um modelo de educação, negócios e empreendimentos

adaptados à realidade terceiro-mundista tupiniquim”. Outros depoimentos de participantes

corroboram esta posição:

Metáfora foi a porta para um novo mundo. MetaReciclagem é o jeito de viver nesse novo mundo (Dalton Martins).

249

O Metáfora foi a semente de um novo movimento de rearranjo social a partir de dinâmicas menos focadas na propriedade e autoridade e mais ligadas à solidariedade, ludicidade e autonomia. O Metareciclagem é a primeira instância concreta desse rearranjo social. E tem muito ainda a evoluir (Daniel Pádua)

Metáfora é (foi) um grande laboratório de idéias: todos *xemelizando* conceitos e idéias, culminando na concretização de alguns projetos específicos, como o MetaReciclagem.

São, ambos, uma somatória de tudo isso citado acima. E, ao mesmo tempo, uma certeza de que se pode construir algo somente com a união de algumas pessoas, e uma esperança de que podemos construir um mundo mais justo e colaborativo (Paulo Bicarato).

Metáfora mostrou-me que existe vida além do limbo digital, vida pensante e ativa, MetaReciclagem é a ação resultante desse pensamento vivo, uma prova de que a organização social como conhecemos e as teias que envolvem os grupos estão para ser redefinidas num futuro próximo (Edney Souza).

Metafora foi... uma ilusão colectiva? Não, na verdade acho que (...) foi uma tentativa muito bem sucedida do Felipe de unir pessoas interessantes, pensantes em uma lista ativa. O Metareciclagem para mim é um exemplo de como se deveria fazer 'inclusão digital' (Adriana Veloso).

Por último, registámos também as impressões de um grupo de participantes do núcleo inicial do

Metáfora que se desligaram do colectivo após o seu fim e o prolongamento autónomo do

MetaReciclagem:

Entendi que o Metáfora estava mais para um levantamento Hakin Bey, uma TAZ, que para uma acção. O Metáfora era um XML, ou xemele, no sentido de um código aberto de informações (...) Deste levante muitas foram as idéias novas. Um fluxo intenso (...) A interacção entre alguns persiste, mas o Metáfora não existiu de forma tangível (Bernardo Schepop).

Metáfora foi uma junção de assuntos e idéias pertinentes ao período (principalmente concentrada numa grande cidade), que necessitavam de discussão para esclarecer/desmistificar/facilitar práticas, visando alguns pontos críticos da relação da tecnologia da informação com a sociedade (Giseli Vasconcelos).

250

Conclusão Final

O termo media tácticos foi introduzido por David Garcia e Geert Lovink no âmbito do Festival Next

Five Minutes, que se realiza desde 1993 de três em três anos em Amesterdão para designar um

conjunto de meios de comunicação DIY (Do-It-Yourself – Faça Você Mesmo) que estavam na altura,

em meados dos anos 90, a emergir na Europa Central e do Norte, como resultado da colaboração entre

grupos de artistas, hackers e activistas que tiravam partido de tecnologias electrónicas acessíveis

como o cabo, o computador e, progressivamente, a Internet para fins não-comerciais, artísticos e

subversivos (Garcia e Lovink, 1997).

Esta teoria dos media tácticos parte da distinção entre “tácticas” e “estratégias” que Michel de Certeau

aplica à relação entre o consumidor e a produção das indústrias culturais (Certeau, 1990 [1980]). Ao

conjunto de artimanhas e de astúcias que o utilizador rebelde emprega para subverter de forma

subreptícia e fragmentária o discurso dominante, o autor francês atribui a designação de tácticas,

opondo a este conceito o de estratégia, que corresponde aos modos de agir do poder económico,

político e científico através de relações de força relativas a um lugar que pode ser circunscrito a um

próprio. O princípio de táctica é contraposto por Certeau ao de estratégia no sentido em que não

possui um local próprio, antes, insinua-se no lugar do outro, evitando o confronto directo e

enveredando por intrusões temporárias e silenciosas no território do inimigo, através de acções de

roubo, sabotagem e sequestro. Trata-se de uma “arte do fraco”, em que este “deve incessantemente

tirar partido de forças que lhe são estranhas”.

Os media tácticos inserem-se assim na tradição dos media alternativos remontando aos anos 60, com

as fanzines, as primeiras rádio e televisões comunitárias e os samizdats elaborados na Europa do

Leste ainda durante o período de influência soviética. Mas ao contrário destes meios de comunicação

que se apresentavam como porta-vozes de uma contra-cultura e assumiam muitas vezes identidades

ideológicas estáveis – em consequência da ligação a partidos políticos e movimentos sociais -,

acabando por se afirrmar como alternativas aos media de massas, os media tácticos optavam por

infitrar-se no discursos dominante através de tácticas quase sempre de curta duração, recusavam as

certezas ideológicas das décadas anteriores, e, na medida em que enveredavam por um

experimentalismo radical e sem fronteiras disciplinares, rejeitavam as dicotomias rígidas entre

amador e profissional, artista e activista, público e privado, etc (Garcia e Lovink, 1997 e 1999).

Para além da influência dos media alternativos, os media tácticos reaproveitaram um conjunto de

técnicas e conceitos teóricos antecedentes como: o détournement, uma prática artística utilizada nos

anos 50 pelos situacionistas que consistia na apropriação de imagens e palavras veiculadas pela

251

cultura de massas de forma a transmitir novas mensagens de teor subversivo (Debord e Wolman,

1956); a ideia de Zona Temporária Autónoma, introduzida por Hakim Bey nos anos 80 para se referir

a uma estética de fuga, desvio e sabotagem sustentada em espaços de libertação ocupados por

nómadas, enclaves à margem ou mesmo contra o sistema e a Lei (Bey, 2001 [1991]); e o rizoma de

Deleuze e Guattari (1980), que devido à sua estrutura de múltiplas ligações desentralizadas alguns

autores como Stefan Wray (1998) associam às novas redes de resistência como a dos zapatistas e

outros movimentos por uma globalização alternativa que se desenvolveram no mesmo contexto

temporal dos media tácticos, sobretudo após os protestos de Seattle contra a OMC, em 1999.

De igual modo, o movimento do software livre contribuiu decisivamente para o desenvolvimento dos

media tácticos. Para além da identificação com os valores da cooperação e partilha de conhecimentos

que caracterizam a ética e cultura hacker dos programadores daquele tipo de software, os grupos e

colectivos que realizam este tipo de produção mediática promovem também, à sua maneira, a

dissolução entre utilizador e produtor, de uma forma auto-didacta. Daí que a opção por programas

livres e abertos para os seus trabalhos seja bastante frequente.

Com o intuito de demonstrar uma das nossas hipóteses iniciais de investigação, a saber, que as

tácticas de protesto dos media tácticos representam uma posição de permanente combate contra um

adversário concreto e explícito (Estado-nação, instituição supra-nacional ou empresa transnacional),

efectuámos uma análise teórica das práticas associadas a este tipo de produção mediática, como a

sabotagem publicitária do Culture Jamming, os ataques de desobediência civil electrónica e outros

protestos virtuais de hacktivismo, o experimentalismo estético online e offline com motivações

políticas do artivismo e o modelo de jornalismo em publicação aberta da Indymedia.

Na medida em que se baseiam numa linguagem de guerrilha e beligerante, estes colectivos correm o

risco se tornarem uma simples replica em forma de espelho desse inimigo, funcionando como

produtores de contra-propaganda, manipulando, exagerando os factos e abusando do sensacionalismo,

ou ate recorrendo a destruicao de informacao, o que contribui para a sua descredibilizacao. Por outro

lado, a cooptação ou recuperação das próprias técnicas dos activistas através da apropriação dos

símbolos com conteúdo subversivo que passam a ser empregues para difundir mensagens com fins

comerciais e de controlo é também um risco constante, na medida em que os media tácticos acabam

frequentemente por reflectir em forma de espelho a forma de actuação dos seus grandes adversários,

as grandes empresas transnacionais.

Um modelo alternativo de media tácticos

252

Partindo da outra hipótese colocada no início da nossa investigação, a análise que efectuámos aos

projectos brasileiros Metáfora e MetaReciclagem teve como objectivo verificar a existência de um

modelo alternativo de media tácticos relativo a iniciativas que apesar de partilharem do

experimentalismo, da efemerabilidade, flexibilidade, hibridismo e amadorismo que caracterizam os

projectos tradicionalmente são classificados como pertencentes a este movimento, como por exemplo,

a rede Indymedia, os Adbusters, a RTMark e outros colectivos hacktivistas e artivistas, não se

identificassem com a retórica e as práticas de protesto e de denúncia de um adversário concreto

empregues por aqueles.

Não possuindo uma agenda política de protesto que se possa comparar ao activismo de outros

projectos que são classificados e se assumem como media tácticos, a abordagem adoptada pelo

Metáfora e continuada, pelo menos parcialmente, pelo MetaReciclagem tem importantes implicações

políticas que se coadunam com o sentido do termo de tácticas na acepção original de Michel de

Certeau, isto é, truques e astúcias, manipulações e subversões várias que no seu conjunto, consistem

numa arte do fraco contra o forte, embora não num sentido de confronto directo e intencional.

A “caordem” e o “Xemêlê” que orientaram permanentemente a actividade do Metáfora podem ser

vistos como metáforas para os conceitos de nomadismo, hibridismo, mobilidade, amadorismo que

autores europeus e norte-americanos como Garcia e Lovink e o Critical Art Ensemble (2001)

empregam e que são normalmente aplicados a práticas com contornos mais activistas e de protesto.

Nesse sentido, esses termos exprimem uma adaptação “tropicalista” dos media tácticos que esteve

sempre presente em ambos os projectos, embora muitas vezes de um modo não-deliberado.

Partindo do contexto da sociedade brasileira, marcada por grandes contrastes económicos, estas

iniciativas visam oferecer métodos para transformar as ferramentas mediáticas de forma a melhorar a

vida da população, tendo em conta que esta é maioritariamente pobre e afastada da tecnologia, da

cultura letrada, do mercado e da Democracia. Segundo Felipe Fonseca, essas pessoas que vivem em

bairros periféricos não têm nada para dizer nem pretendem afirmar algo a um público; querem apenas

comunicar, conversar e interagir entre si. Para tal, dá como exemplo o facto de os telecentros públicos

serem principalmente utilizados para aceder às salas de chat (Fonseca, 2003a)465.

Na medida em que a cultura brasileira é entendida por Fonseca como uma cultura hacker, nesta

465 No ensaio “Brasil is a Hacker Culture”, apresentado na edição de 2003 do festival Next Five Minutes, na Holanda, Fonseca enquadra esta capacidade comunicacional tipicamente brasileira na linhagem de uma cultura hacker fruto de hibridizações, miscenizações e nomadismos vários que remontam ao período colonial, aos cultos religiosos dos escravos negros que combinavam os deuses africanos com os santos católicos, percorre o movimento modernista antropofágico das primeiras décadas do século XX e os tropicalistas dos anos 60 que fundiram o Rock com o samba, chegando, mais recentemente, aos “camelôs” ou vendedores ambulantes que, fugindo aos impostos, vendem produtos roubados e CDs pirateados para poderem sobreviver no meio de uma economia em crise (Fonseca, 2003a)

253

perspectiva o papel tradicional dos media tácticos deixa de fazer sentido, uma vez que o interesse da

população na utilização dos media não é tanto o de atingir uma audiência, mas o de falar entre si. Isto

explica, na sua opinião, a incapacidade da maioria dos projectos tácticos que envolvem a produção de

media por pessoas pobres em produzir conteúdos com uma mensagem crítica, não passando quase

sempre de “uma paródia ou simulacro dos media comerciais tradicionais” (idem).

Na opinião de Felipe Fonseca, a população brasileira não necessita de jornais locais, rádios

comunitárias e vídeos amadores mas de media que utilizem a comunicação para integrar as pessoas de

forma a que estas possam partilhar a informação que realmente importa para elas. Tendo em conta

esta especificidade local, a função dos media tácticos não consistiria tanto em trazer mais pessoas

para a era da informação, mas em “transformar a tecnologia de forma a que elas possam melhorar de

algum modo a sua qualidade de vida” (ibidem). Detectando traços comuns na actividade do Metáfora

e do centro de media Sarai, propõe um modelo periférico de media tácticos relativo a países como o

Brasil e a Índia em que a comunicação no sentido de diálogo entre muitos e da integração de

comunidades em torno de objectivos comuns ocupe o lugar da transmissão unidireccional de

informação, constituindo “uma rede à margem dos media tácticos, mas que talvez não seja

classificável como tal. Mais uma reinvenção dos media. Pessoas que se esforçam em criar novos usos

para a tecnologia” (Fonseca, 2003c).

Esta última frase assemelha-se à ideia expressa pelo escritor de ficção científica William Gibson

quando escreveu que “a rua encontra sempre novos usos para as coisas”, isto é, a tecnologia.

Referindo-se às suas divergências com o modelo euro-americano de media tácticos como contra-

propaganda, Felipe Fonseca deixa algumas pistas para o futuro deste tipo de práticas mediáticas no

contexto de países periféricos como o Brasil:

Se vamos pensar num medium (ou vários media) que tenham o objetivo explícito de beneficiar milhões de pessoas que hoje estão ausentes do debate sócio-político-científico-cultural, não podemos criar simulacros dos media de massas. Claro que estes são úteis, mas com o objetivo único de desmascarar a credibilidade das mega-corporações de comunicação. Mas isso é combater o passado e o presente. Se vamos pensar no futuro, creio que devemos infundir desde o início as possibilidades que surgem com as novas tecnologias: a colaboração, o relacionamento de pessoas com pessoas (e não de mensagens para pessoas), a construção de conhecimento colectivo e adequado a cada realidade (...) Digo, não fazer contra-media, mas romper as nossas hesitações em relação ao uso de tecnologia (tinta na caverna, lápis e papel, Jabber466 e Drupal) para juntar as pessoas com ideias, perspectivas e objetivos em comum. Pensar em estratégia e táctica autoconstruindo-se, simultaneamente (Fonseca, 2003b).

Nesta dissertação, foi nossa intenção realçar a distinção entre um modelo periférico e um modelo

activista de protesto e denúncia dos media tácticos, associado aos colectivos da Europa Ocidental e da

América do Norte, em particular, através das análises empíricas que efectuámos quer ao

466 Software open-source de Instant Messaging. Disponível em http://www.jabber.org.

254

Metáfora/MetaReciclagem, quer ao CMI-Portugal. Na medida em que o Indymedia português vê-se

obrigado a recorrer à censura e à centralização das tarefas de edição para aplicar a sua política

editorial467, acaba por correr o risco de cometer os mesmos erros que denuncia nos órgãos de

comunicação social dominantes, como a falta de transparência e a propaganda ideológica. Em

contraste, tanto o Metáfora como o MetaReciclagem basearam-se num ambiente online aberto e

colaborativo (wikis e listas de discussão não-moderadas), tendo adoptado uma estrutura

descentralizada de núcleos autónomos, uma “caordem” situada entre o caos e a ordem que, apesar de

implicar uma actuação a curto prazo e efémera, elimina qualquer nível de intermediação entre o

medium ou a tecnologia e o indivíduo que possa constituir um obstáculo à auto-produção mediática.

“Reservas feitas, os nomes conhecidos por aí de media tácticos fazem uma espécie de contra-media.

Muitas vezes usam as mesmas ferramentas dos media de massa (manipulação, exagero, falso

testemunho, sensacionalismo) no sentido contrário”, criticou Felipe Fonseca (2003c), para quem a

maior parte das iniciativas do projecto Metáfora “não foi exactamente activista” no sentido do modelo

tradicional de media tácticos468. Dois anos depois do fim do Metáfora, Fonseca esclareceu a sua

posição a este respeito na entrevista que realizámos:

O nosso trabalho nunca foi tão concentrado na questão mediática em si. Sempre houve um grande interesse pelas acções de media tácticos, mas creio que não constituímos um agente coerente que se limitou a esse contexto. A MetaReciclagem chegou inclusive a questões muito mais profundas do que somente a comunicação: propondo a desconstrução das tecnologias e o estudo das gestualidades a que essa desconstrução conduz, pudemos propôr outro tipo de questões a respeito do papel que as tecnologias podem desempenhar na transformação pessoal (Fonseca, 2003b)

No entanto, esta desconstrução da tecnologia parece estar no cerne de toda a actividade dos media

tácticos, de acordo com alguns autores como Alexander Galloway (2004: 206) para quem o objectivo

deste tipo de práticas é moldar a tecnologia de forma a que dê resposta às verdadeiras necessidades e

desejos dos utilizadores ou com Graham Meikle (2002: 119), segundo o qual se tratam de utilizações

subversivas e/ou criativas das tecnologias de comunicação por indivíduos normalmente excluídos do

acesso a elas. Numa entrevista realizada por ocasião de uma visita ao Brasil, Geert Lovink chega

mesmo a referir o MetaReciclagem como um exemplo de um modelo alternativo de media tácticos

que vai para além das meras tácticas antagonistas e de protesto para interferir no quotidiano das

467 Neste sentido, as conclusões do estudo de caso que efectuámos ao CMI-Portugal vão de encontro a algumas das previsões que Graham Meikle (2003) a efectuou respeito da Indymedia a propósito das alterações introduzidas a nível global em 2002 pela rede informativa no sentido da moderação e do relegar para um local menos destacado nos sites do sistema de publicação aberta. Na sua opinião, estes sinais poderiam apontar para uma edição mais apertada e centralizada, de forma semelhante à que ocorre aos órgãos de comunicação social comerciais e alternativos. Gal Beckerman (2003) descreve também o modo como a moderação foi implementada no site do CMI de Nova Iorque (nyc.indymedia.org). A autora considera que apesar de se ter tratado do abandono de parte do ideal democratico do projecto, as alterações implementadas foram inevitáveis de forma a salvar o projecto.

468 Ver cópia de arquivo de entrada do blog de Fonseca datada de 25 de Setembo de 2003 que contém o conteúdo de uma mensagem trocada com Mónica Narula do Sarai : http://web.archive.org/web/20040627074405/http://hipocampo.hipercortex.com/pivot/entry.php?id=38

255

pessoas:

Raquel Rennó: (...) Você disse, em entrevista à revista Artnodes que “existe uma distância entre assuntos abstractos como a dívida do Terceiro Mundo, os acordos mundiais de comércio, as políticas financeiras e a miséria quotidiana, com a sua luta local, concreta. Não creio que o activismo na internet, ou aliás, os media tácticos, sejam capazes de superar essa distância. O que podemos fazer é um intercâmbio de conceitos”. As acções de grupos como o Irational, de Daniel Andújar, da Espanha, ou o Metareciclagem, do Brasil, não serviriam como exemplos de procedimentos concretos que pretendem ir além da simples denúncia, criando uma possibilidade de interferência local através da educação digital (ensinar as pessoas a construir hardware e a usar software de fonte aberta) de indivíduos economicamente excluídos?

Geert Lovink: Sim, a maior parte dos grupos de media tácticos facilita o acesso a fim de fomentar novos diálogos. Não há nada contra isso. No entanto, o que me interessa mais é o que acontece a seguir, depois do acesso e do intercâmbio. Na minha opinião, as iniciativas interessantes de media tácticos não apenas facilitam, mas questionam e desconstroem, especialmente a mitologia das suas próprias tecnologias.

O Irational e o Metareciclagem não são telecentros comuns que fornecem formação para o uso de software hegemónico. Tratam-se de projetos profundamente metafóricos, críticos, conceptuais. São protótipos. Realizam experiências sociais numa era de demo design. Constróem memes (Lovink, 2005).

Na medida em que propõe uma reapropriação activa das tecnologias de informação e comunicação, o

MetaReciclagem pode ser entendido como uma forma de bricolage, artesanato tecnológico, que opõe

o conhecimento fechado do engenheiro e técnico especializado a uma abordagem aberta assente na

autonomia do indíviduo em relação ao hardware, que passa pela liberdade para abrir os

computadores, entender o seu funcionamento, juntar novas peças e assim “criar novas classes de

máquinas pensantes”. O computador deixa de ser um instrumento de domínio, uma caixa preta

impenetrável a que o utilizador se deve submeter de modo a adquirir as capacidades valorizadas no

mercado de trabalho, passando a ser “um brinquedo onde as peças se encaixam, surgindo de repente

um conjunto de novas possibilidades”469.

Neste sentido, estamos perante uma reinvenção da táctica da sucata, essa “arte do desvio” que Michel

de Certeau refere como uma das práticas, juntamente com o acto de ler, cozinhar ou deambular pela

cidade, que “introduzem jeitos de artistas e competições de cúmplices no sistema da reprodução e da

compartimentalização pelo trabalho e pelo lazer” (Certeau, 1990 [1980]: 50). Para o teórico francês,

o trabalhador que recupera material descartado para proveito próprio e utiliza as máquinas por conta

própria deitado fora pela fábrica onde trabalha, subtraindo à fábrica tempo com vista a um trabalho

livre, criativo r não lucrativo, realiza “golpes” no terreno da ordem estabelecida. Desta forma, o

MetaReciclagem, ao negar a obsolescência forçada da tecnologia pelo mercado, surge também como

469 Ver entrada “Hardware Aberto” do Livro Verde na wiki do MetaReciclagem em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/LivroVerdeHardwareAberto.

256

uma forma de se insinuar junto do sistema tecnológico como “um estilo de trocas sociais, (...) de

invenções técnicas e (...) de resistência moral, isto é, uma economia do «dom» (de generosidades

como desforra), uma estética de «golpes» (de operações de artistas) e uma ética da tenacidade (mil

maneiras de negar à ordem estabelecida o estatuto de lei, de sentido ou fatalidade” (idem: 45-46).

257

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