Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
Departamento de Sociologia
Tecnologias de Resistência:
Transgressão e Solidariedade nos Media Tácticos
Miguel Afonso Caetano
Dissertacao submetida como requisito parcial para obtencao do grau de
Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação
Orientador:
Prof. Doutor Gustavo Leitão Cardoso
Maio, 2006
AGRADECIMENTOS:
● Agradeço em primeiro lugar à minha mãe, pelo apoio na elaboração desta dissertação, mesmo
nas alturas em que eu pensava que não ia conseguir, e pelo trabalho que teve de edição de
grande parte do texto;
● ao Felipe Fonseca, ao Hernani Dimantas e ao Daniel Pádua, pela enorme gentileza e as
conversas trocadas a um oceano de distância;
● ao Dalton Martins, com quem passeei pelas ruas da Baixa de Lisboa numa tarde chuvosa de
Novembro;
● ao Miguel Leal, por se ter disponibilizado a publicar no Vector da Virose um artigo que serviu
para consolidar o meu pensamento crítico sobre os media tácticos;
● à Karla Brunet, por me ter ajudado a dar um rumo concreto à minha investigação;
● ao meu orientador, o Professor Gustavo Cardoso;
● ao Professor José Luís Garcia, por me ter feito acreditar que vale a pena reflectir de um modo
crítico sobre a tecnologia e os media.
RESUMO:
Resultando da convergência entre os media, a tecnologia, a arte e a política, os media tácticos constituem um conjunto de práticas culturais e um movimento teórico surgido na Europa durante a primeira metade da década de 90, difundindo-se até ao final do milénio para a América do Norte e posteriormente para o resto do mundo. Tirando inicialmente partido das câmaras de vídeo mas também, a partir de uma certa altura, das tecnologias digitais como CD-ROMs e a Internet, o produtor deste tipo de media assume-se como um híbrido, desempenhando em simultâneo o papel de artista, activista, teórico e técnico.
Este tipo de utilizações subversivas e/ou criativas das tecnologias de informação e comunicação por indíviduos normalmente excluídos do seu acesso caracteriza-se pelo experimentalismo, a efemerabilidade, a flexibilidade, a ironia, o amadorismo. Partindo da distinção entre tácticas e estratégias estabelecida por Michel de Certeau e retomada por autores como David Garcia e Geert Lovink, esta dissertação examina o modo como os media tácticos se apresentam como “media de crise, crítica e oposição”. Empregando uma análise teórica das práticas de alguns colectivos, pretendemos demonstrar que as tácticas de protesto destas formas de produção mediática representam uma posição de permanente combate contra um adversário concreto e explícito (Estado-nação, instituição supra-nacional ou empresa transnacional).
Depois de abordarmos os perigos a que este modelo antagonista dos media como arma de resistência induz, propomos uma perspectiva alternativa de media tácticos a partir de uma análise empírica de dois projectos brasileiros, o Metáfora e o MetaReciclagem. Em conclusão, argumentamos que estas e outras iniciativas de base adaptam as práticas de subversão e resistência observáveis nos colectivos activistas dos países desenvolvidos às especificidades de um país periférico como o Brasil. Ao fomentarem a reapropriação da tecnologia para fins de transformação social, estes grupos potenciam as capacidades criativas e comunicativas das comunidades locais, com vista à sua auto-sustentabilidade e autonomia.
Palavras-chave: media tácticos, estratégias, activismo mediático, media alternativos, hacker, software livre, reapropriação tecnológica, reciclagem, Brasil.
ABSTRACT:
Resulting from the convergence between media, technology, art and politics, tactical media are a set of cultural practices and a theoretical movement which started in Europe during the first half of the 90s, having spread to North America until the end of the millenium and, afterwards, to the rest of the world. Initially taking advantage of video camcorders but also, later, of digital technologies such as CD-ROMs and the Internet, the producer of this kind of media acknowledges himself as as a hybrid, performing simultaneously the role of an artist, activist, theorist and technician.
These subversive and/or creative uses of information and communication technologies by individuals who normally don't have access to them are characterized by experimentalism, ephemerality, flexibility, irony and amateurship. Based on the distinction between tactics and strategies developed by Michel de Certeau and continued by David Garcia and Geert Lovink, this dissertation examines the way tactical media present themselves as "media of crisis, critique and opposition". By applying a theoretical analysis of some collectives, we intend to demonstrate that the protest tactics of these media production forms represent a position of permanent struggle against a concrete and explicit opponent (nation-state, supranational institution or transnational corporation).
After addressing the dangers that this antagonist model of media as a weapon of resistance can lead to, we propose an alternative perspective of tactical media built on an empirical analysis of two brazilian projects, Metáfora and MetaReciclagem. Finally, we argue that these and other grassroots initiatives adapt the practices of subversion and resistance visible in the activist collectives of developed countries to the local settings of a peripheral country like Brazil. By fostering technological reappropriation for social transformation, these groups unleash the creative and communication capacities of these communities, towards their self-sustainability and autonomy.
Keywords: tactical media, strategies, media activism, alternative media, hacker, free software, technological reappropriation, recycling, Brazil.
As resistências já não são marginais, mas sim activas no centro de uma sociedade que se abre em
redes.
- Michael Hardt e Antonio Negri, Empire
Os media tácticos são o que são quando o necessitam de o ser
Os media tácticos não são nem de esquerda, nem de direita. São um conjunto de abordagens em
constante evolução, motivado pelas necessidades e interesses específicos dos seus criadores.
Os media tácticos são um ethos.
Os media tácticos alimentam-se de ar, respiram debaixo de àgua e vivem na escuridão; excepto
quando necessitam de se expor à luz do sol; nadar pelo ar e beber vinho. Os media tácticos são
uma afirmação do direito de associação; defendem a liberdade de associação e prosperam em
associações promíscuas.
Os media tácticos são sempre produzidos colectivamente, mesmo quando um autor individual os
produz.
Os media tácticos afirmam a acção do indivíduo, mesmo quando são grupos a produzi-los. Os
media tácticos são guiados por uma relação amorosa com a teorização.
Os media tácticos odeiam a Poi, mesmo se lêem teoria compulsivamente.
Os media tácticos são pensamento enquanto acção.
Os media tácticos não suspeitam das emoções fortes. Sabem que as emoções podem levar as
pessoas à acção; e, no entanto, os media tácticos conduzem as pessoas à acção.
Os media tácticos não são a articulação do seu criador. Os media tácticos são um lugar na
linguagem por onde se comunica. Como tal, são sempre sujeitos à apropriação.
Os media tácticos nunca são o vestido; são o par perfeito de brincos que dão bem com os teus
olhos; os sapatos elegantes; o sorriso confidente. São sedução.
Os media tácticos têm um sentido irónico de humor e um coração sincero.
- Gregg Bordowitz, “What is Tactical Media? An open-ended list”
5
Índice
Introdução 9
Notas Metodológicas e Epistemológicas 12
Plano da Dissertação 17
1 - Elementos para a História e Caracterização dos Media Tácticos 21
1.1 - Génese do Movimento 21
1.2 - Principais Definições 25
1.3 - Abordagens Teóricas 27
1.4 - Distinção entre Media Alternativos e Media Tácticos 35
2 - Genealogia das Mobilizações Informacionais 42
2.1 - Décadas de 70 e 80 45
2.2 - Década de 90 51
2.3 - Mediactivismo: do Direito à Informação ao Direito à Auto-gestão da Comunicação 54
3 - A Influência do Movimento do Software Livre e da Ética Hacker 60
3.1 - O Processo de Desenvolvimento do Software Livre 69
3.2 - A Ética Hacker 72
4 - A Táctica e suas Metáforas Teóricas 75
4.1 - A Táctica e a Estratégia em Michel de Certeau 76
4.2 - A Táctica enquanto Détournement 79
4.3 - A Táctica enquanto Rizoma 83
4.4 - A Táctica enquanto Zona Autónoma Temporária (TAZ) 87
4.5 - A Táctica enquanto Swarming 92
4.6 - A Táctica enquanto 'Multidão' 98
4.7 - A Táctica enquanto Smart Mob 103
5 - Práticas de Media Tácticos 110
5.1 - Culture Jamming: Guerrilha Semiológica 110
5.2 - Hacktivismo: O Contra-poder do Ciberespaço 117
6
5.3 - Artivismo: Crítica e Subversão na net.art 129
5.4 - A Rede Informativa Indymedia: Jornalismo open-source 144
5.4.1 - O CMI-Portugal: Um Pequeno Estudo de Caso 152
6 – Contributos Para Uma Crítica do Conceito 168
6.1 - "O Alt.Everything da Cultura e da Política" 168
6.2 - O Espectro da Cooptação pelo Capital 170
6.3 - O Eterno Retorno do Sublime Tecnológico 172
6.4 - A Subversão Impossível dos Media 175
6.5 - A Retórica do Inimigo e a Metáfora Terrorista 178
SEGUNDA PARTE
1 - O "Jeitinho" Digital Brasileiro: "Gambiarras", "Mutirões" e "Puxadinhos" 188
1.1 - Mídia Tática 189
1.2 – Contratv 195
1.3 – Re:combo 195
1.4 - Rádios Livres: Rádio Muda 196
1.5 – CMI-Brasil 198
1.6 - Brasil, Nação Hacker 201
2 - Projecto Metáfora: Caos e Ordem numa Inteligência Colectiva 205
2.1 – Eventos e Projectos 210
2.2 - A Participação no Midia Tática Brasil 216
2.3 – A Tentativa de Criação de uma ONG e o Fim 217
2.4 - Liderança e Motivação numa “Caordem” 222
3 - MetaReciclagem: Reapropriação da Tecnologia para Fins de Transformação Social 226
3.1 - A Replicação da Metodologia da MetaReciclagem 233
4 - Análise dos Dados Obtidos por Questionário 239
4.1 - Perfil dos Colaboradores do Metáfora e do MetaReciclagem 239
4.2 - Opiniões em Relação ao Metáfora e MetaReciclagem 243
4.2.1 - Inspiração Política dos Projectos 243
7
4.2.2 - Distinção entre Inclusão Digital e Reapropriação Social da Tecnologia 244
4.2.3 - Avaliação dos Pontos Fortes e Fracos 247
4.2.4 - Visões Pessoais Sobre o Metáfora e o MetaReciclagem 249
Conclusão Final 251
Bibliografia 258
8
1 - Introdução
Será que o conjunto de iniciativas e actividades temporárias de activismo cultural, político, social e
artístico realizadas através de tecnologias de comunicação a que alguns teóricos e activistas (Garcia e
Lovink, 1997; Critical Art Ensemble, 2001) deram o nome de media tácticos implicam sempre a
existência de um opositor, um inimigo, um "Outro" concreto e explícito? Será que estes meios de
resistência estão sempre associados a uma linguagem de violência ou, pelo menos, de contra-
propaganda? Será que, tal como refere Joanne Richardson (2002), “a linguagem dos media tácticos
aprisiona” irremediavelmente “a ideia de um outro tipo de produção mediática a uma teoria da guerra,
como um medium de oposição, definido em relação ao seu inimigo?”
Responder a estas questões é o principal objectivo a que nos propormos com esta dissertação de
investigação. Tencionamos assim elaborar uma crítica do conceito tradicional de media tácticos.
Numa altura em que os poderes políticos e económicos fazem passar uma imagem que agrupa os
activistas e os terroristas “no mesmo saco", trata-se de reconceptualizar este tipo de utilizações sociais
das novas e velhas tecnologias, de determinar se estes podem ser autónomos em relação à retórica e
acção violenta e extremista que marcou grande parte dos movimentos marginais e da contra-cultura
do século XX como os situacionistas dos anos 50 e 60.
Popularizados pelo evento Next Five Minutes (N5M)1, que se realiza de três em três anos desde 1993
em Amesterdão, Holanda, onde se reúnem participantes de vários tipos de iniciativas que vão sendo
desenvolvidas em todo o mundo, os media tácticos apresentam-se melhor explicitados por David
Garcia e Geert Lovink numa série de manifestos – “The ABC of Tactical Media” e “The DEF of
Tactical Media”, entre outros – publicados na lista de discussão por correio electrónico Nettime2.
Distanciando-se dos media alternativos por desconfiar dos dogmas ideológicos, o praticante de media
tácticos concilia as tarefas de um activista com as práticas de um hacker, empregando tecnologias
baratas como hardware em segunda mão e software livre (Linux). Baseia-se numa lógica Do-It-
Yourself (DIY – Faça Você Mesmo), sem quaisquer objectivos comerciais, operando de uma forma
independente e oposta à dos grupos económicos transnacionais que, tal como já acontece nos media
tradicionais, começam a dominar a Internet. O fim destas iniciativas “tácticas” consiste em aumentar
a liberdade de expressão das classes desfavorecidas, minorias (raciais, sexuais, etc.), comunidades de
bairro, dissidentes políticos, artistas de rua e outros que são normalmente excluídos do circuito dos
1 Site disponível em http://www.next5minutes.org.2 Projecto de cariz marcadamente europeu criado em Outubro de 1995 por Lovink e Pit Schultz, que tem funcionado
desde o início como principal local de discussão e produção dos praticantes de media tácticos. É possível consultar o seu arquivo na Web a partir do endereço http://www.nettime.org.
9
meios de comunicação de massas e do acesso às novas tecnologias.
Garcia e Lovink baseiam-se na distinção entre tácticas e estratégias formulada pelo francês Michel de
Certeau em Arts de Faire (1990 [1980]), em que refere que as primeiras correspondem a um método
subreptício, fragmentário e silencioso de resistência e subversão e as segundas aos modos de agir do
poder económico, político e científico. O princípio de táctica é oposto ao de estratégia no sentido de
não efectuar um confronto directo com o rival, mas enveredando por modos de actuação que minam
as suas forças e efeitos devastadores.
Todas as definições mais comuns de media tácticos pressupõem desde o início de um movimento
deste tipo a existência de um "inimigo", quer seja uma empresa transnacional como a Nike, a
McDonalds, a Shell ou um político como George W. Bush ou Silvio Berlusconi. Segundo esta
definição, o movimento só é formado e apenas existe em função de um Outro, O Inimigo, para o qual
se convergem todos os esforços A contestação e a denúncia das práticas desse adversário que o
colectivo considera que violam os direitos humanos, a democracia, a liberdade de escolha dos
consumidores ou o meio ambiente legitimam até o recurso à violência. Assim, quando se fala de
media tácticos existe a tendência para se referir a grupos com uma agenda determinada, como a rede
informativa alternativa Indymedia3, os colectivos artísticos AdBusters4, RTMark5, Critical Art
Ensemble6 e outros grupos hacktivistas, muitas vezes com uma filosofia meramente reactiva. Por
outro lado, estes grupos partilham a herança de uma certa mística terrorista que perpassou por todos
os movimentos artísticos subversivos desde os anos 50 até hoje, como explicaremos mais à frente.
Para os situacionistas, por exemplo, o terrorista era uma figura mítica e inspiradora e o recurso à
violência era encarado como uma forma legítima para alterar a sociedade e eliminar o sistema
capitalista e o espectáculo. Actualmente, alguns hacktivistas mais politicamente motivados não
hesitam em destruir e alterar informações dos servidores e sites, da mesma forma que alguns
elementos do movimento por uma globalização alternativa acabam por provocar actos de violência
contra as forças militares e de vandalismo contra a propriedade privada ou pública. Os media
dominantes exploram e empolam estes actos, apelidando-os até de ‘terroristas’, Muito mais do que a
força física, a dependência salarial, a censura, a insegurança laboral e outros instrumentos tradicionais
de controlo, a difusão propagandística do ‘fantasma do terrorismo’ é uma das principais armas
empregue pelos Estados e empresas transnacionais contra as redes tácticas de resistência provocando
na opinião pública um sentimento de risco ou de normalização social. Este estratagema empregue
pelo poder contra os media tácticos só é equiparado em eficácia pela cooptação – recuperação – das
próprias técnicas dos activistas, alterando o seu significado subversivo inicial por mensagens com fins
3 Site disponível em http://www.indymedia.org.4 Site disponível em http://www.adbusters.org.5 Site disponível em http://www.rtmark.com.6 Site disponível em http://www.critical-art.net.
10
comerciais e de controlo.
Aplicando a ideia elaborada por Tim Jordan em relação ao activismo político apresentada em
Activism!, consideramos que a solidariedade e a trangressão – “o colectivo e a acção”, nos termos de
Jordan (2002: 14) - são as duas faces ‘gémeas’ dos média tácticos. Apesar de se referir à solidariedade
interna, isto é, a que existe entre os elementos de um colectivo como um grupo ecologista,
entendemos que Jordan expande implicitamente este termo ao nível macrosocial quando refere que
um dos princípios éticos do activismo político é a aceitação das diferenças7 e que o “terrorismo é a
negação da diferença”, uma vez que “visa eliminar a oposicão” (2002: 150). Pode-se assim dizer que,
no espírito do activismo político, a solidariedade grupal está interligada com a solidariedade global.
No entanto, Jordan reconhece no activismo político uma tensão entre a ética da teoria e o
pragmatismo das ruas, ou melhor, entre a solidariedade e a transgressão, dado que muitas formas de
acção directa acabam por resultar em violência. Mais ainda, alguns movimentos de libertação animal
encaram o terror como uma táctica legítima. Nos media tácticos, esta tensão é ainda mais forte devido
à herança do fantasma do terrorismo – agora mais do que nunca avivado, após os atentados de 11 de
Setembro, 11 de Março e 7 de Julho.
É neste contexto que surge a necessidade de apresentar tácticas que respondam à questão de como
conciliar a transgressão com a solidariedade global, isto é, resistência e subversão sem violência e
destruição. Esta é a hipótese que nos propomos explorar na segunda parte desta dissertação e que
emergiu a partir da questão que Joanne Richardson coloca no final de “The Language of Tactical
Media”:
A ideia dos media tácticos é o prenúncio de uma questão necessária e oportuna: Como é
possível produzir outros media, que exprimam a sua solidariedade com os pensamentos
humilhados e os desejos incompreensíveis daqueles que parecem condenados ao silêncio, media
que não reflictam o poder estratégico do mainstream ao cair numa propaganda auto-determinada
idêntica a si própria e ignorando a sua própria história? (Richardson, 2002).
Este excerto sugeriu-nos um caminho de pesquisa que consideramos ainda por abrir. De forma a
demonstrar que a existência de um medium táctico não depende sempre da luta violenta contra um
adversário externo, iremos analisar o projecto brasileiro Metáfora. Surgido em 28 de Junho de 2002
sob a forma de uma lista de discussão por correio electrónico, transformou-se em pouco tempo numa
rede colaborativa de iniciativas sobre tecnologia, comunicação, educação e arte. Apesar de ter tido
uma curta duração, subsistindo apenas até Outubro de 2003, o movimento serviu como incubadora de
7 Juntamente com a democracia radical, ou seja, a “transgressão dos actuais sistemas de representação democrática das formas actuais de sociedade civil” (Jordan, 2002: 149).
11
mais de 25 projectos colaborativos de tecnologia social, muitos dos quais continuaram
autonomamente com êxito, tendo até agora maior sucesso o MetaReciclagem8, uma iniciativa que
recebe computadores velhos doados, reequipa-os, configura-os e instala-os em associações e centros
comunitários de bairros carenciados, empregando apenas software livre. Apesar da sua história
atribulada, o êxito relativo do MetaReciclagem9 é testemuhado pelas parcerias estabelecidas com
ONGs, prefeituras e o próprio governo brasileiro. Estes colectivos constituíram e constituem
experiências de produção colaborativa em tecnologia (software e hardware), media, activismo e arte
a partir de um paradigma de conhecimento livre e partilhado, em moldes não-hierárquicos e
horizontais.
Os dois projectos demonstram o modo de actuação completamente globalizado dos media tácticos,
apesar de este tipo de práticas ser frequentemente associado a uma retórica de antagonismo face “À”
globalização. Na verdade, a força deste movimento assenta, como é nossa intenção demonstrar ao
longo destas páginas – ainda que de forma velada mas constante -, na constituição de micro-redes
geograficamente distribuídas por todo o globo compostas por profissionais e amadores oriundos dos
mais diversos sectores. Estas micro-redes nacionais e regionais, por sua vez, constituem-se
esporadicamente em grandes redes mundiais, através dos festivais e laboratórios organizados a partir
do festival Next Five Minutes, em Amesterdão, ou na cobertura informativa realizada pela Indymedia
das manifestações e protestos contra as organizações supra-nacionais que promovem a globalização
neo-liberal como a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional. Embora as
primeiras associações regionais de movimentos de media alternativos e comunitários remontem às
decadas de 70 e 80, como veremos no capítulo dois da primeira parte, o surgimento de redes
horizontais e descentralizadas actuando no campo da intersecção entre arte, media e política só
ocorreu a partir dos anos 90, graças à massificação de tecnologias digitais como os computadores e,
sobretudo, a Internet.
Notas Metodológicas e Epistemológicas
Esta dissertação pretende constituir um trabalho de âmbito teórico-empírico, concedendo, no entanto,
um maior realce teórico. A opção por esta abordagem deriva em primeiro lugar de os media tácticos
constituírem um novo campo de investigação, ainda em evolução, com pouca divulgação junto do
grande público e referindo-se a um vasto conjunto de práticas bastantes diferentes entre si, em que o
número de criadores que reconhece os seus projectos como assumindo um cariz táctico é reduzido,
mesmo se estes se podem enquadrar nesse rótulo. Muitos dos investigadores de media alternativos e
activismo parecem ignorar este conceito, como no caso de Jordan (2002) e de Jordan e Taylor (2004), 8 Site disponível em http://www.metareciclagem.org.9 Tendo em conta o modo de actuação descentralizado e sem qualquer tipo de organização institucional do projecto.
12
autores que apesar de analisarem em detalhe o hacktivismo e culture jamming, nunca empregam
explicitamente o termo media tácticos.
Em segundo lugar, ainda não existe ainda nenhuma teoria estável e sólida sobre os media tácticos, se
é que isso é possível tendo em conta o carácter de grupos como a RTMark, os Yes Men, os
AdBusters, entre outros. Exceptuando os textos de David Garcia e Geert Lovink (1997, 1999 e 2001),
Critical Art Ensemble (2001), Graham Meikle (2002), Alexander Galloway (2004), Joanne
Richardson (2002) e poucos mais, a bibliografia teórica é ainda escassa. E mesmo quando existe, peca
por uma falta de consenso sobre o que são os media tácticos e a que tipo de práticas se referem.
Em termos empíricos, apesar de já haver um certo número de bibliografia académica sobre a
Indymedia10 e sobre o activismo mediático em geral, o estudo de experiências e projectos práticos de
hacktivismo, artivismo e culture jamming a partir da teoria dos media tácticos de Garcia e Lovink e do
CAE é ainda escasso, senão mesmo inexistente.
Outra dificuldade de investigação com que nos deparámos resultou da ausência de outros trabalhos
académicos sobre media alternativos em Portugal. Se falarmos de media tácticos, então a situação é
de total desconhecimento, quer nas universidades, quer no meio artístico. Apenas alguns artistas de
vanguarda actuam neste campo de subversão e resistência, embora não chamem o seu trabalho de
media tácticos (Conde, 2003). É nesse sentido que achamos necessário introduzir esta temática –
ainda que num plano mais teórico - num país como Portugal, normalmente bastante atrasado em
relação aos fenómenos de vanguarda que envolvem arte, tecnologia e activismo, como campos
autónomos ou de um modo interdisciplinar.
Contrastando com este ambiente pouco propício à experimentação cultural e tecnológica a partir de
lógicas subversivas11, se virarmos a nossa atenção para o outro lado do Atlântico, descobrimos um
10 Ver lista de ensaios sobre a Indymedia em http://docs.indymedia.org/view/Local/ImcUkImcResearchReferences e em https://docs.indymedia.org/view/Global/ImcEssayCollection
11 À excepção do Indymedia Portugal e do site Radicais Livres (www.radicais-livres.org) - actualmente suspenso -, será até mais apropriado dizer que não existe qualquer projecto activista, artístico ou de hacking em Portugal que possa ser considerado um medium táctico. Como refere Luís Silva a propósito da net.art no texto introdutório à exposição online “NetArt Portuguesa 1997 | 2004” organizada pelo projecto Atmosferas:
Se, internacionalmente, o aspecto de contra-cultura assume um papel central no desenvolvimento da prática, em Portugal, ainda que existindo peças subversivas, ou extremamente críticas, não se pode falar de grupos organizados, ou minimamente estruturados, cujo objectivo tenha consistido, ou consista, em minar, desacreditar, ou colocar em falha o sistema. (...)Não se pode falar portanto de uma lógica subversiva, organizada, equivalente à sua congénere internacional. Mas também não se pode falar do surgimento de comunidades, novas diásporas até, cujo centro de actividade fosse o debate e a experimentação artística deste tipo de suporte. O carácter periférico, por um lado, e a falta de capital tecnológico, por outro, parecem ter colocado os artistas portugueses à margem de um discurso artístico centrado nas possibilidades criativas da Internet. Ausentes as comunidades orientadas para a discussão e crítica de net art, ausente o lado subversivo
13
país com centenas de milhões de pessoas que falam português onde a investigação e a produção no
domínio dos media alternativos e cultura digital tem-se desenvolvido exponencialmente. Esse país
chama-se Brasil e é actualmente um dos maiores centros de promoção e criação de media tácticos. O
exemplo do festival Midia Tática Brasil12 demonstra bem a vitalidade desta rede mediática. Realizado
em Março de 2003 na cidade de São Paulo, este evento contou com 315 participantes e cerca de
quatro mil visitantes, tendo gerado uma grande repercussão nos media comerciais daquele país,
envolvendo dezenas de colectivos de videoactivismo, produção de fanzines, rádios livres, DJs e
performances artísticas com motivações políticas.
Apesar dos projectos que participaram no festival terem sido quase todos originários de São Paulo, o
número de novas iniciativas despontando noutras cidades do litoral e mesmo do interior do país não
pára de aumentar, como veremos no primeiro capítulo da segunda parte desta dissertação. Um dado
importante que a análise destes projectos pemite identificar é que, tal como Garcia e Lovink (1997) e
o Critical Art Ensemble (2001) salientam, para se produzir media tácticos não é preciso empregar
novas tecnologias de informação e comunicação. Vivendo num país com enormes desigualdades
económicas e dispondo muitas vezes de escassos recursos financeiros, estes colectivos vêm-se
obrigados a recorrer aos suportes que ‘estão mais à mão’ e que têm mais impacto junto do meio onde
actuam, como seja o vídeo, a televisão e a rádio comunitária ou livre, ou mesmo a tradicional fanzine.
Daí que muitos não possuem sequer uma presença na Web. Mas a principal razão da grande dinâmica
dos media tácticos no Brasil advém do facto de estes grupos espalhados pelo território daquele país e
utilizando os mais variados suportes tecnológicos terem constituído uma importante rede de
intercâmbio e suporte mútuo, onde se partilham recursos e conhecimentos. Nos últimos anos, esta
rede tem vindo a ser impulsionada pelo Ministério da Cultura brasileiro de Gilberto Gil, através do
programa Cultura Viva, com o apoio de ONGs e prefeituras de grandes cidades do país. Ao contrário
do que acontece na Europa e na América do Norte, os artistas e activistas brasileiros não ressentem a
colaboração com o Estado e vêm nesta relação a possibilidade de influenciar decisivamente as
políticas públicas sobre os seus sectores de actividade, de modo a fornecer aos cidadãos os meios para
dessas comunidades, o florescimento de uma net art portuguesa apresentou-se difícil, muito circunscrito, ainda que as temáticas abordadas e a forma de o fazer, fossem, na sua essência, semelhantes ao que se estava a explorar internacionalmente. (Silva, 2005)
Em consonância com Luís Silva, consideramos que a única iniciativa que se aproxima mais da designação de media tácticos, segundo as definições de David Garcia e Geert Lovink ou do Critical Art Ensemble, é a plataforma Virose (http://www.virose.pt), que tem vindo desde 1997 a realizar um trabalho sobretudo de divulgação e discussão teórica sobre a convergência entre arte, media e tecnologia. Dirigida por Miguel Leal e Fernando José Pereira, este ‘associação interdisciplinar’ online sediada no Porto publica irregularmente a e-zine Vector, de periodicidade irregular, onde se pode encontrar textos de Geert Lovink, Lev Manovich, Laura Baigorri, Jose Luís Brea e Matteo Pasquinelli. Contudo, esta plataforma parece padecer de um excessivo ‘intelectualismo’ que a faz fechar sobre si própria, em relação à sociedade e à política. Não obstante, representa um contributo valioso para o debate sobre a cultura digital em Portugal e um espaço aberto a outras perspectivas teóricas, como tivemos ocasião de o testemunhar pessoalmente quando Miguel Leal nos concedeu gentilmente a oportunidade de publicar um texto da nossa autoria na Vector.
12 Site disponível em http://midiatatica.org/mtb/index.htm.
14
exprimirem as suas vozes e participarem activamente no ambiente mediático e na sociedade em geral.
Deste modo, embora a inexistência de uma mesma rede dinâmica e criativa de media tácticos em
Portugal, o desconhecimento do tema e a ausência de estudos académicos sobre os media alternativos
ou radicais a nível nacional tenham constituído obstáculos à elaboração de um trabalho de pesquisa
original, o nosso conhecimento pessoal, ainda que à distância, de modo não-participativo e através de
comunicação mediada por computador de projectos lusófonos além-fronteiras como o Midia Tática e,
em particular, com o Metáfora/MetaReciclagem levou-nos a enveredar por um plano de investigação
empírica fora dos moldes tradicionais da investigação sobre os media em Portugal.
Propomos-nos assim apresentar algumas características que detectámos tanto no Metáfora como no
MetaReciclagem que são passíveis de serem enquadradas na definição de media tácticos, com base na
teoria avançada por autores como Garcia e Lovink (1997) e o Critical Art Ensemble (2001), nas
práticas desenvolvidas por colectivos europeus e norte-americanos que assumem essa classificação,
bem como na distinção entre tácticas e estratégicas estabelecida por Michel De Certeau (1990
[1980]). Em segundo lugar, pretendemos assinalar a especificidade que tais iniciativas assumem face
à produção mediática táctica patente nos países que compõem o centro da economia global. Para tal,
iremos apoiar-nos na teorização avançada pelo próprio David Garcia (2004a), bem como nos
trabalhos de Karla Brunet (2005), para além das reflexões de activistas brasileiros como Ricardo
Rosas (2004), Felipe Fonseca e Hernani Dimantas, entre outros. Estes autores apontam para um
modelo brasileiro de media tácticos que se encontra em emergência, mais direccionado para a
inclusão digital no sentido da reapropriação social da tecnologia do que para um activismo de protesto
anti-capitalista e anti-globalização.
Nesse sentido, desenvolvemos uma análise de conteúdo dos arquivos ainda disponíveis das listas de
discussão do Metáfora e do MetaReciclagem13 - sobretudo da lista Metáfora-Yahoo! -, na medida em
que todas as actividades, debates e ideias dos projectos surgiram a partir daí. Outros recursos que
serviram como fonte de recolha de informação foram as wikis14 de ambas as iniciativas, que têm
13 Inicialmente, a nossa intenção era centrar a análise apenas no Metáfora, devido ao carácter híbrido, abrangente e, simultanamente, efémero das suas actividades face ao âmbito mais restrito do MetaReciclagem. A impossibilidade de um contacto físico e directo com a actividade no terreno dos esporos de reciclagem de computadores dificultava também, em nossa opinião, uma análise aprofundada deste último projecto que exigiria o recurso a uma observação directa do tipo etnográfico das práticas em questão. Mas ao longo da investigação fomo-nos apercebendo que era impossível abordar o Metáfora sem dar conta do trabalho desenvolvido pelo colectivo no MetaReciclagem. Embora se limite apenas à reciclagem de computadores, o MetaReciclagem herdou o legado conceptual do Metáfora e permitiu que muitas das ideias aí discutidas conquistassem repercussão junto dos responsáveis pelas políticas públicas brasileiras de inclusão digital.
14 Software colaborativo que permite a edição colectiva dos documentos em hipertexto na Web usando um sistema leve e simples, sem que o conteúdo tenha que ser revisto antes da sua publicação. Todas as alterações realizadas pelos diferentes autores são registadas. A wiki do Metáfora está disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?; a do Metareciclagem pode ser acedida a partir de http://wiki.metareciclagem.org.
15
funcionado como espaços onde são documentadas para memória futura todas as experiências e ideias
partilhadas nas listas. Quando necessário, complementámos essa informação com dados obtidos de
blogs dos colaboradores do Metáfora e MetaReciclagem.
De forma a obter um perfil mais fidedigno dos elementos que integraram o núcleo inicial do Metáfora
- que veio a resultar mais tarde no MetaReciclagem - bem como das suas opiniões em relação a
ambos os projectos, decidimos elaborar um questionário composto pot 21 questões, algumas das
quais abertas, outras fechadas, que foi enviado por correio electrónico a 22 indivíduos – 17 do sexo
masculino e cinco do sexo feminino. O critério de selecção baseou-se no nível de colaboração activa
nos projectos do Metáfora e no MetaReciclagem, bem como na participação nas quatro listas de
email associadas a estas iniciativas (Metáfora-Yahoo!, Xemelê, MetaReciclagem e CoLab). Do total
de inquiridos, recebemos 11 respostas, o que corresponde a metade da amostra.
No intuito de aprofundar certos aspectos da história, estrutura organizacional e actividades dos dois
projecto, realizámos também uma entrevista por email com 15 questões abertas junto de Felipe
Fonseca, Dalton Martins, Daniel Pádua e Hernani Dimantas, na medida em que, tendo em conta a
leitura dos arquivos das listas e das wikis, estes foram os elementos mais envolvidos em ambos os
colectivos – dai serem legitimamente reconhecidos, de forma mais ou menos explícita, pelos outros
colaboradores como líderes. Com esta entrevista, pretendiamos também explorar mais a fundo certas
opções e decisões que marcaram o percurso do Metáfora e do MetaReciclagem. Apenas recebemos a
resposta de Felipe Fonseca15 mas tivemos também a oportunidade de travar algumas conversas
informais com outros responsáveis. A entrevista foi enviada a 18 de Novembro de 2005 e o
questionário a 22 de Novembro de 2005. De modo a garantir um maior grau de resposta, enviamos
nas semanas seguintes mensagens subsequentes apelando ao preenchimento do questionário e ao
envio das respostas da entrevista. A recolha dos dados procedeu-se assim entre a segunda quinzena de
Novembro e a primeira quinzena de Dezembro.
Consideramos que o recurso a vários instrumentos metodológicos como a análise de conteúdo, o
questionário e a entrevista justificam-se na medida em que as unidades de análise da nossa
investigação, o Metáfora e o MetaReciclagem, não podem ser considerados colectivos com uma
estrutura organizativa consolidada, minimamente fixa e dotadas de hierarquias rígidas16. Pelo
contrário, tal como outros media tácticos, possuem um carácter fluído, nómada, criativo e híbrido.
Mais ainda, esta opção metodológica justifica-se, em nossa opinião, na medida em que grande parte
15 Fonseca publicou a entrevista no seu blog em http://metareciclagem.org/fff/?p=1699.16 Muito embora, exista um certo grau de hierarquização da articulação das actividades e competências. Como
teresmos oportunidade de explicar, esta hierarquia resulta de uma meritocracia semelhante aos projectos de software livre, em que o mérito, a reputação e a dedicação de cada um são recompensadas pelo colectivo.
16
da literatura que aborda os media tácticos parte de uma abordagem interdisciplinar da convergência
entre Comunicação, Cultura e Tecnologia, partindo de campos diversos do saber, como a Teoria e o
Estudo dos Media, os Estudos Culturais, a Sociologia, a Filosofia e a Ciência Política.
Reconhecendo as diferenças linguísticas existentes na língua portuguesa escrita em Portugal e no
Brasil, tentámos adaptar as citações de blogs e artigos em publicações e os testemunhos obtidos por
intermédio dos questionários ao português continental. Já no que toca a citações retiradas das listas de
discussão, o critério seguido foi outro: procurámos, tanto quanto possível, manter-nos o mais fiéis
possíveis à fonte original, mesmo sob pena de desrespeitar as regras gramaticais e ortográficas
convencionais. Esperamos que, deste modo, possamos transmitir ao leitor o espírito de discussão viva,
animada e calorosa que constituiu, com efeito, a experiência mais valiosa que o Metáfora deixou nos
seus curtos 15 meses de existência.
De facto, verificámos que muita da vivacidade e da riqueza dos conteúdos presentes nas duas listas
(Metáfora-Yahoo! e Xemelê) se perdia quando as ideias aí trocadas eram documentadas na wiki. Esta
diferença de registos poderá ser explicada em parte pelo facto de que, embora este tipo de ferramentas
de publicação online possibilite a colaboração intelectual em larga escala, a informação aí armazenada
não seja partilhada de um modo tão imediato e generalizado como a que é difundida por intermédio
das listas. Outro factor a ter em consideração é que na altura, em 2002-2003, as wikis eram ainda um
fenómeno novo, não tão massificado como as listas de discussão, exigindo, para além disso, maiores
conhecimentos técnicos que a simples utilização do correio electrónico.
Plano da Dissertação
Commo já mencionámos, esta dissertação encontra-se dividida em duas partes, uma de cariz mais
teórico e outra mais empírica. No primeiro capitulo, começamos por referir as principais definições
do conceito de media tácticos, apresentamos de seguida as origens e a evolução histórica ao longo da
década de 90 do conjunto de práticas culturais e mediáticas para que o termo remete para avançar em
depois para as principais perspectivas teóricas sobre este movimento, recorrendo a autores como
Garcia e Lovink (1997 e 1999), Lovink e Schneider (2002), Critical Art Ensemble (2001), entre
outros. Por fim, elencamos alguns traços que distinguem os media tácticos de outras correntes
associadas à contra-cultura da segunda metade do século XX como os media alternativos e/ou
radicais.
De forma a contextualizar o surgimento dos media tácticos na última década, no segundo capítulo
traçamos um resumo da história daquilo a que Cardon e Granjon (2003) denominam de mobilizações
17
informacionais, isto é, os órgãos de comunicação social inicialmente – anos 70 e 80 - associados às
redes de movimentos sociais como o ambientalismo e o feminismo – como as rádios e televisões
comunitárias - e que vieram a culminar no movimento por uma globalização alternativa.
Uma vez que a metodologia empregue pelas práticas de media tácticos não se restringe ao conceito de
media em sentido estrito de meio de comunicação, no terceiro capítulo abordamos a relação existente
entre estas e o software livre e a ética hacker, conceitos essenciais para se perceber as formas de
actuação e organização descentralizada e o espírito auto-didacta que encontramos nessas práticas.
Dada a conotação específica que o termo táctica possui – e que é salientada ao longo desta dissertação
- remetendo para o universo militar e para uma concepção beligerante e antagonista da arte, dos media
e da própria participação política -, no quarto capítulo analisamos o significado literal da palavra,
assim como a oposição entre tácticas e estratégias no pensamento de Michel de Certeau (1990
[1980]), retomada por Garcia e Lovink anos mais tarde no festival Next Five Minutes. Para além
disso, pretendemos também clarificar as ligações existentes entre a táctica e outros conceitos
semelhantes que são frequentemente associados ao mesmo tipo de acções e fenómenos, como o
détournement, rizoma, Zona Autónoma Temporária, swarming, 'multidão' e smart mobs.
O quinto capítulo centra-se na caracterização de um certo número de práticas culturais, tecnológicas,
activistas que se destacam como exemplos de media tácticos. Estas práticas partilham características
comuns que definem os media tácticos: nomadismo, hibrídismo, valorização do espírito DIY, rejeição
das velhas ideologias, desconfiança por todo o tipo de poder, organização em rede, etc. Embora
muitos destes projectos funcionem sobretudo a partir de ou através da Internet, podemos também
encontrar em alguns o recurso a tecnologias não-digitais como a rádio, a televisão, a imprensa, os
cartazes publicitários ou a intervenções artísticas no espaço físico. De modo a optar pela
categorização que apresentamos aqui, baseámos-nos nos textos de Geert Lovink e David Garcia (1997
e 1999), Graham Meikle (2002), Alexander Galloway (2004) e Cardon e Granjon (2003). Deste modo
decidimos concentrarmos-nos em quatro tipos de práticas tácticas:
1. A subversão das mensagens publicitárias para criticar as grandes marcas comerciais patente
em projectos de culture jamming;
2. Os ataques informáticos, intervenções e protestos virtuais dos grupos hacktivistas;
3. As performances online e offline organizadas por colectivos artivistas;
4. O “jornalismo” produzido por activistas e cidadãos-comuns através do Centros de Media
Independentes (CMIs) da Indymedia.
18
Tendo em conta que o CMI-Portugal foi o único colectivo nacional que, após uma aturada pesquisa,
considerámos como passível de ser classificado como um media táctico, optámos por realizar um
pequeno estudo de caso - disponível no capítulo 5.4.1 – em que contrastamos as características
tácticas com os traços estratégicos presentes neste projecto a partir da análise do sistema de
publicação aberta da Indymedia, que permite a publicação de artigos por qualquer pessoa, e da
implementação da política editorial pelos voluntários encarregados dessa tarefa. Este estudo apoia-se
ainda num questionário enviado através da lista de discussão do CMI-Portugal aos elementos do
colectivo.
Por último, o sexto capítulo é dedicado a um conjunto de apontamentos críticos em relação ao
conceito de media tácticos e aos colectivos e práticas associadas a ele, em que destacamos o emprego
abusivo do termo para designar projectos com trabalhos bastante diferentes entre si - correndo o risco
de se cair numa generalização excessiva -, o perigo das lógicas subversivas dos praticantes tácticos
contra as grandes empresas poderem ser aproveitados pelo próprio capital que criticam, a esperança
frequentemente infundada no potencial emancipador das novas tecnologias como a Internet apenas
por serem novas e a obsessão secreta pela mística dos movimentos de guerrilha e da figura do
terrorista que predomina na linguagem das formas de produção mediática em causa. Este capítulo
aprofunda a reflexão que iniciámos no artigo “Media Tácticos: Uma Introdução ao Activismo Do-It-
Yourself” que foi publicado no nº 12 da série b da e-zine Vector da associação Virose de Janeiro de
2005 (Caetano, 2005).
Na segunda parte, de âmbito mais empírico, começamos, no primeiro capítulo, por descrever o pano
de fundo do movimento brasileiro dos media tácticos em que o Metáfora e o MetaReciclagem
emergiram e se inserem e que tem vindo a despontar com maior força desde o início do século XXI e,
em particular, desde o início da presidência de Lula da Silva, que representou um novo clima político
aparentemente mais favorável à actividade dos colectivos autónomo – embora, na realidade, este se
revele mais paradoxal e nivelado do que se poderia pensar à partida.
No segundo capítulo, procedemos à apresentação da história do Metáfora e dos principais projectos
concretizados pelo colectivo, de entre os inúmeros que foram esboçados nas listas de discussão e na
wiki, continuando com uma análise das razões do fracasso desta “incubadora de projectos”, bem como
da estrutura de organização e liderança do grupo. O MetaReciclagem é abordado separadamente, no
terceiro capítulo, onde para além de darmos conta da história do projecto, fazemos uma exposição da
metodologia empregue na reciclagem de computadores e da reapropriação da tecnologia para fins de
transformação social, conceito que os seus colaboradores utilizam para denominar a sua actividade
em oposição às políticas de inclusão digital propostas por alguns políticos e ONGs brasileiras. No
19
quarto capítulo apresentamos os resultados de um questionário realizado por email que nos permitem
traçar um perfil dos colaboradores do Metáfora e do MetaReciclagem, bem como obter a sua opinião
em relação a ambos os projectos.
Na conclusão, partindo da experiência do Metáfora e do MetaReciclagem, demonstramos que, embora
estas iniciativas possam ser classificadas como media tácticos, elas diferem do modelo 'canónico'
antagonista e de confronto indirecto com um inimigo teorizado por Garcia e Lovink, Critical Art
Ensemble, Graham Meikle, Joanne Richardson e aplicado pelos activistas por uma globalização
alternativa da rede Indymedia, sabotadores de publicidade, hackers que danificam, entopem e/ou
escapam aos sistemas informáticos dos grandes poderes e artistas que colocam em causa a lógica
comercial e proprietária do mundo da arte e de outras indústrias culturais. Neste sentido, o Metáfora e
o MetaReciclagem representam um novo paradigma táctico que leva em conta as especificidades de
uma sociedade periférica e de contrastes como a do Brasil, onde a solidariedade e a cooperação, as
“gambiarras”, os “mutirões e os puxadinhos”, são mais importantes que o activismo de protesto,
resistência e oposição predominante nos media tácticos dos países desenvolvidos, na medida em que é
a própria sobrevivência num quotidiano marcado pela pobreza e exclusão que está em causa.
20
1 - Elementos para a História e Caracterização dos Media Tácticos
1.1 - Génese do Movimento
Tendo como pano de fundo um cenário pós-Muro de Berlim, o termo media tácticos foi criado em
1992 por Geert Lovink, David Garcia e Caroline Nevejan, organizadores da primeira edição do ciclo
de conferências Next Five Minutes (N5M), realizada em Amesterdão no ano seguinte (Berry, 2000;
CAE, 2001; Lovink e Schneider, 2002; Meikle, 2002). Foi desta forma, explica o colectivo artístico
Critical Art Ensemble (CAE)17, que “um certo tipo de práticas culturais existentes desde há décadas”
passou a ter um nome e uma definição (CAE, 2001).
Até então, “este movimento tinha evitado ser designado ou totalmente classificado. As suas origens
situam-se na vanguarda moderna, na medida em que os seus participantes atribuem uma grande
importância à experimentação e ao compromisso com o vínculo imprescendível existente entre a
representação e a política”. Segundo o mesmo grupo, os participantes desta corrente “não são artistas
em qualquer dos sentidos tradicionais do termo e não querem ser apanhados na teia de conotações
metafísicas, históricas e românticas que acompanham essa designação. Nem tão pouco são activistas
políticos propriamente ditos, dado que se recusam a adoptar somente uma posição de reacção.” (CAE,
2001: 3-4)
Inspirados na obra Arts de Faire de Michel de Certeau (1990 [1980]), os organizadores da primeira
edição do N5M inventaram o termo televisão táctica para servir como tema deste evento, na medida
em que, nessa altura, a câmara de vídeo era a tecnologia de electrónica de consumo mais massificada
e que oferecia maiores possibilidades “tácticas”, no sentido atribuído por Certeau a este conceito,
como forma de organização e mobilização social.
A iniciativa contou com activistas, artistas e teóricos oriundos da América do Norte e da Europa
Ocidental e do Leste. Os participantes estavam “interessados em questões de intervenção na televisão,
em teorizar sobre a estrutura e dinâmica da cultura do vídeo, em formular representações de causas
politicas que contribuíssem para uma melhor justiça social e em criar modelos alternativos de
distribuição”, entre outros assuntos (CAE, 2001).
17 Para além de ter uma produção teórica de cinco livros, todos publicados pela editora Autonomedia, (www.autonomedia.org) onde investiga a convergência entre os regimes emergentes da tecnologia com os mecanismos de controlo empregues pelo capital e as grandes empresas, enquanto colectivo de arte performativa, o CAE produz instalações em galerias e espaços públicos onde questiona a propriedade empresarial da Internet, o acesso limitado às redes de informação digital, o predomínio das perspectivas comerciais na indústria tecnológica e as restrições impostas pelos direitos de propriedade intelectual. Recentemente, tem realizado produções relacionadas com a indústria de biotecnologia, incluindo os Organismos Geneticamente Modificados (OMGs) e o patenteamento de genes.
21
Mas enquanto que os activistas e artistas mediáticos do lado ocidental estavam e continuam a estar
sobretudo interessados na produção de media de campanhas em vez de movimentos sociais amplos18,
os artistas dissidentes e activistas dos media samizdat19 tinham na sua maior parte pertencido a um
vasto movimento social que levou ao desmantelamento do império soviético e tendiam ainda durante
esses primeiros anos de liberdade para uma falta de sentido critico em relação ao seu futuro nos
termos de uma economia de mercado, diriam Garcia e Lovink em “The DEF of Tactical Media”
(1999), publicado na Nettime um pouco antes da terceira edição do N5M.
Apesar da sua pequena dimensão – teve apenas cerca de 300 participantes –, o evento serviu como
sinal de que estava a começar a formar-se um novo movimento. Mas, como Garcia referiu mais tarde
(1998), as condições que tornaram possíveis os media tácticos datavam já do final da década de 80,
“período importante de transição em que toda uma gama de novas tecnologias intermédias permitiu
interagir com os media de um modo muito menos passivo que os teóricos e futuristas alguma vez
tinham previsto.” Com intervalos de poucos anos de diferença entre si, apareçeram o zapping
televisivo, o walkman, o gravador de vídeo, a indústria de aluguer de videocassetes, uma quantidade
enorme de canais disponibilizada pelos sistemas domésticos de televisão por cabo e satélite e,
sobretudo, a câmara de vídeo.
Como explica este autor, em resultado desta revolução tecnológica na electrónica de consumo, as
audiências puderam pela primeira vez criar os seus próprios ambientes mediáticos personalizados.
Deu-se assim início ao “fim do domínio dos media difusores de massas enquanto fonte centralizada
das representações da sociedade.” Para Garcia, na medida em que estas novas tecnologias eram
ferramentas domésticas do quotidiano, elas libertaram os artistas e activistas mediáticos dos rituais
penosos e dispendiosos da produção alternativa e marginal (ver ponto seguinte).
Num ensaio mais recente, Lovink e Schneider afirmam, na mesma linha, que “a crescente
disponibilidade de equipamento Do-It-Yourself”, foi uma das razões, juntamente com um “maior
interesse pelas questões do género e o aumento exponencial das indústrias dos media”, da emergência
de um sentido de tomada de consciência entre activistas, programadores, teóricos, curadores e artistas
a partir dos anos 90 (Lovink e Schneider, 2002). Na perspectiva destes dois autores, “os media
deixaram de ser vistos meramente como instrumentos para a Luta para passarem a ser encarados
como ambientes virtuais cujos parâmetros estão em permanente processo de construção”, concluindo
que este período foi a época de ouro dos media tácticos, então centrados na problemática da estética e
na experimentação de formas alternativas de narração de histórias.
18 Ao contrário dos seus antecessores dos anos 60 que pertenciam a movimentos sem uma agenda específica e que actuavam como um megafone representando a voz da resistência ou dos oprimidos, de acordo com Garcia e Lovink.
19 Sistema clandestino de cópia e distribuição de publicações impressas dos países da Europa do Leste durante o período de dominação do comunismo.
22
Desde o vídeo, os primeiros CD-ROMs, as cassetes de áudio, as fanzines e os folhetos volantes aos
estilos musicais como o Rap e o Techno, os media empregues variavam bastante, assim como o tipo
de conteúdos, simbolizando acima de tudo a exaltação de uma liberdade de produção mediática. Na
opinião destes teóricos, este conjunto de práticas libertadoras veio a converter-se na passagem para o
século XXI em movimentos sociais com mensagens políticas explícitas, frequentemente apelidados
erroneamente pelos órgãos comerciais de comunicação social de “anti-globalização”.
Mas, para David Garcia, o facto do termo que veio a caracterizar este movimento ter surgido em
Amesterdão não foi mero acaso, mas sim fruto da “longa e notável história de produção mediática
experimental e anarquista e de redes cívicas desta cidade”. Esta “utopia pirata de media tácticos”,
como chegou o autor a caracterizar Amesterdão em meados da década de 90, resultava de um acesso
comunitário à rádio e televisão por cabo fortemente enraízado que permaneceu ao longo dos anos,
“apesar dos danos provocados desde então neste sector por políticas públicas.”
Para além da Holanda ter sido o primeiro país europeu a estabelecer uma infra-estrutura totalmente
constituída por cabo20, Amesterdão é, segundo Garcia, talvez a única grande cidade europeia que
obteve uma vantagem “táctica” da utilização da televisão por cabo. No ar há mais de vinte anos, os
seus dois “canais abertos” exibem programações de media tácticos e experimentais, para além de
outros programas mais conservadores. Outra iniciativa pioneira que aí teve lugar foi a Cidade Digital,
uma rede comunitária aberta a toda a população, assente em terminais de acesso público espalhados
ao longo do tecido urbano.
A partir de Amesterdão, epicentro deste renascimento do activismo mediático, o termo media tácticos
chegou em pouco tempo às listas de discussão por correio electrónico sobre teoria dos media como a
Nettime. Ao mesmo tempo, o conceito ganhou aceitação junto das comunidades virtuais, grupos de
trabalho e círculos sociais em que os actvistas e artistas mediáticos participam. Esta situação levou a
que os organizadores do primeiro evento N5M se apercebessem que o tópico televisão táctica tinha
um âmbito demasiado limitado no seu âmbito, uma vez que um número cada vez maior de pessoas
com uma sensibilidade semelhante estava a produzir trabalhos “tácticos” e que seria vantajoso para
todos que se reunissem (CAE, 2001: 4-5).
Desde a segunda edição do festival em 1996, o tópico media tácticos tornou-se no denominador
comum de todas as actividades que acolhe. O evento passou a integrar todas as formas de media,
embora os debates se centrassem nas tecnologias electrónicas de comunicação como a rádio, a
20 O que fez com que nesse país a televisão por cabo seja hoje, de acordo com o autor, uma tecnologia utilitária de acesso quase universal.
23
televisão e, em particular, a Net. Ao mesmo tempo, tornou-se mais global, ao ponto do quarto e mais
recente N5M (2003) ter contado com a participação de elementos de projectos do Brasil, Índia,
Tanzânia, Gana, Mali, Zâmbia, Jamaica e outros países considerados periféricos ou semi-periféricos.
Mas a organização pretendeu ir para além de Amesterdão e descentralizar o evento, através da
implementação de laboratórios de media tácticos em São Paulo, Nova Deli, Dubrovnik, Moscovo,
Cluj, Barcelona, Birmigham, Chicago, Nova Escócia, Sidney e Zanzibar, que produziram os
conteúdos a partir dos quais um grupo de editores internacionais conceberam o elenco final do
programa do festival (Garcia, 2004).
.
24
1.2 – Principais Definições
A partir da terceira edição do N5M, realizada em Março de 1999, a secção FAQ21 do site do evento
passou a integrar a seguinte definição:
O termo 'media tácticos' refere-se a uma utilização e teorização crítica de práticas mediáticas que empregam todas as formas de velhos e novos média, simultaneamente lúcidas e sofisticadas para atingir uma variedade de fins não-comerciais específicos e promover todos os tipos de questões políticas potencialmente subversivas.22
Os organizadores do ciclo de conferências referem ainda nessa página que este tipo de práticas
abrange a utilização de câmaras digitais de vídeo de baixo custo e a consequente distribuição de
vídeos na Internet por parte de activistas, o recurso de participantes dos movimentos “anti-
globalização” a transmissores de rádio FM de fraca potência, a organização de ocupações virtuais de
sites da Internet, o desenvolvimento de software livre e open-source por programadores de
computadores e a utilização de tecnologia sem fios para disponibilizarem a comunidades inteiras um
acesso económico à Internet em banda larga.
Mas o primeiro esforço teórico de caracterização deste movimento é disponibilizado em “The ABC of
Tactical Media”, publicado em Maio de 1997 na Nettime por David Garcia e Geert Lovink. Este
manifesto começa com a seguinte definição:
Media tácticos são o que acontece quando meios de comunicação baratos do tipo DIY, tornados possíveis pela revolução na electrónica de consumo e por formas alargadas de distribuição (desde o cabo de acesso público à Internet), são utilizados por indíviduos e grupos que se sentem oprimidos ou excluídos de uma cultura mais vasta. Não se limitam a noticiar factos e dado que nunca são imparciais; participam sempre e é isso mais do que qualquer coisa que os separa dos media dominantes. (Garcia e Lovink, 1997)
Este processo de designação e classificação gerou uma mistura de sentimentos perante muitos
praticantes de media tácticos. Se por um lado, segundo os membros do CAE, o novo termo deixava a
porta aberta para a sua cooptação e/ou a quase inevitável recuperação pelo capitalismo (2001: 5), ao
mesmo tempo “produziu um alívio pois qualquer um podia passar a ser um híbrido, seja artista,
técnico, cientista, artesão, teórico ou activista e todos podiam trabalhar juntos em combinações com
diferentes pesos e identidades. Estas múltiplas facetas (...) que faziam parte de cada indivíduo e de
cada grupo, podiam ser reconhecidas e valorizadas. Muitos sentiram-se aliviados por deixarem de se
ter que apresentar ao público como especialistas de forma a serem valorizados.
21 Frequently Asked Questions, espaço destinado a responder às questões mais frequentes relativas ao evento.22 Retirado da página do FAQ do N5M disponível em http://www.next5minutes.org/faq.jsp?faqid=programme#3.
25
Como refere o CAE, o conjunto de traços a partir do qual emerge uma prática de media tácticos está
sujeito a mudar dependendo de a quem é perguntado quais são essas características. Este colectivo
artístico explica que os princípios deste modelo são gerais, reconfiguráveis, permeáveis, estando
sujeitos a frequentes formações e deformações, dependendo sempre da sua aplicação e contexto.
De forma a contribuir com a sua própria definição do movimento, este colectivo artístico apresenta
quatro princípios básicos (2001: 8-11):
● Os media tácticos são uma forma de intervencionismo digital, não na medida em que apenas
podem ser produzidos através de tecnologia digital, mas sim no sentido em que consistem na
cópia, recombinação e re-presentação de informação. Colocam em causa o regime semótico
em vigor criando eventos participativos e criticando através de um projecto experimental.
● Os praticantes de media tácticos empregam qualquer medium necessário para responder às
necessidades de uma situação. A sua especialização não predetermina a acção, pelo que se
tende para a realização de trabalhos colaborativos que permitam o intercâmbio de diferentes
competências.
● A prática amadora é especialmente valorizada, dado que os amadores podem ver para além
dos paradigmas dominantes, dispôem de uma maior liberdade para recombinar elementos de
paradigmas considerados desde há muito mortos e não se encontram restringidos por sistemas
institucionalizados de produção de conhecimento e de elaboração de políticas públicas.
● Os media tácticos são efémeros, deixam poucos traços materiais. O que resta deles é
sobretudo memória viva. As intervenções desterritorializam-se por si próprias, sendo sempre
ad-hoc. Terminam a sua actividade por si próprias.
26
1.3 - Abordagens Teóricas
O objectivo (dos media tácticos) não é destruir a tecnologia sob algum tipo de ilusão neo-luddista, mas sim impulsioná-la para um estado de hipertrofia, para além do ponto onde se pretendia que ela fosse. Então, na sua condição enfraquecida, ferida e desprotegida, a tecnologia pode ser esculpida de novo em algo melhor, algo em estreita concordância com as necessidades e os desejos reais dos seus utilizadores.
- Alexander Galloway, Protocol: How Control Exists after Decentralization
Nos últimos anos, a começar com o manifesto fundador de Garcia e Lovink de 1997, a teorização
sobre os media tácticos tem vindo a crescer gradualmente. Contudo, o movimento não abandonou
ainda em grande parte o seu círculo inicial, junto do meio artístico de vanguarda e das comunidades
de programadores de software livre na América do Norte e Europa, apesar de algumas iniciativas
realizadas em países menos desenvolvidos.
Em “The ABC of Tactical Media”, Garcia e Lovink apresentam não só a primeira definição do
conceito de media tácticos, como lançam as bases para todo um novo programa teórico e prático no
contexto da teoria dos media, com aplicações aos campos na altura em irrrupção dos novos média e da
cibercultura.
As influências militares do movimento estão bem explícitas logo no início deste texto, com uma
referência explícita à necessidade da existência de um adversário para que o movimento subsista: “Os
media tácticos são media de crise, crítica e oposição. Isto constitui tanto a sua fonte de poder (...)
como o seu limite. Os seus heróis típicos são: o activista, o guerreiro nómada dos media, o prankster,
o hacker, o rapper de rua, o kamikaze da câmara de vídeo, eles são os alegres negativos, sempre à
procura de um inimigo. Mas, uma vez que o inimigo tenha sido nomeado e vencido, é ao militante
táctico que ocorre entrar em crise.”
Os media tácticos possibilitam, deste modo, as condições para a realização da III Guerra Mundial na
óptica de Marshall McLuhan, “uma guerra de guerrilha informacional, sem separação entre
participação civil e militar”23, em que “os fracos se tornam mais fortes que os opressores ao
descentralizarem-se, ao moverem-se rapidamente pelas paisagens mediáticas físicas ou virtuais”, nas
palavras dos dois teóricos. A pesquisa e procura destas técnicas consiste na missão de vários
produtores de media tácticos destinados às comunidades migrantes. Inspirados na distinção entre
“tácticas” e “estratégias” que Certeau aplica à relação entre o consumidor e a produção das indústrias
culturais24, estes artistas e activistas tentam “fazer com que o caçado descubra a maneira de se tornar o
23 McLuhan, Marshall (1970), Culture is Our Business, Ballantine Books, pág. 66. Citado por Kalle Lasn (1999), pág. 123.
24 Tomada de empréstimo pelo próprio Certeau ao filósofo militar prussiano da primeira metade do século XIX Karl
27
caçador”.
Cerca de dois anos antes da publicação deste manifesto, no texto de apresentação da segunda edição
do N5M, já Andreas Broeckmann (1995) colocava como hipótese a existência de uma afiliação
inerente entre os media tácticos com certas disposições militares e tradições de pirataria, questionando
em seguida a aplicabilidade da metáfora militar para descrever o trabalho dos artistas e activistas
mediáticos. “Não será que a metáfora coloca em risco esforços para abordagens mais pacíficas,
ponderadas e também mais compassivas nos media independentes que são frequentemente dirigidas
precisamente contra as práticas repressivas e violentas dos conglomerados da comunicação social e
dos Poderes em vigor?”, perguntava.
O nomadismo militante e de guerrilha dos media tácticos é relacionado por Garcia e Lovink com as
culturas migrantes, na medida em que ambos se distinguem pela sua constante mobilidade. O
praticante táctico está sempre a cruzar fronteiras pré-estabelecidas entre disciplinas, mediums e
espaços. Daí resulta “a produção contínua de uma série de mutantes e híbridos”.
Ao nomadismo junta-se um hibridismo provisório, um permanente work-in-progress
experimentalista, fazendo uso das ferramentas que estão mais à mão. Os defensores deste tipo de
radicalidade estética “baseiam-se num princípio de resposta flexível, de trabalho com diferentes
coligações, sendo capazes de se moverem entre as diferentes entidades no vasto panorama mediático
sem traírem as suas motivações originais” (Garcia e Lovink, 1997).
Na base do movimento está uma estética da fuga, de camuflagem e da apropriação inspirada no texto
do pensador anarquista Hakim Bey sobre “Zonas Autónomas Temporárias” (2001 [1991]), pois,
segundo Garcia e Lovink, “os media tácticos nunca são perfeitos, estão sempre em transformação, são
performativos e pragmáticos, envolvidos num processo contínuo de questionamento das premissas dos
canais com que trabalham”.
À beira do final do milénio e nas vésperas da terceira edição do N5M, Garcia e Lovink actualizaram o
seu manifesto com “The DEF of Tactical Media” (1999), tendo em conta as consequências nefastas
do capitalismo global e o desvanescimento do clima utópico dos activistas mediáticos em relação ao
potencial emancipatório dos novos média, em especial, a Internet, que nesta altura começava já a ser
dominada por interesses comerciais.
Von Clausewitz.
28
Apesar do crescimento extraordinário da globalização dos fluxos de capital, segundo os teóricos
holandeses, os grupos de media tácticos não deixaram de se opor a esta situação com campanhas
também cada vez mais globalizadas. Escrito antes de Seattle, Génova, Davos e Gotemburgo e de
todas as grandes manifestações contra o capitalismo global, este texto contém em si uma certa dose de
premonição, dado que refere já a possibilidade da constituição de um movimento a partir destas
“estratégias”. Nos dois anos seguintes, os órgãos comerciais de comunicação social irão encher-se
cada vez mais de referências ao movimento por uma globalização alternativa – ainda que muitas
sejam de teor negativo.
Contudo, os autores não deixam de realçar as diferenças existentes entre os vários praticantes tácticos.
Utilizando a primeira pessoa do plural, escrevem: “Não possuímos nenhuma identidade predominante
em torno da qual nos organizemos. Não criamos modelos positivos para que qualquer um se
identifique com eles (...). As nossas alianças são ainda relativamente froxas, com uma tendência para
se fragmentarem num número infinito de gangues e subculturas.”
Esta desorganização e fragmentação entre múltiplos organismos é, aliás, um dos problemas que afecta
a legitimidade dos activistas a favor de uma globalização alternativa face ao poder político, às
instituições transnacionais de políticas económicas e à opinião pública. Entre grupos desordeiros e
violentos de um lado e colectivos de acção directa pacífica do outro, o movimento parece ainda não
ter encontrado uma voz comum que represente todos os seus elementos.
Confrontados com a necessidade de saírem do próprio gueto que construíram para si, os praticantes
tácticos são levados, afirmam Garcia e Lovink, a procurarem novas coligações, tentando, em
simultâneo, evitar as armadilhas e os limites da política institucionalizada. Trata-se assim de uma
questão de construção de “zonas temporárias de consensos”, espelhando um equílibrio entre a
formação de alianças com pessoas que em condições normais, provavelmente nunca se iriam
conhecer e a possibilidade de, quando chegar a altura certa, dissolver essas coligações, tendo como
princípio base a mobilidade e a velocidade de forma a evitar a estagnação.
Criticando os activistas da “velha guarda” que consideram que o espaço da representação e do
simbólico construído por e através dos media não passa de um espectáculo cheio de símbolos vazios25,
os dois autores argumentam que muitas das lutas de rua passaram a desenrolar-se não no espaço
público, mas em ambientes virtuais e simulações, isto “numa altura em que se pode assistir a um tão
25 “Hoje em dia, os media são acusados de fragmentarem em vez de unificarem e mobilizarem. Paradoxalmente, isto deve-se ao seu poder discursivo de pormenorizar as diferenças e de questionar, em vez de apenas emitir, propaganda.” (Garcia e Lovink, 1999)
29
grande crescimento no número de canais de media, onde existe uma expansão enorme dos vários
ciberespaços”. Por isso defendem que a velha oposição entre simulação e acção real26 deixou de fazer
sentido.
Outra das vítimas deste segundo manifesto táctico é a ideologia da hibridização. Apesar do
hibridismo, enquanto forma de ligação entre o velho e o novo, a rua e o virtual, ser uma das principais
características dos media tácticos, os teóricos holandeses referem que este método não deve ser
encarado como algo de bom em sim mesmo, porque isso significa o fim do sentido crítico e do
negativismo e a adopção da visão neo-liberal onde tudo pode ligar “promiscuamente” com tudo. Num
sentido táctico, o hibridismo não passa de um realismo sujo, uma questão de sobrevivência e nunca de
escolha.
Nesse mesmo ano de 99, em Novembro, a manifestação de Seattle para contestar a reunião da
Organização Mundial do Comércio (OMC) nessa cidade marcou o início de uma nova época em que
os media tácticos passaram a ser associados ao activismo mediático do movimento para uma
globalização alternativa que organiza demonstrações um pouco por todo o mundo27 contra as grandes
instituições supranacionais que controlam a política económica do globo de acordo com princípios
neo-liberais, quer seja a OMC, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial ou a União
Europeia. Os primeiros meses do século XXI representaram assim um período de crescimento
exponencial deste movimento, apesar da existência de várias vozes dissonantes entre si e da crise
económica acentuada.
É sob este pano de fundo que pode ser lido o último texto do trio de manifestos sobre media tácticos
escritos em co-autoria entre David Garcia e Geert Lovink, publicado em Julho de 2001, mais uma vez
na Nettime. “The GHI of Tactical Media” resulta de uma entrevista realizada por Andreas
Broeckmann, durante o festival de arte de novos media Transmediale 01, que se realizou em Berlim
nesse mês. Broeckmann foi o curador desse evento.
Respondendo à questão de se considera que “faz sentido falar dos media tácticos como uma atitude e
prática geral que permeia media diferentes ou se se trata de um termo sucinto para designar todo um
26 Num ensaio baseado nos vários manifestos sobre media tácticos escritos por si e em co-autoria editado no seu livro Dark Fiber (2002: 265), Lovink complementa este texto referindo que as ideias de Jean Baudrillard relativas à simulação foram úteis nos anos quando o sector dos media explodiu. Contudo, à medida que se aproximava o fim do milénio, tudo parecia simulado, tendo as ideias do pensador francês começado a parecer conservadoras e fora de contacto com a actual realidade da Internet. Ver Jean Baudrillard (1981), Simulacros e Simulações. Lisboa, Relógio D’Água. Abordaremos mais uma vez as ideias deste pensador no capítulo 7.3.
27 Praga, Génova, Gotemburgo, Davos, Montreal foram alguns dos cenários que, a seguir a Seattle, foram palco de manifestações contra grandes instituições supranacionais.
30
conjunto de práticas mediáticas diferentes, cada uma com a sua própria cultura e política”, Lovink
afirma que se trata de “uma forma de arte que conjuga o activismo com uma atitude positiva em
relação à tecnologia digital actual”, embora não considere que o movimento tenda para a utilização de
certos meios ou plataformas.
Na mesma linha, Garcia considera que, em vez do emprego de qualquer medium em particular, o que
caracteriza o praticante táctico é a qualidade de criar linguagens efectivas de utililizador, quer sejam
virtuais ou de outro modo. Os media tácticos são, assim, para os dois autores, mais uma questão de
atitude do que uma definição técnica. Nesta perspectiva, os praticantes tácticos não devem deixar
enredar-se por um tecno-narcisismo em favor das novas tecnologias digitais e, sobretudo, da Internet.
Isto na medida em que, afirma Lovink num tom cauteloso, não se obtém liberdade mediática de graça
nem, sobretudo, se pode comprar liberdade tecnológica. Criticando os defensores acérrimos do
software de código aberto como o sistema operativo Linux, o teórico holandês refere que não existe
software inerentemente bom. Do mesmo modo, “a Internet está para além do bem e do mal,
limitando-se a reflectir a natureza humana com todas as suas falhas”, “correndo o perigo de se tornar
num medium profissional, nas mãos de outros”.
Até porque, faz questão de notar, “o activismo táctico que actua na rede está muito mais próximo das
empresas ponto com do que muitos pensam”. Em consequência, o início da depressão da Internet a
partir do final de 2000 levou os activistas mediáticos a trocarem as esperanças utópicas iniciais por
uma série de críticas realistas da globalização e da chamada nova economia, responsabilizando-as
pela crise. Muitos viram desaparecer o financiamento das suas actividades, na sua grande parte até
então assegurado no sector comercial. Mas, de acordo com o autor, a um nível micro continuam a
existir muitas coisas interessantes por fazer com a Net.
Doutro ponto de vista, Lovink considera positivo, em termos das tarefas sociais e políticas efectuadas
na Rede, o desaparecimento da mentalidade de ladrão ciberegoísta das empresas ponto com, embora
saliente que não devemos ignorar o reverso desta história: “Com o liberalismo perdendo a sua
hegemonia, existe sempre o perigo de deitar fora o bébé junto com a água do banho e de perder a
ciberliberdade para as grandes companhias e o Estado. Isso nunca deveria acontecer. Também
compete aos activistas lutar contra a censura, fazer pressão contra a quantidade enorme de legislação
desastrosa.”
A inclusão de determinadas práticas artísticas na gaveta dos media tácticos é também contestada por
31
Lovink neste texto. Na sua opinião, este termo resulta de uma tentativa de “ultrapassar a dicotomia
entre a arte elitista e o activismo das ruas que marcou os anos 80 com os seus combates dogmáticos e
novos movimentos sociais institucionalizados” como o Greenpeace e a Amnistia Internacional. O
autor considera que a ideia dos media tácticos veio a resultar nas manifestações de Seatlle e no
fenómeno Indymedia..
Ao mesmo tempo que dá conta do renascimento extraordinário do activismo mediático a nível
mundial, Lovink não acredita, porém, que o Net-activismo ou os media tácticos possam preencher o
buraco existente entre questões abstractas como a dívida do terceiro mundo, os acordos de comércio
global, as políticas financeiras e a miséria diária, com as suas lutas concretas e locais. “A única coisa
que podemos fazer é trocar e partilhar conceitos”, diz, dando como exemplo o rápido crescimento dos
grupos anti-fronteiras que apoiam os imigrantes ilegais, “uma luta onde a imaginação táctica
desempenha um papel importante”.
Questionados por Broeckmann sobre a existência de uma possível tensão entre a necessidade dos
praticantes tácticos de obter apoio junto das instituições de modo a desenvolverem práticas e infra-
estruturas a longo prazo e a atitude “toca-e-foge” implícita nos media tácticos que é incompatível com
a natureza desse tipo de entidades, Lovink afirma que essa questão ainda não se coloca pois “a
institucionalização é um problema que surge com o tempo, talvez apenas cinco ou dez anos depois do
movimento original se ter fragmentado. Confessa até que “gostaria muito de ver surgir mais
iniciativas privadas do tipo ‘toca-e-foge’ no sector activista e da arte dos novos média”. Contudo,
considera que os indivíduos criativos não conseguem lidar com o tipo de burocracia que envolve as
instituições actuais. Neste aspecto, as empresas ponto com podem constituir para este autor uma boa
lição, na medida em que as artes e a cultura continuam a depender muito dos recursos
governamentais.
Por seu lado, Garcia também não vê essa tensão, embora por razões diferentes, dado que, ao contrário
do que a questão dá a entender, os media tácticos não estão sempre, por definição, fora do poder
institucional. Para si, o poder existe onde se faz exercer e esse local poderá ou não situar-se dentro das
instituições. “O táctico ultrapassa a dicotomia entre o comercial e de massas e o marginal. São os
conceitos em que os media tácticos são produzidos que influenciam as tácticas implementadas, e estes
conceitos (e tácticas) são múltiplos.”
Escrito já depois do 11 de Setembro de 2001, o ensaio de Geert Lovink inserido no Virtual Casebook
da Universidade de Nova Iorque sobre os eventos (Lovink, 2002a) constitui um balanço sobre o
32
impacto que os atentados nos Estados Unidos tiveram sob a condição dos media tácticos e do
mediactivismo em geral, concluindo que a guerra contra as opiniões divergentes que se seguiu a essa
data teve um efeito mínimo no movimento, “As tentativas de Bin Laden e Bush Jr. em 2001 para
sequestrar todos os media debaixo do símbolo único do Terror (e a guerra contra ele) duraram
efectivamente apenas algumas semanas” (idem). Em consequência dos atentados, os media tácticos
desenvolveram-se bastante, afirma. Empregando uma citação de Drazen Pantic, antigo operador de
Internet da estação independente de rádio B92, de Belgrado, e actual investigador da Universidade de
Nova Iorque, que remete para as origens militaristas do termo em questão, Lovink refere que “os
grupos de media tácticos estão muito mais adaptados ao conflito, ao passo que costumam enfraquecer
em tempos menos conturbados”. A grande mudança ocorreu, sobretudo, na entrada em vigor nos
países ocidentais de um conjunto de leis destinadas a “restringir as liberdades civis, a liberdade de
expressão e a privacidade, ou o que resta dela” (idem). A posição de Lovink em relação ao impacto do
11 de Setembro no movimento revela-se assim relativamente optimista. No entanto, como veremos no
capítulo 7.4, outros teóricos e activistas divergem da sua opinião.
Ainda segundo Lovink, encontramo-nos paradoxalmente entre um cada vez maior controlo dos media
e uma estrutura de diálogo e informação independente em ascenção. Se por um lado, o cenário de
medo pós-11 de Setembro fez com que se deixasse de encarar a Internet como um refúgio da
liberdade, por outro, a queda das empresas ponto com criou um espaço para o surgimento de novas
abordagens não-comerciais. Ao mesmo tempo que reconhecem a importância económica do novo
medium, os governos deixaram de recear que a Internet contribua para o aumento da liberdade de
expressão. A filtragem de conteúdos online deixou de ser empregue apenas por regimes autoritários,
como o da China, para se tornar numa característica comum nas intranets das empresas e
universidades, Para além disso, os motores de pesquisa na Web, como o Google, apresentam um
funcionamento nada transparente (idem).
Em paralelo, a utilização crescente do software livre e dos conceitos open-source, as redes Peer-to-
Peer (P2P) de partilha de ficheiros na Rede, o surgimento dos Weblogs que facilitam a publicação de
conteúdos online, as mensagens SMS dos telemóveis e os programas de edição de áudio e vídeo para
computadores pessoais são, para Lovink, sinais de uma democratização do sector dos media que,
apesar do crescente controlo empresarial e regulação governamental, está a ocorrer em todo o mundo
(idem).
Para Lovink, em vez de representarem a queda num reducionismo simplista, os media tácticos
rejeitam análises rígidas introduzindo vozes pessoais e novas que não se enquadram nos esquemas
33
políticos do passado. O autor aconselha os praticantes tácticos a, em vez de continuarem a queixar-se
da censura exercida pelos media comerciais dominantes, utilizá-los como “portais” que conduzem a
outras fontes de notícias e opiniões. Distinguindo-os dos media alternativos, considera que, neste
sentido, os media tácticos são pós-oposicionistas. A razão está no facto de serem mais impelidos pela
sua própria energia e desejo de mediar do que pelo desmascarar dos órgãos de comunicação social
controlados pelo Estado ou pelas empresas privadas.
34
1.4 - Distinção entre Media Alternativos e Media Tácticos
Todos os impulsos tímidos no sentido de democratizar o conteúdo, subvertê-lo, restaurar a ‘transparência do código’, controlar o processo de informação, forjar uma reversibilidade dos circuitos ou tomar o poder sobre os media são inúteis – salvo se o monopólio do discurso for quebrado.
- Jean Baudrillard, “Réquiem pelos media” em Crítica da Economia Política do Signo.
Como já vimos anteriormente, as definições de media alternativos variam bastante. A definição mais
abrangente e aprofundada do conceito é da autoria de Chris Atton, sob a forma de um modelo que tem
em conta vários elementos (2002: 27):
1. Conteúdo (politicamente radical, social/culturalmente radical); valores-notícia
2. Forma – gráficos, linguagem visual; diferentes tipos de apresentação; estética
3. Inovações/adaptações reprográficas – utilização de mimeógrafos28, composição tipográfica
IBM, litografia em offset, fotocopiadoras
4. ‘Utilização Distributiva’ – distribuição através de circuitos alternativos, redes
clandestinas/invísiveis de distribuição, rejeição dos direitos de autor
5. Relações sociais, papéis e responsabilidades alteradas – leitores-redactores, organização
colectiva, desprofissionalização do jornalismo, da impressão e da edição
6. Processos de comunicação alterados – ligações horizontais, redes.
Segundo Atton, os pontos 1 a 3 referem-se a produtos ao passo que os pontos 4 a 6 indicam
processos. Como explica o autor, de acordo com este modelo, “as relações sociais tendem a ser
transformadas através de processos radicais de comunicação, ao mesmo tempo que os próprios media
(os veículos) tendem também a se transformar”. Efectuando uma análise crítica a este modelo ou
definição de media alternativos, podemos afirmar que, ao tentar conceber uma abordagem que
engloba uma dimensão histórica ampla e, ao mesmo tempo, o mais pormenorizada possível, Atton
acaba por se centrar no plano da imprensa e, sobretudo, das fanzines de pequena circulação
produzidas por amadores. As iniciativas baseadas na rádio, na televisão, no vídeo e na própria Internet
são deixadas um pouco de lado no ponto três e quatro. Se bem que se possa adaptar este modelo a
outros media, seria talvez mais apropriado que o quadro fosse mais aberto e menos detalhado.
Adoptando uma perspectiva mais aberta e menos rígida, John Downing propõe o termo media
radicais ou media alternativos radicais, salientando que o termo refere-se a “media polticamente
28 Equipamento que realiza cópias em matriz perfurada – stencil.
35
dissidentes que apresentam alternativas radicais ao debate mainstream” (1995). Segundo Downing,
algumas das principais características deste tipo de órgãos de comunicação social consistem no facto
da sua posse e gestão serem independentes; de exprimirem pontos de vistas que são, de alguma forma,
dissonantes das perspectivas dos media dominantes; e de incentivarem o estabelecimento de relações
horizontais com as suas audiências, ao contrário dos fluxos verticais, de cima para baixo, dos media
impressos e de difusão (broadcast). Tal como refere Graham Meikle, estas características dos media
alternativos devem ser entendidas como tendências e não como formas de classificar – isto é, não se
trata de dispositivos classificadores mas de potenciais abordagens disponíveis para analisar qualquer
órgão de comunicação social (2002: 60).
Dowing chega a remontar as origens dos media alternativos e das publicações dissidentes aos
panfletários revolucionários por altura da Guerra da Independência dos Estados Unidos, passando
pelos escritores abolicionistas negros, a imprensa feminina do século XIX, a imprensa operária do
final do século XIX e início do século XX, os documentários radicais da época da Depressão pós-
1929, chegando aos movimentos em defesa dos direitos civis dos anos 60 e à estação televisiva por
satélite Deep Dish.
Em relação à diferença entre alternativo e radical, Downing afirma que “falar apenas de media
alternativos é quase um oxímoro29. Tudo é, numa determinada altura, alternativo a alguma outra
coisa” (2001: IX). Na opinião de Meikle (2002: 196n1), “‘alternativo’ permanece o melhor de um
conjunto insatisfatório de termos: ‘radical’, por exemplo, conota-se para muitas pessoas com questões
e movimentos na sua maior parte de Esquerda, ao passo que o termo ‘alternativo’ deixa espaço para
analisar grupos com um programa ideológico mais de Direita. De uma forma semelhante, o adjectivo
‘independente’ é frequentemente conotado com independência económica, enviesando a nossa leitura
em direcção a questões relativas apenas à economia política”.
São vários os teóricos e activistas tácticos que fazem questão em distinguir os media alternativos
tradicionais e os media tácticos. Graham Meikle refere que os dois tipos de produção mediática
diferem em aspectos importantes: “Os praticantes tácticos não tentam afirmar-se a si próprios como
uma alternativa – eles não tentam criar uma estação de rádio ou um jornal ‘melhor’ ou estabelecer-se
como, por exemplo, uma ‘CNN chinesa’ (2002: 119). Em vez disso, os media tácticos tem como
essência a mobilidade e a flexibilidade, referindo-se a diferentes respostas a contextos sempre em
mudança.” Este autor, contudo, assinala algumas semelhanças entre os dois diferentes modelos de
media: “os ‘media tácticos, tal como os ‘media alternativos’, são melhor encarados como um conjunto
de opções em vez de uma abordagem monolítica (...) A utilização de media tácticos pode
29 Junção ou combinação de palavras com sentido contraditório.
36
complementar abordagens típicas dos media alternativos – muitos sites da rede Independent Media
Center, por exemplo, são construídos sob a forma de projectos estratégicos a longo prazo; outros
surgem como sites tácticos de curta duração, relativos a eventos específicos.” (2002: 121)
No mesmo sentido, David Garcia e Geert Lovink escrevem no manifesto fundador “The ABC of
Tactical Media” que “apesar dos media tácticos incluirem os media alternativos, aqueles não se
encontram restringidos a esta categoria”. Referem ainda que introduziram o termo táctico de forma a
afastarem-se das “dicotomias rígidas que têm restringido durante tanto tempo o pensamento nesta
àrea, dicotomias como amador Vs profissional, alternativo Vs massificado. Até mesmo privado Vs
público”. Tal como refere Garcia noutro ensaio posterior, parecia que estas velhas terminologias
dialécticas “tinham deixado de descrever a situação por que estávamos a passar” (1998). No seu livro
Dark Fiber (2002), Lovink afirma que os media tácticos herdaram o legado dos media alternativos
sem a etiqueta de contra-cultura e a certeza ideológica de décadas anteriores. “Nascidos do desgosto
face à ideologia” (Garcia e Lovink, 2001), os media tácticos recusam o conflito e as estratégias de
luta pelo poder a que muitas das experiências mediáticas alternativas estavam associadas.
As lógicas dos dois tipos de produção mediática parecem ser na prática bastante diferentes, de acordo
com Joanne Richardson (2002): “As iniciativas grassroots (de base) que se centram na construção de
uma comunidade ligada a valores diferentes dos dominantes ocupam de facto um espaço ideológico
que é representado como sendo diferente: elas não se infiltram no mainstream de forma a pirateá-lo
ou subvertê-lo, como os RTMark poderão infiltrar a imagem mediática da OMC (Organização
Mundial do Comércio)”. Contudo, a autora salienta que uma das características comuns a ambos os
modelos de media é o facto de se auto-definirem através de um acto de oposição face a um
adversário, do qual a sua existência depende.
Em “Notes on Sovereign Media”, Lovink e Richardson (2001) fazem a distinção entre media tácticos,
media alternativos, media independentes e uma quarta categoria teórica a que chamam de media
soberanos. Introduzido pelo colectivo teórico germano-holandês BILWET ou ADILKNO (Fundação
para o Avanço do Conhecimento Ilegal), do qual Lovink foi um dos elementos, o conceito de media
soberanos remete para práticas artísticas que existem por si próprias, desinteressadamente, sem
objectivo ou motivação. Apesar de produzirem sinais com uma origem, um receptor ou autor, não
possuem um receptor designado. Em vez de comunicarem informação, comunicam-se a si próprios.
Eles cortaram todos os laços imaginários com a verdade, a realidade e a representação. Como referem
Lovink e Richardson, “os media soberanos deixaram de se concentrar nos desejos de um grupo-alvo
específico, tal como os media tácticos e alternativos ainda o fazem. Emanciparam-se de qualquer
37
audiência potencial”. Não procuram a ligação, antes desligam-se. Habitam um universo paralelo,
constituído apenas por dados. Não têm mensagem, por isso tendem a considerar o suporte mediático
como um fim em si próprio. Este tipo de produção mediática permanece oculto, sendo por isso difícil
de distinguir enquanto categoria autónoma. Por outro lado, uma vez que não têm qualquer utilidade, a
qualidade dos sinais que emite é um critério irrelevante. Apesar de os autores não darem exemplos,
podemos ver algumas das características atrás anunciadas em obras de web-art pautadas pelo
experimentalismo e pela subjectividade, envolvendo tecnologias de ponta como a realidade virtual.
Trata-se assim de uma herança da postura da "arte pela arte" que algumas vanguardas assumiram nos
séculos anteriores.
Totalmente distintos são os media alternativos. Na visão destes dois autores, estes últimos referem-se
a um período a partir de 1968, funcionando com base na contra-propaganda e no reflexo em espelho
dos media dominantes, que consideram que precisam ser corrigidos e complementados. Têm como
fim transformar a consciência dos indivíduos, de forma a que estes se apercebam do seu
comportamento e opiniões. O modelo do cancro ou dos vírus está na base do seu funcionamento,
através de uma variante positiva segundo a qual “se assume que, a longo prazo, todos irão ficar
informados do problema a ser abordado, seja indirectamente ou através dos grandes órgãos de
comunicação social”. Os seus defensores e produtores acreditam que, no final, o activismo de poucos
irá provocar uma reacção em cadeia por parte da maioria. De forma a funcionarem, os media
alternativos têm que se apropriar da verdade.
Na visão destes teóricos dos media tácticos, o sector dos media alternativos emergiu sob a forma de
uma imensidão de pequenas iniciativas locais e de base auto-organizadas por radicais e militantes,
adoptando o formato de rádios, jornais e televisões comunitárias30. Mas com a chegada dos anos 90, a
Internet permitiu que estes projectos Do-It-Yourself ultrapassassem as suas fronteiras locais e se
tornassem transnacionais, actuando a um nível global, tal como os grandes media de massas. O local
tornou-se universal. De alternativos, estes media passaram a independentes. Lovink e Richardson
querem com esta expressão fazer referência à rede global Independent Media Center (Indymedia).
Mas o próprio Lovink chega a classificar noutros textos a Indymedia de media táctico. Esta opção é
também tomada por Graham Meikle, parecendo-nos na nossa perspectiva a melhor solução.
Na acepção de Lovink e Richardson, os media independentes procuram suplantar o velho sistema
mediático, afirmando-se como tal enquanto contra-media, isto é, “uma negação dialéctica interna,
uma crítica imanente que nunca consegue sair das pressuposições do sistema que desafia”. Os seus
30 Estas iniciativas inserem-se na corrente de crítica expressivista das mobilizações informacionais analisadas por Cardon e Granjon (2003), tal como referimos no capítulo 3.
38
elementos criticam a partir de dentro desse sistema as pretensões dos órgãos de comunicação de
massas de ser uma forma democrática, verdadeira e genuína de representação, aspirando a revelarem
a essência ideológica por detrás deles. Contudo, não deixam de querer oferecer também eles uma
forma democrática, verdadeira e genuína de representação. Pretendem ser uma substituição dialéctica
dos media de massas e sonham com um futuro em que os próprios media serão suplantados, na
medida em que estes implicam sempre uma separação entre o emissor e o receptor. Com a
democratização da informação, estes papéis podem inverter-se ou sobrepor-se.
O método dos media independentes reside na difusão de contra-propaganda. Opõem-se à máscara
ideológica e falsa dos media de massas com contra-declarações efectuadas a partir de uma contra-
perspectiva. Por isso, dependem da imagem dos media de massas para a revertê-la, empregando as
mesmas estratégias destes órgãos de comunicação social. A posição adoptada nunca é alvo de
reflexão ou de dúvida, por ser auto-evidente, e deve ser sempre defendida, mesmo que isto obrigue ao
recurso à luta. Em comum neste tipo de iniciativas, na opinião dos dois autores, é a existência de uma
missão, uma causa suprema.
Ao contrário dos media alternativos, os media tácticos não se levam tanto a sério. Em vez de
assumirem uma posição de superioridade moral, procuram por pontos de fuga e de quebra no sistema
mediático. Impulsionados pelo seu desejo de formarem novas coligações, são capazes de correrem
riscos, mesmo que isto possa levar à sua auto-destruição. Os seus praticantes partilham uma atitude
que é tanto poética como militar, actuam em situações polimórficas e através de manobras e truques,
sendo utilizadores rebeldes do sistema mediático de massas, entretendo-se a subverter as suas
mensagens. Utilizam o que está mais à mão e o que pode ser melhorado no momento. Criam um
sistema de desinformação, que coloca implicitamente em causa o poder e o estatuto dos signos
dominantes. Em vez de ser uma base de dados cheia de “factos”, a verdade é, para os praticantes
tácticos, um breve momento de revelação surgido a partir do inconsciente colectivo.
Apesar de conterem em si uma grande dose de ironia e valorizarem o momento presente “aqui e
agora”, os media tácticos possuem um objectivo político a longo prazo, uma causa futura. Na medida
em que se afirmam como arte, abandonaram definitivamente as massas, mas procuram alterar a
consciência de uma minoria mediante uma política que suplanta a sua definição tradicional para se
assumir como forma de arte. Preferem uma propaganda da mentira, da intrujice, à contra-propaganda.
Optando por uma definição dos media tácticos através de uma abordagem histórica centrada nos
Estados Unidos, Sandra Braman identifica em “Defining Tactical Media: An Historical Overview”
39
(2002) quatro tipos de media alternativos distinguíveis pelas características que os tornaram
alternativos, pela forma de poder exercida, pelas suas perspectivas em relação à estética e ao consumo
e pela função política do indivíduo. De acordo com Braman, todos os quatro tipos podem ser
observados nas práticas dos media tácticos contemporâneos. No entanto, faz remontar a origem dos
media alternativos até às novas formas de comunicação surgidas “nos princípios da sociedade de
informação a meio do século XIX”, apelidando-os desta forma por serem media noticiosos de massas
que diferem dos órgãos de comunicação social anteriores na medida em que pretendem provocar a
mudança política.
O primeiro modelo de media alternativos surge por volta da metade do século XIX com a imprensa
económica ou penny press, salientando-se pelo facto de tornar o indíviduo comum simultaneamente
como sujeito e audiência das notícias. Nos finais do século XIX e até à década de 20 do seguinte, a
chamada “imprensa amarela” vai-se afirmando, coincidindo com o segundo modelo alternativo, em
que se dá a introdução da crítica na cobertura noticiosa e o recurso a blocos alternativos de factos de
forma a realizar essa crítica. As notícias passavam a ter um poder simbólico, segundo Braman, em
que o impacto sobre as ideias do leitor levava a uma alteração dos seus comportamentos. A partir da
década de 60, com a difusão de uma série de inovações tecnológicas, dá-se um aumento do número de
canais mediáticos alternativos. Por outro lado, o “novo” jornalismo abandonava a perspectiva da
notícia enquanto conjunto de factos o mais objectivos possíveis em favor de um ponto de vista que
valoriza a notícia enquanto história inserida num contexto social.
Por último, o quarto modelo representa o período dos anos 90, da irrupção dos media tácticos, em
que, graças às novas tecnologias digitais, o indivíduo comum se torna ele próprio produtor de notícias
e em que os media são, cada vez mais, o conteúdo. Os media tácticos representam a sobreposição pós-
moderna de géneros ao combinarem notícias com comentários políticos e formas de arte. Braman
afirma que este tipo de produção mediática é “alternativo” porque emprega os media como conteúdos,
rejeita a ideologia, funde a política com a arte e reconhece a capacidade da informação digital para
fazer directamente grande parte do trabalho. Na sua opinião, trata-se do primeiro conjunto de práticas
mediáticas concebida com vista a obter poder informacional, isto é, concretizado mediante o controlo
das bases informacionais das formas instrumentais, estruturais e simbólicas de poder.
Logo a seguir, Braman parece entrar em contradição com o que escreveu, ao dizer que “muitos
praticantes de media tácticos tomam um grande cuidado em distinguirem-se dos media alternativos
dos anos 60 e 70, centrando-se em quatro dimensões de diferença: a passagem de uma adesão a
posições estritamente ideológicas ao abandono da ideologia, da rejeição do consumo à utilização do
40
consumo para fins políticos, da rejeição da estética à utilização da estética para fins políticos, e de
uma abordagem centrada no conteúdo dos media para, como Marshall McLuhan expôs, o medium
como conteúdo”. Mais uma vez, parece haver uma certa confusão, generalizável a todo o mundo
académico e até mesmo aos activistas, sobre qual o papel dos media tácticos na tradição histórica dos
media alternativos. Ao mesmo tempo que parecem pertencer a este legado, por outro existe um
esforço de separação, de afirmação de um nicho próprio. A sua posição situa-se permanentemente
entre o distanciamento e a aproximação.
Para agravar mais a confusão, McKenzie Wark escreve em “Strategies for Tactical Media” (2002) que
a existência de media tácticos implica que também hajam media estratégicos e logísticos. Estes
termos referem-se a níveis diferentes onde a contestação pode ocorrer. Se o táctico é local e
contigente, o estratégico envolve o planeamento e coordenação, ao passo que o logístico se terá que
referir a organizações de forças globais, sistémicas e de longo alcance31. Citando Paul Virilio, que
argumenta que nos assuntos militares o conflito passou do domínio do táctico para o estratégico e em
seguida para o logístico, Wark afirma, na mesma linha, que actualmente todo o planeta está
organizado com base na ordenação logística da produção e comunicação. Neste sentido, oferece como
exemplo da militarização logística que está na base da sociedade a forma casual com que a guerra
contra o Iraque foi debatida a nível global. A esta sociedade em que a mesma logística se aplica à
comunicação e à informação, por um lado, e à máquina de guerra, por outro, o autor dá o nome de
complexo militar de entretenimento.
Tendo em conta a crescente organização logística do poder, Wark admira-se da actual retórica sobre
respostas alternativas se centrar apenas nos media tácticos e ignorar os estratégicos e logísticos. Mas,
salienta, caso estejamos de facto a viver na sombra do complexo militar de entretenimento, então a
prática dos media tácticos terá que abandonar as teorias populares do presente32 – para adoptar uma
teoria baseada no princípio básico da logística, isto é, a telestesia33.
31 Do mesmo modo, Graham Meikle efectua uma distinção entre usos tácticos e estratégicos dos media pelos activistas. Ao contrário de Certeau, que privilegia o espaço ocupado, dando a entender que as estratégias são sempre um lugar próprio pertencente a um poder, Meikle dá ênfase ao tempo das acções, que podem ser de curta ou longa-duração, consoante forem tácticas ou estratégicas. Assim, por exemplo, ele considera um media estratégico o McSpotlight (www.mcspotlight.org), um projecto a longo prazo baseado na web que congrega informação, críticas e debates sobre a McDonald's e outras grandes transnacionais, e como táctico os RTMark. Quer as tácticas, quer as estratégias possuem valor, dependendo a sua utilização dos objectivos que visam e do local em questão.
32 Teorias que, como iremos abordar mais à frente, comparam a táctica a um rizoma (Deleuze e Guattari,1980), a uma Zona Autónoma Temporária (Bey, 2001 [1991]) e a uma instância da 'multidão' (Hardt e Negri, 2000 e 2004). Para McKenzie Wark, estas teorias não abordam os media e tendem, por isso, a ter uma visão algo simplista deles, chegando a considerá-los como meros acessórios e não como um objecto central de interesse.
33 “A telestesia significa percepção à distância, possibilitando que a informação se mova mais rapidamente do que as pessoas e as coisas, e que se torne, assim, na forma de organizar o movimento das pessoas e das coisas. “ (Wark: 2002).
41
2 – Genealogia das Mobilizações Informacionais
Toda a utilização dos media pressupõe manipulação (...) Desse modo, a questão não é se os media são manipulados, mas sim quem os manipula. Um plano revolucionário não deverá exigir que os manipuladores desapareçam; pelo contrário, deve transformar todos em manipuladores.
- Hans Magnus Enzensberger, “Constituents of a Theory of the Media”
Os media tácticos só podem ser entendidos se os integrarmos num contexto mais vasto de
mediactivismo, movimento que, surgindo nos Estados Unidos em Novembro de 1999, a partir de
Seattle, registou um rápido desenvolvimento internacional (Meikle, 2002; Pasquinelli, 2002; Cardon e
Granjon, 2003). Por sua vez, o mediactivismo insere-se na tradição dos media alternativos (Atton,
2002) ou radicais (Downing, 2001) que remonta aos anos 60.
Na sua análise geneológica das mobilizações informacionais ligadas às redes de movimentos sociais
estruturados em torno de causas específicas34 que resultaram no actual movimento por uma
globalização alternativa, os autores franceses Dominique Cardon e Fabien Granjon integram esta
tradição no militantismo informacional. Este conceito refere-se às “mobilizações multiformes cuja
ambição é desenvolver os seus próprios dispositivos de produção mediática e/ou democratizar os
media, actuando sobre as suas mensagens, as suas práticas, as suas organizações e o contexto
regulamentar com se regem, com o fim de encorajar a expressão dos cidadãos e favorecer uma
participação alargada no espaço público”.
Nesta parte irei socorrer-me do trabalho de Cardon e Granjon no sentido de apresentar a história da
crítica expressivista das mobilizações informacionais, corrente em que os dois autores colocam a
linha de actividades em que os media tácticos se inserem e que remete para todo um conjunto de
iniciativas diferentes do mediactivismo do princípio deste século, e a crítica anti-hegemónica, quadro
de acção em que insere a tradição dos media comunitários ou cívicos dos países em desenvolvimento
e comunidades desfavorecidas dos países desenvolvidos cuja mais recente expressão são os
watchdogs.
A distinguir estes dois quadros de acção, segundo os autores, está, como o nome indica, o tipo de
críticas efectuadas aos media tradicionais e o género de modelo alternativo a que lhes é oposto. À
primeira crítica, da qual, na sua opinião, o jornal mensal Le Monde Diplomatique é o principal
representante na França35, dão o nome de anti-hegemónica. Ela faz destacar a “função propagandística
dos ‘aparelhos ideológicos da globalização’ que os media constituem e apela à criação de um ‘contra-34 Como o ambientalismo, o feminismo, o sindicalismo, o desenvolvimentalismo, etc. 35 Situação que pode ser extensível para Portugal, dado o mesmo jornal possuir neste país uma versão nacional.
42
poder crítico’”. Faz ainda a denúncia da “repartição desigual dos fluxos de informação à dimensão
planetária, da hegemonia cultural dos media ocidentais, das ligações das empresas de comunicação
social ao sector político-económico, da restrição do espaço jornalístico às suas práticas profissionais,
da procura do lucro e do sensacionalismo”.
Deste ponto de vista, considera-se que os jornalistas reproduzem o pensamento dominante mediante a
ideologia, por conivência ou como efeito dos constrangimentos que as condições de produção de
informação exercem sobre eles. Na opinião dos que efectuam este tipo de crítica, os desvios
jornalísticos são sempre determinados, em última instância, pela estrutura de propriedade das
indústrias de informação. Os erros, os enganos e as deformações nas representações do mundo são
apenas consequências desse processo. Como alternativa, esta crítica reinvindica alterações estruturais
na regulação das indústrias culturais, o reequílibrio dos fluxos de informação entre nações, o reforço
do sector público de informação e comunicação, a autonomização dos media e seus profissionais face
às pressões do mercado e das audiências. Revelando uma forte influência das ciências sociais, a
crítica anti-hegemónica pretende opor às conivências e ao sensacionalismo dos media um nível de
exigência semelhante ao do trabalho científico, implicando exactidão, distanciação máxima, tempo
longo de investigação, rejeição dos formatos curtos, fraca valorização da opinião do leitor nas
preocupações do jornalista, entre outros aspectos.
A segunda linha de mobilização informacional centra-se na recusa da vedação sobre si mesmos do
círculo dos produtores de informação e da separação mantida pelos media tradicionais em relação ao
seu público. Esta crítica, que Cardon e Granjon apelidam de expressivista, opõe-se ao monopólio da
expressão detido pelos profissionais da comunicação social, os porta-vozes e os especialistas. Visa,
acima de tudo, libertar a palavra individual e, “promover os sistemas miniaturizados, que abrem a
possibilidade de uma apropriação colectiva dos media, que concedem meios efectivos de
comunicação não apenas às ‘grandes massas’, mas também às minorias, aos marginais, aos grupos
desviantes de todo o tipo”, referem, citando Felix Guattari36. Aqui, o que está em causa é menos a
objectividade do que a afirmação de subjectividades várias.
A critíca expressivista, coloca em causa o princípio de passividade do receptor que serve de base à 36 Esta apropriação dos media será de acordo com Guattari, possibilitada com o advento de uma era pós-media. Em
1990, ano da primeira Guerra do Iraque, traça o seguinte cenário em Vers Une Ère Post-Média": "O cabo e o satélite permitem-nos alternar entre 50 canais, ao passo que a telemática nos dará acesso a um número indefinido de bancos de imagens e de dados cognitivos. O caracter de sugestão, até mesmo de hipnotismo da afinidade actual com a televisão irá esbater-se. Podemos esperar a partir daí uma modificação do poder mass-mediático que esmaga a subjectividade contemporânea e a entrada numa era pós-media consistindo numa reapropriação individual colectiva e uma utilização interactiva das máquinas de informação, comunicação, inteligência, arte e cultura.". Este texto, publicado no nº 51 da revista Terminal de Outubro-Novembro desse ano está disponível em http://www.revue-chimeres.org/pdf/termin51.pdf. Este tese é mais um exemplo do sublime tecnológico em que se insere Enzensberger, como iremos referir no capítulo 7.3.
43
crítica anti-hegemónica. Para os seus articuladores, importa defender e promover os direitos do
locutor, mediante a produção de informação na primeira pessoa, a recusa do fosso entre dizer e fazer,
a multiplicação do número de emissores. Trata-se de contrariar as tendências monopolísticas dos
media que se exercem no espaço público com a criação de dispositivos de livre expressão. Tendo em
conta este conjunto de características, pode-se notar facilmente uma semelhança entre o programa da
crítica expressivista e dos manifestos tácticos de David Garcia e Geert Lovink.
Ao afirmarem que estes dois quadros de acção dos actores das mobilizações informacionais
“constituem uma chave de leitura para a história dos media alternativos”, Cardon e Granjon estão a
adoptar uma perspectica abrangente e vasta deste último conceito, na medida em que consideram os
media tácticos como um tipo de produção mediática alternativa. Convém no entanto salientar que os
teóricos e praticantes de media tácticos assumem um entendimento diferente do que são os media
alternativos, que remete para uma definição com um âmbito mais restrito, referindo-se à produção
mediática independente surgida após 1968 e ligada a determinadas ideologias, funcionando como um
simulacro dos media dominantes e baseando-se no princípio da contra-propaganda. A distinção entre
os media alternativos e os media tácticos feita por Garcia, Lovink, Meikle, Richardson e outros
autores será abordada mais adiante. A razão destas diferentes maneiras de interpretar as práticas
alternativas aos órgãos de comunicação social dominantes talvez resida, como referem os autores
franceses, no facto destas nunca terem estabilizado o vocabulário que as permite designar. Ao
adjectivo “alternativo” – melhor teorizado por Chris Atton -, é possível contrapor os termos “radical”
– proposto por John Downing -, cívico ou comunitário.
Seguindo o percurso das duas linhas de acção desde os anos 70, passando pela década de 80 e até à
segunda metade da década de 90, é possível observar diferenças nas formas das mobilizações
informacionais que deram origem a transformações internas nas críticas anti-hegemónica e
expressivista. Assim, se nos anos 70 os representantes da crítica anti-hegemónica colocavam em
destaque a desigualdade dos fluxos internacionais de informação, nos anos 90 prestam mais atenção
ao poder detido pelos media. Ao mesmo tempo, a crítica expressivista passou por uma grande
renovação na última década, passando de uma reinvindicação participatica e comunitária a um
modelo individualista, afirmativo e radical de expressão livre, tendo nesta nova configuração
conquistado um papel central no movimento por uma globalização alternativa.
44
2.1 - Décadas de 70 e 80
De acordo com Cardon e Granjon, costuma-se considerar que as formas actuais de militantismo
informacional surgiram nos anos 70. Nesta década, regista-se um grande desenvolvimento dos media
transfronteiriços. Começam-se também a debater neste período os media de massas e a
internacionalização da comunicação. Estes debates são marcados pela forte influência da crítica anti-
hegemónica. Os participantes – na sua maioria, universitários, peritos de organizações internacionais
e representantes de empresas de comunicação social – promovem alternativas práticas para combater
a hegemonia cultural dos grandes grupos mediáticos ocidentais, como a criação de agências
internacionais de informação nos países do sul, de forma a ajudar a recuperar a soberania na produção
de informação.
Durante as décadas de 70 e 80, representada pelo número crescente de media militantes, comunitários
ou cídadãos, a crítica expressivista assiste a um desenvolvimento bastante grande ao defender o
carácter local, participativo e reinvindicativo dos media de proximidade da responsabilidade dos
cidadãos. Neste período, as mobilizações informacionais dividem-se em dois modos de acção
distintos que serão, no entanto, interligados pelos militantes: O desenvolvimento de estratégias de
influência junto das instituições internacionais e a promoção de iniciativas destinadas à criação de
media “alternativos”, através dos partidos, das igrejas, dos sindicatos e das autarquias.
É em Argel, no âmbito da quarta conferência dos chefes de Estado ou de governo dos países não-
alinhados de 1973, que se dão as primeiras mobilizações contemporâneas da crítica dos media. Nesta
conferência ocorre a ratificação do princípio por uma nova ordem económica internacional, que virá a
ser adoptado meses mais tarde pela Assembleia Geral das Nações Unidas e considerada pela Unesco
(Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), na sua conferência geral de
1974, como um elemento central das políticas de desenvolvimento dos países do terceiro-mundo. O
programa de acção para a cooperação económica da conferência de Argel afirma que os países em
vias de desenvolvimento deverão cooperar no sector das comunicações de massas com o fim de
reorganizar os circuitos de comunicação herdados do seu passado colonial e favorecer as trocas de
fluxos de informação entre eles.
O grupo dos não-alinhados vê com maus olhos os monopólios inerentes aos grandes sistemas
internacionais de informação e consideram que o domínio das agências de notícias ocidentais é
incompatível com a exigência de uma informação independente. Em 1976, quer o simpósio de Tunis
(Tunísia) sobre informação, quer a 5ª conferência dos não-alinhados que teve lugar em Colombo (Sri
Lanka), reinvidicam pela primeira vez a necessidade de descolonizar a informação e estabelecer uma
45
nova ordem internacional de informação e comunicação.
Opondo-se tanto ao regime liberal norte-americano do free flow of information (livre fluxo da
informação), como às teses de soberania nacional influenciadas pelo bloco soviético e complicando o
cenário geopolítico bipolar, os países do terceiro-mundo apoiam a sua crítica sobretudo na denúncia
do imperialismo cultural a que são sujeitos. Apelam para que as condições para uma
autodeterminação cultural e uma autonomia mediática sejam alcançadas à escala internacional.
Aspiram ainda a uma influência real sobre os fluxos de informação que partem ou chegam ao seu
território e pretendem controlar as suas próprias representações com destino nos países do Norte, bem
como dominar os conteúdos difundidos nos países do Sul.
De forma a combater o imperialismo cultural, os países do Sul criam novas modalidades de
colaboração entre si, como agências nacionais de informação e redes transnacionais de agências.
Datando já do final dos anos 60, a Inter Press Service, surgida na América Latina, servirá de base a
um projecto cooperativo internacional mais vasto nos anos 70, chegando até à Europa e ao Médio-
Oriente. Em 1975, a jugoslava Tanjug constitui uma rede de onze agências de notícias do terceiro-
mundo. Dois anos depois, surge a PANA, agência panafricana de informação.. Por sua vez, em 1979,
nasce na América Latina a ASIN (Acção de Sistemas Informativos Nacionais).
Em paralelo, no mês de Dezembro desse ano é concluído o relatório da comissão internacional criada
pela Unesco para o estudo dos problemas da comunicação. Fruto de três anos de trabalho de um grupo
de reflexão internacional, é apresentado pelo presidente da comissão, o irlandês Sean MacBride – co-
fundador da Amnistia Internacional e Prémio Nobel -, em 1980. sendo publicado nesse mesmo ano
com o título em francês Voix Multiples, Un Seul Monde. O documento é considerado por Cardon e
Granjon como “a pedra de toque de uma crítica vigorosa da desigualdade estrutural entre os países do
primeiro mundo e os do terceiro mundo no acesso e produção de informação” (2003), pondo em
evidência o domínio das grandes agências de informação ocidentais como a Associated Press e a
Reuters, bem como a posição monopolística das empresas de comunicação transnacionais, com poder
suficiente para impôr um modelo unidireccional de circulação dos fluxos de informação e dos
conteúdos audiovisuais, tendente à uniformização e ao empobrecimento cultural.
A Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (NOMIC) é considerada pelo relatório
MacBride como um elemento indissociável da nova ordem económica internacional e ao equílibrio
das trocas comerciais globais. Logo na sua conferência geral de Belgrado, onde o documento também
é apresentado, a Unesco adopta o Programa Internacional para o Desenvolvimento da Comunicação
(PIDC), cujo objectivo consiste na instauração da NOMIC, visando desta forma o reforço dos meios
46
de comunicação de massas nos países em desenvolvimento. Entre outras medidas, pretendia-se que o
PIDC aumentasse a cooperação e assistência em favor das infra-estruturas de comunicação, reduzisse
o fosso entre os países no domínio da comunicação e apoiasse a formação profissional.
Apesar da ideia de uma nova ordem mundial da informação e da comunicação ter sido abandonada de
vez em 1989, o PIDC pemitiu, contudo, a criação de várias agências de notícias nacionais e
transnacionais, tais como a Alasei (América Latina), Cana (Caraíbas), Wanad (África Ocidental),
Canad (África Central) e Sanad (África Austral). Surgiram também neste âmbito várias rádios
comunitárias, jornais rurais e centros de formação de profissionais dos media.
Esta primeira fase de militantismo informacional atinge o final da década de 90 em crise. As
denúncias da existência de monopólios no sector da informação representadas no relatório MacBride
são rejeitadas, não sendo retomadas ao nível das instituições internacionais. Já na altura, a publicação
do documento tinha levado os Estados Unidos e a Inglaterra a abandonarem a Unesco. Confrontada
com a tendência neo-liberal para a liberalização e desregulação do audiovisual e das
telecomunicações a partir de meados dos anos 80, a crítica anti-hegemónica vê perder a sua
influência. Em simultâneo, as agências de informação independentes que surgem com o impulso dado
pelo relatório MacBride, não conseguem vingar num ambiente de concentração das grandes agências
mundiais.
Para além da crítica anti-hegemónica, a década de 70 é também marcada por um conjunto de diversas
iniciativas promovendo os media comunitários com vista à construção de uma emancipação
mediática, considerada necessária para a mobilização, e à condução de lutas específicas, que ocorrem
sobretudo a nível local. A origem desta corrente, ligada à crítica expressivista, está no
desenvolvimento das primeiras formas militantes de media alternativos, datando dos anos 60 e
representadas através das rádios que funcionam como vozes das revoluções e lutas de independência
nacionais. Contudo, é apenas nos 70 que se dá o crescimento pleno dos media comunitários ou
militantes. Apoiados em comunidades de camponeses e operários ou nas estruturas militantes locais,
estes órgãos de comunicação social têm o seu suporte privilegiado na tecnologia de rádio.
O debate sobre os media, a informação e a comunicação transfere-se lentamente do nível macro para
os colectivos de dimensão reduzida, visando permitir progressivamente uma comunicação mais
democrática, tendo em conta os objectivos de emancipação social a nível local ou nacional. Em vez
de concorrerem directamente com as “máquinas de endoutrinamento” e os “apêndices do poder” da
indústria mediática internacional e de tentarem controlar a informação que lhes diz respeito, os media
comunitários pretendem, acima de tudo, dar sentido à relação existente entre as formas de acção
47
colectiva, características dos seus movimentos de luta e a sua vontade de participar na definição dos
debates.
Este tipo de produção mediática que se difunde por todo o mundo ao longo da década de 70 e 80
apresenta uma grande heterogeneidade, agrupando as estações de rádio e televisão indígenas
(Austrália, Nova Zelândia, Canadá e Estados Unidos), media ligados a movimentos de lutas nacionais
ou sociais (como foi o caso de várias iniciativas latino-americanas), experiências comunitárias
assentes em bases territoriais (como as rádios e televisões de bairros de cidades italianas ou o canal de
televisão em Barcelona colocado à disposição das associações da cidade), as estações de rádio
dedicadas a comunidades específicas (de índole musical, filosófico, ideológico ou religioso), ou ainda
às reinvindicações dos novos movimentos sociais (como as rádios anti-nucleares), entre outros casos.
É importante aqui salientar as experiências de Felix Guattari durante estes anos, de forma a colocar
em prática a teoria do pós-media. Primeiro com a Rádio Alice, criada em Bolonha, Itália, no ano de
1976, que, como referem Brian Holmes et al., "emite uma poesia militante pouco ao gosto dos
carabineiros" - tendo como lema a frase "conspirar é respirar em conjunto" -, e na Tomate, criada em
1981, durante o período da batalha das rádios livres em França, e encerrada após a regularização
comercial desencadeada pelo governo (Holmes, Brian et al., 2005). Entre 1986 e 1991 envolve-se
directamente com o serviço Minitel37 "3615 Alter".
Mas apesar da sua diversidade, estes media partilham um modelo comum que Cardon e Granjon
apelidam de participativo. As suas premissas consistem na aproximação entre emissor e receptor, em
tornar a participação num acto colectivo, empregar os códigos culturais e linguísticos do público,
rejeitar influências comerciais, estabelecer uma relação de igualdade e proximidade entre produtor,
jornalista e audiência, integrar as pessoas nos diferentes níveis do processo de produção e difusão da
informação através de canais alternativos, diminuir a ritualização e aumentar a transparência do órgão
de comunicação social, etc. Embora não deixe de se opor à hegemonia dos media dominantes, este
tipo de crítica expressivista não dirige as suas reinvindicações ao poder central, insistindo
principalmente na reapropriação dos instrumentos de representação do mundo por parte dos cidadãos.
Estes medias participativos não são, contudo, independentes das organizações que os apoiam,
encontrando-se bastante ligados a grupos sindicais ou políticos. É o caso da estação de televisão
chilena Teleanàlisis por altura da metade da década de 70, quando os seus militantes filmam a
37 Rede de videotexto através de terminais informáticos ligados à linha telefónica criada em 1982 pelos Correios franceses. Este serviço obteve um enorme sucesso na França antes da chegada da Internet comercial.
48
resistência quotidiana dos cidadãos ao regime de Pinochet e garantem a redistribuição de cassetes
VHS duplicadas em VCRs – Video Cassete Recorders – pelo circuito dos sindicatos, igrejas e grupos
de resistência que multiplicam as cópias. O mesmo método é empregue no Brasil pela TV Viva do
Recife e a TV Maxambomba do Rio de Janeiro na difusão de vídeos que abordam problemas sociais
nos locais públicos, de forma a incentivar o debate sobre questões de marginalidade social, da
prostituição, do trabalho infantil e da violência nas ruas. Os órgãos de comunicação social
comunitários dos anos 70 desenvolvem-se assim como a linha da frente de grupos sindicais, religiosos
ou políticos e de comunidades culturais, frequentemente tendo por contexto governos autoritários ou
ditaduras. Quem também desempenha um papel importante nesta época é a Igreja Católica, ao apoiar
a criação de rádios junto das comunidades índias da América Latina, bem como nas Filipinas e na
Tanzânia. Já na década de 80, são as organizações não-governamentais nacionais ou internacionais,
cuja missão consiste em resolver problemas de desenvolvimento local e saúde, que estimulam e
financiam algumas experiências comunitárias de produção mediática.
O desenvolvimento dos media comunitários, que teve lugar ao longo dos anos 80 um pouco por todo
o mundo, irá sofrer um declínio no final dessa década, sem que, no entanto, isso represente o seu fim.
As iniciativas que se baseiam nas tecnologias da rádio e da televisão vêm as suas hipóteses de
crescimento bastante restringidas pelos legisladores nacionais que apenas reservam um espaço
marginal para as suas frequências. Por outro lado, quando obtêm êxito, os projectos alternativos são
frequentemente constrangidos a adoptarem uma gestão comercial, caso pretendam alargar a sua esfera
de influência. De modo que os media alternativos nunca chegaram a concorrer seriamente com os
órgãos de comunicação social dominantes.
Talvez mais importante seja o facto de estes projectos de informação alternativa terem também
encontrado dificuldades derivadas de contradições internas ao seu programa inicial. Segundo Cardon
e Granjon, um primeiro tipo de dificuldades é de ordem política. Os vários media políticos dissidentes
da América Latina dos anos 70 e 80 foram controlados pela censura, tendo por isso sido obrigados a
utilizar canais clandestinos de difusão que a repressão policial impedia que se tornassem permanentes.
Mas com a queda do regime anterior e uma vez reconhecidos com um novo poder revolucionário,
estes media perdem também muitas vezes a sua vocação, sendo submetidos a um novo meio
burocrárico.
O segundo tipo de constrangimentos é, de acordo com os dois autores franceses, relativo ao próprio
projecto dos media independentes, na medida em que as experiências comunitárias são por vezes
prejudicadas pelo amadorismo ou por um fascínio excessivo face aos aspectos tecnológicos do
49
desenvolvimento dos seus media. Por outro lado, devido ao facto de não disporem de meios de
difusão regular e de apoios institucionais ou associativos, os media alternativos são obrigados a
restituir regularmente um sentido e um projecto à sua actividade para evitar o seu termo. Os órgãos
alternativos de comunicação social sentem também dificuldades em assegurar as exigências de
democratização que impuseram a si próprios, sobretudo no que toca a ser um medium nas mãos do
povo.
O último tipo de obstáculos tem a ver com o facto de as iniciativas alternativas que obtêm êxito serem
submetidas a processos de profissionalização e comercialização que ocorrem geralmente contra a
vontade e em detrimento dos fundadores do projecto. As mudanças na linha editorial resultam das
pressões de empresas comerciais que se vão progressivamente apropriando dos projectos
independentes mais rentáveis.
50
2.2 - Década de 90
Após o abandono da NOMIC pela Unesco, no final dos anos 80, alguns elementos ligados a entidades
representantes da crítica anti-hegemónica, como a MacBride Round Table on Communication e a
Agência Latino-americana de Informação (ALAI)38, alteram um pouco o teor das suas reinvindicações
de modo a aliarem-se às redes nacionais e continentais de media comunitários, entre as quais a
Associação Mundial de Estações de Rádio Comunitárias (AMARC)39, a Associação Mundial de
Comunicação Cristã (WACC)40, a rede de produção de vídeos Videazimut41 e a Association for
Progressive Communications (APC)42. Estes actores deixam de lado o discurso do relatório
MacBride, orientado a partir dos conceitos de desigualdade dos fluxos e de imperialismo cultural e
adoptam um discurso centrado no direito a comunicar, considerado como um direito social
fundamental baseado nos princípios do acesso e da participação. As mobilizações trocam um modelo
de resistência difusa pela criação de media alternativos isolados e de âmbito local por um modelo de
resistência concertada, mediante a integração destes primeiros órgãos de comunicação social em redes
nacionais, transnacionais e até continentais. É neste âmbito que na década de 90 se forma a rede
Voices 2143 e a campanha Communication Rights in the Information Society (CRIS)44, que irá
retomar a questão das mobilizações informacionais no âmbito da necessidade de regulações
internacionais.
Mas, tendo em conta o clima neo-liberal vigente nos países ocidentais desde meados dos anos 80 que
leva a privatizar e a desregular grande parte da indústria dos media, é necessário esperar até a meio da
década de 90 para assistir a uma renovação do militantismo informacional, desta vez representado
pelas esquerdas radicais, pelos ecologistas e pelas associações de telespectadores. Em paralelo, a
crítica anti-hegemónica transita do plano das desigualdades internacionais no acesso à informação
para o plano da conduta dos media nacionais.
Nos Estados Unidos, surgem por essa altura uma série de iniciativas “cídadãs” constituidas por
associações locais, jornalistas dissidentes e um conjunto de novos colectivos activistas que criticam o
consumo desmesurado e o poder das marcas, defendendo um comércio internacional equitativo.
Principalmente após a aprovação do Telecommunications Act de 1996 - que diminui o controlo
38 Site disponível em http://alainet.org.39 Site disponível em http://www.amarc.org.40 Site disponível em http://www.wacc.org.uk.41 Site disponível em http://commposite.uqam.ca/videaz/videazimut.html.42 Site disponível em http://www.apc.org.43 Site disponível em http://www.comunica.org/v21.44 Site disponível em http://www.crisinfo.org.
51
regulativo e reforça a concentração de empresas no sector das telecomunicações -, multiplicam-se as
iniciativas lideradas por associações de utilizadores – como, por exemplo, os colectivos People for
Better Television e Commercial Alert45, que desencadeiam uma campanha contra a comercialização da
cultura. Ao mesmo tempo, grupos de jornalistas “progressistas” criam revistas que contrastam com as
publicações tradicionais pela sua postura crítica – é o caso de The Nation46, The Progressive47, In
These Times48 e Z Magazine49 -, enquanto que praticantes e analistas dos media alternativos
estabelecem espaços de encontro e troca de experiências – entre eles, Center for Media and
Democracy50, Reclaim the Media51 e Our Media, Not Theirs52.
Um dos modelos de mobilização de maior sucesso por parte da crítica anti-hegemónica na segunda
metade da década de 90 é o do watchdog. Trata-se do desenvolvimento de colectivos dedicados à
monitorização dos media de massas. O primeiro destes observatórios, fundado em 1986, é o Fairness
and Accuracy in Reporting (FAIR)53, sendo também o mais vísível no horizonte mediático norte-
americano. De realçar também a actividade do Alternet.org54 – um projecto desenvolvido pelo
Independent Media Institute55 -, o Media Channel56, a National Coalition Against Censorship57 e o
Newswatch58. Existem também watchdogs conservadores como o Accuracy in Media59.
Em França, a segunda metade da década de 90 é também marcada pelo surgimento de mobilizações
inspiradas no mesmo modelo, como por exemplo os projectos Raisons D’agir60, Acrimed61 e Pour Lire
Pas Lu (PLPL)62, que prolongam, transformam e radicalizam a crítica sistémica dos media mantida
desde há muito pelo Le Monde Diplomatique. A renovação deste jornal durante o mesmo período, a
sua recuperação financeira graças a uma doação privada em 1996, o forte crescimento do seu número
de leitores e o papel importante que desempenhou na fundação do movimento ATTAC (Associação
para a Taxação das Transacções Financeiras para a Ajuda dos Cidadãos)63 representam bem o reforço
45 Site disponível em http://www.commercialalert.org/.46 Site disponível em http://www.thenation.com.47 Site disponível em http://www.progressive.org.48 Site disponível em http://www.inthesetimes.com. 49 Site disponível em http://www.zmag.org.50 Site disponível em http://www.prwatch.org.51 Site disponível em http://www.reclaimthemedia.org.52 Site disponível em http://www.ourmedianet.org.53 Site disponível em http://www.fair.org.54 Site disponível em http://www.alternet.org.55 Site disponível em http://www.independentmedia.org.56 Site disponível em http://www.mediachannel.org.57 Site disponível em http://www.ncac.org.58 Site disponível em http://www.newswatch.org.59 Site disponível em http://www.aim.org.60 Site disponível em http://raisonsdagir.org.61 Site disponível em http://www.acrimed.org.62 Site disponível em http://homme-moderne.org/plpl.63 Site da sede internacional disponível em http://www.attac.org. A secção portuguesa desta rede também tem um site
em http://portugal.attac.org.
52
das posições anti-hegemónicas. Compostos principalmente por jornalistas com um ponto de vista
marginal ou dissidente face aos media comerciais de massas e de académicos comprometidos
politicamente, os watchdogs desempenham um trabalho que permite uma coordenação entre a crítica
interna do trabalho jornalístico e uma crítica externa do poder mediático. As análises conduzidas por
estes observatórios dirigem-se às violações exercidas à deontologia do jornalismo, como o recurso a
uma só fonte, sinais de juízos de valor, alterações ao conteúdo das conversas e sensacionalismo.
Na segunda edição do Fórum Social Mundial, que teve lugar em Porto Alegre, Brasil, no ano de 2002,
um grupo de jornalistas e académicos decidiu criar o Observatório Internacional dos Media (Media
Watch Global – WMG), um organismo mundial dividido em redes de observatórios nacionais de
forma a vigiar a actividade dos media e, assim, garantir o bom funcionamento da democracia
(Pasquinelli, 2002). Para além dos profissionais e dos universitários, o WMG, apoiado pelo Le Monde
Diplomatique e pela agência de notícias cooperativa internacional Press Service (IPS)64, conta ainda
com a participação de representantes do público.
64 Site disponível em http://www.ips.org.
53
2.3 - Mediactivismo: do Direito à Informação ao Direito à Auto-gestão da Comunicação
A batalha sobre a comunicação não é apenas mais uma batalha por uma informação “verdadeira”, objectiva e independente. ‘Information wants to be free’ soa aqui como um slogan ‘freak’ dos anos 60: na época da inteligência colectiva e da rede temos que dizer ‘Information wants to be General Intellect’.
- Matteo Pasquinelli, Mediactivismo: Estrategias y prácticas de la comunicación independiente
O activismo mediático ou mediactivismo, movimento em que os media tácticos são normalmente
inseridos, recebe um grande impulso com os eventos de Seattle, no final de 1999, “estimulados pelo
antagonismo crescente aos grandes monopólios na indústria dos media”. Mas, segundo Matteo
Pasquinelli, a principal razão para o seu desenvolvimento está na “difusão massiva de tecnologias de
baixo custo, como os denominados personal media (media pessoais) e a Internet”. O activismo
informacional é considerado pelos elementos deste movimento “como uma forma directa e imediata
de afirmação pública” (Cardon e Granjon, 2003).
Nos mesmos termos que o praticante táctico teorizado por Garcia e Lovink, o mediactivista é, para
Pasquinelli, “uma nova figura de operador de câmara, militante, artista e cidadão comprometido,
experimentando formas de autogestão da comunicação, frequentemente no próprio tecido urbano”.
Tal como os teóricos tácticos, Pasquinelli não tem ilusões quanto à possibilidade de cooptação deste
personagem, quando diz que “provavelmente iremos vê-la em breve recuperada como moda juvenil
por algum formato astuto de MTV”. De facto, basta olhar para o panorama televisivo português actual
para se encontrar um exemplo eficaz de recuperação comercial das técnicas mediactivistas ou de
media tácticos. É o caso da estação do talk-show A Revolta dos Pastéis de Nata do canal Dois e e de
alguns dos programas da televisão por cabo SIC Radical, como o O Homem da Conspiração ou O
Perfeito Anormal.
Os mediactivistas criticam tanto a objectividade ilusória dos jornalistas profissionais como o discurso
autoritário das elites dos grupos de extrema esquerda, dado representarem, do seu ponto de vista, dois
tipos diferentes de confiscação da expressão. Rejeitam de todo o centralismo, o conformismo, o
autoritarismo e a opressão dos media de massas, desenvolvendo em alternativa projectos de auto-
gestão, abertos, flexíveis e anti-censura, servindo de voz a todos os cidadãos e colectividades,
adoptando assim o mesmo modelo do movimento por uma globalização alternativa. É neste sentido
que Pasquinelli pode ser entendido quando diz que “o direito à informação está-se afirmando
progressivamente como direito à autogestão da comunicação”. “Não apenas o conhecimento dos
mecanismos de comunicação, mas também, e sobretudo, as possíveis práticas de autogestão são
consideradas pilares essenciais de uma nova ideia de democracia e cidadania”, complementa.
54
Adoptando a frase de Jello Biafra, da banda Punk Dead Kennedys, o seu lema pode muito bem ser o
slogan da rede Independent Media Center, “Don’t hate the media, become the media”, isto é, “Não
odeies os media, transforma-te nos media”.
Segundo Cardon e Granjon, a inspiração libertária e a importância concedida à ligação estreita com as
comunidades de experiência dos movimentos de luta presente no mediactivismo “tem a sua origem na
tradição dos media alternativos”. Especialmente na medida em que retoma a ambição de se constituir
como modelo de media perspectivista – de forma a assegurar a expressão do maior número de pontos
de vista possíveis -, prefere a polifonia das subjectividades à objectividade dos peritos, redistribui a
todos o direito à palavra e trabalha para a supressão da fronteira entre produtores de informação
voluntários-amadores, como os militantes, e profissionais, como os jornalistas. Contudo, não deixam
de existir diferenças sensíveis entre a corrente histórica dos media alternativos e a sua recomposição
sob o formato de mediactivismo, salientam. São sobretudo “os modos de organização e os recursos
políticos que diferem”.
Para os dois autores franceses, o mediactivista é uma figura individualista que se pretende afastada de
quaisquer categorias de pertenças territoriais, sociais ou políticas. Isto ao contrário do que sucede nos
media alternativos mais tradicionais, cuja ideologia participacionista considera positivas essas
pertenças. Afirmam ainda que “a valorização exacerbada dos diferentes estados do sujeito – o seu
corpo, a sua subjectividade, a sua autonomia – patente no mediactivismo, demonstra os processos de
individualização que se registam nas culturas políticas da extrema-esquerda, incorporando, desta
forma, características dos movimentos anarquistas”.
Para Pasquinelli (2002), o mediactivismo é uma rede mundial de comunicação composta de várias
redes autogestionadas - sendo a principal o grupo Independent Media Center ou Indymedia – que já
cobrem todo o planeta com uma forma de organização de baixo para cima. Na sua opinião, estas redes
“conseguiram criar a consciência de uma sociedade e cidadania global”. Por isso, “o mediactivismo é
um modelo e uma metáfora para ‘fazer sociedade’. Este autor italiano reconhece no mediactivismo o
seguinte conjunto de atitudes e tendências:
· Políticas: autogestão dos media contra o pensamento único dos monopólios. Esta dimensão,
que abarca os media de movimentos, independentes, comunitários e o fenómeno dos
observatórios de comunicação social, está sobretudo relacionada com a sociabilidade e a
oralidade.
· Lúdicas: destaque para o papel do libídico e do lúdico; o jogo com os media como máquinas
55
de desmontar e voltar a montar, no interior da mutação antropológica em direcção ao cyborg.
Importância do exemplo dos net-artistas, dos hackers e, principalmente, dos programadores
de software novo para a informação independente utilizados no meio medioactivista. Esta
atitude expressa-se na experimentação tecnológica e na tactilidade.
· Criativas: envolve a construção do imaginário e de novos media como novos modelos de
comunicação, organização, criação e sociabilidade. A comunicação é entendida como uma
narração colectiva, mitopoiesis, guerrilha comunicacional, psicosfera, na qual se inventam
simulacros pop, sabotagens mediáticas, novos memes65, meta-media. Esta é a dimensão do
imaginário e da iconicidade (idem).
Da mesma forma que o termo mediactivismo, também o videoactivismo alcançou a sua maior
popularidade após a manifestação de Seattle e o lançamento da rede Indymedia. Foi, de resto, também
nessa ocasião que se produziram os primeiros documentários do movimento global, realizados pelos
elementos desta cadeia de televisão66. Desde então, refere Pasquinelli, “a câmara digital está nos
bolsos de cada activista que está prestes a ir para uma manifestação”. Em Setembro de 2000, durante
as preparações para a mobilização contra o Forum Económico Mundial de Melbourne, que se realizou
de 11 a 13 desse mês nessa cidade australiana, um grupo de videoperadores independentes elaborou e
difundiu através de várias listas de discussão na Internet um texto intitulado “Camcorder Kamikaze
Manifesto”67, em que se destacava a figura do videoactivista no seio do movimento por uma
globalização alternativa. Pasquinelli afirma que “este tipo de manifestos de colectivos de produção
vídeo costuma descrever a missão do videoactivista como uma luta um tanto maniqueísta entre as
forças da ‘luz’ e o regime de ‘obscuridade’ dos media tradicionais, que funda o seu poder no
‘segredo’. A câmara de vídeo é o fogo prometaico que permitirá revelar o poder, um olho que ilumina
e liberta um novo mundo que os media tradicionais querem ocultar às massas”.
O videactivismo é actualmente a forma mais popular e praticada de mediactivismo. Segundo
Pasquinelli, isto resulta da “larga difusão das minicâmaras digitais de preço económico, da
componente lúdico-táctil e da tendência anti-textual e intuitiva da informação visual”, o que originou
um exército de activistas que, por altura dos grandes eventos como Génova 2001, controlaram por
65 Os memes são para a mente e para a cultura o que os genes são para o cérebro e para o corpo. Tal como os genes, os memes são replicadores que constituem a base de um processo evolutivo. Segundo o biólogo Richard Dawkins, inventor deste neologismo, refere em O Gene Egoísta (1989), “assim como os genes se propagam transferindo-se de corpo para corpo atraves de esperma ou ovos, os memes propagam-se transferindo-se de cérebro para cérebro atraves de um processo chamado de imitacao”. Enquanto os genes carregam informação codificada para sintetizar proteínas, os memes incorporam instruções para actividades mentais e culturais. Tratam-se de ideias ou modas que se auto-reproduzem.
66 São os casos de Showdown in Seattle e This is What Democracy Looks Like, que podem ser obtidos através do site http://www.indymedia.org/projects.php3.
67 Texto disponível em http://espora.org/revueltas/IMG/pdf/Mediact_cap3.pdf (acedido a 3 de Novembro de 2005).
56
vídeo toda a cidade. Os colectivos de produção vídeo, como o Toronto Video Activist Collective68,
Big Noise Films69 e o Undercurrents70, são o modelo de auto-organização mais difundido junto dos
videoactivistas. Juntamente com o recurso aos personal media, como as minicâmeras, difunde-se
também um profundo conhecimento das técnicas de montagem de vídeo. Na opinião de Pasquinelli,
“os documentários independentes produzidos após Seattle pelo movimento demonstram um
conhecimento refinado da linguagem vídeo, mas também uma contaminação, inconsciente ou
estratégica, pela linguagem televisiva”. Mas o autor adverte para o facto das estações de televisão,
como a MTV, já terem começado a recuperar a estética do movimento global, introduzindo nos seus
produtos de entretenimento o imaginário produzido pelo videoactivismo.
Os activistas contra a guerra do Vietname nos anos 60, foram os primeiros a utilizarem equipamento
de vídeo. As primeiras câmaras portáteis de vídeo surgem em 1965. Nam June Paik foi um dos
primeiros artistas a comprar uma, tendo-a empregue para iniciar uma crítica prática e concreta dos
media e da cultura de massas. Na sua opinião, citada por Matteo Pasquinelli, “o vídeo iria
revolucionar a arte e a informação, não apenas porque podia ser manipulado por pessoas comuns, mas
porque o material produzido desta maneira estava imediatamente à disposição e acessível, sem
necessidade de tratamentos especiais”. Na década de 70, o ambiente de colectivos vídeo foi marcado
pelas produções da Top Value Television (TVTV), um grupo criado para fazer a cobertura da reunião
do Partido Democrata dos Estados Unidos em São Francisco, no ano de 1972. Os seus documentários
foram exibidos em estações de televisão por cabo de várias cidades, assim como no PBS (Public
Broadcasting System), o canal norte-americano de serviço público. Contudo, a TVTV acabou por
seguir o mesmo percurso decadente dos colectivos vídeo ao longo dessa década.
Um dos elementos da TVTV era DeeDee Halleck, co-fundadora da Paper Tiger TV71 - uma rede
nova-iorquina criada em 1981 -, docente na Universidade da Califórnia, São Diego, e activista da
Indymedia. O primeiro documentário da Paper Tiger, Herbert Schiller Reads the New York Times,
centrou-se na figura do teórico da comunicação Herbert Schiller. Seguiram-se a este cerca de 400
programas emitidos ao longo de anos através dos canais da rede de cabo de Manhattan reservados às
comunidades. Em 1986, a Paper Tiger decidiu contratar uma frequência em satélite, tendo daí
resultado a Deep Dish TV72, dedicada à emissão de produções individuais oriundas de todo o
terrítório dos Estados Unidos, abordando temas como questões locais de acesso à saúde, a SIDA, o
ambiente e as prisões. O seu programa mais famoso foi Gulf War Crisis TV Project (1990-1991). Os
vídeos feministas dos anos 70 e os documentários das comunidades gay e lésbicas dos anos 80 ligadas 68 Site disponível em http://www.tvac.ca.69 Site disponível em http://www.bignoisefilms.com.70 Site disponível em http://www.undercurrents.org.71 Site disponível em http://www.papertiger.org.72 Site disponível em http://www.deepdishtv.org.
57
à campanha contra a SIDA, foram também outros percursores do videoactivismo. Em 1989, o grupo
de afinidade ACT-UP e DIVA-TV (Damned Interfering Video Activist Television) começou a filmar
marchas e manifestações de homosexuais e a difundi-los por cassetes de vídeo.
Na Itália, um país em que a concentração da propriedade dos meios de comunicação que caracteriza a
globalização, atinge proporções extremas73, o movimento TeleStreet74 de micro-estações de televisão
pirata constitui uma experiência de disseminação de informação alternativa que tem vindo a crescer
exponencialmente nos últimos anos, abarcando actualmente mais de 80 canais. A primeira emissão
desta rede, no Verão de 2002, esteve a cabo da Orfeo TV, uma estação de bairro de Bolonha. Para pôr
no ar uma pequena televisão pirata, basta despender cerca de 500 euros na aquisição de um
transmissor, um amplificador, uma antena convencional das que se colocam nos telhados e cabos.
Muitas, contudo, utilizam transmissores mais potentes de modo a terem maior cobertura. O seu
alcançe médio é de um quilómetro mas as que dispõem de mais recursos atingem os três. Elas emitem
quase sempre para zonas onde o sinal das estações comerciais não chega em condições ou é
inexistente. Apenas algumas transmitem 24 horas por dia, tendo a maior parte um horário flexível
("And" (and (at) axxs.org), 2004).
As estações utilizam a Internet para partilhar conteúdos com uma boa qualidade de imagem entre si.
Os produtores locais de conteúdos podem fazer o descarregamento de vídeos com uma resolução
suficientemente elevada para serem emitidos via TV através de uma rede de servidores, a New Global
Vision75. O software Peer-to-Peer (P2P) BitTorrent76 é também empregue para permitir o download
gratuito de filmes e programas televisivos distribuídos com licença Creative Commons (idem).
Uma das mais famosas TeleStreets é a Candida TV77, de Roma, criada em 1997 com o nome de
OFFlineTV. Esta televisão de circuito fechado emitia apenas durante o Overdose Fiction Festival, um
evento de três dias que se realizou durante três anos (Macchina (candida.kyuzz.org), 2002). Em
Dezembro de 1999, a Candida TV passou a transmitir na estação local romana um programa semanal
de uma hora. A partir de 2001 iniciou uma colaboração com a Indymedia Itália78, o que levou em 73 Silvio Berlusconi detém três dos quatro maiores canais televisivos privados, para além de, enquanto primeiro-
ministro, possuir um grande poder de influência sobre a estação pública RAI. Ao todo, assegura o controlo dos seis maiores canais televisivos do país e o acesso a 90 por cento da audiência nacional diária, como se pode ler em "Make Media, Make Trouble: Hacking the Infocalypse" assinado por "and" (and (at) axxs.org) e publicado no âmbito da conferência State of Emergency, que teve lugar em Melbourne a Maio de 2004. As seguintes referências à rede TeleStreet seguem também este texto que está disponível em http://subsol.c3.hu/subsol_2/contributors3/blissetttext3.html.
74 Site disponível em http://www.telestreet.it.75 Site disponível em http://www.ngvision.org.76 Site disponível em http://www.bittorrent.com.77 http://candida.thing.net.78 Site disponível em http://italy.indymedia.org.
58
Julho desse mesmo ano à realização da curta-metragem SuperVideo >>> G879 sobre as manifestações
em Génova contra o G8. A Candida TV adoptou como lema a frase "A televisão é uma arma",
visando ocupar a realidade do ecrã. Perante um Grande Irmão que controla tudo através de câmaras
de televisão, pretende ser uma "Pequena Irmã" que se apodera com as suas mãos dessas câmaras, a
"primeira televisão electrodoméstica", feita por todos (idem). No seu arquivo de programas -
acessíveis online - conta com anúncios humorísticos que gozam com a política proibicionista relativa
à marijuana, vídeos activistas em que colocam Ronald McDonald, a mascote da cadeia de vendas de
hamburguéres, a tentar chegar ao Fórum Económico Mundial de Davos (2001) ou que narram as
aventuras do SuperVídeo, um herói da comunicação independente criado pela equipa de 12 membros
da Candida TV ou ainda relativos à cobertura de eventos como hackmeetings - conferências de
hackers e hacktivistas. Um dos seus mais recentes projectos inseriu-se no âmbito do evento WSIS?
We Seize?80, que ocorreu em Dezembro de 2003 em Genebra, Suiça, à margem e em oposição à
Primeira Cimeira Mundial sobre a Sociedade da Informação (WSIS). Em paralelo, tem desenvolvido
workshops em que jovens dos subúrbios de Roma aprendem a utilizar câmaras de vídeo e técnicas de
montagem de modo a fazerem a sua própria televisão (idem).
79 Vídeo disponível em http://www.ngvision.org/mediabase/22.80 Site disponível em http://www.geneva03.org/.
59
3 – A Influência do Movimento do Software Livre e da Ética Hacker
Pela sua própria natureza, o hacking derruba os limites que a propriedade lhe impõe. Novos hacks suplantam velhos hacks e desvalorizam-nos como propriedade. Enquanto informação nova, o hack é produzido a partir de informação já existente. Isto dá à classe hacker um interesse maior no seu acesso livre do que num direito exclusivo. A natureza imaterial da informação significa que a posse de informação por alguém não necessita de excluir outro dela.
- McKenzie Wark, “A Hacker Manifesto”
A comunidade de programadores responsáveis pelo desenvolvimento de software livre comunga de
uma ética e de uma cultura própria baseada na cooperação, na partilha de conhecimento e na ausência
de hierarquias rígidas. Estes valores estão também bastante impregnados nos praticantes de media
tácticos. Muitas das suas iniciativas correspondem na sua base ao modelo do movimento do software
livre. O princípio da apropriação e transformação colectiva patente nas equipas que desenvolvem o
sistema operativo Linux e seus programas leva a uma progressiva e desejada dissolução da barreira
tradicional entre utilizador e produtor. Seguindo uma lógica DIY, no software livre o utilizador é cada
vez mais um programador que participa na produção colectiva de um bem comum, o software, como
veremos adiante. Tal como já referimos, as primeiras tecnologias de electrónica de consumo surgidas
no início da década de 90 – como as câmaras e os gravadores de vídeo – possibilitaram o surgimento
dos media tácticos. Este tipo de experiências mediáticas realiza-se em grande parte num espírito auto-
didacta e ‘Faça-Você-Mesmo’. Não é por isso de estranhar que o Linux e outro software livre
constitua actualmente a plataforma da rede Indymedia, entre outros projectos tácticos.
A estreita ligação entre o software livre e os media tácticos é confirmada por Josephine Berry, ao
afimar que aquele movimento de programadores de código informático pode ser considerado táctico,
tal como o modo de funcionamento adoptado pelos Net-artistas - artistas que concebem obras
destinadas à Internet e outros produtores mediáticos independentes para combater o poder capitalista.
Assim, “ao revelar o código – seja social, tecnológico ou estético – que sustenta o ambiente da
Internet, os Net-artistas oferecem um caminho para explorar o potencial para que todos se tornem
produtores ou para alargar o espírito do movimento pelo software livre à produção cultural e social
em geral”. Eles procedem através de uma prática cultural aberta que “desafia qualquer tipo de
recuperação e comercialização fácil”.
Podem ainda ser detectados traços comuns entre os hackers do software livre e os activistas, dado que
ambos "visam construir uma sociedade livre", "colocam em causa os lugares de poder estabelecidos.
60
baseados em modelos governamentais e empresariais", "advogam a solidariedade e funcionam com
base na cooperação", "possibilitam uma redefinição do que a propriedade significa" e "constituem
exemplos práticos de modelos sociais alternativos, assentes na descentralização, participação
voluntária e auto-gestão" (Darkveggy, 2005). Para além disso, são muitos os activistas que se
envolvem na produção de software livre, "participando na concepção e criação de sistemas operativos
de uma forma horizontal e colaborativa" (idem).
Tendo em conta esta ligação próxima entre as esferas do software livre e dos media tácticos, torna-se
conveniente analisar mais em detalhe o movimento pelo software livre e a cultura e ética hacker
associados a este, deixando de lado contudo a história pormenorizada deste movimento, uma vez que
já existem vários livros e ensaios bastante abrangentes e detalhados sobre esta temática81
Antes de mais nada, é necessário esclarecer que a acepção correcta e original do termo hacker não
corresponde ao perfil do pirata informático ou cibervândalo com que alguns órgãos de comunicação
social mais sensacionalistas os confundem. Estes últimos, habituados a penetrarem ilegalmente em
redes privadas e a maliciosamente destruirem ou/e alterarem os dados que aí encontram, são
chamados de crackers, sendo normalmente rejeitados pela cultura hacker (Castells, 2001: 41).
Originalmente, a palavra hack servia para designar soluções inovadores, inventivas e não-ortodoxas
para problemas tecnológicos. Segundo Jordan e Taylor (2004: 6-7), o termo refere-se à realização de
um truque habilidoso de programação, indo para além das conotações populares com a invasão ilícita
de sistemas informáticos. Pegando na definição de Sherry Turkle, caracterizam-no como sendo um
acto simples, magistral e ilícito. Para estes autores, o termo hacker engloba assim não só todos os que
desenvolvem software - como refere o filósofo mexico-americano Manuel De Landa -, mas também
os que realizam qualquer tipo de hack (idem: 9). De acordo com De Landa, o conceito de hacker
implica que o programador em questão não possui um curso superior em Engenharia Informática,
referindo-se normalmente a uma produção auto-didacta (Landa, Manuel De, 2001). Neste sentido, “o
termo acarreta a conotação de que o hacker obtem prazer com a criação de programas (em oposição a
ser motivado pelo sentido de dever profissional ou por recompensas económicas) e que possui um
grande respeito pelos valores prezados pela arte (as soluções elegantes de um problema são admiradas
por e em si próprias)” (idem).
Outro conceito importante é o de código. Todo o software é constituído por linhas de código escritas
principalmente por humanos. No entanto, como nota Lawrence Lessig em The Future of Ideas, este “é
81 Ver Moody, Glynn (2001), Rebel Code: Linux and the Open Source Revolution, Harmondsworth, Penguin e Naughton, John (1999), A Brief History of the Future, Londres, Weidenfeld & Nicholson.
61
bastante diferente do que os computadores correm” (2001: 50). Ao passo que “os humanos escrevem
código-fonte, os computadores correm código de objecto” ou código de máquina. O código de
máquina é composto por enormes séries de zeros e uns incompreensíveis para o humano comum. O
código-fonte consiste num conjunto de linguagens informáticas como C ou Pascal, concebidas para
instruir ao computador o que deve fazer, que não só são inteligíveis para os humanos como são
acompanhadas por comentários que explicam (a outros humanos) qual a função de cada parte do
programa. Como explica Manuel De Landa, “devido à sua inteligibilidade, o código-fonte permite
também alterar ou expandir o programa. Uma vez concluído, para que o computador corra o
programa, o código-fonte é convertido em código de máquina através de um programa especial
designado compilador. É esta versão compilada ou binária que é habitualmente vendida nas lojas. Isto
implica que os utilizadores não devem continuar a alterar ou a melhorar o software adquirido. No
entanto, isto pode ser feito mediante a prática de reverse engineering do código de máquina, apesar de
ser bastante difícil e ilegal” (Landa, 2001).
Convém distinguir entre diferentes tipos de software em relação ao seu fim. Os utilizadores comuns
estão sobretudo familiarizados com os programas de aplicações, como os processadores de texto, as
folhas de cálculo, ferramentas de design gráfico, browsers de navegação na Web, entre outros. Mas
um hacker trabalha principalmente com o software empregue no desenvolvimento dessas aplicações.
Para além do compilador, já referido, existem os debuggers – que permitem encontrar e corrigir erros
ou bugs -, os editores de texto – que servem para escrever código – e várias outras ferramentas de
desenvolvimento. Mas a peça de software mais importante para o funcionamento de um computador é
o sistema operativo. Ao contrário das aplicações, que são executadas de forma a realizarem uma
determinada tarefa, sendo depois encerradas, um sistema operativo está sempre a correr por detrás
sempre que o computador esteja a funcionar, ligando todos os dispositivos e periféricos conectados ao
computador, como o rato, o monitor e o disco rígido. Nenhum outro software pode correr sem que o
sistema operativo esteja a funcionar por detrás e com o qual esse software seja compatível.
Ao contrário dos formatos tradicionais artísticos protegidos pelo copyright, como o livro, o disco ou o
filme, o software, tal como qualquer outro tipo de informação em suporte digital, pode ser copiado
inúmeras vezes a custo quase zero. Isto é uma consequência do facto de que a cópia de informação é
inerente ao funcionamento dos computadores. O funcionamento do computador abrange três grandes
actividades: o armazenamento, a transmissão e o processamento de dados, cada uma das quais
requerendo a cópia de informação. Deste modo, explica Josephine Berry, “sempre que um programa
de software é aberto, a versão guardada no disco rígido tem que ser copiada para a memória de acesso
aleatório (RAM – Random Acess Memory), ou sempre que se acede a um site na Web, o que vemos
62
de facto é uma cópia dos ficheiros alojados no servidor feita pelo browser” (Berry, 2002). Para além
disso, a autora acrescenta que “cada cópia que é feita é indistinguível do seu ‘original’ e serve tão
bem como este para fazer mais cópias – como resultado, toda a noção de original torna-se
materialmente obsoleta. A facilidade de reprodução digital é tanta que efectuar mil cópias não é mais
caro que produzir uma. Isto reduz os custos marginais de produção praticamente a zero e exige uma
reformulação total do conceito de mais-valia na economia da informação” (idem).
As grandes produtoras de software e, principalmente, a Microsoft, obtêm os seus lucros enormes
“impondo artificialmente a escassez na abundância natural da informação digital e sua capacidade
inata de replicabilidade”, afirma Berry (ibidem). É neste contexto de um registo cada vez maior de
software sob o direito de propriedade intelectual e, em especial, do copyright, que o movimento pelo
software livre tem desempenhado um papel fundamental, com vista à promoção da ética do software
não-proprietário em que o código-fonte pode ser lido, partilhado e modificado livremente por
qualquer pessoa. Até ao início dos anos 80, contudo, a comunidade hacker – nestes primeiros tempos,
sobretudo ligada a universidades norte-americanas - funcionava de acordo com as regras da
colaboração e partilha de informação, herdadas do mundo científico e académico.
O movimento pelo software livre foi iniciado por Richard Stallman, então técnico no Laboratório de
Inteligência Artificial do Massachusetts Institute of Technology (MIT) – instituto norte-americano
que é tradicionalmente referido como local de origem dos primeiros hackers, em meados dos anos 60
– num período em que o software começava a ser privatizado. Quando Stallman encontra dificuldades
em obter o código-fonte do programa de uma impressora Xerox com problemas de funcionamento,
chega à conclusão que os valores da liberdade e da transparência estavam a ser postos em causa por
uma outra concepção da informação, de cariz proprietário e comercial. De forma a se opor contra esta
mudança, inicia em 1984 o projecto GNU82 – que visa a criação de um sistema operativo compatível
com a plataforma Unix. No ano seguinte, lança a Free Software Foundation, uma organização
activista que promove o software livre. Em 1989, Stallman redige a General Public License (GPL)83,
uma licença de copyright destinada a este tipo de software, como o sistema operativo Linux e, até
recentemente, o servidor Web Apache. Esta licença gerou no movimento uma série de efeitos
positivos que Manuel De Landa caracteriza como sendo “consequências não-intencionais”, na medida
em que são o resultado de uma cultura hacker guiada por interesses pragmáticos que têm menos a ver
com os ‘perigos do software proprietário’ – a principal razão que levou Stallman a redigir a GPL – do
que com o tipo de ambiente que estimule a criação de bom software, isto é robusto face a quebras de
funcionamento, uma qualidade bastante prezada nos sistemas operativos e software para servidores.
82 Site disponível em http://www.gnu.org.83 Site disponível em http://www.gnu.org/copyleft/gpl.html.
63
Quando o software é distribuído na forma de código-fonte, ao permitir aos utilizadores a capacidade
de alterá-lo e adaptá-lo livremente está-se a incentivar a formação de comunidades de
desenvolvimento em que muitos dos erros ou bugs inevitáveis que vão surgindo num qualquer
programa complexo à medida que este é produzido podem ser rapidamente descobertos e corrigidos.
Este processo comunitário de debugging – remoção de erros - resulta em software que é
comprovadamente mais resistente a problemas de funcionamento do que os programas disponíveis
comercialmente.
A GPL pretende resolver o problema da aplicação dos direitos de propriedade intelectual e, em
particular, do copyright, em relação à tecnologia digital e a sua capacidade ilimitada de cópia. Em
termos de propriedade, é necessário distinguir “entre os bens que podem ser consumidos apenas por
uma pessoa (ou pessoas), isto é, bens cujo próprio consumo impede outros de os consumirem, e os
que não possuem esta propriedade” (Landa, 2001). A comida pode ser considerado um exemplo do
primeiro tipo, ao passo que as ideias pertencem à segunda categoria. “Se alguém consome uma
música ou um livro, este acto em si não exclui outros de consumirem a mesma música ou o mesmo
livro, em especial, se as tecnologias de duplicação e distribuição tiverem reduzido ao minímo os
custos de reprodução” (idem). Ora, segundo Manuel De Landa, “o problema económico da
propriedade intelectual é que, quando os bens de consumo não-competitivo são sujeitos a direitos de
propriedade, o aspecto exclusivo destes direitos gera um desperdício social” (ibidem). Sobretudo no
que toca aos bens em formato digital, “uma vez que podem ser geradas e distribuídas cópias
adicionais do original virtualmente sem qualquer custo, excluir as pessoas do acesso a estes bens
significa que não será satisfeitas necessidades, apesar do extremo baixo custo que a sua satisfação
acarreteria para a sociedade. Por outro lado, não sujeitar esses bens aos direitos de propriedade
significa que aqueles que os produzem não terão qualquer incentivo para o fazer, particularmente se
os custos de produção forem elevados” (ibidem). Pelo que, nota o autor, o problema da propriedade
intelectual só pode ser resolvido se se encontrar para cada situação um equílibrio entre os custos
sociais e os benefícios do produtor (ibidem). Partindo do desafio lançando por Manuel De Landa,
consideramos que as licenças Creative Commons introduzidas recentemente são uma possível solução
pragmática, embora também não deixem de ter as suas limitações, como veremos mais à frente.
Visando proteger qualquer obra criativa mediante “a anexação a esta no momento em que a
criatividade é fixada numa forma tangível” (Lessig, 2001: 58) – isto é, num suporte físico -, o
copyright é um ramo do direito de propriedade intelectual que tenta resolver o problema dos
incentivos à criação cedendo aos autores o direito exclusivo de controlarem alguns dos usos do seu
trabalho por um período limitado. Mas uma vez que os autores não dispõem de meios de publicação
64
das suas obras nos formatos analógicos, precisam de recorrer a editores. Assim, mediante contratos, é
cedido o direito de utilização de obras protegidas pelo copyright. Esta cedência consiste num contrato
designado licença (idem: 59). Neste aspecto, a GPL é única: ela não representa a abolição da
propriedade intelectual, dado que cada contribuinte detém os direitos de autor do bocado de código
que desenvolveu, mas altera a forma como os direitos de exclusão são implementados. Ao contrário
da maior parte das licenças de software, que limitam o número de cópias que o indivíduo ou entidade
licenciada pode efectuar, a GPL limita as restrições impostas por esse indivíduo ou entidade em
relação à cópia que outros podem efectuar. Obrigando todos os que previamente utilizaram código–
fonte aberto a ‘abrirem’ quaisquer contribuições que tenham efectuado a este e a distribuirem essa
versão melhorada sem cobrar nada84, a GPL impede os abusadores de tirarem partido deste código-
fonte partilhado, alterando-o e de em seguida o compilarem e venderem sob a forma de software
proprietário, impedindo o acesso ao código-fonte (Landa, 2001). Tal como Richard Stallman
descreve:
Um programa é software livre, para si, um utilizador particular, se: Tiver a liberdade de correr o programa para qualquer fim. Tiver a liberdade de modificar o programa de forma a que satisfaça as suas necessidades (Para tornar esta liberdade efectiva na prática, deve ter acesso ao código-fonte, dado que efectuar modificações num programa sem o código-fonte é extremamente difícil). Tiver a liberdade de redistribuir cópias, quer de modo gratuito ou por um preço. Tiver a liberdade de distribuir versões modificadas do programa, de forma a que a comunidade possa beneficiar das melhorias que introduziu (Stallman, 1999).
Como argumenta o professor de Direito David McGowan, “a produção de software open-source não
implica a ausência ou irrevelância dos direitos de propriedade intelectual. Em vez disso, a produção
open source baseia-se no uso elegante de termos contratuais para implementar esses direitos de uma
forma que crie um espaço social dedicado à produção de código livremente disponível e
modificável”85. Segundo McGowan, a originalidade da GPL reside no facto de em vez de explorar
activamente o direito a excluir, como ocorre nas licenças convencionais, este direito é mantido “em
reserva como um método para impôr a adesão às normas incorporadas na licença” (2001: 133). Muito
para além dos seus objectivos imediatos de manter o software aberto e de funcionar como um meio de
atribuir crédito aos programadores pela autoria de determinado código – uma vez que a licença
também ordena que os nomes dos criadores de partes específicas não sejam removidos em nenhuma
versão futura -, a GPL revela-se assim como um instrumento legal para a criação de uma comunidade,
mediante a preservação e a difusão das normas deste grupo social outrora de pequena dimensão,
fomentando o seu crescimento e estabilização.
84 Contudo, a GPL dá ao programador toda a liberdade de cobrar a quantia que desejar pela cópia do programa desenvolvido a partir do código-fonte. Ver Free Software Foundation (2005 [1996]), "Selling Software". Disponível em http://www.gnu.org/philosophy/selling.html#TOCHighOrLowFeesAndGPL (acedido a 15 de Dezembro de 2005).
85 McGowan, David (2001), “Legal Implications of Open-Source Software”, em University of Illinois Law Review, pag. 103. Citado em Landa, Manuel De (2001).
65
Landa considera que este ‘mecanismo de imposição’ de abertura do código-fonte demonstra que a
GPL vai mais além da promoção da liberdade, no sentido original e mais ideológico de Stallman
(Landa, 2001). O facto de esta licença obrigar reciprocamente o utilizador a partilhar foi criticado por
outros hackers, sendo por isso até acusada de desrespeitar o princípio moral da liberdade e de se
semelhante a um vírus, que contamina todo o código desenvolvido com base numa peça de código
open source – código-fonte aberto – original. Consideram ainda que a CPL é anti-comercial por
impede o desenvolvimento comercial de software. Para rebater este défice de liberdade, criaram
licenças alternativas, como é o caso da BSD, relativa às três variantes da versão do Unix desenvolvida
na Universidade de Califórnia, Berkeley.
A tensão entre a ideologia do software livre e os interesses comerciais de algumas empresas
produtoras de software para Linux e outras grandes companhias de informática levou à criação do
termo open source por Eric Raymond e outros que em 1998 formaram a Open Source Iniciative86.
Esta entidade tem como objectivo persuadir o sector comericail da superioridade do software com
código-fonte aberto com base numa abordagem pragmática e mais ligada ao mundo dos negócios.
Uma vez que se pretende que a marca open source abranja comunidades e licenças de código-fonte
aberto para além da GPL, a iniciativa desenvolveu a Open Source Definition87, uma definição oficial
do termo que enumera uma série de critérios que um software deve preencher para ser considerado
open source:
· Redistribuição livre
· Código-fonte acessível e permitindo a produção de trabalhos derivados
· Assegura a integridade do código-fonte do autor
· Proíbe a discriminação de grupos e pessoas
· Proíbe a discriminação de campos de aplicação
· Proíbe a celebração de contratos de não-divulgação (Non-Disclosure Agreements – NDA)
· Assegura que a licença não pode ser específica a um só produto
· Assegura que a licença não pode restringir outro software
· Assegura que a licença tem que ser tecnologicamente neutral (Reagle, 2004).
86 Site disponível em http://www.opensource.org.87 Site disponível em http://www.opensource.org/docs/definition.php.
66
Uma licença de copyright que a iniciativa considere que satisfaz todos estes requisitos será
considerada como uma licença certificada e aprovada pela OSI. Isto inclui, obviamente, a própria
GPL. Para alguns hacktivistas, não obstante, esta definição "abandona todas as referências aos meios
e motivações éticas e sociais do software livre, para não falar do principal objectivo da luta pela
liberdade"88.
Este modelo de abertura foi alargado a formas de produção cultural não relacionadas com conteúdos
técnicos. Por exemplo, a Wikipedia89 é uma enciclopédia colaborativa que já conta com dezenas de
milhares de artigos em várias línguas (Reagle, 2004) em que, como qualque wiki, todos os
utilizadores podem contribuir com novas entradas, editar outros artigos e acrescentar informações. O
modelo de edição em wikis foi alargado para a produção de informação noticiosa pela equipa
responsável pela Wikipedia com a criação do serviço multilingue Wikinews90 no final de 2004.
Uma das alternativas às licenças de copyright mais bem sucedidas até agora é a associação Creative
Commons91, que expande o modelo de abertura da GPL ao domínio da produção cultural, permitindo
que músicas, vídeos, imagens sejam partilhados livremente pelos artistas, músicos, fotógrafos,
designers e escritores com outros, favorecendo ainda o trabalho colaborativo, mas sem perderem
necessariamente o controlo sobre as suas obras. Lançada em 2001 por juristas como Lawrence Lessig
e James Boyle com vista a combater a erosão do domínio público. David M. Berry acusa este projecto
de "privilegiar a propriedade individual em detrimento das formas colectivas" e de revelar "um
interesse mais económico voltado para a produção em vez de uma preocupação estética ou social com
a criatividade em si" (Berry, 2006). Existem seis licenças básicas associadas à Creative Commons,
mas em todas elas a propriedade é mantida pelo autor que licencia a obra. Este pode impôr uma série
de restrições à capacidade de reutilizar as suas criações como:
1. Atribuição - a obrigação de dar o crédito definido pelo autor original ;
2. Comercial/Não-Comercial - o requisito de que a obra possa ou não possa ser usada para obter
vantagens comerciais com ela ou com obras obras criadas a partir dela;
88 Darkveggy (2005). Este hacktivista vai mais longe, afirmando que "ao apelar à convivência pacífica entre o software aberto e fechado (proprietário), o open-source também é político; mas as suas políticas são as da pacificação, integração, aceitação e promoção das regras do mercado, com a ligeira diferença de adoptar um modelo de desenvolvimento mais inteligente". Ao passo que o open-source compromete-se com o capitalismo, o software livre pode ser um contributo para outra coisa diferente".
89 Site disponível em http://www.wikipedia.org. Versão em língua portuguesa disponível em http://pt.wikipedia.org90 Site disponível em http://www.wikinews.org. Versão em língua portuguesa disponível em http://pt.wikinews.org.91 Site disponível em http://www.creativecommons.org
67
3. Partilha segundo a mesma licença - o requisito de que outros só possam utilizar a obra se a
partilharem de acordo com a mesma licença;
4. Proibição de Obras Derivadas - o autor proíbe a criação de novos trabalhos a partir do seu
conteúdo. Habitualmente, estas quatro condições são livremente combinadas de acordo com a
intenção do criador em relação à sua obra.
68
3.1 – O Processo de Desenvolvimento do Software Livre
O desenvolvimento de melhorias e novas funcionalidades num software livre como o sistema
operativo Linux, o programa de email FETCHMAIL ou o servidor Web Apache funciona acima de
tudo com base na Internet, dado que é através da Rede que se elaboram novos projectos, planificam-
se actividades e atribuem-se tarefas, tudo através de uma cooperação aberta e massiva entre milhares
de pessoas espalhadas pelo mundo(Moineau e Papatheodorou, 2000). A participação num projecto
pode revestir várias formas: Um utilizador com mais conhecimentos pode fornecer documentação ou,
melhor ainda, submeter um patch, isto é, uma modificação do código-fonte ao responsável ou líder do
projecto. Mas outro utilizador menos entendido em Informática pode simplesmente exprimir a sua
opinião sobre um determinado problema que os programadores não tinham ainda detectado ou
corrigir um bug menor (idem). Deste modo, “a capacidade dos autores de software livre de apelar à
comunidade para que proponha melhorias e para reforçar a equipa de desenvolvimento é um factor
determinante. E, de facto, quanto mais um programa é aberto, mais os programadores são submetidos
à pressão da comunidade no sentido de fazer evoluir o seu ‘produto’ e para fazer face às inevitáveis
saídas de membros da equipa”, comentam Moineau e Papatheodorou (ibidem).
Em cada projecto é o líder ou comité de líderes que tem a última palavra sobre quais as melhorias que
acabarão por ser incluídas na versão oficial do programa. “Esta autoridade inquestionável dos líderes
de projectos leva a que por vezes sejam apelidados de ‘ditadores benevolentes”, refere Manuel De
Landa, salientando, porém, que é mais apropriado afirmar – para além das suas contribuições
enquanto escritores de código -, que o seu papel reside na criação de uma comunidade de apoio ao
projecto. Eric Raymond considera que o feito mais importante de Linus Torvalds, o finlandês criador
do Linux e responsável pelo projecto de desenvolvimento deste sistema operativo, foi não tanto a
criação do kernel – núcleo – do Linux mas a invenção do modelo de desenvolvimento do Linux92. Os
princípios deste modelo de desenvolvimento consistem em lançar constantemente qualquer peça nova
de código, de forma a que os utilizadores possam imediatamente começar a trabalhar com ela ou nela,
mantendo-os assim permanentemente motivados, delegando a responsabilidade por áreas específicas
a utilizadores motivados – tornando-os co-programadores -, promovendo a cooperação através de
uma série de formas e sendo o menos egocêntrico possível, de forma a impedir qualquer suspeita de
que o crédito pelo trabalho realizado não é partilhado equatitativamente ou de que as decisões
relativas à qualidade de uma determinada peça de código não são objectivas.
92 Raymond, Eric (1997), “The Cathedral and the Bazaar”, §3 – The Importance of Having Users. Disponível em http://www.catb.org/~esr/writings/cathedral-bazaar/cathedral-bazaar/ar01s03.html (acedido a 5 de Novembro de 2005).
69
Em “The Cathedral and the Bazaar”, Eric Raymond designa este modelo de ‘bazar’, em oposição à
‘catedral’, o modelo comercial tradicional de desenvolvimento de software. Na medida em que o
código-fonte dos programas está livremente disponível, a correção dos bugs procede a um ritmo
sustentado. Daí que o software resultante seja em geral fiável. Ao passo que no ciclo de vida
tradicional de um programa, o período de testes representa frequentemente mais de um terço do
tempo de trabalho dedicado a um produto, na economia do software livre são os próprios utilizadores
que se encarregam destas tarefas e propõem correções. Raymond vai ao ponto de analisar o modo
como é estabelecida e mantida a legitimidade do líder de um projecto e de que forma é que esta
legitimidade impede que um projecto perca a sua identidade ao divergir numa série de subprojectos,
cada um com o seu próprio líder. Esse processo de cisão é apelidado pelos hackers de forking. Em
relação ao primeiro aspecto, ele assinala três modos separados através dos quais um projecto pode
tornar-se legítimo:
Existem em geral três formas de adquirir a propriedade de um projecto open source. Uma, a mais óbvia, reside em fundar o projecto. Quando um projecto tem apenas um responsável desde a sua concepção e o responsável está ainda activo, por costume nem sequer se pode duvidar sobre quem detém o projecto (...) A segunda maneira é fazer com que a propriedade do projecto lhe seja concedida pelo anterior proprietário (...) É de salientar que no caso dos grandes projectos, estas transferências de controlo são geralmente anunciadas com grande alarido. Apesar de a comunidade open source não interferir de facto na escolha do sucessor do proprietário, a prática corrente incorpora claramente uma premisa segundo a qual a legitimidade pública é importante. A terceira maneira de adquirir a propriedade de um projecto consiste em observar que este precisa de ser completado e que o proprietário desapareceu ou perdeu o interesse. Caso se pretenda fazer isto, pode-se anunciar num sitío relevante (como um grupo de discussão dedicado à àrea do programa em causa) que o projecto aparenta não ter líder e que se está a considerar assumir a sua responsabilidade (Raymond, 1998).
Mas de acordo com Raymond, esta legitimidade pode ser posta em causa através de dois processos.
Um consiste em fazer um forking do projecto, isto é, instalar um novo líder que a partir daquele
momento irá dirigir ou manter uma versão alternativa do projecto em desenvolvimento. O segundo
reside em acrescentar peças de código que não foram aprovadas pelo líder do projecto ao software.
Estas são designadas pela comunidade de rogue patches. A ameaça do forking é habitualmente
empregue pela Microsoft como arma para afastar os programadores e utilizadores de projectos de
software livre. O seu argumento consiste em fazer passar a ideia de que enquanto o Windows é
desenvolvido sob um processo fortemente centralizado de tomada de decisões, possuindo
consequentemente objectivos bem definidos e um planeamento a longo prazo que garantem a
manutenção da identidade desse sistema operativo, o Linux, por seu lado, dado ser desenvolvido no
âmbito de um processo em que as decisões são tomadas de forma descentralizada, não oferece
garantias aos programadores de aplicações de que o seu investimento em tempo e recursos irá ser
70
recompensado a longo prazo.93
Contudo, como nota Manuel De Landa, nem sempre o forking é prejudicial. No caso do sistema
operativo BSD, por exemplo, o projecto já sofreu três processos de forking mas cada variantes
especializou-se num aspecto em particular, como a segurança ou a portabilidade (Landa, 2001). Por
outro lado, Joseph Reagle chega mesmo a afirmar que o forking “é um aspecto integral da abertura”
do movimento pelo software livre. Na sua opinião, a autonomia característica das comunidades
‘abertas’ tem a ver com a possibilidade constante de fazer forking (Reagle, 2004). Ao basearem-se no
código-fonte de programas anteriores e iniciar o trabalho de desenvolvimento de acordo com a sua
própria conceptualização sem interferências, os novos projectos contribuem para uma maior inovação
tecnológica.
Ao analisar as normas da comunidade que impedem que o forking e a inclusão de rogue patches se
tornem em fenómenos generalizados e ameaçem a integridade do movimento, Raymond concede
importância ao outro componente do problema da propriedade intelectual – para além dos custos
sociais de exclusão – identificado por Manuel De Landa, isto é, o incentivo. Apesar de os hackers não
darem importância aos incentivos monetários à produção, valorizam muito os incentivos que
impeçam a eliminação da legitimidade do projecto. Neste sentido, Raymond considera que estas
comunidades participam numa economia de reputação em que o que é trocado não são valores
monetários mas outros menos tangíveis como o reconhecimento das capacidades e contribuições de
cada um pelos seus pares Nas suas palavras:
O forking de projectos é mau porque expõe os contribuintes anteriores à cisão a um risco de reputação que apenas podem controlar se participarem em simultâneo em ambos os projectos descendentes após a cisão (...) Distribuir rogue patches (...) expõe os proprietários a um risco de reputação injusto.. Mesmo que o código oficial seja perfeito, os proprietários irão ser prejudicados pelos bugs existentes nos patches. Retirar subrepticiamente o nome de alguém de um projecto é, no contexto cultural, um dos crimes mais graves. [Dado que se está a atacar directamente uma fonte de reputação, o local de mérito de alguém numa história de produção] (...) Todos estes três comportamentos-tabu infligem danos na comunidade open source, bem como danos locais na(s) vítima(s). Prejudicam implicitamente toda a comunidade ao diminuirem a esperança de cada potencial contribuinte de as suas contribuições serem recompensadas (Raymond, 1998).
93 Halloween Document I (memorando interno da Microsoft que traça uma estratégia de combate ao Linux e ao software livre. Anotações de Eric Raymond). Disponível em http://opensource.feratech.com/halloween/halloween1.php (acedido a 5 de Novembro de 2005).
71
3.2 – A Ética Hacker
Por detrás do processo de desenvolvimento do software livre está uma ética ligada à cultura dos
hackers que tem as suas raízes nos anos 60 no mundo anglo-saxónico mas que desde meados da
década de 90 se generalizou a todo o mundo, graças ao surgimento do Linux e à massificação da
Internet. Pode-se até dizer que os hackers são “o primeiro movimento social intrínseco à tecnologia
electrónica que impulsionou a actual era da informação” (Berry, 2002). Em Hackers: Heroes of the
Computer Revolution (1984), Steven Levy enumera pela primeira vez de uma forma explícita e
sucinta os princípios da ética hacker:
· O acesso aos computadores – e a tudo aquilo que te possa ensinar qualquer coisa sobre o
modo como o mundo funciona – deve ser ilimitado e total.
· Toda a informação deve ser livre.
· Desconfia da autoridade – promove a descentralização.
· Os hackers devem ser julgados pelo modo como fazem hacking, e não por falsos critérios tais
como graus académicos, idade, raça ou posição social.
· Podes criar arte e beleza num computador.
· Os computadores podem mudar a tua vida para melhor (1984: 27-33).
Esta ética hacker é oposta por Pekka Himanen em The Hacker Ethic and the Spirit of Information
Age (2001) à ética protestante que, como Max Weber afirmou no princípio do século passado,
funcionou desde o século XVI de base ao capitalismo. Em causa estão duas éticas distintas do
trabalho. Segundo Himanen, a ética hacker constitui uma inovação social susceptível de ter um
alcance que ultrapassa largamente os limites da actividade informática, consistindo numa “expressão
que se caracteriza por uma relação apaixonante com o trabalho” (Himanen, 2001: IX). Para este autor,
o hacker é assim “um perito ou um entusiasta de qualquer tipo” (2001: VIII). “O hack é visto aqui
como uma postura (a atitude hack) e não apenas como uma actividade (a programação)”, comenta
Pascal Jollivet (2002).
Para efectuar a contraposição com a ética protestante característica do capitalismo, Pekka Himanen
distingue três faces da ética hacker: a ética do trabalho, a ética do dinheiro e a Nethic ou ética da
Rede. Na ética protestante do trabalho, este último é considerado como um fim em si próprio. “Não se
72
trata tanto de trabalhar para viver (o trabalho como meio para atingir um fim que, eventualmente, o
ultrapassará – a vida) mas de viver para trabalhar (a finalidade da vida é o trabalho)”, explica Jollivet.
Deste modo, “o não-trabalho é comparado à ociosidade que, em si mesma, não pode conduzir senão à
decadência moral”. Pekka Himanen acrescenta que “esta ideia específica da actividade como dever é
hoje em dia generalizada, se bem que pouco evidente, na realidade é a mais característica da ‘ética
social’ da cultura capitalista e é num certo sentido a sua base fundamental”94
É o prazer, o jogo e a dedicação a uma paixão que constituem para os hackers as suas principais
motivações. O testemunho de Eric Raymond é paradigmático: “É bastante divertido ser um hacker,
mas é um tipo de diversão que exige bastantes esforços”95. Como referiu Linus Torvalds na primeira
mensagem pública em que anunciou a criação do seu sistema operativo: “O Linux tem sido em grande
medida um hobby (mas um hobby sério, o melhor de todos)”96. As práticas produtivas dos hackers
colocam assim em causa a cisão ou oposição tradicional entre o trabalho necessariamente penoso e o
lazer, que permite o repouso ou a evasão. “Estas pessoas trabalham mesmo que não sejam obrigadas a
isso para subsistirem, sendo esse trabalho de uma natureza diferente da do herdado da ética
protestante”, afirma Jollivet. Para o hacker, já não importa tanto a distinção entre trabalho e lazer,
valorizando acima de tudo o interesse suscitado por cada actividade, assim como a creatividade que
uma ou outra implica e a paixão que desencadeia. Outro aspecto desta ética do trabalho é o facto de se
caracterizar por uma relação diferente com o tempo, a sua compartimentação e optimização: “Na
versão hacker do tempo flexível, as diferentes áreas da vida como o trabalho, a família, os amigos, os
hobbies, etc. são combinadas com menos rigidez de tal forma que o trabalho nem sempre ocupa o
centro.” (Himanen, 2001: 32-33)
O segundo pólo da ética hacker diz respeito ao dinheiro. Tal como já referimos, o objectivo da
actividade hacker não é o dinheiro. Pelo contrário, os valores que presidem à participação no trabalho
cooperativo voluntário de desenvolvimento de software livre são a paixão, a criatividade e a
socialização. “Para hackers como Torvalds, o factor organizacional de base na vida não é nem o
dinheiro, nem o trabalho, mas a paixão e o desejo de criar em conjunto qualquer coisa que é
socialmente valiosa”, explica Himanen (2001: 53). A realização da actividade produtiva que é a
programação não se baseia num valor moral (o trabalho como dever), nem sobre a necessidade de
subsistência, nem sobre o incentivo dos ganhos monetários.
A ausência de dependência salarial é “uma outra condição institucional fundamental” apontada por 94 Weber, Max (1904-1905), A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Citado por Himanen (2001: 8). 95 Raymond, Eric (1999), “How to Become a Hacker”, 233. Citado por Himanen (2001, 19).96 Torvalds, Linus (1992), mensagem publicada em comp.os.minix, 29 de Janeiro. Citado por Himanen (2001: 18).
73
Pascal Jollivet “que permite a eliminação do constrangimento da autoridade hierárquica tradicional
nos projectos hackers” e que Himanen não refere no seu livro. De acordo com aquele, esta condição é
actualmente um ponto importante quando se coloca a hipótese de empregar a ética hacker como
possível modelo social alternativo para além da actividade informática. Apesar deste modelo social e
produtivo de partilha e cooperação - que, segundo Himanen, aproxima a ética hacker do
funcionamento do mundo académico da investigação -, poder ser considerado por muitos como
marginal, situando-se à margem do sistema capitalista, o autor finlandês defende que o capitalismo
apenas pode funcionar se existirem esferas de actividade em que os comportamentos humanos se
afastam da lógica capitalista. Acrescenta ainda que essas esferas de actividade ‘fora da economia de
mercado’ constituem os motores indispensáveis ao funcionamento da economia capitalista. Numa
óptica semelhante à de Michael Hardt e Antonio Negri em Empire (2000), afirma:
O paradoxo está no centro do nosso tempo: de facto, se encararmos seriamente a dependência das companhias tecnológicas na investigação, poderemos dizer que o dilema ético com que as empresas da nova economia da informação são confrontadas é que o sucesso capitalista é apenas possível se os investigadores permanecerem ‘comunistas’. (no sentido da definição de Merton) (...) a Sociedade em Rede não é determinada apenas pelo capitalismo, mas a um nível quase igual pelo ‘comunismo científico' (Himanen, 2001: 60).
Na verdade, os cientistas e investigadores académicos serviram de inspiração ao modo de produção
cooperativa em rede dos hackers, ao valorizarem a livre circulação do conhecimento e o
reconhecimento pelos pares e ao adoptarem um cepticismo organizado – seguindo o conceito de
Robert Merton. Tanto os hackers como os cientistas acreditam que estes princípios se adaptam
melhor à produção colectiva de conhecimento. É neste sentido que Himanen afirma que “na era da
informação, a nova informação é criada de um modo mais eficiente deixando espaço para a diversão e
permitindo a possibilidade de trabalhar de acordo com o ritmo de cada um” (2001: 64). Jollivet
identifica aqui um paradoxo das economias capitalistas contemporâneas assentes no conhecimento e
na inovação permanente:
De um lado, baseiam-se na possibilidade do exercício da propriedade privada em relação aos novos conhecimentos (propriedade intelectual, patentes, direitos de autor) que permite a sua exploração comercial (concessão, licença, etc.). Mas ao mesmo tempo, essas economias dependem da criação permanente de conhecimentos que não podem difundir-se (pelo menos, de forma eficaz) senão através da sua livre circulação, da impossibilidade da sua apropriação privada, de acordo com um modelo não-comercial de tipo ‘académico’ (Jollivet, 2002).
74
4 – A Táctica e suas Metáforas Teóricas
Neste capítulo, iremos abordar a genealogia e as ligações teóricas do e com o conceito de táctica, pois
acreditamos que para compreender melhor os media tácticos é conveniente saber as definições, a
história e as metáforas contemporâneas do termo que deu origem a este movimento mediactivista.
Estas metáforas consistem em noções que são frequentemente empregues pelos teóricos e praticantes
dos media tácticos para designar as actividades relativas a este tipo de produção mediática.
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o termo táctica apresenta as seguintes
definições:
1. Parte da arte da guerra que trata como proceder durante um combate ou batalha.
2. Arte de dispor e manobrar as tropas no campo de batalha para conseguir o máximo de eficácia
durante um combate.
3. Método ou habilidade para sair-se bem em empreendimentos, disputas, situações de vida,
etc97.
Este dicionário refere ainda que a origem etimológica da palavra consiste no substantivo feminino
grego taktiké, o que quer dizer, habilidade, especialmente nas manobras do exército, derivado do
adjectivo grego taktikós, relativo a arranjo, organização, alinhamento, organização, hábil em
manobras. De acordo com a mesma fonte, o termo foi introduzido na língua portuguesa em 1789.
De acordo com a Enciclopédia Britannica online, a palavra “tem origem no grego taxis, que significa
ordem, arranjo ou disposição – incluindo o tipo de disposição que as formações armadas utilizavam
para entrar e combater em batalhas. A partir deste termo, o historiador grego Xenofonte derivou o
termo tactica, a arte de dispor os soldados em fileiras”98.
97 “táctica” in Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, VIº Tomo (2003), Lisboa, Círculo de Leitores. 98 "tactics" in Encyclopædia Britannica, retirado de Encyclopædia Britannica Online.
<http://0-www.search.eb.com.library.uor.edu/eb/article-52996> (acedido a 6 de Novembro de 2005).
75
4.1 – A Táctica e a Estratégia em Michel de Certeau
Ao conceberem a sua teoria dos media tácticos, David Garcia e Geert Lovink inspiraram-se na
distinção entre tácticas e estratégias feita por Michel de Certeau em Arts du Faire (1990 [1980]), o
primeiro volume dos dois que compôem L’Invention du Quotidien. Em “The ABC of Tactical Media”
(1997), referem que Certeau “analizou a cultura popular 'não como um domínio de textos ou
artefactos, mas como uma rede de práticas ou operações realizadas em estruturas textuais ou com a
forma de texto’”. O seu objectivo consistia em “saber de que modo é que nós, como consumidores,
empregamos os textos e os artefactos que nos rodeiam”. Na perspectiva de Certeau, o processo de
consumo corresponde a um conjunto de tácticas através do qual o fraco faz uso do forte. O
consumidor revela-se muito mais criativo e rebelde do que até então se tinha imaginado. Na sua
perspectiva, o utilizador rebelde – termo que prefere a consumidor – assume um papel táctico, ao
passo que o produtor presunçoso – categoria em que inclui os autores, educadores, curadores e
revolucionários – desempenha uma função estratégica.
No seu estudo da produção e do consumo cultural, Certeau defende o alargamento do âmbito de
investigação da cultura popular para além das análises das imagens (representações) e do
comportamento dos consumidores de forma a estudar os usos que os consumidores dão aos produtos
culturais. De uma forma optimista, acredita na capacidade de criarem e apropriarem autonomamente
significados nas suas próprias vidas. Dando como exemplo a televisão, escreve:
Assim, uma vez analisadas as imagens emitidas pela televisão e o tempo que se passa em frente ao televisor, resta ainda perguntar o que é que o consumidor faz com essas imagens e durante essas horas. Os 500 mil franceses que compram a revista Information-Santé, os clientes do supermercado, os praticantes do espaço urbano, os consumidores de histórias e legendas jornalísticas – o que fazem eles do que ‘absorveram’, receberam e pagaram por? O que fazem eles com isso? (Certeau, 1990 [1980]: 52-53).
Em Arts de Faire, Certeau apresenta um relato alternativo à micro-física do poder teorizada por
Michel Foucault cinco anos antes em Survelleir et Punir. Para Foucault, este novo ‘panóptico’,
discreto e invísivel, mas generalizado, era um dos elementos característicos da sociedade tecnocrática
contemporãnea. O projecto de Certeau consiste em revelar uma rede de anti-disciplina, isto é, uma
categoria de práticas improvisadas, minúsculas, efémeras e em grande parte invísiveis, ligadas à vida
quotidiana. Este conjunto de processos heterogéneos existe fora do discurso, não tem nome próprio e
não pertence a nenhuma ideologia. Funcionam em pemanente resistência contra o regime panóptico
do poder. Neste sentido, escreve;
Se é verdade que por toda a parte se estende e se fixa a rede de “vigilância”, é ainda mais urgente descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que
76
procedimentos populares (também “minúsculos” e quotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com eles a não ser para alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a contrapartida por parte dos consumidores (ou “dominados”?), dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política. (Certeau, 1990 [1980]: XXXIX-XL)
De forma a responder à teorização unidireccional dos mecanismos discretos do poder panóptico
produzida por Foucault e a analizar as características da racionalidade tecnocrática, Certeau efectua a
distinção entre tácticas e estratégias. As estratégias, que dizem respeito aos Estados, ao poder
económico e à racionalidade científica, formam relações de força relativas a um lugar que pode ser
circunscrito a um próprio. Baseiam-se num sentido claro de fronteira, isto é, uma separação entre o
lugar próprio do sujeito e um exterior, definido como inimigo. Graham Meikle refere, como exemplo,
que “uma empresa que define o seu território e utiliza-o como base para as relações com os seus
clientes, privilegia o lugar face ao tempo”. Segundo ele, “trata-se de reclamar um bocado de terra e
expandi-lo, utilizando-o para criar e condicionar relações com outros” (2002: 121).
Por seu lado, as tácticas nunca têm um território próprio, nem uma fronteira. O seu único lugar é
apenas o do outro, insinuando-se a si próprias aí, sem o privilégio da separação. Não são um ataque
frontal contra um poder externo, mas sim infiltrações temporárias a partir do interior do território
inimigo. Consistem em momentos de oportunidade tornados possíveis à medida que surgem fendas na
evolução do lugar estratégico. Dado não terem uma morada fixa ou modo permanente, nunca podem
capitalizar as suas vantagens ou guardar as suas conquistas. Tal como refere Certeau, “o fraco deve
incessantemente tirar partido de forças que lhe são estranhas” (1990 [1980]: XLVI).
Centrando-se no poder da leitura enquanto consumo de signos, de transformar a submissão em
subversão, Certeau adianta ainda que a táctica “opera através de acções isoladas, golpe por golpe. Tira
vantagem das ‘oportunidades’ e delas depende, sem base para armazenar os seus ganhos, aumentar a
sua propriedade e prevenir ataques. Tem que utilizar, de um modo vigilante, as falhas que conjunturas
particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Aí cria surpresas. Consegue
estar onde menos se espera. É astúcia” (1990 [1980]: 61). Conclui referindo: “Em suma, a táctica é a
arte do fraco.”
Para formular a sua distinção entre táctica e estratégia, Certeau baseia-se nos Princípios da Guerra do
teórico prussiano da guerra Carl Von Clausewitz da primeira metade do século XIX, redigidos em
1812. Joanne Richardson refere em “The Language of Tactical Media” que, para Clausewitz, “a
táctica é o modo de comandar cada combate em separado, ao passo que a estratégia é o meio de
combinar combates individuais para alcançar o objectivo geral da guerra. A táctica é o desdobramento
em linha de partes individuais, a estratégia consiste no controlo de todo o exército”. Segundo esta
77
autora, esta distinção é muito diferente da oposição feita por Certeau entre modos de combate. “A
táctica de Certeau assemelha-se mais ao que Clausewitz chamou de estratagema – um movimento
indirecto e dissimulado que não ilude mas leva o inimigo a cometer erros de interpretação”, afirma.
Richardson refere que este conceito é análogo ao que Sun Tzu denominou de “guerra de manobra” –
“um artifício de distracção empreendido por forças fracas contra um opositor forte e bem organizado,
uma acção inesperada que atrai o inimigo, levando-o a cometer erros e, eventualmente, a auto-
destruir-se”.
Salienta ainda que “quer directa, quer dissimuladamente, de modo ofensivo ou defensivo,
empregando a força dos números ou o artifício da distracção, tanto a táctica como a estratégia
pertencem à arte da guerra e possuem os mesmos objectivos: conquistar o poder armado do inimigo,
tomar posse dos seus bens e outras fontes de poderio e ganhar a opinião pública mediante a destruição
da credibilidade do inimigo”.
78
4.2 – A Táctica enquanto Détournement
Na medida em que foi formulada por Certeau, enquanto forma de subverter o espectáculo da
informação que evita empregar as mesmas ferramentas (estratégias) contra o seu oponente, a táctica
recicla a ideia de Guy Debord e dos Situacionistas de détournement. Este tipo de práticas consiste na
apropriação das imagens e das palavras produzidas pelo espectáculo de massas, submetendo-as a um
desvio inexperado de sentido, empregando-as de um modo a que não tinham sido originalmente
planeada ao efectuar combinações surpreendentes com elas, ”justaposições heréticas”, como as
caracteriza Joanne Richardson.
Considerados como os inspiradores teóricos dos levantamentos estudantis de Maio de 68 em Paris, os
Situacionistas eram originalmente apenas oito artistas e escritores, na sua maior parte europeus, que
se juntaram em Julho de 1957 na pequena cidade italiana de Cosio d’Arroscia sob a denominação de
Internacional Situacionista (IS). Este movimento que irá marcar a vanguarda artística dos anos 50 e
60, surge graças a uma aliança entre a Internacional Letrista, um grupo de estudantes parisienses
formado em 1952 do qual Debord fazia parte e o Movimento Internacional por uma Bauhaus
Imaginista (MIBI).
Inicialmente, a IS continuou o trabalho artístico da Internacional Letrista, mas após uma cisão entre
os seus membros ocorrida em 1962, passou a ser um grupo de teóricos políticos e agitadores. As suas
raízes situam-se numa tradição de anti-arte utópica que remonta ao Futurismo, Dada e Surrealismo.
Ao longo da sua história o movimento contou com cerca de 70 membros mas devido a frequentes
expulsões o número de elementos em qualquer momento foi sempre de 10 a 20.
Desde sempre, a IS esteve associada ao escândalo e à subversão. Este espírito está bem patente logo
no seu primeiro texto fundador, onde os seus membros referem: “Pensamos, acima de tudo, que é
preciso mudar o mundo.” As suas teorias políticas eram uma combinação do marxismo com o
anarquismo. No entanto, condenavam tanto o comunismo como o anarquismo pelos seus fracassos
histórico (Henriques, 1997). Criticavam a sociedade consumista moderna, apelidando-a de sociedade
do espectáculo por alienar as pessoas e transformar as suas vidas numa procura superficial e
incessante de novas mercadorias. Para Debord, o líder não designado da IS, o espectáculo é o espaço
cultural comercializado e integrado em que “tudo o que era directamente vivido se afastou numa
representação” (1991 [1967]: 9). A vida real foi substituída por experiências pré-concebidas e
acontecimentos criados pelos media. A imediaticidade deu lugar à mediaticidade.
A IS terminou em 1972, quando apenas restavam dois membros. Durante os seus 15 anos de
79
existência, o seu jornal Internationale Situationiste publicou 12 números. Debord foi o único
elemento a manter-se no movimento ao longo deste tempo. Apesar de ter sido esquecida por quase
toda a gente durante as décadas de 70 e de 80, as suas ideias, teorias e práticas foram retomadas nos
anos 90, por colectivos de media tácticos que exercem Cultural Jamming como o grupo canadiano
Adbusters. Os Culture Jammers reciclam o détournement situacionista para subverter as mensagens
publicitárias, mediante a alteração de placards e da ordem dos produtos num supermercado, ou para
apropriar as ruas para a realização de festas.
No seu livro Marcas de Baton (1999 [1989]), o crítico cultural Greil Marcus dá conta de uma
“história secreta do século XX” que liga os Situacionistas ao Punk dos Sex Pistols. Esta herança é
marcada por uma identidade rebelde que rejeita as convenções sociais, a ordem dominante e a
vulgaridade. Na sua opinião, os Sex Pistols de Johnny Rotten comungam da mesma filosofia de
Debord e companheiros. Anarchy in the UK exprime de uma forma poética cruel as ideias dos
Situacionistas. De facto, o próprio Malcom McLaren, empresário e criador da banda, tinha sido nos
finais dos anos 60 membro de uma ramificação londrina da IS chamada King Mob.
“Os Situacionistas declararam-se comprometidos com uma vida de permanente novidade”, escreve
Kalle Lasn em Culture Jam (1999: 101). Estavam apenas interessados na liberdade, justificando a
utilização de quaisquer meios para alcançá-la, “com consequências que não se distinguem do
assassínio, do roubo, do saque, do hooliganismo, da destruição, fenómenos que, à falta de melhor, os
situacionistas estavam quase sempre prontos a abraçar como percursores da revolução”, salienta Greil
Marcus (1999 [1989]: 63). Defendiam que era necessário encontrar uma forma de expressão para a
creatividade das pessoas comuns. Eram contra as burocracias, as hierarquias e as ideologias que
constrangiam a espontaneidade e o livre arbítrio. Para os Situacionistas, toda a gente é um criador de
situações, um artista de performance, sendo esta performance a sua própria vida. Para promover uma
vida espontânea, sugeriram vários actos subversivos, como deitar abaixo as igrejas para permitir que
as crianças tivessem espaço para brincar ou colocar interruptores nos candeeiros de rua de modo a que
a iluminação estivesse sob o controle público (Marcus, 1999 [1989]: 484).
O tédio, a forma moderna de controlo, era um dos principais inimigos dos Situacionistas. Para este
movimento, “o tédio é sempre contra-revolucionário”. Segundo Marcus, “esta frase é tipíca do estilo
situacionista e da sua expressão, um paradoxo disfarçado de retórica antiga e linguagem comum,
aparentemente desligada da sua lógica mas passando de afirmação declarativa a interrogação à
medida que se ia ouvindo: que quer isso dizer?” Na opinião de Debord e companheiros, o tempo livre
foi mercantilizado sob a forma de tempo de lazer.
80
O détournement situa-se aqui como uma das principais práticas artísticas dos Situacionistas,
funcionando como um acto de negação do espectáculo que acaba por se transformar numa afirmação
do seu próprio poder, ao retirar uma imagem, artefacto ou texto do seu contexto original e aproveitá-
los em novos contextos criados pela imaginação de cada um. Daqui resulta uma síntese que chama
atenção quer para o contexto anterior, quer para o novo resultado. Em sentido literal, detournement
quer dizer “desvio”, mas de forma a respeitar o seu significado preciso, decidimos não traduzir o
termo francês. Conforme explica a académica de estudos culturais Sadie Plant em The Most Radical
Gesture (1992), citada por Meikle, “a tradução mais próxima em inglês de détournement situa-se
entre diversion (‘diversão’) e subversion (‘subversão’). Trata-se de reclamar o sentido perdido, uma
forma de desconstruir o espectáculo. É plagiarístico, dado que os seus materiais são aqueles que já se
encontram dentro do espectáculo, e subversivo, uma vez que as suas tácticas são aquelas da ‘reversão
da perspectiva’, um questionamento do siginificado dirigido ao contexto em que em que este surge”
(2002: 212n60). Num texto de 1956 intitulado “Methods of Détournement”, Debord e Gil J. Wolman,
outro letrista, definem o détournement nestes termos:
Quando se juntam dois objectos, não importa quão distantes sejam os seus contextos originais um do outro, forma-se sempre uma relação (...) A interferência mútua de dois mundos de sensações, ou a reunião de duas expressões independentes, substitui os elementos originais e produz uma organização sintética de maior eficácia. Pode-se utilizar qualquer coisa (...) Em última instância, todo e qualquer signo é susceptível de ser convertido noutra coisa, mesmo até no seu oposto (Debord e Wolman, 1956).
Esta forma de arte subversiva era já empregue pela Internacional Letrista no início da década de 50.
Um dos métodos mais básicos passava por escrever novas falas para os balões de banda desenhada
dos jornais ou inserir-lhes palavras de antigo pensadores, para posterior publicação em revistas de
pequena circulação. Desta forma, de acordo com Marcus, “insistia-se na ‘desvalorização da arte’ e na
‘renovação’ das formas do discurso social, de uma ‘comunicação’ que contivesse a sua própria crítica
e de uma técnica que não podia nunca mistificar, pois a sua própria forma era já desmistificação”
(1999 [1989]: 203), O objectivo era “fazer com que as palavras dos inimigos se virassem contra si
próprios, obrigando o novo discurso crítico a ser enunciado pelos supostos guardiãos do bem e da
ordem” (1999 [1989]: 214), desvalorizando assim o valor mercantil do espectáculo. O mesmo autor
refere ainda que o détournement era “uma política de subversão quotidiana que devia cortar cerce as
cordas vocais de todo o discurso de poder e os seus símbolos sociais, assim puxados para fora do seu
espelho reflector, palavras e imagens desviadas para contextos familiares a toda a gente e tornando-se,
por esse gesto, explosivas”.
Significando, nas palavras de Greil Marcus “a aplicação da conexão reversível do mundo a todo e
qualquer sujeito ou objecto enunciado”, o détournement afirmava-se como “uma forma de lutar contra
o tédio e de o criticar” (1999 [1989]: 429). Na sua opinião, era “um discurso de ruído, criado a partir
81
de ‘elementos pré-fabricados’” (1999 [1989]: 472).
Para além da alteração dos textos dos balões de banda desenhada, os Situacionistas ficaram famosos
por outros actos de détournement na vida real. O primeiro e mais espectacular data ainda do período
pré-Internacional Letrista, em 1950, quando um dos seus futuros elementos, Michel Mourre vestiu a
roupa de um monge dominicano raptado por outros três Letristas e subiu ao altar da Catedral de Notre
Dame para dar um sermão perante milhares de pessoas acusando a Igreja Católica do “desvio fatal das
nossas forças vivas na direcção do vazio celestial”, acabando por proclamar solenemente que “Deus
morreu” (Marcus, 1999 [1989]: 331). A IS também alterou a banda-sonora de filmes pornográficos e
de karate, de modo a reflectir a luta contra a burocracia. Já durante o Maio de 68, trabalhadores
grevistas empregaram a imagem mediática de James Bond com um arma para um cartaz em que se
anunciavam a si próprios como o novo espectro a atormentar o mundo.
Joanne Richardson salienta em “The Language of Tactical Media”, que, “enquanto prática, o
detournement reflectia uma contradição entre o reconhecimento de que lutar no mesmo terreno que o
inimigo é uma armadilha sedutora mas inevitável, e o desejo de ocupar as instalações do poder sob
um novo nome”. Esta contradição, acrescenta, “cristalizou-se na metáfora do sequestro”, na medida
em que “detourne foi um verbo frequentemente utilizado para descrever o sequestro de um avião”.
Segundo Richardson, os Situacionistas jogaram com esta conotação ao apelidarem as suas produções
de sequestros – de filmes, da política e dos desejos quotidianos. Na sua opinião, o terrorista enquanto
equivalente simbólico da subversão esteve sempre relacionado de alguma forma com estas
associações.
82
4.3 – A Táctica enquanto Rizoma
As ideias dos teóricos franceses Gilles Deleuze e Felix Guattari introduzidas em Mille Plateaux
(1980), o segundo volume de Capitalisme et Schizofrénie99 influenciaram ao longo dos anos 90 um
grande número de autores dedicados à teoria da comunicação e à cibercultura. Rizoma e nomadologia
são dois desses conceitos bases que foram empregues sobretudo por teóricos do hipertexto como
George Landow e Stuart Moulthrop. No entanto, tal como refere Stefan Wray (1998b), estas ideias
são também bastante úteis para reflectir sobre as novas redes de resistência que actuam sobretudo na
Internet, inserindo-se na categoria dos media tácticos, como o movimento Zapatista e o Electronic
Disturbance Theater, um colectivo de activistas a favor da causa Zapatista que efectua acções de
desobediência civil electrónica.
O conceito de Rizoma é abordado pela primeira vez por Deleuze e Guattari em 1976, num livro
intitulado Rhizome. Introduction. Esta obra é incorporada quatro anos mais tarde em Mille Plateaux,
no primeiro capítulo. No capítulo XII desta obra, intitulado Traité de Nomadologie, encontra-se a
descrição dos termos nómada e nomadologia. Apesar de nos últimos anos o modelo de rizoma e outro
conceito associado a este, nomadologia, ter sido bastante associado ao ciberespaço e às redes
informáticas - chegando mesmo um autor a referir que “a Internet é um rizoma”100 –, a verdade é que
na altura em que os dois autores franceses introduziram estas ideias, a revolução da computação
pessoal ainda não tinha começado e a Internet chamava-se ainda ARPAnet, estando reservada ao
exército e a alguns cientistas anglo-saxónicos. Esta associação estabelecida entre a Internet e a forma
do rizoma deriva, segundo Joanne Richardson (2005), de se pressupor que a Rede "dissolve as antigas
hierarquias de comando", dado que permite a ligação de tudo com tudo, "não tendo começo, nem fim,
nem limites, mudando de dimensão e alcance com cada nova ligação".
Deleuze e Guattari estabelecem uma distinção entre rizoma e hierarquia, forma estrutural
representada pela arborescência. O rizoma é “absolutamente diferente das raízes e das radículas. Os
bolbos e os tubérculos são rizomas” (1980: 13). Em seguida, enumeram uma série de princípios
rizomáticos. Os primeiros dois são os princípios de conexão e de heterogeneidade, de acordo com os
quais “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado com outro ponto e deve sê-lo”. A árvore ou a
raíz, muito pelo contrário, fixam um ponto, uma ordem. Como refere Stefan Wray, “a rede ideal ou
perfeita consiste num sistema deste tipo, de conexão máxima entre os pontos” (Wray, 1998b). Em
relação à heterogeneidade, os dois teóricos franceses notam que “num rizoma cada traço não remete
necessariamente para um traço linguístico: elos de cadeias semióticas de toda a natureza estão
99 Sendo o primeiro volume L’Anti Oedipe, publicado em 1972. 100 Hamman, Robin B. (1996), “Rhizome@Internet”, 28 de Maio. Disponível em
http://www.socio.demon.co.uk/rhizome.html (acedido a 6 de Novembro de 2005).
83
conectados a modos de codificação muitos diversos, elos de cadeias biológicas, políticas, económicas,
etc., pondo em jogo não apenas regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de
coisas” (Deluze e Guattari, 1980: 13).
O terceiro é o princípio da multiplicidade. Um sistema rizomático é composto por uma multiplicidade
de linhas e conexões: “É apenas quando o múltiplo é efectivamente tratado como substantivo, como
multiplicidade, que deixa de ter qualquer relação com o Um como sujeito ou objecto, como realidade
natural ou espiritual, como imagem e como mundo. As multiplicidades são rizomáticas e denunciam
as pseudo-multiplicidades arborescentes”. Não tendo nem sujeito nem objecto, uma multiplicidade
apenas “possui determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que ela mude de
natureza” pois as leis de combinação crescem com a multiplicidade”. Mais ainda, “não há pontos ou
posições num rizoma, como se encontram numa estrutura, numa árvore ou numa raíz. Só há linhas”.
Para Deleuze e Guattari, as multiplicidades definem-se pelo exterior, isto é, “pela linha abstracta,
linha de fuga ou de desterritorialização, segundo a qual elas mudam de natureza ao conectarem-se
com outras” (idem: 14-16).
O quarto é o princípio da ruptura a-significante, em oposição aos cortes excessivamente significantes
que separam ou atravessam as estruturas: “Um rizoma pode ser rompido, quebrado num lugar
qualquer, mas ele recomeça seguindo esta ou aquela das suas linhas antigas ou em novas linhas”.
Assim, como explica Stefan Wray, “numa rede rizomática, os movimentos e fluxos podem ser
reencaminhados quando ocorre uma ruptura. A secção danificada pode-se regenerar a si própria e
continuar a crescer, formando novas linhas e caminhos” (Wray, 1998b). Deleuze e Guattari
completam este ponto afirmando: “Verifica-se uma ruptura no rizoma sempre que as linhas
segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não
cessam de remeter umas para as outras” (Deleuze e Guattari, 1980: 16).
O quinto e o sexto princípio são os de cartografia e de decalcomania. “Um rizoma não está sujeito a
nenhum modelo estrutural ou generativo. É estranho a qualquer ideia de eixo genético ou estrutura
profunda. Um eixo genético é como uma unidade axial objectiva sobre a qual se organizam estádios
sucessivos; uma estrutura profunda é antes como uma sequência de base decomponível em
constituintes imediatos, enquanto a unidade do produto passa numa outra dimensão transformacional
e subjectiva”. Deste modo, não se sai do modelo da árvore ou da raíz, axial ou fasciculada. Estamos
assim perante “princípios de ‘decalque’, reprodutíveis ao infinito. Toda a lógica da árvore é uma
lógica de decalque e de reprodução (...) Muito diferente é o rizoma, que é mapa e não decalque (...) O
mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, derrubável, susceptível de
receber constantemente modificações”. Nele descobrimos uma das mais importantes características
84
do rizoma: “ele é sempre de múltiplas entradas” (idem: 19-20). Nesta medida, Stefan Wray compara o
mapa ao ciberespaço, dado que este último também possui múltiplas portas de entrada. O teórico e
activista norte-americano afirma ainda que “o mapa está orientado para a experimentação e a
adaptação. Observamos este fenómeno em sistemas de redes. Invenção constante. As redes
expandem-se e contraem-se, emergem e recedem” (Wray, 1998b).
O modelo arborescente de pensamento, oposto por Deleuze e Guattari ao modelo rizomático, refere-
se à epistemologia que serve de base a todo o pensamento ocidental, desde a botânica às ciências da
informação, passando pela teologia e a filosofia. “O pensamento arborescente é linear, hierárquico,
sedentário e cheio de segmentação e estriamento”, comenta Wray, acrescentado que “é a filosofia do
Estado (...), a força por detrás das principais ciências”, sendo “representado pela estrutura em forma
de árvore da genealogia, ramos que se subdividem permanentemente em menos categorias e de menor
dimensão” (idem). O mesmo autor contrapõe ainda o carácter vertical e inflexível do pensamento
arborescente ao carácter não-linear, anárquico e nómada do pensamento rizomático. “Os rizomas
criam um espaço liso e rompem os limites impostos pelas linhas verticais de hierarquias e ordem”,
afirma. Além disso, “o pensamento rizomático é multiplicativo, movendo-se em muitas direcções e
conectado a muitas outras linhas de pensar, agir e ser (...) Desterritorializa os espaços estriados e as
formas de ser arborescentes” (ibidem). Segundo Deleuze e Guattari, “um rizoma está
incessantemente a estabelecer conexões entre cadeias semióticas, organizações de poder e
circunstâncias relativas às artes, ciências e lutas sociais” (1980: 14).
Sumarizando as principais características do rizoma, os dois teóricos franceses escrevem:
· Ao contrário das árvores ou das suas raízes, o rizoma conecta um ponto com qualquer outro
ponto qualquer.
· O rizoma não se deixa remeter nem para o Um nem para o múltiplo. Nâo é feito de unidades
mas de dimensões, ou antes, de dimensões em movimento.
· Ao contrário de uma estrutura, que se define por um conjunto de pontos e posições, de
relações binárias entre esses pontos e de relações biunívocas entre essas posições, o rizoma é
apenas feito de linhas.
· Ao contrário da árvore, o rizoma não é um objecto de reprodução.
· O rizoma é uma anti-genealogia. É uma memória de curta duração ou antimemória.
· O rizoma procede por variação, expansão, conquista, captura, picada.
· O rizoma é um sistema acentrado, não-hierárquico e não-significante, sem general, sem
memória organizadora ou autómato central.
85
Para além do rizoma, uma outra ideia importante contida em Mille Plateaux é a de nomadologia e
pensamento nómada. Neste sentido, os caminhos e linhas de fuga constituem estruturas em que o
movimento nómada ocorre. Mas existem outras relações entre os conceitos de rizoma e nómada.
Tendo em conta que o rizoma é uma forma de pensamento nómada oposto ao pensamento do Estado
que tenta disciplinar o movimento rizomático, Wray afirma que “Deleuze e Guattari consideram o
pensamento nómada como sendo uma ciência ou linguagem menor que é constantemente colonizada
pela ciência principal, o Estado arborescente, representando por filósofos e cientistas que actuam em
sistemas fechados” (1998b). Estes sistemas fechados são espaços segmentados, compartimentalizados
e separados em categorias, classificações, tipos e géneros. Pelo contrário, a nomadologia funciona em
sistemas abertos. Em Mille Plateaux, é atribuído aos nómadas a criação da máquina da guerra que
existe fora do aparelho do Estado: “A máquina de guerra é a invenção dos nomádas (na medida em
que é exterior ao aparelho do Estado e distinta da instituição militar” (Deleuze e Guattari, 1980: 471).
Existe aqui uma oposição entre os espaços lisos ou abertos da nomadologia e os espaços estriados ou
‘quadriculados’ do Estado. Para Wray, “é dentro destes espaços lisos, estas zonas rizomáticas, que o
nómada actua, ascendendo e descendendo, emergindo e recuando. O nómada defronta o Estado
estriado e as suas formações rígidas de batalha”. Actualizando o pensamento crítico de Deleuze e
Guattari para a era das redes, acrescenta que “hoje, os guerreiros resistentes da Internet actuam num
terreno semelhante. Os espaços desterritorializados do ciberespaço são zonas nómadas-rizomáticas
lisas”. No final do “Traité de Nomadologie”, Deleuze e Guattari abordam os conhecimentos dos
primeiros nómadas em metalurgia: “A metalurgia constitui em si própria um fluxo necessariamente
confluente com o nomadismo” (idem: 502). O trabalho com o metal mantém-se para os nómadas pós-
modernos de hoje: “A máquina de guerra nómada é a forma de expressão, da qual a metalurgia
itinerante é a forma correlativa do conteúdo (1980: 518). Só que hoje, ressalta Wray. “o conteúdo é o
metal do computador, os fios, as linhas telefónicas. Os nómadas de hoje trabalham e inventam formas
de operar a máquina de guerra contra os aparelhos do Estado na Net” (1998b).
Mas esta visão idílica das possibilidades emancipatórias da Internet choca com o facto de que "o
universo rizomático (...) é também um elemento essencial do capitalismo global", uma vez que a
empresa rizomática é nómada e flexível, estabelecendo permanentemente novas ligações com outras
empresas, alerta Richardson (2005). A autora considera que esta visão ingénua ignora o facto de o
rizoma ser ao mesmo tempo a lógica do opressor e "a promessa de libertação e de um outro mundo
possível" (Richardson, 2005), podendo o seu significado dependendo do contexto em que se inserem.
86
4.4 – A Táctica enquanto Zona Autónoma Temporária (TAZ)
Partindo do principio de que mesmo as ditaduras mais radicais têm de conviver com pontos onde os
seus poderes se dissolvem e são questionados, que há sempre lugares, grupos e pessoas que não
aceitam subordinar-se, o filósofo anarquista norte-americano Peter Lamborn Wilson tem vindo desde
o final dos anos 80 a analisar quais os motivos porque esses “núcleos de caos” se renovam e se
transformam na História da Humanidade, nunca chegando a desaparecer por mais que sejam
derrotados e incorporados pelos Estados em troca de uma suposta estabilidade. Escrevendo com o
pseudónimo de Hakim Bey, ele postula a possibilidade e até a existência de experiências temporárias
de subversão, “enclaves livres” ou “ilhas na rede”, tomando de empréstimo o título de um livro do
autor de ficção científica cyberpunk Bruce Sterling, Islands in the Net, de 1988.
Especialista em filosofia sufi, este autor-mistério que distribui livremente todos os seus textos em
fanzines, sites da Web ou listas de correio electrónico, designa esse tipo de colectivos nómadas de
Zonas Autónomas Temporárias (Temporary Autonomous Zones - TAZ) (2001 [1991]), conceito que,
refere Eduardo Fernandes no ensaio “A Política e o Caos” (2003), “nos faz retomar a ideia de
impermanência”. De acordo com este autor brasileiro, “Bey é um autor que faz inúmeras sínteses (...)
Articula ideias dos filósofos Gilles Deleuze, Felix Guattari, Nietzsche, dos Situacionistas e do Provos
(outro grupo europeu que influenciou as manifestações de Maio de 68 na França e a contra-cultura),
do surrealismo, dadaísmo, sufismo, Burroughs e da geração Beat”, ou seja, “quase tudo o que se
produziu em termos de ‘ideias subversivas nos últimos dois séculos”.
Na base da teoria da TAZ de Hakim Bey está a crítica da ideia de revolução. Retomando o
pensamento do anarquista do século XIX Max Stirner, considera que “a tomada do Estado conduz
geralmente à instauração de novas ditaduras e outras relações baseadas nos mesmos princípios:
violência, obediência, subordinação e vigilância” (Fernandes, 2003). Enquanto que as revoluções
querem prosperar, isto é, durar, os levantamentos e insurreições são considerados pelos historiadores
como revoluções fracassadas, porque após algum tempo de resistência são derrotados. Influenciado
por Stirner, Bey questiona-se sobre o que é que aconteceu durante o período em que a insurreição
durou, que tipo de intensidades foram vividas aí. Na opinião de Bey, estas ‘zonas libertadas’ – festas,
raves, comunas, comunidades, jantares entre amigos, livre-associações, conferências anarquistas, os
ajuntamentos tribais dos anos 60, os festivais, os círculos de gays (Bey, 2001 [1991]: 409) – devem
ser valorizadas. Não se trata de criar um novo poder, mas de inventar espaços de libertação que
podem durar desde uma noite até gerações inteiras.
A Zona Autónoma Temporária abrange assim lugares no espaço, no tempo e nas ideias que escapam
87
aos poderes do Estado, das empresas capitalistas e ao império do Espectáculo e da Simulação. Muitas
das vezes, são invisíveis a estes poderes, embora apenas durante um determinado tempo e de uma
maneira nunca absoluta, uma vez que não existe liberdade total. São espaços em que as pessoas
desenvolvem auto-governos e expandem desejos múltiplos. Para Bey, a TAZ representa uma
alternativa aos embates directos com os poderes entrincheirados – encontros estes que, na melhor das
hipóteses conduzem apenas ao martírio. Eis como o autor define o conceito da TAZ nas suas próprias
palavras:
A TAZ é como um levantamento que não entra directamente em confronto com o Estado, uma operação de guerrilha que liberta uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e de seguida dissolve-se a si própria para se re-fazer noutro lugar e noutro momento, antes que o Estado a esmague. Uma vez que o Estado se preocupa principalmente com a Simulação, e não com a substância, a TAZ pode ‘ocupar’ clandestinamente estas áreas e realizar os seus propósitos festivos relativamente em paz durante bastante tempo. Talvez algumas pequenas TAZs tenham durado gerações, porque permaneceram despercebidas, como certos enclaves rurais – dado que nunca se intersectaram com o Espectáculo, nunca emergiram para fora daquela vida real que é invisível para os agentes da Simulação (Bey, 2001 [1991]: 404).
Por aqui se pode confirmar as influências do pensamento deste autor norte-americano no movimento
actual dos media tácticos. Nomadismo, práticas de guerrilha, subversão, “clandestinidade” e rejeição
das ideologias e de líderes são alguns dos elementos comuns entre uma TAZ e uma iniciativa
mediática táctica. Bey identifica várias TAZs ao longo da história, como os primeiros momentos dos
manifestantes do Maio de 68 em França e outras inúmeras insurreições que propocionaram
experiências de pico. Mas o autor destaca sobretudo como protótipo das TAZs aquilo a que designa
de ‘utopias piratas’ do século XVIII, ilhas habitadas por corsários e piratas – como foi o caso de Salé
e Libertatia:
Os piratas e corsários do século XVIII montaram uma ‘rede de informação’ que se estendia sobre o globo: mesmo sendo primitiva e dedicada sobretudo a negócios cruéis, a rede funcionava de forma admirável. Esta rede era formada por ilhas, esconderíjios remotos onde os navios podiam ser abastecidos de água e comida, sendo os bens fruto de saques trocados por artigos de luxo e de primeira necessidade. Algumas destas ilhas hospedavam ‘comunidades intencionais’, mini-sociedades que viviam conscientemente fora da lei e que estavam determinadas a manterem-se assim, ainda que fosse apenas durante um período curto mas alegre (idem: 401).
De acordo com Eduardo Fernandes, para Bey, “o problema não é ‘libertar-se’, mas ‘liberar-se’. Não é
preciso esperar que o mundo mude. Nem agir segundo um planeamento abstracto para que ele atinja
um sentido que seria ‘seguro’ e ‘justo’”. O que está em causa é o Caos, a criação permanente: "Você
pediu uma utopia prática e possível. Aqui está ela. Um esquema que poderíamos adoptar amanhã, a
não ser pelo facto de que todos os seus aspectos violam certas leis, revelam alguns tabus absolutos da
sociedade norte-americana, ameaçam a própria vida social, etc. Este é o nosso desejo verdadeiro e
para realizá-lo precisamos contemplar não apenas uma vida de arte pura, mas também o crime puro, a
88
insurreição pura.(...) O CAOS não se importa nem um pouco com o futuro da civilização" (Bey, 1991
[1985]).
Como se pode ver, no pensamento de Hakim Bey não existem paraísos nem a previsão de um futuro
estável e domesticado. A sua TAZ não pretende ser democrática nem politicamente correcta, recusa a
institucionalidade, dispõe-se sempre a correr riscos. Uma vez que é encarada na óptica do poder como
um crime, um tabu ou, pelo menos, um perigo a ser vigiado, a TAZ é também uma táctica de
desaparecimento, que quer permanecer invísivel, inclassificada e incontrolável. Para Bey, se a
revolução é geralmente conservadora, os interesses que orientam a revolta dirária são radicalmente
diferentes. Em lugar do governo, dos seus mecanismos e instituições, surge a vivência intensa do
quotidiano: “comida boa, não poluída e natural, acesso a alimentos, substâncias e experiências ilegais,
fazer sexo com quem desejar, poder viajar pelo mundo sem ser limitado por nacionalidades, sem
pertenças absolutas a culturas ou Estados” (Fernandes, 2003).
A importância concedida por Bey à experiência do dia-a-dia é herdada de Henri Lefebvre e dos
Situacionistas, sobretudo de Raoul Vaneigem. No seu pensamento sente-se também alguma
semelhança com a teoria de resistência à cultura popular adoptada por Certeau. Mas este pensador
norte-americano inspira-se sobretudo no conceito de ‘máquina de guerra’ dos filósofos franceses
Gilles Deleuze e Felix Guattari ao propor o termo nomadismo psíquico ou cosmopolitismo
desenraízado.
Ao contrário do que se costuma pensar, “o nómada não é um migrante – que vai de um ponto
determinado a outro – ou um cigano – que está sempre a mudar de espaço -, mas sim aquele que sente
toda a Terra como seu habitat. Ele sai de um lugar não porque quer, mas porque é obrigado a isso. E
quando o faz, não tem um destinado traçado”, explica Fernandes. Tal como referem Deleuze e
Guattari, no seu “Traité de Nomadologie” em Mille Plateaux, o nómada move-se de maneira
‘turbilhonar’ pelo espaço. E faz das suas roupas e posses o seu ‘território’. Daí que ele nunca muda,
está sempre em casa. “Por isso”, ressalta o autor brasileiro, “nomadismo psíquico não signfica
turismo das ideias, mas sim a capacidade de ir para além dos cientificismos, pós-modernismos,
objectividades, misticismos, religiosidades e até alucinações. É movimentar-se turbilhonarmente pelo
conhecimento. Pensamento máquina de guerra.” Tal como refere Bey:
Abra um mapa do território; sobre ele, coloque um mapa das mudanças políticas; sobre ele, um mapa da Net, especialmente da contra-net, com seu ênfase no fluxo clandestino de informações e logística; e, por último, sobre tudo isso, o mapa 1:1 da imaginação criativa, da estética e dos valores. A grelha resultante ganha vida, animada por inesperados redemoínhos e explosões de energia, coagulações de luz, túneis secretos, surpresas (Bey, 2001 [1991]: 410).
89
Apesar de muitos considerarem que a TAZ se destina principalmente à Internet, para Bey, este
conceito é extremamente físico e corporal. Segundo o pensador norte-americano, por mais que a Net
possa ser considerada um lugar de relacionamento nada virtual, na medida em que, para além da
mente, também altera o corpo e movimenta toda uma rede de relações sociais e tecnológicas muito
materiais, a TAZ deve evitar as mediações, desde ecrãs de computador, instituições, televisores a
outros aparelhos tecnológicos. A Internet assume importância no pensamento de Bey enquanto
ferramenta criadora de TAZs. Para além disso, permite circular informações clandestinas, desenvolver
actividades de pirataria e aceder a bens proíbidos através de hackers. Outra contribuição importante
da Net é o facto de possibilitar a existência de algumas estruturas não-hierarquizadas de produção e
divulgação do conhecimento.
A TAZ remete para duas técnicas de revolta quotidiana, o Terrorismo Poético e a Arte-Sabotagem,
que apresentam semelhanças com as práticas dos media tácticos, como o culture jamming, o
hacktivismo e o artivismo, partilhando ainda do legado do dadaísmo da segunda década do século XX
e do movimento Provos. Eduardo Fernandes explica que o Terrorismo Poético é uma acção
ritualística que visa transformar, causar um momento de espanto, medo ou intensidade, Dançar nú
para simbolizar algo; invadir locais não para roubar, mas para deixar mensagens ou objectos (...) ou
até ‘sequestrar alguém e fazê-lo feliz’”. Salienta ainda que não se trata de performances destinadas a
grupos que irão entender o acto: “Terrorismo Poético dirige-se exactamente àqueles que não o irão
considerar artista. Não pretende apenas aparecer nos media. Não é entretenimento para a sociedade de
controlo.”
Por sua vez, a Arte-Sabotagem comunga de algumas características dos regimes políticos, quer sejam
fascistas ou democráticos, como é o caso da censura e da violência. Hakim Bey chega a dar o
exemplo da queima pública de livros. Nas suas próprias palavras, citadas por Fernandes: "Deitar
dinheiro para o alto no meio da bolsa de valores seria um Terrorismo Poético bastante razoável – mas
destruir o dinheiro seria uma excelente Arte-Sabotagem. Interferir numa transmissão de televisão e
colocar no ar alguns minutos de arte incendiária e caótica seria um grande feito de Terrorismo Poético
– mas simplesmente explodir a torre de transmissão seria um acto de Arte-Sabotagem perfeitamente
adequado".
Apesar de Bey dizer que a Arte-Sabotagem é contra idéias e não contra pessoas, “todos sabemos que
nem sempre se consegue atingir uma sem esbarrar nas outras (...) Definitivamente, estas não são
técnicas para aqueles que acreditam na democracia, nos poderes do terceiro sector e dos
assistencialismos”, explica Fernandes. Sendo Hakim Bey um dos principais teóricos referidos pelo
movimento dos media tácticos, por aqui se vê, mais uma vez, a atracção que o terrorismo e a figura do
90
terrorista tem exercido ao longo das últimas décadas nas produções mediáticas deste tipo a que Joanne
Richardson faz referência em “The Language of Tactical Media” (Richardson, 2002).
91
4.5 – A Táctica enquanto Swarming
Outra das possíveis metáforas de táctica que podemos empregar é a de swarming. Trata-se de um
conceito oriundo do sector militar e remete para uma nova forma de fazer a guerra, baseada em redes
e que concede uma importância vital à informação. Este novo pensamento militar, assentando em
pequenas unidades autónomas bem treinadas e capazes de atacar e dispersar rapidamente, foi
desenvolvido com base no modelo dos movimentos activistas que actuaram na manifestação de
Seattle, podendo ajudar a reflectir sobre as práticas dos media tácticos.
Em 1993, John Arquilla e David Ronfeldt, dois investigadores militares da RAND Corporation101,
introduzem com o seu livro Cyberwar is Coming o conceito de netwar102, que irão definir num texto
mais recente como sendo “um modo emergente de conflito (e de crime) a níveis societais, bastante
diferente do combate militar tradicional, em que os protagonistas utilizam formas em rede de
organização e doutrinas, estratégias relacionadas, bem como tecnologias compatíveis com a era da
informação” (Arquilla e Ronfeldt, 2001)103. A guerra em rede situava-se em oposição à cyberwar
(ciberguerra ou, segundo Henrique Antoun, “guerra de controlo” (Antoun, 2003)), um conceito
também desenvolvido nessa obra. Os dois tipos de conflito militar abrangiam a maior parte do campo
da infowar (infoguerra ou guerra da informação)104 no mundo contemporâneo.
Enquanto que a ciberguerra integraria o combate de alta intensidade, mediante o recurso a tecnologia
militar de ponta e travado entre dois Estados – como, por exemplo, as duas Guerras do Golfo), a
guerra em rede seria uma luta de baixa intensidade travada de modo assimétrico (desigual) entre um 101 Uma das principais agências independentes de fomento à investigação sobre temas de interesse do Departamento de
Defesa dos Estados Unidos da América. A marca “RAND” foi formada pela contracção das palavras “Research and Development” (Investigação e Desenvolvimento). A agência foi criada em 1946 pela Aeronáutica dos Estados Unidos como uma empresa independente e sem fins lucrativos com a finalidade de promover através da pesquisa e da análise o desenvolvimento de material que auxiliasse a elaboração de políticas e a tomada de decisões no âmbito da defesa e da segurança nacional e internacional dos EUA.
102 Tal como Henrique Antoun refere em “As Lutas da Multidão e o Futuro da Democracia na Cibercultura” (2003), o termo netwar “tanto pode ser traduzido por guerra em rede, como por rede de guerra”. Da mesma forma que o autor brasileiro, decididimos empregar o termo rede de guerra, dado remeter a tipos específicos de organização em rede, como a Al Qaeda, o Greenpeace ou a Direct Action Network (DAN), optando por utilizar guerra em rede para designar o tipo de conflito em questão. Este texto está disponível na Web no seguinte endereço http://www.comunica.unisinos.br/tics/textos/2002/T1G4.PDF.
103 Segundo a definição original e mais completa, a guerra em rede refere-se a um conflicto de alta intensidade entre nações e sociedades relacionado com informação. Significa tentar minar ou danificar o que uma população-alvo sabe ou pensa que sabe sobre si própria e o mundo em seu redor. Uma guerra em rede pode centrar-se na opinião pública ou da elite, ou ainda em ambas. Poderá envolver manobras de diplomacia, campanhas psicológicas e de propaganda, subversão política e cultural, ilusão ou interferência junto dos media locais, infiltração em redes de computador e bases de dados e esforços para promover movimentos dissidentes ou oposicionistas através das redes de computador.
104 De acordo com Antoun, “a guerra de informação tem como um dos seus fundamentos a administração da percepção, sendo essencialmente o uso da informação para confundir, decepcionar, desorientar, desestabilizar e desbaratar uma população ou um exército adversário. O importante nesta guerra é a inserção de falsidades na percepção do adversário, evitando que ele possa fazer o mesmo, e a adivinhação dos seus segredos, garantindo um domínio na condução da acção pelo poder de decepção adquirido. Em termos gerais, a guerra de informação consiste em toda a operação conduzida para explorar informações de modo a obter vantagem sobre um opositor e para negar ao opositor informações que lhe poderiam trazer uma vantagem”
92
Estado e grupos organizados em rede através do emprego de tácticas e estratégias que envolvem a
utilização intensiva de novas tecnologias da comunicação como a Internet (Arquilla e Ronfeldt,
1993). Em termos de conduta, os dois investigadores militares consideram que a guerra em rede
remete para conflitos onde um protagonista está organizado em forma de rede ou emprega redes de
computadores para efectuar as comunicações e o controlo operacional (Arquilla e Ronfeldt, 1996:
VII). Eles salientam que embora os actores de uma rede de guerra possam utilizar de modo intensivo
as ferramentas da Net, esta não é a sua principal característica, podendo assim subsistir e actuar em
outros campos. Tendo em conta que se trata de um tipo de conflito não-linear, os autores fazem notar
que a guerra em rede exige uma alteração do paradigma analítico de forma a ser compreendida. Deste
modo, apresentam como modelo desta forma de combate o jogo oriental Go. Neste jogo não existem
frentes de batalha, a defesa e o ataque misturam-se, a formação de fortificações e a acumulação de
peças aliciam os jogadores a realizar ataques implosivos e o vencedor é o jogador que conquistar o
maior espaço de combate105. No livro Networks and Netwars, os dois autores aprofundam a distinção
entre a guerra em rede e a ciberguerra:
A guerra em rede é a contraparte de baixa intensidade a nível social do nosso conceito de ciberguerra, mais antigo e mais militarizado. A guerra em rede tem uma natureza dupla, como o deus romano Janus de duas caras, na medida em que é composta, por um lado, de conflitos travados por terroristas, criminosos e etnonacionalistas extremistas; e, por outro lado, por activistas da sociedade civil. O que distingue a guerra em rede enquanto forma de conflito é a estrutura organizacional em rede dos seus praticantes – em que vários grupos não dispõem de líder – e a flexibilidade na sua capacidade de se juntarem rapidamente em ataques swarming. Os conceitos de ciberguerra e de guerra em rede abrangem um novo modo de conflito que está a emergir na esteira da revolução da informação (Arquilla e Ronfeldt, 2001a: IX).
Na opinião de Arquilla e Ronfeldt, as batalhas da luta pelo futuro não estão sendo travadas pelos
exércitos dos Estados mais poderosos do globo, nem tão pouco as suas armas consistem em
dispendiosos e enormes tanques, aviões e frotas. Pelo contrário, os seus combatentes podem pertencer
a redes terroristas como a Al Qaeda, cartéis da droga como os da Colômbia ou então a colectivos de
militantes anarquistas como o Black Bloc – que desempenhou um papel muito importante nas
manifestações de Seattle -, redes de luta política como o Zapatismo e redes de activistas da sociedade
civil global como a Direct Action Network (DAN). Todas estas redes são compostas de grupos que
funcionam através de unidades pequenas e dispersas, capazes de se desdobrarem rapidamente em
qualquer lugar ou momento como se se tratasse de um enxame de abelhas. A este tipo de estratégia
militar Arquilla e Ronfeldt dão o nome de swarming (“enxameação” ou, segundo Henrique Antoun,
“afluência”). Estas redes sabem como enxamear (swarm) e dispersar, penetrar e romper ou iludir e
105 Antoun nota que “embora Arquilla e Ronfeldt ressaltem o controlo do território na vitória do Go, o que o jogo de facto privilegia é a quantidade de espaços livres no território controlado, algo que faz toda a diferença. É importante assinalar que as características apontadas pelos pesquisadores da RAND como pertencentes à guerra em rede e suas redes de guerra são as mesmas apontadas por Deleuze e Guattari em Mille Plateaux para caracterizar as máquinas de guerra” (Antoun, 2003)
93
fugir. O cenário estratégico destas novas batalhas é a guerra em rede.
Na sua abordagem da tradição académica da análise de rede social, os pesquisadores militares
afirmam que este tipo de investigação considera que uma rede é um grupo formado por actores (nós) e
os seus vínculos (ligações) cujo relacionamento possui uma estrutura padronizada. Alguns
investigadores observaram nas últimas décadas que as redes surgem frequentemente através de várias
formas ou topologias básicas, como por exemplo: as redes em cadeia ou linha, em que os membros
estão vinculados numa fila e as comunicações devem fluir através de um actor adjacente antes de
chegar ao próximo; as redes em forma de estrela, eixo (hub) ou roda, onde os membros estão
vinculados a um nó central e devem passar por ele para comunicar uns com os outros; e as redes
completamente interligadas, ou “todos os canais” (all-channel) ou ainda matriz completa (full matrix),
uma arquitectura que permite a comunicação e a interacção de cada nó na rede directamente com
qualquer outro nó. Foram ainda identificadas outras tipologias, bem como formas híbridas, que
combinam as diversas formas de rede dos modos mais variados (Arquilla e Ronfeldt: 2001).
Apesar do campo da análise de redes ter sido dominado até agora pelas abordagens de tipo social,
Arquilla e Ronfeldt consideram que a análise organizacional das redes pode contribuir mais para
compreender a natureza da guerra em rede, pois enquanto que para o analista social de redes basta
determinar os grupos de actores com vínculos, a análise organizacional irá ainda averiguar se os
actores se reconhecem como participantes da rede e se eles se comprometem com as suas operações.
De forma a determinar o que torna uma rede efectiva, para além do seu design organizacional,
Arquilla e Ronfeldt afirmam que é necessário tomar em conta os outros quatro níveis que a compõem:
o narrativo, que diz respeito à história que está a ser contada; o doutrinário, abrangendo os métodos e
estratégias colaborativas; o tecnológico, que se refere aos sistemas de informação em uso; e o social,
constituído pelos vínculos sociais que asseguram lealdade e confiança (idem). Os níveis social e
tecnológico consistem na base material, humana ou técnica da rede. Por seu lado, o doutrinário
responde pelo seu modo de acção. O nível organizacional, por sua vez, remete para a forma de ordem
estrutural da rede, ao passo que o nível narrativo diz repeito à sua constituição e subsistência.
Os autores referem que existem duas práticas doutrinárias que tendem a adequar-se mais ao cenário
de uma rede de guerra. Uma consiste em organizar uma rede num modo de funcionamento o mais
possível sem liderança (leaderless), por não possuir um líder que se destaque ou por ter vários líderes
ou ainda utilizando mecanismos de consulta e formação de consenso para a tomada de decisões. A
segunda prática passa pela utilização de estratégias e tácticas de swarming para atingir um alvo. Um
exemplo do primeiro princípio é a doutrina da resistência sem liderança concebida pelo extremista de
94
direita Louis Beam. Tendo por base este conceito, herdado da experiência da sedição na Guerra pela
Independência dos Estados Unidos, a rede organiza-se em ‘células fantasmas’ e da acção individual
de unidades designadas minutemen106, com vista a que os grupos e indivíduos actuem
independentemente uns dos outros, sem nunca depender de um quartel central ou um líder único. Esta
doutrina distingue quatro tipos de células descentralizadas e secretas: de combate, de comando, de
apoio e de comunicação, sendo cada uma composta por oito minutemen e um líder. A partir da década
de 90, o modelo de resistência sem liderança passou a incluir um novo tipo de unidade chamada ‘lobo
solitário’, destinada a instigar actos violentos, como atentados bombistas, fazendo parecer que são da
sua própria iniciativa.
Mas, na opinião de Arquilla e Ronfeldt, o swarming é a doutrina mais adequada para a guerra em
rede, sendo a resistência sem liderança apenas um passo na sua direcção. Apesar da sua aparência
amorfa, o swarming é um modo estratégico deliberadamente estruturado e coordenado de atacar a
partir de todas as direcções um determinado ponto ou pontos por meio de uma intensidade constante
de força ou/e de fogo, mantida a partir de posições tanto próximas como afastadas107. Deste modo, o
protagonista faz com que várias pequenas unidades mantidas normalmente dispersas converjam num
alvo vindas de todos os lados, efectuem um ataque, redispersando-se em seguida para se prepararem
para a próxima operação. Como exemplos de comportamento swarming, identificam a resistência
tchechena contra o exército da Rússia, os hooligans britânicos e as ONGs associadas com o
movimento Zapatista no México.
Porém, segundo os pesquisadores militares, um dos melhores exemplos de swarming e também uma
das doutrinas mais sofisticadas para a guerra em rede do tipo social vem da Direct Action Network
(DAN), surgida a partir de uma coligação de activistas que recorreram à acção directa não-violenta e à
desobediência civil para paralizar a reunião da OMC em Seattle (Novembro de 1999). A sua
abordagem representa uma súmula das ideias por detrás do modo de swarming. Os participantes são
convidados a organizarem-se, à sua escolha, em pequenos ‘grupos de afinidade’ compostos por cinco
a 20 pessoas. – de acordo com Arquilla e Ronfeldt, tratam-se de “equipas auto-suficientes, pequenas e
autónomas de pessoas que partilham certos princípios, objectivos, interesses, planos ou outras
similaridades que as possibilitam trabalhar bem em conjunto”. Cada grupo decide por si próprio que
acções os seus elementos irão realizar, variando desde o teatro de rua até ao risco de ser preso. Onde
os grupos funcionam em proximidade entre si, eles são ainda organizados em clusters (‘células’). 106 Unidade com origem na Guerra da Independência dos EUA, através do uso de milícias como forma de combater o
imperialismo britânico dominante. Trata-se de um indivíduo que está sempre pronto para entrar em acção quando for a altura necessária, embora actue a maior parte do tempo como um homem comum desvinculado do combate político (Antoun, 2003).
107 Como fazem notar Arquilla e Ronfeldt, “a noção de ‘força e/ou fogo’ pode ser literal no caso de operações militares ou policiais, mas metafórica no caso de activistas de Organizações Não-Governamentais (ONGs), que poderão, por exemplo, bloquear ruas de uma cidade ou enviar quantidades massivas de emails e faxes” (Arquilla e Ronfelft, 2001).
95
Poderão, no entanto, também existir grupos flutuantes que se movem de acordo com o local onde são
necessários. Pessoas diferentes em cada grupo assumem funções diferentes, mas todos os esforços são
feitos de modo a salientar que nenhum grupo possui um líder. Adoptando uma outra abordagem ao
modo sem liderança. toda a actividade e organização é coordenada em encontros de um conselho de
porta-vozes onde cada grupo envia um representante e as decisões são alcançadas através da consulta
democrática e do consenso.
Esta doutrina radicaliza as características da guerra em rede, acentuando a ausência de liderança mas,
ao mesmo, tempo, oferecendo maior flexibilidade, mobilidade e partilha de recursos, tal como
sucedeu na ‘Batalha de Seattle’. De notar ainda que Arquilla e Ronfeldt classificam ainda como um
modo de actuação swarming as acções de desobediência civil electrónica através dos ataques de
Denial of Service organizados por colectivos hacktivistas contra os servidores Web de governos e
transnacionais.
Um outro nível que contribui bastante para a eficácia da guerra em rede é o que diz respeito às
narrativas ou histórias. Ao longo dos tempos, estas sempre desempenharam um papel muito
importante ao manter as pessoas unidas em qualquer organização, pois expressam um sentido de
identidade e de pertença, respondendo a perguntas como “quem somos”, “porque estamos juntos” e
“o que nos diferencia dos outros”. Podem ainda comunicar um sentido de causa, propósito e missão.
Elas exprimem objectivos, métodos e disposições culturais, isto é, “aquilo em que acreditamos”, “o
que tencionamos fazer” e “como”. A história certa pode manter as pessoas ligadas a uma rede que
devido à sua flutuação não consegue evitar o corte de vínculos. Pode também estabelecer ligações
entre diferentes redes e gerar a percepção de que o movimento está a passar por um momento
vitorioso. Como Arquilla e Ronfeldt resumem, "A rede mais forte será aquela na qual o design
organizacional é sustentado por uma história vitoriosa e uma doutrina bem definida, e na qual tudo
isto está colocado em cima de sistemas avançados de comunicação e repousa na base em fortes laços
pessoais e sociais" (Arquuilla e Ronfeldt, 2001)
Segundo Alexander Galloway, “a crise global actual – após o 11 de Setembro – consiste num conflito
entre o poder centralizado e hierárquico dos Estados e redes distribuídas e horizontais” (2004: 204)
como a Al Qaeda e a DAN, cuja forma organizacional já está adaptada à guerra em rede. Neste
sentido, Arquilla e Ronfeldt (2001) oferecem algumas proposições para a política dos Estados face à
guerra em rede:
· As hierarquias têm dificuldade em combater redes.
· É necessário adoptar a forma organizacional e as estratégias de uma rede para lutar contra
96
redes.
· Quem dominar melhor e em primeiro lugar a forma de rede irá conquistar vantagens
significativas.
Para Galloway, “estes comentários são extremamente úteis para reflectir sobre os media tácticos e o
papel do actor político dos dias de hoje. Oferecem às subculturas razões para repensarem as suas
estratégias face ao mainstream. Obrigam-nos a repensar as técnicas do terrorista” (2004: 205). Mas,
na opinião deste autor, as proposições dos investigadores da RAND também levantam muitas
questões, em particular, a de saber o que irá acontecer quando os poderes dominantes evoluírem para
uma estrutura em rede e abandonarem o modelo das hierarquias. Segundo Galloway, em muitos
sectores este processo já se iniciou. Ele acredita que apesar de “nas últimas décadas, o conflito
primário entre designs organizacionais ter sido travado entre hierarquias e redes – uma guerra
assimétrica -, no futuro iremos passar por uma alteração global em direcção a um novo conflito
organizacional bilateral em que redes irão combater contra redes” (idem).
97
4.6 – A Táctica enquanto 'Multidão'
A Diferença veio para ficar e já não precisa de se legitimar a si própria face a autoridades superiores como o Partido, o Sindicato ou os Media. Comparando com décadas anteriores, isto é a sua maior conquista. As multidões não são um sonho ou alguma construção teórica mas uma realidade.
- Lovink e Schneider, “A Virtual World is Possible: From Tactical Media to Digital Multitudes”
Tal como referem os autores franceses Cardon e Granjon, uma parte siginificativa dos elementos do
mediactivismo identifica-se com o conceito de multidão (multitude) desenvolvido por Michael Hardt
e Antonio Negri nos seus livros Empire (2000) e Multitude (2004). “Esse quadro intelectual constitui
para os actores um verdadeiro instrumento de análise, mas também de auto-compreensão das práticas
e das formas de vida desenvolvidas pelo mediactivismo”, referem. Geert Lovink e Florian Schneider
(2002) salientam que as redes de media tácticos possibilitaram o surgimento do movimento por uma
globalização alternativa. Esse movimento híbrido é, na sua opinião, a concretização real de uma
multidão. A partir deste conceito, eles criam o termo 'multidões digitais' para designar um novo
movimento nómada composto por alianças entre hackers, artistas, cientistas sociais e activistas que
actua mediante o recurso às novas tecnologias de informação e comunicação.
Em termos genealógicos, podemos remontar o conceito de multitude ao início do pensamento político
moderno, tendo sido empregue por Maquiavel, Hobbes, Espinoza e, mais tarde, também por Locke e
Rousseau (Thacker, 2004). Mas nestes pensadores não existe qualquer consenso sobre o significado
do termo. Por vezes, a multidão é empregue como sinónimo de “massas” ou “povo”, ao passo que
noutras vezes é atribuída à multidão uma carga política muito específica, no sentido de força
constitutiva da própria vida social e política. Deste modo, ela acaba por ser ao mesmo tempo, segundo
Eugene Thacker, um elemento constituinte e resistente da ordem social e política (idem). Hardt e
Negri distinguem também a multidão do termo classe trabalhadora em Multitude. Apesar de
considerarem que a primeira é um conceito de classe, englobando todos os que trabalham sob o
domínio do capital, sendo potencialmente a classe dos que rejeitam esse domínio, sendo por isso
expansiva e aberta. Pelo contrário, a classe trabalhadora é um termo considerado excludente, pois só
abrange o operariado das indústrias ou os assalariados (Hardt e Negri, 2004: 105-106).
Na actual teoria política, isto é, de acordo com a concepção de Antonio Negri e Michael Hardt em
Empire, a questão da multidão já não é colocada em termos de saber se essa multidão é governável –
partindo de uma posição de escolha entre a prioridade do indíviduo e a prioridade do grupo -, mas sim
de saber como é que a multitude se pode auto-governar. Segundo Eugene Thacker, “enquanto
conceito político, a multidão é definida em termos tanto ontológicos como políticos. O termo é
ontológico porque, na sua raíz, a multitude articula um conjunto de afectos e experiências que servem
98
de base para a afiliação e acção políticas” (Thacker, 2004). Deste modo, a um nível básico, a multidão
diz principalmente respeito à sua própria constituição e, a partir daqui, à sua capacidade de incorporar
quer o consenso como a divergência.
Neste campo ontológico, uma das características mais importantes da multidão é que não é nem o
indivíduo nem o grupo, “situando-se algures entre os dois ou noutro ponto completamente diferente”,
explica Thacker (idem). Trata-se, segundo Antonio Negri, de uma “singularidade não-representável”
(Negri, 2002): na medida em que é múltipla, isto é, tal como as noções de “grupo” e de “povo”,
implica a existência de um número significativamente grande de elementos individuais que são
agrupados de forma a se tornarem um só. Elas designam multiplicidades, um conceito desenvolvido
por Henri Bergson e mais tarde por Gilles Deleuze.
Contudo, Thacker salienta que “a multidão não é apenas um grande número de pessoas que foram
unificadas, homogeneizadas, transformadas num corpo-acima-do-corpo (um corpo político); é
também definida pela sua composição, que é instável, permeável e morfológica” (Thacker, 2004).
Assim, de acordo com este autor, o que impede a multitude de se constituir como ‘um só’ é o facto de
ser definida por um conjunto de interesses, afectos e relações diversas. A multidão não surge de um
contrato social, ao contrário do povo, e não está implicada num momento único de unidade em
consenso. Até porque os seus diversos interesses são muitas vezes contraditórios entre si, coincidindo
apenas em parte.
Em vários textos de Negri, em separado ou, no caso de Empire e Multitude, em co-autoria com
Michael Hardt, a multidão é descrita de uma forma quase paradoxal: uma multiplicidade de
singularidades, uma diferença que é repetição, uma contração e uma expansão, uma diástole e uma
sístole”, como explica Thacker (idem). Assim, “a multidão é um conjunto de singularidades”, embora
“ao contrário do povo não seja uma unidade” pois, apesar de actuarem em comum são diferentes entre
si (Hardt e Negri, 2004: 105). Mas “em oposição às massas e às plebes, podemos vê-la como algo
organizado, sendo de facto um agente de auto-organização” (Negri, 2002). Noutro texto, Negri afirma
que a multidão se refere “a um grupo de singularidades que reapropriaram os instrumentos de
produção, as ferramentas de trabalho, para si próprias”108. O processo contraditório de constituição da
multidão é explicado da seguinte forma: “Um movimento puxa com grande força em direcção ao
absoluto no sentido estrito, em direcção à unidade e indivisibilidade do governo, em direcção à sua
representação como uma alma e uma mente... Mas o outro movimento é plural... A vida do governo
absoluto está dotada em Espinoza de uma sístole e uma diástole, de um movimento em direcção à
108 Negri, Antonio (2003), "N for Negri: Antonio Negri in Conversation with Charles Guerra". Grey Room, nº 11, 99. Citado em Thacker (2004).
99
unidade e um movimento de expansão.”109 É mediante o trabalho que “a multidão se produz a si
própria como singularidade... uma singularidade que é uma realidade produzida através da
cooperação” (Hardt e Negri, 2000: 395).
Segundo Thacker, é devido a estes paradoxos que “as questões ontológicas da multidão são
indissociáveis das questões políticas da multidão” (Thacker, 2004). Desde Maquiavel a Hobbes,
passando por Hugo Grotius, a longa tradição do contrato social na teoria política moderna indicia uma
tendência a favor das formas jurídicas de autoridade e legitimidade. Contudo, em simultâneo, um
legado oposto na teoria do contrato que vai desde Althusius a Espinoza faz introduzir a possibilidade
de considerar a Democracia como “a forma mais natural de governo”. Hardt e Negri inspiraram-se
nesta tradição minoritária ao desenvolverem o seu conceito de multidão.
Tal como os dois autores assinalam, a multidão opõe-se ao contrato social e, em consequência, ao
conceito de povo. Quer o contrato social seja formalmente entendido como um verdadeiro contrato ou
quer seja encarado como uma ficção necessária imposta pelo Estado, ele pressupõe a seguinte
questão: será a multidão governável? Thacker explica que tal questão conduz inevitavelmente à
legitimação a posteriori das formas modernas de soberania. Hardt e Negri fazem questão de salientar
ao longo de todo o seu livro Empire que, embora os regimes monárquicos e imperialistas estejam
historicamente em declínio, isso não quer dizer que a própria soberania tenha desaparecido, como
prova a ascensão do império nas últimas décadas. De forma a repensar o conceito de multidão é então
necessário diferenciá-lo das suas ligações com a soberania moderna e o absolutismo.
De acordo com Thacker, “este processo exige uma nova análise das agregações ou fenómenos de
grupo. Requer uma rejeição da ficção do ‘estado de natureza’ pré-social que supostamente precisa de
ser amansado, domesticado e disciplinado” (ibidem). Neste sentido, alerta para a necessidade de não
confundir a multidão com termos relacionados como plebes, populaça, massas ou mesmo povo. Mas
Thacker salienta que isto não significa que a multidão se torne numa instituição, mantendo, pelo
contrário, uma componente “bárbara”, devido à sua composição ontológica. Trata-se tanto de uma
agregação como uma diferenciação, tanto uma emanação como uma contracção, não sendo, porém,
nem um grupo, nem um conjunto de indivíduos.
Este autor coloca ainda a questão de se a multidão existe mesmo actualmente ou se se trata de uma
mera ficção, “uma visão política de algo ainda por vir" (ibidem). Apesar de referir que a Democracia
não implica a existência de multidões – até porque a Democracia representativa é um dos principais
109 Negri, Antonio (1997), "Reliqa Desiderantur: A Conjecture for a Definition of the Concept of Democracy in the Final Spinoza", em Warren Montag e Ted Stolze (eds.), The New Spinoza, Minneapolis, Univ. of Minnesota, pág. 229-230. Citado por Thacker (2004).
100
alvos da multidão -, Thacker refere como possíveis exemplos deste tipo de fenómeno os movimentos
activistas contra a SIDA e a globalização neo-liberal, bem como as iniciativas contra a existência de
fronteiras e a favor de um domínio público das obras criativas digitais. Por fim, apresenta a seguinta
lista de características que, na sua opinião, distinguem o conceito contemporâneo da multidão:
· A multidão situa-se entre o indíviduo e o grupo; é uma “multiplicidade de singularidades”.
· Funciona através da criação de relações e da cooperação, o que estabelece “o comum”, isto é,
um conjunto de afectos, questões e experiências comuns que coincidem parcialmente.
· Posiciona-se a si própria em oposição à tradição do contrato social e, consequentemente,
contra a inevitabilidade da soberania moderna e o “estado de excepção”.
· A problemática central da multidão consiste no “problema da decisão política”, ou seja, como
o ‘comum’ pode ser constituído ao mesmo tempo que se promove a diferença.
· A questão que a multidão coloca a si própria reside em saber como é que ela se pode auto-
governar e não a questão que lhe é colocada – “será a multidão governável?”.
· As características mais perigosas da multidão – a sua volatibilidade, imprevisibilidade e
instabilidade – são também os seus aspectos mais radicais – um poder constitutivo, uma voz
colectiva e uma ética imanente (ibidem).
Incluindo nesta etiqueta vários fenómenos abordados nesta tese como as smart mobs, as redes de
guerra e a desobediência civil electrónica, Thacker acaba por afirmar que as multidões são
encarnações do modelo tecnológico das redes e do modelo biológico dos enxames (swarms), sendo
inspiradas e transformadas por eles. Hardt e Negri corroboram esta posição em Multitude, onde
estabelecem uma relação entre o swarming e a multidão, ao afirmar que esta última é um modelo de
inteligência em forma de enxame, dando como exemplo as novas organizações políticas em rede que
emergiram em Seattle (1999) ou as manifestações espalhadas por todo o mundo contra a guerra do
Iraque, a 15 de Fevereiro de 2003. Na sua opinião, tratam-se de multiplicidades várias que se
diferenciam pela raça, género, sexualidade mas que cooperam e comunicam entre si, formando uma
inteligência colectiva (Hardt e Negri, 2004: 92). Por outro lado, também entendem que a multidão
deve ser concebida como "uma rede expansiva e aberta em que todas as diferenças podem ser
expressas em liberdade e igualdade" (idem: xiv), uma forma de resistência em rede contra o Império
que tem como valores principais "a criatividade, a comunicação e a cooperação auto-organizada
(ibidem: 83). Hardt e Negri chegam a invocar o software open-source ou de código-fonte aberto para
caracterizar a multitude: "Uma abordagem para compreender a democracia da multidão é vê-la como
uma sociedade open-source cujo código-fonte é revelado de forma a que possamos todos trabalhar
colaborativamente para resolver os seus bugs e criar novos e melhores programas sociais" (ibidem:
340).
101
Mas, tal como Arquilla, Ronfeldt e Galloway, ao mesmo tempo declaram que os aparelhos militares
tradicionais e as formas de poder soberano que representam estão a chegar à conclusão que "para
combater uma rede é necessária uma rede", o que implica a sua restruturação radical (ibidem: 58).
Integram assim esta transformação no contexto da passagem do imperialismo centralizado e assente
nos Estados-nação para a forma em rede do Império, um termo que abrange os principais poderes
estaduais como os Estados Unidos, mas também as instituições supranacionais, as empresas
transnacionais e organizações não-governamentais.
102
4.7 – A Táctica enquanto Smart Mob
Baseando-se em parte no trabalho de Arquilla e Ronfeldt, o jornalista e investigador de tecnologia
Howard Rheingold concebeu o termo Smart Mobs (‘Massas Inteligentes’) para se referir a novos
agrupamentos sociais constituídos por pessoas com capacidade para agir de forma concertada mesmo
sem se conhecerem previamente umas às outras. Isto é possível mediante a utilização de redes
informáticas sem fios, dispositivos móveis como PDAs (Personal Digital Assistant), telemóveis ou
computadores de bolso ou mesmo wearable computers (computadores 'vestíveis') (Rheingold, 2002:
XII). Estas tecnologias informáticas e de comunicação possuem a capacidade de amplificar a
cooperação humana No seu livro intitulado Smart Mobs: The Next Social Revolution, Rheingold
afirma que esta convergência tecnológica contem em si perigos e oportunidades, podendo ser
empregue tanto para fomentar a democracia como para coordenar ataques terroristas. Assim, salienta,
tal como todas as anteriores formas de comunicação, esta também envolve aspectos positivos e
negativos Os riscos de vigilância e controlo por parte do Estado e de grandes empresas exercidos
através destes mecanismos sobre a vida dos utilizadores são bastante graves. Por outro lado, o poder
de conhecimento oferecido pelos pesados PCs ligados por fios à Internet passou a estar acessível num
dispositivo com pouco mais de 100 gramas e capaz de ser guardado num bolso.
Como exemplos de smart mobs, o autor cita os protestos em massa organizados a partir do envio de
mensagens SMS (Short Message Service) por telemóveis que conduziram à deposição do presidente
das Filipinas Joseph Estrada em 2001. A manifestação de Seattle contra a reunião da Organização
Mundial do Comércio de 1999 é também referida por Rheingold como exemplo de smart mob. O
autor inclui as redes de guerra como casos de smart mobs. Ao criarem uma guerrilha inteligente, os
elementos destas multidões organizam-se rapidamente com vista a atingir um objectivo, empregando
tecnologias de informação e recorrendo às estratégias de swarming, tal como teorizadas por Arquilla e
Ronfeldt. Num âmbito mais centrado no quotidiano, as redes sociais urbanas de adolescentes que
enviam constantemente mensagens SMS aos seus amigos são também apontadas como smart mobs,
assim como as redes comunitárias de computadores sem fios do tipo WiFi, os bloggers – autores de
weblogs -, e os compradores e vendedores do site de leilões online eBay110.
As smart mobs e as suas consequências sociais, para além dos seus dispositivos tecnológicos,
indústrias e normas reguladoras, encontram-se ainda nos seus estádios iniciais de desenvolvimento.
Isso talvez possa ter origem no facto de o processo de aprender a agir em conjunto e
cooperativamente demorar algum tempo para a maioria das pessoas. No entanto, após a publicação do
livro de Rheingold, surgiram uma série de acontecimentos relacionados com este novo fenómeno
110 Disponível em http://www.ebay.com.
103
emergente, em alguns casos, até por influência da obra, como as chamadas Flash Mobs, eventos
urbanos que desorganizam e revolucionam temporariamente – tal como uma TAZ – o quotidiano das
grandes cidades.
Segundo Rheingold, estamos actualmente a passar por uma série de conflitos sociais e políticos
relativos ao modo como as tecnologias que permitem o surgimento de smart mobs serão concebidas e
reguladas, lutas que colocam questões sobre como iremos viver nas próximas décadas. Essas
tecnologias estão já disponíveis entre nós, mas é necessário que ocorra a sua convergência: pontos de
Internet sem fios em cafés, hotéis e bairros; chips de rádio concebidos para substituir os códigos de
barras em objectos manufacturados; programas online que aproveitam o poder de processamento dos
computadores de milhões de pessoas para procurarem por inteligência extraterrestre; sistemas de
reputação empregues no eBay e no Slashdot111 e redes Peer-to Peer (P2P) de partilha de ficheiros
como o antigo Napster e o Gnutella.
O número de telemóveis com câmaras digitais não tem parado de aumentar nos últimos dois anos. O
mesmo tem acontecido, embora a um ritmo menor, com os aparelhos celulares que incorporam
dispositivos de detecção de localização. Alguns dispositivos móveis de preço económico já dispõem
da capacidade de ler códigos de barras e de enviar e receber mensagens para e de etiquetas de
identIficação por rádio-frequência (RFID – Radio Frequency Identity). Os mais recentes telemóveis
de terceira geração (3G) possuem ligações permanentes, sem fios e em banda larga à Internet. Para
Rheingold, dentro de alguns anos, vários milhões de pessoas nas nações industriais terão com elas na
maior parte do tempo um dispositivo que lhes irá permitir ligar objectos, lugares e pessoas a
conteúdos e processos online. Basta apontar esse aparelho para um livro numa livraria e ver o que é
que pessoas que gostam do mesmo tipo de obras que nós dizem a respeito dele. Ao apontar para um
restaurante, podemos ver os comentários sobre a comida efectuados pelos últimos dez clientes e
deixarmos também a nossa crítica pessoal.
Contudo, por detrás destas tecnologias existe o perigo de que o novo ambiente mediático seja
possuído e controlado por uma minoria de operadores por cabo e empresas de telecomunicações ou
ainda pelo Estado, isto é, entidades extremamente poderosas que poderão impôr as formas como as
gerações futuras irão comunicar entre si em movimento. Já desde há alguns anos que os
conglomerados dos media e as agências governamentais dos países mais desenvolvidos têm vindo a
tentar – muitas vezes com êxito – reinstaurar o regime da era da radiodifusão em que os clientes da
tecnologia eram privados do poder de criar, restando-lhes apenas a capacidade de consumir. “Será que
111 Site que funciona como forum de discussão do movimento do software livre. Disponível em http://www.slashdot.org. Existe uma versão portuguesa deste fórum, o GilDot, acessível através do endereço http://www.gildot.org.
104
as populações de amanhã irão ser utilizadores, como os proprietários de PCs e criadores de sites da
Web, que tornaram a tecnologia em inovação generalizada? Ou serão consumidores, afastados da
inovação e presos nos modelos tecnológicos e de negócios dos interesses entrincheirados mais
poderosos do mundo?”, questiona Rheingold num artigo publicado na revista científica online
Edge.org (Rheingold, 2002a).
Segundo o investigador brasileiro Júlio Valentim, “as smart mobs são colectivos inteligentes com o
potencial de criar novas maneiras de modular, preencher e ocupar o espaço-tempo. Ou de criar novos
espaços-tempo e modos de se mover neles, segundo outros ritmos e outras velocidades” (Valentim,
2004). Completando o pensamento de Rheingold, afirma que as actuais tecnologias móveis podem
produzir novos modos de acção que irão possibilitar o surgimento de uma mobilidade emergente. Ele
define emergência como sendo “um tipo de mobilidade que escapa ao controlo, pois permite um tipo
de nomadismo intensivo onde o deslocamento ou a mudança é de nível (natureza) e não de
localização. Em vez de passar de um ponto a outro (nomadismo extensivo), permanecendo porém
num mesmo nível, a emergência faz-nos passar para um nível superior, vital, mais apropriado para as
modificações ocorridas no ambiente” (idem). Valentim qualifica as smart mobs de sistemas
emergentes, isto é, “auto-organizáveis e capazes de resolver problemas com o auxílio de multidões de
elementos relativamente básicos”. Esta arquitectura bottom-up (de baixo para cima) contrasta com os
modelos top-down (de cima para baixo) que contam com “uma única ‘divisão executiva’ inteligente,
um líder ou um controlo central e hierárquico”. Nos sistemas emergentes, “nenuma unidade autónoma
consegue por si só realizar todas as actividades necessárias para se atingir a mudança de nível, ou
melhor, a emergência”. Eles caracterizam-se “pela ausência de imposição de controlo centralizado,
pela autonomia dos agentes, pelo elevado grau de interligação e pela existência de uma narrativa não-
linear de parceiros influenciando parceiros” (ibidem).
Este comportamento emergente é um dos traços fundamentais de um dos mais recentes fenómenos da
cibercultura que dá pelo nome de Flash Mob. Este conceito inventado com base no termo e no livro
de Howard Rheingold, refere-se a um grupo de pessoas que são mobilizadas através de mensagens de
email via Internet ou SMS através do telemóvel para se reunirem num local a determinada hora
durante um curto período de tempo de forma a cometer um acto absurdo ou provocador. O tempo e o
local de encontro são anunciados em sites específicos ou na própria mensagem de texto. Como refere
o sociólogo holandês Albert Benschop, “uma flash mob faz algo absurdo e misterioso e dissolve-se
logo em seguida” (Benschop, 2003). Este fenómeno congrega assim grande parte dos aspectos
relativos às metáforas da táctica que aqui já referimos, podendo ser ao mesmo tempo uma TAZ, uma
forma de detournement, um rizoma, uma prática de swarming, uma multitude e, é claro, uma smart
mob.
105
Tal como nos movimentos activistas por uma globalização alternativa, o telemóvel representa aqui
um papel essencial de facilitador dos encontros. Neste sentido, como nota Judith A. Nicholson, ao
contrário do modo de utilização tradicional, individual, directa e de um-para-um, estes fenómenos
estabelecem uma comunicação de massas, indirecta, descentralizada de um para muitos (Nicholson,
2005). As mensagens são distribuídas pelos utilizadores via voz ou texto para os seus contactos
solicitando que estes actuem da mesma forma.
O convite para o primeiro evento deste tipo no Reino Unido descrevia uma flash mob como sendo um
encontro inexplicável de um grupo, num local, durante um curto período de tempo”. O termo foi
criado por Sean Savage, no seu blog cheesebikini.com112. Mas segundo Benschop, o sinónimo flash
crowds já tinha sido empregue em 1973 por Larry Niven num conto de ficção científica (Benschop,
2003). Na narrativa, o teletransporte é uma tecnologia comum e barata. Uma flash crowd refere-se a
uma multidão de dezenas de milhares de pessoas sempre à procura de acontecimentos importantes e
sensacionais que, graças a essa tecnologia, consegue ser transportada automaticamente para qualquer
local na Terra onde acabaram de ocorrer acidentes e desastres. O mesmo sociólogo acrescenta ainda
que “na era da Internet, o conceito flash crowd é também empregue como um indicador de um forte
aumento no número de utilizadores que estão a tentar aceder a um determinado site. Isto ocorre
normalmente quando aí é publicada uma notícia ou história importante e nova” (idem).
As primeiras flash mobs não tinham qualquer objectivo intencional ou sério. Tratavam-se apenas de
iniciativas experimentais conduzidas pela Internet e telemóveis para organizar grupos de pessoas que
apareciam subitamente em espaços públicos para fazer algo engraçado, desaparecendo com a mesma
velocidade com que se juntavam. Mas Benschop acredita que a flash mob poderá servir como um
modelo para o activismo político do futuro. “O que começou como uma brincadeira de Verão levada a
cabo por cibernautas e como uma experiência em mobilização virtual poderá tornar-se num novo
fenómeno político”, afirma (ibidem). Porém, Nicholson assinala que muitos flash mobbers realçarem
o facto de que se tratava de um fenómeno apolítico, sem líderes, que não pretendia responder a
qualquer questão e não tinha uma agenda específica, sendo um dos seus principais lemas a frase "o
poder de muitos em busca de nada" (Nicholson, 2005). Daí que alguns argumentem que "o
movimento foi destruído por pessoas que o apropriaram para os seus próprios motivos políticos ou
comerciais" (idem). Ao mesmo tempo, esta autora afirma como óbvio que "desde o início o fenómeno
foi fortemente orientado" pelos seus representantes e criadores (ibidem).
Em pouco mais de dois meses do ano de 2003, o movimento espalhou-se por todo o mundo. Segundo
112 Site disponível em http://www.cheesebikini.com.
106
Benschop, a primeira flash mob deu-se a 3 de Junho de 2003, em Nova Iorque, por iniciativa de Bill,
um homem de 28 anos que prefere manter o seu último nome no anonimato (Benschop, 2003). Para
organizar o evento, Bill enviou emails a amigos (e aos amigos destes) indicando-lhes que visitassem
um determinado site da Web, de forma a sincronizar os seus relógios. Depois de terem feito isto,
disse-lhes para se juntarem em quatro bares de Manhattan. Os que nasceram nos primeiros três meses
do ano encontraram-se num bar, os nascidos em Abril, Maio ou Junho reuniram-se noutro e
sucessivamente.
Num email enviado a Benschop, Bill explica que ao organizar a primeira flash mob, tinha em mente
criar uma série de ‘multidões (mobs) inexplicáveis’: “A ideia que apenas através de viva voz, um
enorme grupo de pessoas se pode juntar por nenhuma razão de qualquer tipo.” (idem). Para este nova-
iorquino, as flash mobs tiram partido do desejo de escapar do mundo virtual da Internet e de fazer
parte de um underground electrónico do mundo local. “Não se trata de um movimento, mas de um
pré-movimento. As pessoas compreendem intuitivamente que coisa poderosa é transformar de um
modo rápido e surpreendente um espaço físico”, salienta (ibidem).
Poucas semanas depois, a 17 de Junho, 200 pessoas juntaram-se no nono piso do armazém comercial
Macy’s, também em Nova Iorque, na secção de tapetes, aparentando pertencerem a uma mesma
comunidade simulada. Aí perguntaram a um assistente da loja sobre a existência de um tapete oriental
que pretendiam utilizar na sua comuna ficcional como um ‘tapete do amor’. No Central Park,
centenas de flash mobbers juntaram-se e começaram a fazer sons surrealistas de aves. Em Dallas,
cerca de 40 pessoas reuniram-se num novo centro de entretenimento, tendo tomado posições debaixo
de balões vermelhos e azuis. Precisamente às 7h43m, o grupo vermelho começou a gritar “Marco!” e
o grupo azul respondeu gritando “Polo!”. Na segunda semana de Junho, ocorreu a primeira flash mob
no Japão, mobilizada através do site ni channel113. Fãs do filme The Matrix Reloaded organizaram
uma perfomance pública sincronizada em que todos os participantes estavam vestidos com um fato
preto imitando o personagem agente Smith. Na Europa, a primeira multidão convocada pela Internet e
telemóveis juntou-se em Roma a 24 de Junho desse mesmo ano. Mais de 300 pessoas entraram numa
grande loja de livros e discos e perguntaram aos funcionários se tinham disponíveis livros não-
existentes de autores inventados. Na Suiça, os flash mobbers formaram um longo cordão humano na
estação de comboios de Zurique, divindo-a em duas partes. Antes de formarem o cordão, perguntaram
aos transeuntes se “eram a pessoa de que estavam à procura”. Benschop refere ainda que o país onde
as flash mobs se tornaram mais populares foi na Alemanha.
Em Portugal, a primeira mobilização, marcada para 15 de Setembro de 2003, revelou-se um autêntico
113 Site disponível em http://www.2ch.net.
107
fracasso. A flash mob tinha sido convocada através do site Flashmobpt114, por Lucas, um brasileiro de
37 anos profissional de telecomunicações. O objectivo inicial era que os manifestantes se juntassem
numa paragem de autocarro em frente à Assembleia da República, em Lisboa, às 15h30m e depois
fizessem uma vaia, aplaudissem e dissessem adeus, partindo quatro minutos depois. Mas à última da
hora, a forma de actuar foi alterada, esperando-se apenas dos participantes que ficassem a olhar para o
Parlamento durante alguns segundos, gritando em seguida “Yes!”. Contudo, apenas três pessoas
participaram da iniciativa, tendo acorrido ao local uma dezena de curiosos e vários jornalistas.
Apesar do fracasso desta primeira iniciativa, uma flash mob mais recente de cariz político conseguiu
reunir mais de 2500 pessoas. Convocada por SMS para 27 de Junho de 2004, a mobilização visava
protestar contra a nomeação de Santana Lopes para primeiro-ministro, na sequência da saída de Durão
Barroso do cargo de chefe de governo para presidente da Comissão Europeia. “Todos a Belém no
domingo [amanhã], às 19h00, contra Santana Lopes primeiro-ministro! Abaixo um Governo da
‘treta’! Envia este sms a toda a gente, já!”, anunciava a mensagem SMS não identificada (Soares,
2004). Deste modo, pretendia-se influenciar o Presidente da República Jorge Sampaio, de modo a que
não nomeasse Santana Lopes e convocasse eleições antecipadas. Embora a decisão de Sampaio não
tenha ido de encontro aos desejos dos manifestantes115, esta foi a primeira ‘multidão inteligente’ com
fins políticos a acontecer em Portugal. Um dos casos em que se demonstrou o potencial de força
política das smart mobs deu-se em Espanha, após os atentados de 11 de Março em Madrid. Após a
difusão de rumores de que o anterior governo de José Maria Aznar teria enganado deliberadamente a
comunicação social e a população ao difundir a tese de que a organização terrorista basca ETA estaria
por trás dos atentados, afastando qualquer possibilidade do envolvimento de gupos radicais islâmicos,
foi convocada por SMS uma manifestação em frente à sede do Partido Popular, até então no governo,
para exigir que fosse divulgada a verdade. Nesta flash mob política, estiveram presentes vários
milhares de espanhóis, tendo-se a mobilização alargado a outras cidades do país.
Estes exemplos revelam que os flash mobbers estão a começar a organizarem-se melhor. Existem
vários sites locais e regionais onde qualquer pessoa interessada se pode informar sobre as actividades
das flash mobs, de novas mobilizações, para além de poder se envolver em discussões sobre novas
acções possíveis. De acordo com Benschop, as flash mobs parecem ter sobrevivido à moda inicial do
Verão de 2003, enquanto experiências frívolas e sem significado em grande escala possibilitadas
pelas tecnologias digitais de comunicação, “tendo-se tornado numa técnica de auto-organização que 114 Em Setembro de 2004, encontrava-se ainda dispoível em http://www.flashmobpt.blogger.com.br. Contudo, em
Novembro de 2005 já se encontrava offline. A página inicial de 30 de Setembro de 2004 está acesssível em arquivo no endereço http://web.archive.org/web/20040930122623/http://www.flashmobpt.blogger.com.br/.
115 A 9 de Julho desse ano, Sampaio anunciava a sua decisão de dar posse a um novo governo PSD/CDS-PP liderado por Santana Lopes (ver http://www.presidenciarepublica.pt/pt/cgi/noticias.pl?ver=discursos&id=1109). Contudo, a 10 de Dezembro o Presidente decide convocar eleições antecipadas para 20 de Fevereiro de 2005 que viriam a ser ganhas pelo Partido Socialista de José Sócrates (ver http://www.presidenciarepublica.pt/pt/cgi/noticias.pl?ver=discursos&id=1188 ).
108
irá inevitavelmente ser empregue para outros fins e por diferentes grupos”. Este sociólogo prognostica
que “dentro em breve, as flash mobs serão incluídas no repertório de acções dos movimentos sociais,
dos partidos políticos que pretendem mobilizar os seus apoiantes em campanhas eleitorais e de
empresas que desejam vender os seus produtos e serviços a clientes”. Na sua opinião, “a ideia de que
centenas, milhares ou milhões de pessoas são secretamente mobilizadas mediante tecnologias
electrónicas para aparecerem algures de parte nenhuma sem aviso é ao mesmo tempo bastante
inspiradora e aterrorizadora”.
Opinião completamente diferente tem Judith A. Nicholson, para quem, apesar de ainda se
organizarem ocasionalmente algumas flash mobs, estas foram um fenómeno de moda, de curta
duração e deliberadamente efémero que teve o seu fim oficial após o oitavo evento deste tipo
realizado em Nova Iorque, a 10 de Setembro de 2003 (Nicholson, 2005). Isto não obstante a
campanha de popularização efectuada pelos blogs e pelos media comerciais durante esse Verão,
adianta (idem). Fazendo uma comparação com a arte de perfomance dos situacionistas e do Fluxus,
acrescenta que as flash mobs "escanrracharam as fronteiras entre o espectáculo, o activismo, o
experimentalismo e as partidas"116 (ibidem).
116 É de notar que Nicholson estabelece uma ligação com o evento do "tapete do amor" organizado em Junho de 2003 em Nova Iorque e uma performance de 1963 do Fluxus intitulada "Manifestação por um Realismo Capitalista" numa loja de mobiliário de Dusseldorf.
109
5 – Práticas de Media Tácticos
5.1 – Culture Jamming: Guerrilha Semiológica
A confusão deve ser considerada uma estética aceitável. O momento da confusão é a pré-condição para o surgimento do cepticismo necessário ao pensamento radical.
- Critical Art Ensemble, The Electronic Disturbance.
O principal objectivo é ridicularizar o poder, revelar a sua natureza corrupta com a linguagem simbólica mais bela, agressiva e poderosa e depois recuar de forma a dar espaço para que as mudanças se implantem.
- Geert Lovink e Florian Schneider, “New Rules of The New Actonomy”.
Uma das vertentes práticas de media tácticos é o Culture Jamming. Trata-se de um conjunto de
técnicas de intervenção e de sabotagem cultural destinadas essencialmente a derrubar os media
comerciais. Estas técnicas podem ir desde a alteração de anúncios e cartazes publicitários de grandes
empresas transnacionais à realização de eventos de rua (Lasn, 1999; Klein, 2000; Jordan, 2002;
Meikle, 2002). O objectivo é sempre, de acordo com Tim Jordan “reverter e transgredir os
significados de de códigos culturais cujo principal fim é persuadir-nos a comprar algo ou a ser
alguém” (Jordan, 2002: 102). “Os culture jammers – apelido pelo qual são conhecidos os praticantes
deste tipo de iniciativas – implementam as técnicas actualmente identificadas com uma estética pós-
moderna: apropriação, colagem inversão irónica e juxtaposição”, refere Graham Meikle que salienta a
grande influência da Internacional Situacionista de Guy Debord das décadas de 50 e 60 nos seus
trabalhos (Meikle, 2002: 131). De facto, ecoando o pensamento situacionista, Kalle Lasn, fundador da
Adbusters, uma agência anti-comercial responsável por algumas das obras mais conhecidas deste
movimento, refere no seu livro Culture Jam que “o culture jamming é, na sua origem, uma metáfora
para interromper o fluxo do espectáculo o tempo suficiente para vos fazer ajustar o vosso aparelho”
(Lasn, 1999: 107).
O culture jammer Jonah Peretti define a sua actividade como sendo “uma estratégia para virar o poder
empresarial contra si próprio, ao cooptar, ao fazer hacking e ao escarnecer os significados. Para as
pessoas habituadas à política tradicional, o culture jamming pode parecer confuso ou mesmo contra-
produtivo” (Peretti, 2001). Isto deriva do facto desta prática de media tácticos proceder
deliberadamente mediante a geração de confusão, a mesma confusão a que a epígrafe da autoria dos
Critical Art Ensemble que inicia este ponto faz referência. Mas, como nota Meikle, estamos também
perante um mediactivismo auto-reflexivo que emprega os media para chamar a atenção para questões
e problemas dos próprios media, acentuando a reflexão sobre a literacia mediática ao “transformar
símbolos familiares em pontos de interrogação” (Meikle, 2002: 132).
110
Tirando partindo da possibilidade que a empresa norte-americana Nike de produtos desportivos
oferece aos seus clientes de personalizarem os seus ténis com palavras ou slogans através do seu site -
um serviço criado para associar a marca Nike com a ideia de liberdade de escolha e de expressão de
cada um -, Jonah Peretti encomendou em 2001 um par de sapatos desportivos solicitando que
tivessem inscritos a palavra sweatshop117. Desta forma, ele estava assim a solicitar à Nike que o
ajudasse a protestar contra as suas próprias práticas laborais baseadas na exploração de trabalhadores
em fábricas asiáticas da responsabilidade de empresas sub-contratadas. O seu objectivo foi
“redireccionar a máquina publicitária da Nike contra a companhia que era suposto promover” (Peretti,
2001). A companhia recusou a encomenda. Mas Peretti não desistiu facilmente, tendo trocado
dezenas de emails com representantes da Nike. Esta iniciativa foi um exemplo de culture jamming em
acção, tendo-se difundido a um ritmo exponencial junto das redes de activismo táctico. Peretti enviou
a uma dúzia de amigos um email contendo todas as mensagens relativas ao seu pedido junto da Nike e
estes reenviaram-no a outros, tendo-se espalhado rapidamente por todo o mundo, “como se fosse um
vírus”, nas suas próprias palavras. Estima-se que esta comunicação ‘viral’ tenha atingido entre várias
centenas de milhares e 15 milhões de pessoas por todo o globo.
Os códigos culturais que os culture jammers contestam podem constranger-nos a comprar um
determinado produto ou a criar artificialmente desejos e necessidades colectivas. Segundo Tim
Jordan, são grandes empresas como a Nike e os Estados nacionais que detêm e controlam os códigos
culturais do consumo, financiando-lhes com montantes extremamente elevados. “Estes códigos visam
gerar formas de vida, identidades e necessidades humanas que servem os seus criadores. Tais
tentativas de conceber as nossas vidas através de formas que vão de encontro não às nossas
necessidades (...), mas às necessidades de, por um lado, empresas cujo objectivo fundamental é obter
lucros e, por outro, de estados cujo fim principal é controlar os seus cidadãos, podem ser resistidas”,
argumenta (Jordan, 2002: 102). Esta resistência procede através da subversão dos códigos. Os culture
jammers partem de uma visão de desastre cultural, segundo a qual “os códigos corporativos e estatais
passaram a dominar, constituem hoje grande parte dos cenários dos nossos desejos, recreando e
moldando explicitamente e com demasiado êxito as nossas paixões às suas necessidades” (idem: 103).
Para alterar esta situação, tornam estas linguagens mercantilizadas e de controlo social - que muitas
pessoas ‘falam’ fluentemente e de modo inconsciente - contra si próprias. Deste confronto, esperam
remover esta relação de subordinação e dar espaço para o surgimento de novas linguagens com que os
indivíduos e as comunidades possam definir as suas próprias necessidades e desejos.
117 Loja ou fábrica que explora os empregados com horas excessivas de trabalho por baixos salários e em más condições ambientais. Este tipo de instalações é bastante comum em países asiáticos como a China, Filipinas e Indonésia, e em alguns países da América Latina, como o México.
111
O culture jamming propaga ideias através da subversão irónica das ideias familiares captadas pela
cultura popular e pelos memes comerciais. Mas, como refere Lance Bennet (2003: 32), a ideologia
também recorre a memes, só que contextualiza-os de forma a promover interpretações comuns.
“Quando os membros de movimentos ideológicos diferem na sua interpretação dos principais memes,
o resultado é quase sempre a segmentação ou divisão em facções”, refere Bennet (idem). É neste
contexto que Kalle Lasn fala de guerra de memes. Na sua acepção, os memes são “unidades de
informação que saltam de cérebro para cérebro” (Lasn, 1999: 123). Ele acredita que os memes mais
poderosos “podem mudar mentes, alterar comportamentos, catalizar estados de espírito colectivos e
transformar culturas” (idem). Para Lasn, a batalha dos memes consiste numa guerra de infomação do
tipo guerrilha travada entre duas visões alternativas do futuro.
Os actos individuais de culture jamming costumam designar-se de Terrorismo Semiótico, de acordo
com Tim Jordan (2002: 104). O termo semiótico, derivado de semiótica ou semiologia - ciência que
analisa teorica e empiricamente o modo como os símbolos funcionam e o que significam -, refere-se
aqui “a todo o terreno simbólico de luta”, na medida em que “os actos de culture jamming existem no
interior de sistemas de símbolos”. Dentro do campo do activismo político, “semiótico refere-se a
símbolos individuais, como uma imagem num cartaz publicitário, e aos códigos de significação de
que os símbolos individuais fazem parte, como as várias convenções relativas à produção e
visualização de anúncios”, explica Jordan (idem). No mesmo sentido, na sua obra No Logo, Naomi
Klein afirma que os culture jammers estão a criar um clima de Robin Hoodismo semiótico” (Klein,
2000: 280). Jordan acrescenta que o culture jamming pretende “‘aterrorizar‘ os símbolos e códigos
que constituem a semiologia que subordina os nossos desejos aos imperativos corporativos e
estaduais” (Jordan, 2002: 117). Apesar de afirmar que este terrorismo não implica o derramamento de
sangue, “dado que são os símbolos que são alvo de atentados e não os semiólogos”, podemos
constatar aqui mais uma vez o poder que a metáfora e a mística do terrorismo detém junto dos
praticantes de media tácticos. Outro exemplo é o facto de Naomi Klein enumerar como uma das
actividades de culture jamming o ‘sequestro’ de cartazes públicitários para se referir à transformação
radical das suas mensagens (Klein, 2000: 280). “O poder de um momento efectivo de terrorismo
semiótico assenta na utilização da mesma linguagem que está a ser criticada”, complementa Jordan
(2002: 104). Este autor considera que “um bom acto de terrorismo semiótico começa por minar
directamente um determinado alvo, retirando de seguida as linguagens através das quais são vendidas
mensagens a nós, o público, do seu normal estado ilusório e tornadas explícitas”. Assim, “quando
ocorre uma disjunção entre a mensagem e o medium, o próprio medium torna-se objecto de discussão”
(idem).
A "guerrilha semiológica" foi antecipada por Umberto Eco num artigo de 1967 com o mesmo nome
112
reunido depois no livro "Viagens na Irrealidade Quotidiana". O sociólogo italiano propunha uma
táctica devia explorar o facto de que "quem recebe a mensagem parece ter uma liberdade residual: a
de ler de um modo diverso" (1993 [1986]: 123), de modo a "levar a audiência a controlar a mensagem
e as suas múltiplas possibilidades de interpretação" (idem: 128). Um exemplo que Eco dá é a
utilização de um medium "para comunicar uma série de juízos sobre outro medium (...) O universo da
comunicação seria atravessado então por grupos de guerrilheiros de comunicação que reintroduziriam
uma dimensão crítica na recepção passiva" (ibidem). Esta perspectiva pode ser vista como equivalente
ao papel de crítica desempenhado desde os anos 90 pelos watchdogs dos meios de comunicação de
massas como o norte-americano FAIR ou, numa lógica de maior confronto directo, com o tipo de
distorção da mensagem provocado pelos cultural jammers118.
De acordo com Naomi Klein, “o termo ‘culture jamming’ foi inventado em 1984 pela banda de audio-
colagem de São Francisco Negativland” (Klein, 2000: 281), para se referir à alteração de cartazes
publicitários e outros actos de sabotagem dos media. Já no que toca a identificar as origens deste
movimento, Klein afirma que é uma tarefa “quase impossível, em grande parte porque a prática é ela
própria um corte e colagem do graffiti, da arte moderna, da filosofia Punk do-it-yourself e da tradição
secular de pregar partidas” (idem: 282). Foi com um panfleto de 1993 do crítico cultural Mark Dery
que o termo passou a ser mais utilizado (Dery, 1993). Dery identifica aí as várias formas que o
culture jamming assumiu no contexto do mediactivismo: trapaçaria, agitprop áudio, banditismo de
placards publicitários, semiótica de guerrilha. Ele insere esta prática numa tradição que abrange os
samizdats russos, o détournement situacionista, o jornalismo marginal dos radicais dos anos 60, as
religiões falsas119, a sabotagem dos locais de trabalho, a guerrilha de sabotagem ecopolítica do
colectivo Earth First! e a utilização para fins insurrecionais da técnica de colagem cut-up proposta por
William Burroughs e outros. Nos termos de Dery, o culture jamming envolve tudo o que mistura arte,
media, paródia e uma postura de marginal.
118 De notar que Eco faz uma distinção pertinente entre estratégia e tácticas de guerrilha no campo do protesto político mais de uma década antes de Michel De Certeau ter elaborado a sua teoria. A abordagem estratégica actua junto dos canais de comunicação estabelecidos no sentido de modificar o seu conteúdo, numa tentativa de alterar os seus efeitos junto da audiência, ao passo que a táctica pretende "discutir a mensagem à chegada" através de sistemas alternativos de comunicação capazes de chegar a todo o público. Eco considera que a estratégia tem mais dificuldades em ser bem sucedida uma vez que, para ele, " a batalha pela sobrevivência do homem como ser responsável na Era da Comunicação não se vence lá de onde a comunicação parte mas lá onde chega" (1986: 127). Como iremos referir mais à frente, Baudrillard questiona também o desempenho das tácticas (1995 [1972]).
Trinta anos mais tarde, o grupo alemão autonome a.f.r.i.k.a irá repegar no conceito de comunicação de guerrilha em "What About Communication Guerrilla?" enquanto "acção directa no espaço da comunicação social", que pretende "distorcer e desfigurar os significados dos códigos e signos do poder e controlo como um modo de contrariar a tagarelice omnipotente do poder", ao contrário de outras práticas militantes que procuram destruir essas mensagens. Ver Bosma, Josephine et al. (1999), Readme! Filtered by Nettime: ASCII Culture and The Revenge of Knowledge, Nova Iorque, Autonomedia, pág. 311. Disponível em http://www.medialounge.net/lounge/workspace/nettime/DOCS/zkp5/pdf/local.pdf.
119 Paródias de religiões, seitas ou cultos, como a religião ficcional Jedi, relativa à saga cinematográfica Guerra das Estrelas.
113
De acordo com Naomi Klein, a táctica de utilizar os cartazes publicitários como arma de activismo
data já dos anos 70 (Klein, 2000: 282). O grupo Billboard Liberation Front120 de São Francisco foi
criado em Dezembro de 1977 por Jack Napier e Irving Glikk. Um dos seus trabalhos mais
emblemáticos data de Outubro de 78, quando decidiram ‘melhorar’ um cartaz publicitário da marca
de cigarros Camel ao ‘vestir’ um soutien rosa ao The Turk, uma figura masculina de bigode e semi-
nú, “muito anos 70: macho, com o peito à mostra, olhar de durão; um verdadeiro disco inferno”
(Napier, 1998), fumando e com uma mulher atraente ao seu lado olhando para ele com admiração. Na
Austrália, o grupo BUGA UP (Billboard Utilising Graffitists Against Unhealthy Promotions)121
actuou bastante nos anos 70 e 80 sobretudo contra anúncios de companhias de tabaco. Em 1983, o
montante de danos provocados pelas suas acções nos cartazes publicitários de cigarros na zona de
Sidney ascendia a um milhão de dólares. Mais recentemente, este movimento alastrou-se à França,
onde o colectivo Stopub122 se especializou na alteração de painéis publicitários no metro de Paris. Para
conter esta ‘vandalização’ crescente da ordem publicitária, a RATP, empresa responsável pelo metro,
decidiu deter selectivamente 62 activistas no final de 2003, exigindo um milhão de euros em
indeminizações (Brune, 2004).
Mas os Adbusters123 são actualmente o colectivo de culture jamming mais famoso. Este grupo foi
criado em 1989 em Vancouver, Canadá, com o apoio da Media Foundation, depois de Kalle Lasn ter
tentado sem êxito comprar um tempo de antena em várias televisões para a transmissão de uma
mensagem activista protestando contra uma campanha publicitária televisiva da indústria canadiana
de abate de árvores. Nesse mesmo ano, foi lançado o primeiro número da revista trimestral Adbusters.
Outra actividade deste grupo é a criação de produção de ‘anti-comerciais’ para televisão que acusam a
indústria de produtos de beleza de provocar desordens alimentares, atacam o consumismo em excesso
dos norte-americanos e apelam às pessoas que passem a andar de bicicleta em vez de carro. Todas as
grandes televisões privadas norte-americanas e canadianas (excepto a CNN) recusam-se a transmitir
os seus anúncios (Klein, 2000: 287). A revista e o site dos Adbusters abordam as acções de culture
jamming e do mundo empresarial, noticiando eventos e analizando a luta para transgredir os códigos
empresariais.
Grande parte da actividade do grupo centra-se na produção de imitações satíricas com qualidade
profissional de anúncios conhecidos que são publicados na revista ou online. Num deles, aparece
Ronald McDonald - personagem emblemática da empresa norte-americana de hambúrgueres – com
um autocolante contendo a palavra ‘Grease’ (Gordura) a tapar a boca. Outro alvo tradicional dos
Adbusters é a Absolut Vodka, famosa pela sua série de anúncios em que a palavra ‘Absolut’ surge
120 Site disponível em http://www.billboardliberation.com121 Site disponível em http://203.41.215.172. 122 Site disponível em http://209.167.42.61.123 Site disponível em http://www.adbusters.org.
114
associada a outra, indicando características da bebida alcoólica, como ‘Fun’ (Diversão). Os Adbusters
produzem anúncios que parecem ter origem na mesma série, com slogans como ‘Absolut Impotence’
(Impotência Absoluta), incluindo a imagem de uma garrafa de vodka flácida e encurvada ou ‘Absolut
End’ (O Fim Absoluto), contendo a forma de uma garrafa desenhada no chão a giz como a de um
cadáver num local de crime. A Smirnoff, outra companhia de bebidas alcoólicas, possui uma série de
anúncios incluindo imagens repetidas, uma das quais é alterada ao ser observada através de uma
garrafa. Num caso, uma série de participantes de uma festa com ar de aborrecidos é interrompida por
uma festa de arromba vista através de uma garrafa. Os Adbusters mudaram o nome da empresa para
Smirkoff num anúncio com crianças sorridentes, excepto aquela que é vista através da garrafa e que
foi mal-tratada. Um anúncio fraudulento destinado a gozar com a campanha ‘Obsession’ da Calvin
Klein integra uma modelo bulímica nua inclinada sob o bidé de uma casa de banho.
Alguns culture jammers, no entanto, não compartilham esta atitude moralista dos Adbusters,
criticando a sua postura tradicionalmente anti-álcool, anti-tabaco e anti-fast food por revelar um
puritanismo antiquado que pouco tem a ver com a desobediência civil da era da informação, centrada
no combate táctico ao poder das marcas e da ‘colonização cultural' (Klein, 2000: 293). Esta
mentalidade revela uma desconfiança face às massas e à sua capacidade de “controlar os seus próprios
desejos”, como afirma Dery em entrevista a Naomi Klein. Existe também uma tensão nos Adbusters
resultante da mistura de abordagens tácticas e alternativas - através da realização de campanhas de
mobilização que envolvem desde o Greenpeace a simpatizantes e apoiantes individuais espalhados
por todo o mundo, como o Buy Nothing Day ou a TV Turnoff Week. “Na sua insistência de que os
media dominantes transformam as suas audiências em imbecis anestesiados – ‘Uma Las Vegas da
mente’ – os Adbusters minam todo o seu projecto”, nota Graham Meikle (2002, 138), que pergunta
como é que os membros da própria comunidade dos Adbusters podem ser ao mesmo tempo críticos
culturais sofisticados e activos – culture jammers - e marionetas das empresas. Este autor assinala
que a própria existência deste grupo é a prova de que o poder exercido pelas empresas junto dos
media está bastante longe de ser total e que “o controlo dos meios de produção não é o mesmo que o
controlo da produção de sentido” (idem: 139).
Isto não impede, todavia, o mundo corporativo de recuperar as técnicas dos culture jammers para
aumentarem as suas vendas e melhorar a sua imagem. Em França, após a detenção pela RATP dos 60
activistas anti-publicidade, os media deram um grande destaque ao movimento. No entanto, apesar de
transmitirem uma imagem positiva do Stopub, os jornalistas limitaram-se a tratar a questão como se
fosse um fenómeno, uma moda passageira. Em reacção a esta popularidade mediática dos colectivos
antipublicidade, a RATP optou por responder com uma manobra de relações públicas, “anunciando
em Março de 2004 que ia disponibilizar, durante uma semana, 47 painéis (ou seja, 10 milésimas
115
partes da sua afixação publicitária anual) à ‘livre expressão’ dos artistas de toda a espécie" (Brune,
2004). Tratava-se assim de oferecer painéis publicitários aos ‘antipublicitários’. Pouco tempo depois,
a associação Agir pour l’environnement congratulou-se por ter comprado à empresa Metrobus alguns
espaços publicitários para denunciar a ‘poluição publicitária’ (idem).
Na verdade, como afirma Tim Jordan, “o potencial para a recuperação está sempre presente quando se
decide utilizar a linguagem do inimigo para subverter o inimigo” (Jordan, 2002: 115). Segundo este
autor o culture jamming nunca deixará de ser ambíguo: “A questão de saber se a sua tentativa de
actuar com as ferramentas do seu inimigo o compromete fundamentalmente enquanto táctica política
permanecerá sempre em aberto” (idem: 117). Para além disso, salienta que “mesmo aceitando que não
existe uma alternativa simples às linguagens do desejo comercial e estadual, fica por esclarecer se o
culture jamming oferece uma via para além destas linguagens ou se é potencialmente mais uma visão
delas” (ibidem, 117). Por mais êxito que os jammers e as suas acções consigam atingir, “o espectro da
recuperação nunca será completamento removido da política do culture jamming. Ao adoptar estas
linguagens e subvertê-las, o culture jamming corre o risco de tornar o Império dos Signos (criado
pelas empresas e pelos estados) ainda mais invencível “ (ibidem). Podemos assim concluir que, tal
como em todos os media tácticos, “a esperança e o risco correm aqui lado a lado”, entre a resistência e
a cooptação.
116
5.2 - Hacktivismo: O Contra-poder do Ciberespaço
O Hacktivismo consiste na utilização de argumentos mais eloquentes – em código ou palavras – para construir um sistema mais perfeito. Ninguém se torna num hacktivista simplesmente por inserir um ‘h’ em frente da palavra activista ou olhando para paradigmas do passado associados à organização industrial.
- Oxblood Ruffin, ‘Ministro dos Negócios Estrangeiros’ dos hackers Cult of the Dead Cow
Resultando da fusão entre as palavras hacking e activismo, o termo hacktivismo foi criado pelo grupo
de hackers de Boston Cult of the Dead Cow (CDC)124, cujo lema é “We put the hack on activism” –
‘Colocamos o hack no activismo’. Para este colectivo, o hacktivismo está ligado à “utilização da
tecnologia para promover os direitos humanos através de media electrónicos” (Cult of the Dead Cow,
2001). Em termos sucintos, trata-se de uma forma de hacking com motivações políticas (Jordan,
2002: 119). Segundo Jordan e Taylor (2004: 1), representa “a emergência da acção política popular,
da auto-actividade de grupos de pessoas, no ciberespaço”. Da mesma forma que o hacking se refere a
soluções inovadoras de problemas tecnológicos, o hacktivismo pode ser definido como um tipo de
activismo político que “procura soluções no software, em busca de um arranjo tecnológico específico
para um problema social”, de acordo com Graham Meikle (2002: 141).
A teoria que serve em grande parte de base ao hacktivismo foi introduzida em 1994 pelo Critical Art
Ensemble (CAE) num panfleto intitulado Electronic Civil Disobedience125, onde o colectivo artístico
apela à realização de uma acção permanente de Desobediência Civil Electrónica e à politização dos
hackers. Do seu ponto de vista, o poder e o capital estavam então a transferir-se de locais físicos para
espaços virtuais, deixando de assumir formas vísiveis e sedentárias para adoptar um perfil abstracto e
nómada. As elites estavam assim crescentemente a construir e a reconstruir o mundo através de fluxos
electrónicos de poder, ou seja, através do ciberespaço. Por isso, o CAE propunha às forças de
contestação social que reinventassem as tácticas de bloqueio e cerco desenvolvidas pelos movimentos
de desobediência civil e as aplicassem a esse novo domínio virtual. Tendo em conta que o poder
advém cada vez mais de fluxos de informação do ciberespaço – dinheiro circulando através de
sistemas financeiros globais -, os membros do CAE acreditavam que era possível bloquear esses
fluxos.
Em 1998, a Desobediência Civil Electrónica deixou de ser apenas uma teoria ao ser aplicada na
prática através de uma iniciativa de acção directa online concretizada pelo grupo de activistas
Electronic Disturbance Theater (EDT)126, fundado por Ricardo Dominguez com vista a apoiar o
124 Site disponível em http://www.cultdeadcow.com.125 Posteriormente, em 1996, este ensaio seria integrado no primeiro capítulo de um livro do CAE, precisamente
intitulado Electronic Civil Disobedience and Other Unpopular Ideas, publicado pela editora Autonomedia de Nova Iorque. A versão online está disponível em http://www.critical-art.net/books/ecd/index.html.
126 Site disponível em http://www.thing.net/~rdom/ecd/ecd.html.
117
movimento Zapatista em defesa da luta da população indígena de Chiapas contra a opressão do
governo mexicano (Wray, 1998; Denning, 2001; Jordan, 2002; Meikle, 2002; Jordan e Taylor, 2004;
Vegh, 2003). Esta iniciativa foi uma forma de reacção ao massacre ocorrido em Dezembro de 1997,
na localidade de Acteal, em Chiapas, onde foram assassinadas 45 pessoas por paramilitares apoiados
pelo Estado.
Anteriormente, o Zapatismo tinha já sido um dos primeiros grupos de activismo político a tirar
partido da Internet para a comunicação externa do movimento (Jordan e Taylor, 2004: 93-95). Os
comunicados do Subcomandante Marcos foram distribuídos mundialmente através de redes sociais de
apoio formadas por activistas em países dotados de capacidades mais avançadas de comunicação. Em
The Power Of Identity, o segundo volume da sua trilogia The Information Age, Manuel Castells
refere-se ao Zapatismo como “o primeiro movimento de guerrilha informacional” (Castells, 1997:
79). Os seus elementos criaram um evento mediático para tentar evitar ao máximo uma guerra
sangrenta. Alguns autores foram até mais longe do que Castells na caracterização do Zapatismo. É o
caso de Graham Meikle que o apelida de movimento de guerrilha culture jamming, constituindo, na
sua opinião, “um détournement engenhoso da retórica e imagem prevísivel – e, por isso, controlável -
das rebeliões” (Meikle, 2002: 145). Outro autor, Sandor Vegh, afirma que o movimento Zapatista foi
“talvez o primeiro exemplo popular de hacktivismo” (Vegh, 2003: 76).
Durante o ano de 1998, os membros do EDT Carmin Karasic e Brett Stalbaum criaram o software
FloodNet, um applet127 escrito na linguagem Java que faz com que um browser recarregue
constantemente o site de um opositor. Por várias vezes, o EDT apelou à participação em massa nos
seus sit-ins virtuais contra o governo mexicano, concretizados através da utilização do FloodNet. A
ideia era congestionar o servidor que aloja o site com um enorme volume de tráfego, de modo a que
ele não pudesse dar resposta a mais pedidos e bloqueasse o acesso a outros visitantes. Contudo, foram
raras as ocasiões em que tal aconteceu, ocorrendo na maior parte das vezes apenas uma lentidão no
acesso ao site.
A 9 de Setembro de 1998, o EDT apresentou o seu projecto SWARM – em referência ao conceito de
swarming avançado por Arquilla e Ronfeldt - no Festival Ars Electronica em Linz, Áustria, tendo aí
lançado uma acção FloodNet de apoio aos zapatistas dirigida em simultâneo contra três sites: a
homepage do presidente Zedillo do México, a Bolsa de Valores de Frankfurt e o Pentágono. Apesar
desta iniciativa ter visado bloquear os sites, tal não aconteceu. Contudo, mais de 20 mil pessoas
participaram na acção, tendo esta obtido uma enorme repercussão mediática, chegando até o EDT a
aparecer na primeira página do New York Times de 31 de Outubro de 1998. Após este evento, nesse
127 Componente de software que corre no contexto de outro programa, como, neste caso, um browser da Web.
118
ano seguiram-se vários outros em favor da luta zapatista e contra vários sites do governo mexicano.
Em Janeiro de 1999, o EDT disponibilizou o código do FloodNet na Internet de forma a que se
pudesse efectuar livremente o seu download, tendo sido vários os apelos públicos por parte de
múltiplas organizações activistas para a participação em sit-ins virtuais. Mas como refere Jose Luís
Brea (2002), “o êxito destas acções foi sempre desigual, no que toca à eficácia técnica (em todo o
caso, temporária e, portanto, simbólica), e a sua repercussão mediática foi, logicamente, diminuindo,
uma vez perdido o seu valor de novidade”.
A crítica formulada pelo Critical Art Ensemble em Digital Resistance (2001) às acções do EDT
assenta aliás, nessa questão. Este grupo, responsável pela teoria da Desobediência Civil Electrónica,
argumenta nesse livro que “a estratégia indirecta da manipulação dos media através de um
espectáculo de desobediência com vista a gerar simpatia e apoio junto da opinião pública, é uma
estratégia destinada ao fracasso” (2001: 15). A sua visão de Desobediência Civil Electrónica remete
para uma acção directa, radical, subreptícia e clandestina que deve ser mantida fora da esfera pública
(seguindo a tradição hacker) e não para o tipo de manipulação dos media exercida pelo EDT.
Referindo-se à reacção de medo gerada pela ameaça simulada de sabotagem electrónica e à sua
afirmação anterior de que as agências de segurança ficariam aprisionadas à “hiper-realidade das
ficções criminais e da catástrofe virtual”, o CAE afirma:
Este é um comentário que o CAE desejaria nunca ter feito, já que alguns activistas começaram a tomar-se a sério e estão a tentar actuar de acordo com ele, principalmente utilizando a Rede para produzir ameaças de activismo hiper-reais com o fim de atear o fogo da paranóia dos estados corporação. Uma vez mais , trata-se de uma batalha mediática destinada a ser perdida. (CAE, 2001: 20)
Logo após o desenvolvimento do FloodNet, a comunidade hacker ficou dividida em relação à suposta
eficácia do software, conta Geert Lovink em Dark Fiber (2002: 268): “Os hackers de espírito mais
libertário sugeriram que a ‘inundação’ de servidores empresariais e governamentais não estava a levar
a nenhum lado. Ataques massivos, direccionados ao site inimigo estavam a perder-se pela Rede,
prejudicando sobretudo, desta forma, os fornecedores locais de acesso à Internet. Inicialmente, os
hacktivistas políticos negaram os problemas técnicos apontados pelos hackers e viram grandes
oportunidades de organizar ‘manifestações online’ em que pudessem participar milhares de pessoas.”
Esta polémica aponta para uma divergência existente dentro deste movimento entre os activistas
políticos que vêem o hacktivismo como uma forma espectacular de resistência e sabotagem e hackers
como os elementos do Cult of The Dead Cow que consideram essas actividades de disrupção das
comunicações electrónicas do inimigo como ineficazes e fúteis, mas mais ainda, na maior parte das
vezes, tecnicamente inaptas, explica Patrice Riemens (2002). De acordo com os primeiros, a Internet
119
é como uma auto-estrada da informação e não existe nenhuma razão para que as novas estradas
públicas, tal como as antigas, não possam ser bloqueadas para um protesto – desde que a causa seja
óbvia. Do ponto de vista dos últimos, este tipo de acção directa online desperdiça largura de banda e
coloca em risco a integridade da Rede, um espaço neutral que encaram como livre e aberto, para além
de limitar o acesso à informação (Lovink, 2002: 269-270). Segundo Jordan e Taylor (2004: 96-97),
estes hacktivistas “digitalmente correctos” defendem o direito dos humanos a fluxos livres de
informação. ao passo que o hacktivismo de acção de massas praticado pelo EDT de Dominguez velam
por um conjunto de direitos humanos de primeira ordem, como a saúde, a educação, a alimentação e a
cidadania total.
Antes do surgimento de hacktivistas oriundos do campo do activismo político, como os EDT, os
hackers tinham um programa político mais minimalista, centrada em questões virtuais e de acordo
com a sua própria ética que atribui máxima importância à existência de fluxos livres de informação,
acessíveis a todos de uma forma segura (Riemens, 2002; Jordan e Taylor, 2004: 96-97). Assim, a
política hacker abordava sobretudo a segurança dos sistemas informáticos e as implicações da
segurança na privacidade dos indivíduos. As suas acções práticas consistiam em descobrir formas de
escapar à censura da Rede, recorrendo frequentemente à sua natureza global para fazer fracassar as
tentativas de estados-nação para censurar conteúdos. Contudo, é importante salientar que a
emergência do novo hacktivismo centrado em questões políticas concretas não suplantou ou destruiu
esta vertente mais preocupada com a liberdade de informação e os direitos humanos, ainda hoje
representada por grupos hackers como o CDC e o colectivo alemão Chaos Computer Club128.
O tipo de acções de Desobediência Civil Electrónica a que o EDT dá o nome de virtual sit-in
caracterizam-se por exigir a participação em massa, ou seja, de um elevado número de pessoas,
transformando-as em protestos populares, o que lhes garante “a mesma legitimidade de um protesto
de milhares de pessoas nas ruas”, pois assegura que representa mais do que uma única pessoa ou
grupo, salienta Tim Jordan (2002: 125)129. É neste contexto que se pode compreender a realização
simultânea de protestos offiline e online durante o encontro da Organização Mundial do Comércio
(OMC) em Seattle, no final de 1999. Enquanto os manifestantes ocupavam as ruas, os hacktivistas
ocupavam o site da OMC. Este sit-in virtual foi da responsabilidade do colectivo britânico
Electrohippies (ou ehippies)130. Os seus membros criaram um pequeno software que era inserido numa
página da Web. Qualquer pessoa que decidisse aceder a essa página para participar no protesto
efectuava automaticamente o download de uma cópia do programa e começava a utilizá-lo a partir do
128 Site disponível em http://www.ccc.de.129 Ver também Jordan e Taylor (2004), págs. 69-82, onde os dois autores desenvolvem o trabalho iniciado pelo
primeiro no sexto capítulo de Activism! (2002).130 Este colectivo suspendeu as suas actividades a 5 de Julho de 2002. O seu arquivo online está disponível em
http://www.fraw.org.uk/ehippies/index.shtml.
120
seu computador. O software carregava repetidamente páginas dos servidores da OMC. Se um número
suficientemente grande de cibernautas fossem ao site dos ehippies e, consequentemente, se um
número suficiente de computadores corressem o programa do colectivo, os servidores da OMC seriam
congestionados por pedidos, o que levaria à sua paralização. Esta acção virtual foi organizada em
coordenação com as acções de rua que visavam suspender a conferência da OMC. De acordo com
dados dos ehippies, cerca de 450 mil computadores participaram na acção ao longo de cinco dias e a
rede da WTO paralizou duas vezes, tendo desacelerado significativamente durante grande parte da
conferência (Electrohippies Collective, 2000).
Pode-se apontar duas diferenças entre o FloodNet do EDT e esta acção dos ehippies: a primeira é que,
ao contrário do primeiro, em que os protestantes necessitam de se reunir todos de uma só vez num site
central, nesta última, eles puderam efectuar o download do software e corrê-lo a qualquer altura do
período de duração do protesto. A segunda diz respeito aos objectivos (Denning, 2001: 267).
Contrastando com os ehippies, “o EDT não pretendeu paralizar um site de um opositor; visou, acima
de tudo, efectuar um protesto político, ao tornar mais lento o acesso ao site e assegurando que o
aumento súbito do tráfego de dados estava obviamente relacionado com uma intenção política”
(Jordan, 2002: 123). Este modelo serviu de inspiração a uma acção posterior dos ehippies contra a
cimeira da Área de Comércio Livre das Américas (FTAA), no Quebeque, em Abril de 2001. Com este
protesto, o colectivo britânico tentou “demonstrar que podia ser organizada uma acção online de
forma a exprimir uma mensagem de uma forma directa, em vez de tentar provocar o encerramento
indiscriminado de um site”131.
Apesar de possibilitarem a participação de pessoas que não podem estar fisicamente presentes numa
manifestação, os sit-ins virtuais têm o defeito óbvio de retirarem quase todo o risco que está
normalmente associado às acções de activistas nas ruas. Como nota Oxblood Ruffin, ‘Ministro dos
Negócios Estrangeiros’ do CDC, ao criticar as acções efectuadas pelo EDT: “Sei por experiência
pessoal que existe uma diferença entre um protesto online e de rua. Eu fui seguido pela rua abaixo por
um polícia a cavalo armado com um cacetete. Acreditem em mim, é preciso muito menos coragem
para se sentar à frente de um computador.” (Ruffin, 2001). Por outro lado, não existe o sentimento de
solidariedade habitual que se pode encontrar entre os manifestantes. A motivação e o entusiasmo
gerado nos protestos de rua está ausente (Jordan, 2002: 132; Meikle, 2002: 143; Jordan e Taylor,
2004: 79-82)).
Os ataques de hacktivismo que pretendem paralizar ou desacelerar os computadores de adversários
através do seu bloqueamento requerem, no caso dos sit-ins virtuais, a participação de muitas pessoas.
131 Electrohippies Collective (2001), “The FTAA Action and May Day ‘Cyber-hysteria’ communiqué May 2001”. Citado por Tim Jordan (2002, 123).
121
No entanto, nos últimos anos foram sendo desenvolvidos programas que permitem que um único
indivíduo ou pequenos grupos desencadeiem o ataque. Este tipo de ataques chama-se Denial of
Service (DoS – ‘Negação de Serviço’), uma vez que procuram remover o alvo da Internet ao ‘inundá-
lo’ de pedidos de informação. Vários ataques de DoS foram lançados contra sites como o ebay.com e
o yahoo.com. Juntamente com o aumento do discurso do ciberterrorismo pelos governos e agências
de segurança, estes actos tornaram o debate inicial em torno do hacktivismo mais sério. Os ataque
DoS perpretados no início de 2000 por um indivíduo que apenas se identificava como Mafiaboy
encheram as páginas dos jornais, desviando assim a atenção dos media comerciais e da opinião
pública das formas colectivas de protesto na Rede para regressar ao estereótipo do hacker – na
verdade, cracker - adolescente masculino agindo individualmente (Lovink, 2002: 269). O recurso
crescente a ataques de DoS levou também ao regresso da mística do terrorismo, tal como o CAE
previu. O hacktivista passou a ser encarado como um terrorista. Para os verdadeiros hackers, como o
CDC, os ataques de DoS representam, independentemente dos seus fins e alvos, ameaças à liberdade
de expressão e de informação, valores que prezam acima de tudo (Riemens: 2002). Nas palavras de
Tim Jordan, os hacktivistas que produzem acções de Denial-of-Service escolhem um meio
tecnologicamente ineficiente para servir fins políticamente eficientes” (2002: 125). Trata-se assim, de
acordo com Jordan e Taylor, de uma utilização ética do DoS na medida em que ao contrário dos
ataques centralizados e automatizados dos crackers comuns, as acções distribuídas dos ehippies, por
exemplo, requerem a participação de vários computadores-cliente, cujos administradores decidem
desencadear o ataque (Taylor, 2004: 77).
Outra forma de bloqueio virtual empregue pelos hacktivistas são as email bombs. Trata-se de
‘bombardear’ o servidor do sistema com mensagens de email, gerando um efeito de
congestionamento das caixas de correio da entidade em questão, tornando impossível a recepção de
mais mensagens (Denning, 2001: 268). Esta táctica visa também demonstrar a extensão do apoio a
uma causa, podendo ser automatizada sob a forma de uma carta em cadeia, de forma a que os
participantes enviem mensagens apenas mediante um clique num link. Em 1998, grupos de
guerrilheiros da etnia Tamil realizaram uma acção de email bombing contra as embaixadas do Sri
Lanka. Algumas autoridades norte-americanas no campo dos serviços secretos consideraram que este
foi o primeiro ataque de terroristas contra os sistemas informáticos de um país. O objectivo do ataque
foi gerar publicidade e congestionar os servidores de email das embaixadas.
Uma outra táctica, o defacement de sites da Web – também chamado de cibergraffiti, aproxima-se
mais da noção popular relativa ao hacking. Estas acções referem-se à intrusão em sites para alterar ou
acrescentar o conteúdo aí disponível por mensagens, desenhos ou imagens de cariz político. Os sites
do Greenpeace, Spice Girls e da Ku Klux Klan foram já alvo destes cibergraffities. O processo reside
122
numa desfiguração temporária da homepage de uma companhia ou organização. Os intrusos deixam
normalmente a restante informação do site intacta, chegando até mesmo a guardar uma cópia de
segurança do ficheiro index modificado no servidor invadido. Alguns afirmam que se trata de uma
expressão artística de resistência, uma performance online. Pode-se até argumentar que existe uma
grande aproximação entre o defacement hacktivista e a clonagem artivista de sites de net.art, como as
obras do 01.org. Um dos defacements mais famosos foi efectuado pelo grupo português de hackers
KaotiK132 contra a ocupação indonésia de Timor Leste. Os sites de cerca de 40 servidores indonésios
foram modificados em Setembro de 1998 de forma a exibirem a frase ‘Free East Timor’ – Libertem
Timor Leste - em grandes letras pretas. Os hackers portugueses também acrescentaram links para sites
descrevendo as violações dos direitos humanos cometidas na antiga colónia portuguesa (Denning,
2001: 272). Em Outubro de 2000, hacktivistas pró-israelistas acrescentaram uma estrela de David no
site do Hezbollah. Em Outubro de 2001, o grupo GForce Pakistan deixou uma mensagem a favor de
Bin Landen no site de uma agência governamental dos Estados Unidos (Meikle, 2002: 163). De
acordo com o site hacker Attrition.org133, realizaram-se mais de 5822 defacements no ano 2000. Do
início de 2001 até Maio desse ano o número já ia nos 5315, tendo a prática se tornado tão frequente
que os responsáveis pelo site deixaram a partir daí de actualizar essa contagem. Contudo, este autor
nota que muitas destas acções não têm motivações activistas, sendo antes realizadas por adolescentes
que querem testar as suas capacidades de hacking.
O ‘sequestro’ de endereços de sites da Web é outra arma dos hacktivistas que faz com que quando os
utilizadores introduzem o endereço de um site atacado nos seus browsers, sejam redireccionados para
um site alternativo. No âmbito dos protestos durante o Fórum Económico Mundial, que teve lugar em
Melbourne, Austrália, no dia 11 de Setembro de 2000, o endereço do nome de domínio da Nike foi
redireccionado, enviando os cibernautas que introduzissem o URL ‘nike.com’ para o site do
movimento S11 de oposição ao Fórum. Durante os Jogos Olímpicos de Sidney 2000, outros activistas
deste movimento registaram nomes de domínio com a palavra ‘Olympics’ – Olímpiadas – mal escrita,
redireccionando os utilizadores que introduzissem endereços como ‘olympisc.com’ para o site do
S11. o que o tornou durante algum tempo o site mais popular da Austrália. Em Março de 2001, alguns
hackers redireccionaram a homepage do Hamas para sites pornográficos como ‘teenjuice.com’ ou
‘hotmotel.com’ (idem: 163-164).
Mas o arsenal de tácticas do hacktivismo não pára de crescer. Um exemplo é dado pelos sabotadores
electrónicos que encerraram os sistemas de comunicação do Movimento Republicano da Austrália nas
vésperas do referendo constitucional de Novembro de 1999. Outro caso consiste num grupo de
hackers associado ao site Condemned.org que em Janeiro de 2000 invadiram uma série de sites de
132 Site disponível em http://www.kaotik.org.133 Site disponível em http://www.attrition.org.
123
pornografia infantil e removeram os dados dos seus discos rígidos. Por vezes, são empregues vírus e
worms para fins políticos134. Um adolescente israelita afirma ter destruído um site do antigo governo
iraquiano de Saddam Hussein mediante o envio de um vírus anexado a um email. Tão ou mais
eficazes a gerar publicidade são os boatos – hoaxes - relativos à propagação de novos vírus (idem:
164).
O defacement de sites e a disrupção de servidores não são, porém, os únicos meios de hacktivismo
para todo o hacker com motivações políticas. Como já referimos, alguns, como os elementos do Cult
of the Dead Cow, partilham de uma filosofia diferente, baseada nos fluxos livres de informação,
segundo o qual o ciberespaço permite que todas as vozes se exprimem. Estes hacktivistas
“digitalmente correctos” combinam o princípio da ética hacker da liberdade de informação com a
faceta mais politizada dos activistas de rua. As suas actividades dirigem-se sobretudo contra a censura
e o controle da Rede efectuado por empresas e Estados. Um dos seus projectos mais interessantes na
área do hacktivismo é o Peekabooty135.
O Peek-a-booty foi desenvolvido por um grupo iniciado pelo CDC designado Hacktivismo136. O
colectivo tem como missão desenvolver formas de impedir a censura da Internet, legitimando-se a si
próprio com base na Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948, que garante a
liberdade de expressão para todos, incluindo a incluindo a liberdade de receber e dar opiniões. Como
tal, concedem grande importância aos fluxos livres e abertos de informação de e para todos. O grupo
Hacktivismo foi criado com vista a responder à imposição de limites no acesso dos cidadãos à
Internet por parte de vários estados-nação. O caso da China é o mais fulcral, embora o número de
estados que implementaram firewalls nacionais137 para bloquear o acesso a conteúdos políticos
oposicionistas ou críticos não tenha parado de aumentar nos últimos anos138. Deste modo, quem
estiver no território chinês e pretender aceder a sites noticiosos internacionais como o da BBC e da
CNN não o poderá fazer. O Peekabooty surge como uma solução para este tipo de censura (Jordan,
2002: 128).
A ideia é desenvolver uma rede que qualquer um possa utilizar através da Internet para passar por
cima de firewalls nacionais – obtendo, desta forma, acesso a toda a informação disponível na Rede,
bem como para tornar anónimos os emissores e receptores de dados online. É descrita como sendo
“uma rede colaborativa e distribuída de privacidade, Permite a evasão a grande parte das formas de 134 Alexander Galloway inclui os vírus informáticos na categoria de media tácticos (Galloway, 2004: 175-176)135 Site disponível em http://www.peek-a-booty.org.136 Site disponível em http://www.hacktivismo.com. 137 Firewalls são mecanismos de filtragem sob a forma de hardware ou software que controlam o acesso de e para a
Internet.138 Nesta lista encontram-se a Singapura, Austrália, Zimababué, Arábia Saudita, Vietname, Irão, Emiratos Árabes
Unidos, Bahrain, Quirguistão e o estado norte-americano do Utah, de acordo com a OpenNet Initiative (site disponível em http://www.opennetinitiative.net).
124
(...) filtragem e encaminha directamente os pedidos de páginas Web para uma nuvem de servidores
distribuídos que processam os pedidos e trans-servem o conteúdo de volta ao cliente que o
requesitou”. Esta tecnologia funciona do seguinte modo: Alguém que esteja por detrás de uma
firewall nacional será capaz de efectuar um pedido a um computador correndo o Peelkabooty que irá
então estabelecer uma rede virtual com outros computadores139. Estas máquinas constituem a ‘nuvem
de servidores’ que transferem os pedidos do computador que os desencadeou. Em vez de requerir
directamente a um servidor Web um site conhecido da Internet, cujo endereço está bloqueado por
uma firewall, o pedido será efectuado a um computador de acesso livre correndo o Peekabooty. Por
sua vez, esta máquina irá de seguida ligar-se à rede Peekabooty. Um dos computadores ligados a este
rede irá aceder ao material pedido e enviá-lo de volta através da nuvem de servidores até ao
computadores que efectuou inicialmente o pedido. Este esquema de funcionamento impede a
existência de uma ligação directa entre o computador requerente e o que cumpriu o pedido. Mais
ainda, cada passo entre estas duas máquinas irá assegurar o anonimato do cibernauta que pretenda
aceder ao site em questão. Por outro lado, para que o conteúdo das mensagens não possa ser
identificado e bloqueado pelas firewalls de um determinado Estado, o software recorre à técnica da
esteganografia que consiste em esconder mensagens em outro tipo de material mais inócuo. Para isso,
emprega protocolos de Secure Sockets Layer, uma tecnologia que permite a codificação ou
encriptação de dados (Jordan e Taylor, 2004: 103-104) As ligações entre a nuvem de servidores serão
também constantemente alteradas (Jordan, 2002: 129). “Isto significa”, explica Tim Jordan, “que um
governo que censure os conteúdos online disponibilizados aos seus cidadãos terá que estar
permanentemente a encerrar muitos computadores correndo o Peekabooty para deitar esta rede
abaixo” (idem). Mas desde que um número suficientemente grande de máquinas participem, encerrar
o Peekabooty será uma tarefa difícil, se não mesmo impossível. Desta forma, o Peekabooty poderá
propocionar um meio eficaz para impedir a criação de fronteiras nacionais no ciberespaço. Este
software sofre no entanto de uma fragilidade comum a outras acções de media tácticos: é que, como
referem Jordan e Taylor (2004: 99), apesar de já ter sido publicamente demonstrado em convenções
de hackers, ainda não foi oficialmente lançado e a última informação divulgada pelo líder do projecto,
Paul Baranowski, data de Julho de 2003140. Embora o Peekabooty tenha sido considerado pela revista
Wired como um dos dez projectos e vapourware141 de 2001, trata-se de “um projecto sério, com
código que já foi desenvolvido e demonstrado; o seu estatuto vapourware também demonstra a
fragilidade da produção de software, o que sucede tanto nos projectos hacktivistas como noutros”
(idem)142.139 Segundo o colectivo Hacktivismo, será supostamente díficil detectar se o Peekabooty está ou náo a correr numa
rede, sendo, porém, possível, monitorizar o Peekabooty, o que irá obviamente por em causa a sua utilidade. 140 Ver Baranowski, Paul (2003), “Peekabooty – Lessons Learned”, 5 de Julho. Disponível em http://peek-a-
booty.org/Docs/Peekabooty-LessonsLearned.pdf.141 Software que é anunciado mas nunca chega a ser lançado. 142 Jordan e Taylor abordam em pormenor quatro aspectos politico-tecnológicos da rede Peekabooty em Hacktivism
(2004:100-111): arquitectura distribuída; recursos a técnicas de esteganografia e encriptação de dados; ligações anónimas; número mínimo ou limitado de endereços IP a um minímo – “minimal discovery”, de forma a impedir
125
Outra ferramenta desenvolvida pelo CDC é o Back Orifice143. Trata-se de um programa que permite
que qualquer pessoa que utilize uma rede informática baseada em software da Microsoft possa, entre
outras coisas, obter secreta e remotamente o acesso e controlo de qualquer outro computador ligado à
rede. Funcionando como um sistema ilícito de administração à distância, demonstra a vulnerabilidade
do poder que o utilizador pessoal exerce sob a sua máquina e as informações aí guardadas em
comparação com o controlo dos administradores de sistemas (Jordan e Taylor, 2004: 111). Este
programa do CDC possui um interface gráfico de utilizador (GUI) que o torna relativamente fácil de
utilizar, em comparação com a maioria do software desenvolvido por hackers. Ao instalar o Back
Orifice, um utilizador passa a deter todos os privilégios de um administrador de sistemas no
computador invadido: visualizar, aceder e executar os ficheiros, ver e registar o que alguém está a
escrever no teclado, assim como copiar quaisquer dados guardados no disco rígido dessa máquina.
Todos os computadores desprotegidos estão vulneráveis a esta intrusão que actua como um vulgar
programa do tipo “cavalo de Tróia”: um ficheiro Back Orifice é anexado a outro ficheiro ou é
importado de outro modo para a máquina que se pretende afectar. Uma vez instalado, o ficheiro de
execução é removido (Jordan e Taylor, 2004: 111).
Com o Back Orifice, o grupo de hackers de Boston visou alertar a Microsoft e os utilizadores do
sistema operativo da companhia para o facto de que os sistemas Windows não foram criados com a
segurança e a privacidade do utilizador em mente. Este ponto é demonstrado na medida em que o
Back Orifice inclui todas as capacidades de acesso secreto e subreptício já integradas no software de
administração de sistemas concebido e comercializado pela Microsoft. Os administradores de
sistemas utilizam ferramentas de software dotadas das mesmas capacidades disponibilizadas pelo
CDC, só que o código da Microsoft não pode ser verificado por indíviduos e entidades independentes,
dado que a companhia o oculta de forma a reter os seus direitos proprietários. Não é de estranhar por
isso que o CDC tenha disponibilizado o Back Orifice no formato open source de código aberto, de
forma a chamar a atenção para a importância deste modelo de desenvolvimento de software, que
permite alterar, examinar e corrigir o código-fonte do programa. Em Agosto de 2001, segundo o
CDC, o Back Orifice estava a ser descarregado de um site à média de mil vezes por dia. Por essa
altura, o software apresentava já um estado avançado de desenvolvimento, permitindo que fosse
apresentado como uma ferramenta alternativa gratuita para a administração de redes Microsoft por
parte de administradores de sistemas (Jordan: 2002, 130-131). Apesar de poder ser usado como uma
ferramenta de cracking, o software, dado que foi divulgado publicamente, pretende colocar em
questão o monopólio que empresas como a Microsoft detêm sob a segurança e a privacidade dos
utilizadores dos seus programas. Nessa medida, pode ser visto como uma performance que, de modo
que todos os computadores ligados a rede sejam traçados.143 Site disponível em http://www.bo2k.com, onde se pode efectuar o download do programa.
126
dramático, “visa teatralizar a natureza da vida online das pessoas com um ênfase deliberado nos
valores que informam o hacktivismo digitalmente correcto: o acesso seguro aos fluxos de informação”
(Jordan e Taylor, 2004: 113).
Como o Peekabooty e do Back Orifice revelam, hacktivistas “digitalmente correctos” como os do
CDC consideram igualmente importantes tanto a privacidade e a segurança online como o acesso total
à Internet. Nesta perspectiva, disponibilizar um acesso absoluto à Internet em países que procuram
restringi-lo poderá ser inútil se as pessoas e os sites que visitarem podem ser traçados. A liberdade de
expressar os seus próprios pontos de vista e de receber toda a informação disponível na Internet são
dois dos mais importantes princípios prezados pela ética hacker mas que podem ser postos em causa
pela restrição do acesso e pela negação da privacidade de cada um.
Por outro lado, dentro do próprio hacktivismo, a batalha dos hacktivistas “digitalmente correctos” em
defesa de um modelo ético de hacking parece estar perdida. Os media comerciais não páram de
veicular notícias sobre ataques de supostos hackers com motivações políticas que acabam por
provocar danos enormes, fazendo com que o hacktivismo seja visto com receio ou até equiparado ao
terrorismo pelos governos e empresas, bem como pela opinião pública. Em consequência, o cerco aos
hackers pelas forças e agências de segurança vai-se apertando. Por outro lado, é cada vez mais
frequente que uma manifestação de activistas políticos contra a globalização neo-liberal seja
acompanhada por uma série de acções de sit-ins virtuais, ataques de Denial-of-Service, defacements e
intrusões de sites.
Um exemplo recente desta coordenação em simultâneo de protestos online e offline foi a campanha
hacktivista de Desobediência Civil Electrónica que coincidiu com as manifestações contra a
Convenção Nacional do Partido Republicano em Nova Iorque ("A31 RNC", como ficaram
conhecidas), Estados Unidos, entre 29 de Agosto e 2 de Setembro de 2004. Entre as tácticas
utilizadas, de referir o roubo de cartões de crédito a grandes empresas de comunicação social para
efectuar uma doação de 2600 dólares a várias organizações humanitárias de direitos civis, a intrusão e
o defacement do grupo de extrema direita ProtestWarrior, e a realização pelo EDT de um sit-in virtual
contra sites republicanos.
Mas para além das acções meramente virtuais, o A31 foi também um exemplo de coordenação entre
os manifestantes de rua e os hacktivistas, como assinala Olivier Blondeau (2005) que caracteriza o
movimento de protesto como um verdadeiro festival de "resistência electrónica", empregando um
termo introduzido pelo CAE. Nas palavras de Blondeau, "as ruas de Nova Iorque foram
transformadas num vasto laboratório de experimentação de media tácticos" em que as tecnologias
127
móveis de comunicação foram empregues pelos hacktivistas como meio de se "reapropriarem da rua"
e de "inscrever a sua acção no espaço público urbano" (idem). No caso do projecto Bikes Against
Bush144, por exemplo, utilizou-se tecnologias "velhas" e tecnologias digitais de uma forma original e
subversiva por exemplo. Inspirado no conceito empregue pelo grupo activista Institute for Applied
Autonomy145 na concepção do StreetWriter146, um dispositivo pilotado por computador que pode ser
auto-mobilizado via rádio-comando ou rebocado por uma viatura e que permite desenhar graffities,
Joshua Kinberg, um estudante da Parsons School of Design de Nova Iorque instalou esse dispositivo
na sua bicicleta de montanha, ligando o seu computador portátil à Internet através de um telemóvel.
Durante a convenção, qualquer pessoa podia aceder ao site do projecto e enviar uma mensagem que
seria imediatamente reproduzida no chão da estrada à medida que a bicicleta circulava pelas ruas da
cidade (ibidem).
Tal como em Seattle e em Génova, o telemóvel também foi utilizado para transmitir informação.
Porém, o seu recurso foi muito mais coordenado. O Txtmob147, outro projecto do Institute for Applied
Autonomy, insere-se no conjunto de práticas de mobilização empregues nas Flash Mobs, tendo
consistido no envio de informações por SMS para os telemóveis a quem se tivesse registado numa
lista de subscritores. Os activistas que participaram nas manifestações contra as convenções
democrata e republicana de 2004 poderam em tempo real ficar a par das movimentações da polícia,
do local e hora exactas das acções de rua e coordenar o trabalho de assistência jurídica e médica entre
si. Noutra abordagem, o serviço Web Moport148 permite através de um endereço de email descarregar
fotografias e vídeos captados pelos activistas durante a convenção republicana nos seus telemóveis
para serem em seguida logo colocados online (idem, 2005). Essa convergência entre tecnologias
móveis como telemóveis e redes de Internet sem fios e accção directa foi alargada com a inclusão do
RSS149 ou sindicância de conteúdos. No caso do projecto RNC Redux/Remix Open Doc150 do grupo
Screensavers, agregagaram-se todos os conteúdos em suporte texto, áudio ou vídeo disponíveis online
de forma a possibilitar a sua distribuição para um blog, site de informação, telemóvel ou aplicação de
mensagens imediatas, recombinando-os no ciberespaço ou nas ruas.
144 Site disponível em http://www.bikesagainstbush.com. 145 Site disponível em http://www.appliedautonomy.com.146 Site disponível em http://www.appliedautonomy.com/sw.html. 147 Site disponível em http://www.txtmob.com.148 Site disponível em http://www.moport.org.149 Really Simple Syndication (RSS) é um formato de XML (eXtensible Markup Language) para partilhar notícias e
conteúdos permanentemente actualizados de sites noticiosos , de discussão e, sobretudo, blogs. O XML é uma linguagem para a Web que permite organizar os dados contidos num documento, de forma a que esta informação possa ser trocada e interpretada por diferentes sistemas e aplicações.
150 Arquivo do site original disponível em http://web.archive.org/web/20041009195827/http://screensaversgroup.org/projects/rncredux.
128
5.3 – Artivismo: Crítica e Subversão na net.art
O acto de resistência possui duas faces: Ele é humano e é também um acto de arte. Apenas o acto de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os homens.
- Gilles Deleuze, “Qu’est-ce que l’acte de création?”
O surgimento de projectos artísticos concebidos para a Internet data de 1994, coincidindo com o
período em que a Web se começa a tornar uma tecnologia comum, permitindo visualizar não apenas
textos mas imagens coloridas a partir da Rede. Desde então até à actualidade, o número de iniciativas
artísticas classificadas de net.art não tem parado de aumentar. Muitas destas obras abordam questões
sociais e políticas através de uma perspectiva crítica e creativa. Com vista a designar algumas práticas
artísticas até então inéditas, dado estarem associadas à Rede, foi criado o termo artivismo. Segundo
Laura Baigorri trata-se de “um neologismo resultante da combinação das palavras arte e activismo e
teoricamente utilizado para referir-se às obras que comungam de ambos os interesses” (Baigorri,
2003). A autora nota que, apesar do seu potencial inicial, esta prática restringiu-se basicamente à
Internet e aos artistas pioneiros da net.art, como Heath Bunting151, Rachel Baker152, Alexei Shulgin153,
Olia Lialina154, Vuk Cosik155, Pit Schultz, o colectivo JODI156 e Andreas Broeckmann157. As suas obras
caracterizam-se pelo humor e ironia, bem como pela crítica tecnológica da Internet.
Um conceito necessário para compreender o artivismo é o de hacktivismo, um neologismo que resulta
da fusão entre a palavra activismo e o termo inglês hacking158. A partir do cruzamento entre o
artivismo e o hacktivismo, nasceu o art.hacktivismo, uma prática que, de acordo com Laura Baigorri,
“se baseia em acções de sabotagem com vista a denunciar a perigosa tendência da Rede de emular
todas as convenções artísticas tradicionais: direitos de autor, objectivização (num site online) e a sua
consequente comercialização” (idem).
Tendo em conta o âmbito de acção, Laura Baigorri distingue os projectos artivistas em quatro grandes
categorias: “os que se restringem à crítica da arte, os que ampliam o seu campo a todo o tipo de
questões políticas e sociais, os que se remetem ao próprio medium, isto é, os que exercem a crítica
151 Bunting é um dos primeiros artistas a identificar-se como artivista, como se pode ver num artigo “Heath Burting is on a Mission” assinado por James Flint e disponível em http://www.irational.org/irational/media/telegraph1.html (acedido a 8 de Novembro de 2005). O seu site está disponível em http://www.irational.org/heath/.
152 Site disponível em http://www.irational.org/rachel/.153 Site disponível em http://easylife.org.154 Site disponível em http://art.teleportacia.org/olia.html.155 Site disponível em http://www.ljudmila.org/~vuk.156 Site disponível em http://www.jodi.org.157 Site disponível em http://www.v2.nl/~andreas.158 Tal como referimos no ponto anterior, este movimento, que tem sempre como cenário de actuação a Rede, é
composto na sua maior parte por hackers que realizam acções de sabotagem através de redes informáticas com fins políticos, como a intrusão em servidores de instituições e organizações políticas de modo a alterar o conteúdo dos seus sites e aceder a ou modificar informação confidencial
129
tecnológica da Rede, e os que enfrentam o poder corporativista que está (também) presente na
Internet” (ibidem). Neste ponto, pretendemos basear a nossa análise na tipologia de Baigorri, embora
com algumas alterações159. Para esta autora, um dos principais grupos que centram a sua actividade na
crítica da arte é o colectivo italiano 0100101110101101.ORG160, “representantes máximos do
art.hackitvismo”. A sua filosofia de trabalho consiste no questionar e no ataque da comercialização da
arte e da net.art através de projectos de simulação offline, tal como a criação do “artista inexistente”
Darko Maver161, e de iniciativas online de duplicação e plágio, como a cópia dos sites de net.art
Hell.com162 e Art.Teleportacia163.
Como o colectivo italiano explica no artigo “art.hacktivism”, o site Hell.com “foi criado em 1995
como uma obra de arte conceptual, uma anti-web que não vendia e promovia nada e que estava
inacessível ao público” (0100101110101101.ORG, s/d). Ao longo de três anos, este espaço online
sem conteúdos, sem fazer parte de qualquer território e não contendo qualquer hiperligação para
qualquer outro site, obteve uma média de um milhão de acessos por mês por parte de pessoas que
introduziram o nome Hell – ‘inferno’ - em motores de busca. Após este período, tornou-se um serviço
de alojamento de páginas de net.art e de galerias de arte que apenas poderiam ser acedidas por
convite e cuja lista de membros era mantida em segredo. Os organizadores visavam criar uma
plataforma de lançamento de novos ciber-artistas, um ‘museu online’ extremamente elitista. Em
Fevereiro de 1999, o Hell.com organizou o evento “surface” em que participaram vários net.artistas
famosos como Zuper!, Absurd e Fakeshop. Tal como todos os eventos anteriores deste site, o acesso
era restrito apenas aos assinantes do site Rhizome. Durante as 48 horas que a iniciativa esteve online,
os membros do 01.ORG efectuaram o download de todos os ficheiros do Hell.com. Foi colocado
online um clone do site que podia ser acedido e reproduzido por todos164.
Na noite de 9 de Junho desse mesmo ano, foi a vez do Art.Teleportacia. Este site da russa Olia Lialina
foi, de acordo com o próprio 01.ORG, “a primeira galeria de net.art a aparecer na Web e também a
primeira tentativa de vender obras de net.art” (idem). Nessa altura, o site alojava a exposição
“Miniatures of the heroic period” - ‘Miniaturas do período heróico’ -, consistindo em algumas
159 A grande diferença é que, ao contrário de Laura Baigorri, não consideramos que o modelo de Desobediência Civil Electrónica introduzido pelo Critical Art Ensemble e posto em prática pelo Electronic Disturbance Theater em nome do movimento zapatista seja uma prática de artivismo, mas sim de hacktivismo. Assim, é nossa opinião de que o colectivo Luther Blissett/Wu Ming se enquadra bastante mais na categoria de artivismo de crítica política e social. Convém salientar que existe uma estreita imbricação entre artivismo e hacktivismo, existindo colectivos que empregam ambos os tipos de práticas de media tácticos. Desta forma, torna-se muitas vezes díficil distinguir se estamos perante uma acção de artivismo ou de hacktivismo.
160 Site disponível em http://www.0100101110101101.org. O grupo é composto pelo casal de artistas italianos Eva e Franco Mattes.
161 Site disponível em http://www.0100101110101101.org/home/darko_maver.162 Site disponível em http://www.hell.com. 163 Site disponível em http://art.teleportacia.org/.164 O clone do Hell.com efectuado pelo 01.org está disponível em
http://www.0100101110101101.org/home/copies/hell.com/index.html.
130
páginas da autoria de Jodi, Vuk Cosik, Irational, Easylife e Lialina, cada uma à venda por cerca de
dois mil dólares (1650 euros). Os elementos do 01.ORG duplicaram a galeria, manipularam os
conteúdos e fizeram o seu upload sem pedir autorização a alguém e violando o copyright do site
original. A exposição ‘clonada’ mudou o nome para “Hybrids of the heroic period” - ‘Híbridos do
período heróico’ - e os cinco trabalhos ‘originais’ foram substituídos por ‘híbridos’, isto é, ficheiros
resultantes da mistura de páginas dos net.artistas com alguns gráficos sem qualquer valor retirados da
Web165.
Até então, o site Art.Teleportacia partia do princípio de que uma obra de net.art podia ser vendida da
mesma forma que qualquer outra obra de arte. Por isso, defendia que cada trabalho de net.art devia
ser protegido pelo copyright e que ninguém, excepto o artista, podia efectuar o seu download ou
mesmo estabelecer uma hiperligação a ele, sem a autorização do autor. Olia Lialina afirmava que a
originalidade de uma obra online era garantida pelo seu nome de domínio ou endereço URL. Mas,
como explica o colectivo, “ao clonar o seu conteúdo, o 0100101110101101.ORG tornou evidentes
todas as contradições inerentes a este pensamento” ainda demasiado centrado no mercado artístico
tradicional (ibidem), uma vez que “quem quer que visite um site descarrega automaticamente, para a
memória cache, todos os ficheiros a que acede. De facto, eles já estão na sua posse, não fazendo por
isso sentido vender páginas que já estão nos discos rígidos de milhões de pessoas” (ibidem).
Retomamos assim a questão da facilidade da reprodutibilidade nas tecnologias digitais, já abordada
no capítulo sobre o movimento pelo software livre. Neste sentido, o grupo de artistas italiano avisa
que devemos ter em conta que “a net.art é digital, é código binário, sendo tudo reprodutível ao
infinito sem perda de qualidade” (ibidem). Numa altura em que cada cópia é idêntica ao original, “o
próprio conceito de ‘original’ perde todo o sentido, e mesmo os conceitos de falso e plágio deixaram
de existir” (ibidem). Uma acção semelhante, visando criticar a comercialização da net.art e defender o
livre acesso à informação online já tinha sido posta em prática em 1997 pelo artista esloveno Vuk
Cosik em relação à Documenta X, ao colocar no seu site pessoal um duplicado dos conteúdos desta
exposição e expondo-os de forma permanente após o evento ter encerrado as suas páginas na Web166.
Um trabalho mais recente do 01.ORG é “life_sharing”167, datado de 2001. Aqui, as noções de
privacidade e a identidade individual são questionadas até a um ponto de ruptura. Baseado na
tecnologia de partilha de ficheiros - file sharing -, mediante a qual computadores, ligados a redes
internas - intranets - ou a redes Peer-to-Peer de troca de músicas, jogos e vídeos, podem aceder e
efectuar o download de ficheiros guardados nos discos rígidos de outros computadores, o colectivo
anónimo abriu todo o disco rígido do seu computador na Internet. Através de um browser de
165 O clone do Art.Teleportacia.org efectuado pelo 01.org está disponível em http://www.0100101110101101.org/home/copies/art.teleportacia.org/index.html.
166 Site disponível em http://www.ljudmila.org/~vuk/dx.167 Site disponível em http://www.0100101110101101.org/home/life_sharing/index.html
131
navegação na Web, qualquer pessoa pode ter acesso a estes conteúdos visitando o site do grupo. O
“life_sharing” funciona nos mesmos moldes em que se acede a um site, só que em vez de
disponibilizar apenas alguns ficheiros como documentos de HTML, permite o acesso a todos os
ficheiros, incluindo o seu software e o sistema operativo Linux. Como nota Josephine Berry, “o
projecto identifica a tentativa de vedar e proteger a informação (no disco rígido de um PC ou num
servidor) como se tratando de uma actividade fútil e uma rendição perigosa ao mito da identidade
individual” (Berry, 2002). Numa entrevista, os membros do colectivo afirmam: “Considerem a
tendência crescente em direcção à intrusão na esfera privada – não apenas pelas grandes empresas – e
os esforços consequentes das pessoas na tentativa de preservarem a sua própria privacidade. O
0100101110101101.ORG acredita firmemente que a privacidade é uma barreira a demolir (...) A ideia
de privacidade em si mesma é obsoleta.” (Fuller, s/d). Por outro lado, com “life_sharing”, pretende-se
combater a paranóia dos sistemas de vigilância accionados pelo Estado e pelas grandes empresas com
a disponibilização de informação em excesso.
Outro projecto italiano de artivismo é o Luther Blissett. Trata-se de uma personagem, uma figura
mítica por detrás da qual se escondem várias identidades e nomes múlriplos. No ensaio “The XYZ of
Net Activism”, os seus criadores designam-no de “mito pop”, uma “estrela pop colectiva e ‘aberta’”
que toma de empréstimo o nome de um antigo jogador de futebol do clube britânico Watford
(Blissett, s/d). José Luis Brea (2002) define-o como sendo “uma figura de autoria clandestina e
compartilhada por um sem-número de intelectuais críticos que escolheram a via de uma identidade
múltipla e simulada para participar na discussão colectiva contemporânea na rede, como alternativa ao
próprio espectáculo da autoria intelectual”. Gérson de Oliveira explica que “o mito italiano Luther
Blissett, que se alastrou a países como Reino Unido, França, Espanha e Brasil nos anos 90 como um
conglomerado de pessoas anónimas incitando a rebeldia e a revolução contra a cultura dominante, foi
aniquilado pelos seus criadores originários de Bolonha no ano 2000” (Oliveira, s/d). O colectivo
orquestrou a sua morte simbólica através do ritual suicida ‘seppuku’ No entanto, o projecto nunca
deixou de existir de facto, tendo sido “perpetuado em livros e textos publicados na Internet” (idem)168.
Por outro lado, “em acções concretas, os homens por detrás de Luther Blissett, sempre incógnitos,
convidavam todos a serem também Luther Blissett”. Na óptica destes autores, tratando-se de um
nome múltiplo, “qualquer um poderia assumir a identidade de Blissett e contestar qualquer coisa, a
qualquer hora”. Desta forma, apesar de ter sido anunciado o seu suicídio, Luther Blissett169 nunca
pode morrer.
Criado em Bolonha em 1994, este projecto de cariz político-cultural actua através de um activismo
168 Em Fevereiro de 1999, Roberto Bui, Giovanni Cattabriga, Luca Di Meo e Federico Guglielmi publicaram com o nome de Luther Blisset o romance histórico Q, editado em Portugal com o título O Espião do Vaticano (2005) pela editora Saída de Emergência. Estes membros do projecto de 1994 a 99 foram também os fundadores do Wu Ming.
169 Site disponível em http://www.lutherblissett.net.
132
contra a nova ordem neo-liberal e a globalização capitalista, bem como toda a forma de
“pasteurização do pensamento” que os defensores deste modelo pregam e provocam. É a favor do
anarquismo face aos poderes e normas estabelecidas na sociedade, sobretudo a indústria dos media.
Durante a sua existência concreta, o grupo destacou-se pelo uso imprevísivel de diversos media, como
manifestos, banda desenhada, performances de rua, difusão de notícias falsas ridicularizando os media
e jornalistas italianos, sermões pseudo-religiosos transmitidos pela rádio e diversas acções tácticas,
como a realização de uma festa dentro de um autocarro – que acabou num tribunal onde todos os
envolvidos se identificaram como Luther Blissett. Partilhando o método de guerrilha semiológica
comum a outros praticantes tácticos, como os culture jammers, propôs uma espécie de epidemia
mediática, concretizada através da sinergia de acções múltiplas ocorrendo em diferentes pontos do
globo sob a autoria de um personagem único. De certa forma, Luther Blissett pode ser colocado junto
do tipo de projectos artivistas que abordam toda uma vasta gama de questões políticas e sociais,
seguindo a tipologia de Laura Baigorri. O colectivo chegou mesmo a publicar online em 1997 um
livro chamado Lasciate che i Bimbi, em que a pedofilia é considerada como uma desculpa para a
‘caça às bruxas’.
Após o suícidio de Blissett, foi criado o grupo Wu Ming170 - ‘sem nome’ em mandarim, expressão
empregue na China para designar as publicações dissidentes -, que se auto-define na sua Declaração
de Intenções (Wu Ming, 2003) como “um laboratório de design literário, que trabalha em diferentes
media e por diversas encomendas”. Wu Ming assume-se como “uma empresa independente de
‘serviços narrativos’ gerida por um colectivo de agitadores da escrita”. Um exemplo desse tipo de
serviços consiste em “actividades de ligação entre literatura e novos media”. Pretende valorizar a
cooperação social, tanto sob a forma de produção como no seu conteúdo, acentuando assim a
importância da colectividade. Tal como nos trabalhos e acções assinados por Luther Blissett, os
produtos Wu Ming não têm copyright, seguindo a mesma lógica dos hackers do movimento pelo
software livre. Mais uma vez, o que está em questão é a ideia de informação livre.
Outro grupo importante de artivismo é a RTMark171, que Laura Baigorri define como sendo “uma
organização com base na Internet que utiliza a sabotagem com fins sociais” (Baigorri, 2003). O seu
site na Web “funciona como um centro online para o financiamento de sabotagens inteligente, explica
Graham Meikle (2002: 114). O método da RTMark assenta na multiplicação de colaborações pontuais
Segundo este autor, os objectivos da RTMark consistem em “chamar a atenção para o sistema de
poder corporativo” e “recuperar a linguagem da apropriação empresarial”, à semelhança dos culture
jammers (idem). Os seus membros organizam uma série de actividades culturais, desde o Phone In
170 Site disponível em http://www.wumingfoundation.com.171 Site disponível em http://www.rtmark.com.
133
Sick Day172 ao prémio Corporate Poetry173 – ‘Poesia Corporativa’ -, atribuído anualmente a discursos
de empresas que abusam da linguagem de gestão. Esta ‘empresa’ anti-corporativa esteve envolvida
em acções famosas de outros grupos como a Barbie Liberation Organization174 datada de 1993, em
que os membros do colectivo financiaram em oito mil dólares (cerca de 6.500 euros) um grupo que
trocou as caixas de voz de cerca de 300 bonecas Barbie e bonecos GI Joe de forma a evidenciar os
estereótipos sexuais dos brinquedos para crianças. Graham Meikle conta que “as bonecas foram de
seguida devolvidas às estantes de lojas de brinquedos, só que com uma nova funcionalidade: a Barbie
gritava ‘Vengeance is Mine’ – A Vingança é Minha -. Outros projectos concluídos pela RTMark
incluiram o financiamento de uma acção levada a cabo por um programador informático consistindo
na inclusão de conteúdos eróticos homossexuais ao jogo de computador Simcopter175, tendo sido
distribuídas 80 mil cópias desta versão e da produção do CD anti-copyright Deconstructing Beck176,
contendo canções compostas inteiramente de samples de gravações do músico Beck – que, por sua
vez, também eram, elas próprias, constituídas em grande parte por samples. De forma a criticar o
défice democrático nos Estados Unidos, criaram o site Voteauction.com177, uma farsa onde se
propunha a compra de votos.
Mas a iniciativa mais popular da RTMark foi o projecto gwbush.com, uma página simulada do site da
primeira candidatura presidencial de George W. Bush, destinada a desmascarar a tensão existente
entre a conhecida ligação de Bush com a cocaína no passado e a sua política conservadora enquanto
governador do estado norte-americano do Texas que levou à prisão de vários consumidores da mesma
droga. A respeito deste site, o actual presidente dos Estados Unidos respondeu que “devia haver
limites à liberdade de expressão”178.
Outra grande farsa deste colectivo surgiu nas vésperas da reunião da Organização Mundial do
Comércio (OMC – WTO) em Seattle, a 30 de Novembro de 1999. Em alternativa ao site oficial desta
instituição (www.wto.org), é criado o site www.gatt.org, identificado como homepage da
OMC/GATT. Com um design completamente idêntico ao do site oficial, o gatt.org contém links para
várias associações activistas a favor de uma globalização alternativa e ecologistas, chegando ao ponto
de incluir um comunicado em que se anuncia o calendário para o termo de todas as actividades da
OMC179. Apesar de o gwbush.com e o gatt.org terem sido os mais espectaculares, estes não foram os
172 Site disponível em http://www.rtmark.com/sick.html.173 Site disponível em http://www.rtmark.com/corpoetry.html.174 Site disponível em http://www.rtmark.com/blo.html175 Site disponível em http://www.rtmark.com/simcopter.html.176 Site disponível em http://www.rtmark.com/db.html.177 Site disponível em http://www.vote-auction.net/vote_auction_original_site_2000. Para mais informações, ver
http://www.vote-auction.net.178 O projecto foi, entretanto, desmantelado, mas a RTMark possui um arquivo com todas as versões do site-farsa em
http://www.rtmark.com/bush.html.179 A história deste projecto pode ser lida em http://www.rtmark.com/gatt.html. O site gatt.org continuava em
funcionamento em Dexembro de 2005.
134
primeiros sites-clones da responsabilidade da RTMark. Nestes projectos, o site do colectivo surgia
disfarçado como a homepage da McDonalds ou da Shell, encontrando-se o conteúdo ‘subversivo’ por
debaixo de uma cópia do site da empresa em questão.
No ano seguinte, a táctica de sobre-identificação da RTMark empregue no Gatt.org é levada ao
extremo com a criação dos Yes Men180, um alter-ego desta auto-denominada "agência de relações
públicas anti-empresarial" (RTMark, 2000 [1998]) que actua como se fosse um grupo de
representantes da OMC em eventos que decorrem em vários pontos do mundo, sem que ninguém da
audiência se aperceba que se trata de uma performance satírica. Assim, tanto podem aparecer numa
conferência de advogados na Áustria como num programa de informação de uma estação de televisão
britânica ou numa convenção da indústria têxtil na Finlândia ou ainda num congresso de contabilistas
na Austrália, sempre a convite de funcionários que não suspeitam da farsa. Ao salientarem e
exagerarem as contradições os aspectos social e economicamente injustos daquela organização, eles
funcionam como "um espelho distorcido do Estado globalizado", como afirma Brian Holmes (2004),
utilizando a mesma linguagem "vazia" e os termos técnicos do código de etiqueta empresarial. Em
lugar da posição habitual do activista de "comunicar com verdade ao poder", optam por "comunicar a
verdade do poder" através do exagero (idem).
A RTMark constitui-se legalmente sob a forma de uma sociedade anónima de responsabilidade
limitada de forma a tirar partido dos benefícios que a legislação dos Estados Unidos concede a este
tipo de entidade jurídica. Este princípio de responsabilidade limitada permite que os membros da
RTMark realizem trabalhos culturalmente subversivos e, por vezes, até ilegais (Galloway, 2004: 228).
Deste modo, o colectivo pretende assim chamar a atenção para o excesso de poder que as empresas
gozam graças a este princípio. Em termos de funcionamento, o colectivo “actua quase da mesma
forma que uma instituição de serviços financeiros, oferecendo uma gama de produtos de investimento
aos consumidores”, afirma Alexander Galloway (idem). “Enquanto que um banco comercial possui
uma gama de opções de investimento, desde fundos tecnológicos a contas poupança reforma, a
RTMark oferece uma série de fundos que representam diferentes campos de produção cultural
subversiva”, explica (ibidem). Os visitantes do site do grupo são encorajados a investir na realização
de projectos, com a promessa de receberem ‘dividendos culturais’ (Meikle, 2002: 116). Acima de
tudo, estes projectos visam questionar os direitos e o poder ‘soberano’ das empresas, apelando, por
exemplo, a uma maior transparência das suas actividades. Para além disso, existe em alguns casos um
incentivo monetário. Assim, o primeiro tribunal dos Estados Unidos que mandar prender ou condenar
à morte uma empresa receberá dois mil dólares (cerca de 1650 euros). Argumentando que, por lei, as
empresas norte-americanas são consideradas cidadãos dos Estados Unidos – possuindo os mesmos
180 Site disponível em http://www.theyesmen.org.
135
direitos que estes -, e que por isso, deve ser possível casar com uma, outro projecto oferece 200
dólares (164 euros) a quem cometer esse feito. O público pode ainda contribuir com tempo,
equipamento ou informação para um projecto e até propor novas iniciativas.
Outro grupo de artivismo que actua como uma empresa é a Etoy181, um colectivo libertário e radical
criado em 1994 e composto por artistas-hackers originários da Suiça, Áustria e Inglaterra que opera
na Internet mediante a realização de projectos críticos que questionam o poderio das grandes
empresas dos media e da Internet. A experiência artística deste colectivo centra-se na abordagem dos
principais temas ligados à evolução da Net: o fim da identidade e a mutação corporal, o papel
fundamental da velocidade, a alteração do conceito de espaço, a relação entre a realidade e Rede ou
entre verdade e Rede, o ciberterrorismo, o perigo de um controlo centralizado e de uma censura
secreta e completamente inapreensível ([email protected], s/d). A Etoy criou a Digital Hijacking, a
primeira tecnologia que permitia efectuar o sequestro virtual de sites. O projecto Digital Hijack –
‘Sequestro Digital’ – foi o primeiro ‘rapto’ em massa na Internet. Mediante a utilização de motores de
busca, pretendia-se demonstrar como um pequeno grupo de empresas controla os destinos de milhões
de cibernautas A acção começou a 31 de Março de 1996 e terminou a 31 de Julho desse mesmo ano.
Durante este período, o grupo conseguiu redireccionar para o seu site cerca de 600 mil internautas,
mediante a criação de centenas de páginas falsas pelos seus agentes de software contendo uma das
2400 palavras-chave mais populares (como sex, heaven, love, porsche ou madonna). Estas páginas
eram incluídas automaticamente nos motores de busca Altavista e Infoseek.182
O objectivo declarado da operação consistiu em obter a libertação de Kevin Mitnick, o cracker mais
famoso de sempre que foi capturado pelo FBI em Fevereiro de 95. Mas a verdadeira intenção foi
mostrar os limites e a potencialidade inexpressa da Rede. Tratou-se assim de uma operação de
sabotagem e crítica do sistema mediático que, através do seu simbolismo, resumiu as principais
questões suscitadas pela massificação da tecnologia digital, como a crise do conceito de espaço e o
risco de um controlo invísivel e centralizado dos motores de busca.
A Etoy assume-se como uma sociedade que produz arte e cultura. Pretende gerar dúvida e confusão
nos media mas também subverter a relação entre arte (em especial, a electrónica) e o mercado. Ao
emitir 640 mil títulos accionistas da ‘empresa’ Etoy, disponíveis no mercado através de uma oferta
pública de aquisição, este colectivo forneceu o primeiro exemplo de comércio de arte concebida
especificamente para a Web. Desta forma, conseguiu resolver duas questões: como ultrapassar a
181 Site disponível em http://www.etoy.com.182 Apesar de se poder encontrar alguns exemplos no site http://www.hijack.org, muitas destas páginas foram
eliminadas. Contudo, conforme esclarece Laura Baigorri (2003), “outras ainda não foram localizadas hoje em dia e ainda que a acção tenha terminado, os membros do colectivo garantem que o projecto irá continuar até que sejam ‘sequestradas’ um milhão de páginas ou até que o Etoy seja removido pelas principais companhias de pesquisa na Web dos seus motores de busca”.
136
intermediação do galerista e dos marchands para difundir as suas próprias obras e o que vender
quando não se produz quadros ou esculturas mas acção, choque e emoção. “As acções representam
uma quota de propriedade na companhia e funcionam de forma semelhante à posse de capital no
sistema do mercado bolsista”, explica Alexander Galloway (2004: 229). Este autor acrescenta que “as
acções Etoy possuem um valor monetário e podem ser adquiridas directamente à companhia. Após
receber um investimento por parte do ‘cliente’, a Etoy emite um certificado original impresso em
alumínio e tornado único mediante a inserção de um smart chip”. O valor das acções Etoy é registado
num gráfico mantido online pela organização. A ascensão e queda do valor do título bolsista
corresponde directamente ao sucesso ou fracasso relativo do grupo artístico no sector cultural. As
acções representam o capital cultural associado ao colectivo em qualquer momento. Os dividendos
culturais devolvidos pelos artistas sobem e descem de acordo com o valor do título.
Mas a iniciativa que tornou este colectivo europeu de arte digital mais famoso foi a Toywar, a guerra
travada com a eToys, uma empresa dedicada ao comércio de brinquedos via Internet (Dominguez,
2002; Meikle, 2002; Baigorri, 2003; Galloway, 2004; Jordan e Taylor, 2004). Em 1995, os membros
do Etoy registaram o nome de domínio etoy.com. Dois anos mais tarde, uma start-up – empresa
tecnológica de elevado potencial que se encontra no início da sua actividade – de venda de brinquedos
online comprou o domínio etoys.com. Em finais de 1999, esta companhia decidiu desencadear um
litígio judicial contra a Etoy devido à utilização deste domínio, receando que os compradores de
brinquedos via Net pudessem ficar confusos e potencialmente ofendidos pelo site dos artistas, se se
enganassem e escrevessem ETOY.COM nos seus browsers em vez de ETOYS.COM. Inicialmente, a
eToys propôs-se a comprar o endereço do colectivo artístico, oferecendo 16 mil dólares (13.140
euros). Mas os artistas recusaram. O caso parecia ter chegado ao fim quando um juíz de Los Angeles
decide a favor da eToys, obrigando assim a Etoy a fechar o seu site da Web e a deixar de utilizar
aquele nome.
No entanto, ocorreu um contra-ataque, o que é algo inesperado em casos de alegada violação de
marca registada accionados por grandes companhias contra indíviduos e organizações com menos
poder. Em pouco tempo, desencadeou-se um movimento de apoio à Etoy composto por milhares de
simpatizantes, como o defensor das liberdades civis John Perry Barlow e o autor Douglas Rushkoff. A
notícia foi bastante difundida pela imprensa. Foram criados sites que ridicularizavam a eToys e
descredibilizavam a propaganda da comerciante de brinquedos e nstauraram-se vários contra-
processos à eToys. O grupo de hacktivistas Electronic Disturbance Theater, em colaboração com a
RTMark, desencadeou um sit-in virtual com o seu software FloodNet de forma a bloquear o acesso ao
site da retalhista de brinquedos. Outra arma de ataque virtual empregue foi a plataforma da “guerra
dos brinquedos”, que constituia uma sala de chat com gráficos que utilizava imagens de soldados
137
semelhantes a figuras da Lego. O espaço – que só ficou operacional quando a “guerra” já estava
virtualmente ganha – deveria ter servido como local de coordenação das acções (Jordan e Taylor,
2004: 83-84). A onda de protestos – que chegou mesmo às salas de chat e fóruns de discussão online
dos investidores - gerou uma forte diminuição das vendas da eToyse uma descida do seu título
bolsista, levando a empresa a ceder e a retirar o seu processo contra a Etoy no dia 25 de Janeiro de
2000. No ano seguinte, acabou por declarar falência. As actividades artivistas de grupos como este
colectivo europeu e a RTMark passavam assim pela primeira vez a ter um impacto efectivo no
‘mundo real’ do capitalismo, deixando de ser apenas iniciativas simulatórias e virtuais183.
Esse é também o objectivo por detrás de um novo projecto artivista de um dos elementos da Etoy ,
Hans Bernhard, agora através da "organização" Ubermorgen.com184 e em colaboração com o crítico
italiano dos media Alessandro Ludovico185. Intitulado Google Will Eat Itself (GWEI - "O Google irá
comer-se a si próprio"), esta iniciativa assenta num modelo económico que pretende funcionar como
um parasita daquela empresa de pesquisa e publicidade na Web, gerando dinheiro através da
disponibilização de mensagens publicitárias do Google no site GWEI.org186. Cada vez que uma
pessoa visita um dos sites secretos do projecto espalhados pela Net, um software especial clica num
anúncio disponibilizado através do programa de anúncios AdSense do Google. Por cada clique num
anúncio, os artivistas recebem do Google um pequeno montante. Quando a quantia reunida é
suficiente, é dada automaticamente ordem de compra de uma acção da companhia. Conforme se pode
ler no site, o objectivo último desta "desconstrução dos novos mecanismos da publicidade global" é
"comprar o Google através da própria publicidade que disponibiliza"187. No final, a propriedade
comum das acções do Google obtidas através deste sistema será concedida à empresa pública Google
To The People Ltd.188 (GTTP - "O Google Para As Pessoas") que as devolverá aos utilizadores que
tiverem clicado nos anúncios (GWEI, 2005). O que está em causa em GWEI é o desejo de
desmascarar o monopólio total de informação obtido pelo Google189. Ao mesmo tempo, a intenção é
183 Jordan e Taylor, que não empregam o termo artivismo, afirmam que a campanha da Etoy representa “um cruzamento entre o hacktivismo e o culture jamming (2004: 83).
184 Site disponível em http://www.ubermorgen.com185 Ludovico é responsável pelo Neural.it, um site italiano disponível em http://www.neural.it, que divulga informação
sobre música electrónica, hacktivismo e Net.art.186 Disponível em http://www.gwei.org. 187 Por agora, essa meta parece ser excessivamente ambiciosa pois a 19 de Dezembro de 2005 os organizadores ainda
só tinham conseguido comprar 40 títulos bolsistas e a este ritmo levará 3,5 milhões de anos até que tomem o controlo total da empresa, segundo os dados que disponibilizam em http://www.gwei.org/pages/google/googleshare.php.
188 Os utilizadores interessados podem preencher um formulário online em http://www.gwei.org/pages/gttp/gttp.php.189 Através do seu motor de pesquisa e de serviços derivados como notícias e email, o Google tornou-se o site mais
visitado da Web e conseguiu construir uma enorme base de dados dos termos pesquisados e mensagens recebidas que, quando cruzados, permitem traçar um perfil de hábitos e interesses pessoais dos seus utilizadores. Daqui deriva o sucesso do seu programa de colocação de mensagens publicitárias em sites como blogs. Os bloggers recebem uma pequena quantia por cada clique nesses anúncios. A companhia funciona assim como um gigante intermediário entre os anunciantes, os produtores de conteúdos como os bloggers e os utilizadores. Em relação a este assunto, o cartoon "Google 2084" de Randy Siegel publicado como editorial do jornal New York Times a 10 de Outubro de 2005, é um exercício de futurologia sarcástica que actualiza o cenário de controlo total da informação descrito por George Orwell em 1984 segundo o qual o Google será o novo Grande Irmão que colocará os detalhes mais intímos da vida
138
também revelar as falhas do sistema global de publicidade online. Através de uma ideia que retoma o
pensamento de Galloway (2004), Hardt e Negri (2000; 2004) e Arquilla e Ronfeldt (2001), os
organizadores do GWEI defendem que o maior inimigo de um gigante não é outro gigante mas um
parasita: "Se um número suficiente de parasitas sugar pequenas quantias em dinheiro desta entidade
auto-referencial, eles irão esvaziar esta montanha artificial de dados e o seu risco inerente de
totalitarismo digital" (GWEI, 2005a).
Um projecto que também se situa na área do artivismo é They Rule190, um site da responsabilidade de
Josh On e do colectivo de artistas Future Farmers191 que revela as ligações existentes entre políticos,
industriais e o sector empresarial. Através de mapas e directórios interligados, pode-se ver quem se
senta nos quadros de direcção das 500 maiores companhias norte-americanas – com base no índice
composto pela revista Fortune. Para além disso, permite saber quais os cargos adicionais que esses
executivos desempenham noutras empresas e instituições políticas e de ensino, bem como as doações
políticas que fizeram, quer em termos individuais como colectivos. Os utilizadores podem construir
mapas de influência e guardá-los no site para que outros visitantes possam visualizá-los e avaliá-los.
Este projecto, actualmente na sua segunda versão – lançada em 2004; a primeira data de 2001 -, é
também uma tentativa de demonstrar as relações que existem entre alguns dos mais poderosos
executivos empresariais dos Estados Unidos ao exibir visualmente as companhias em que estão
envolvidos e como essas organizações, como a Coca-Cola, Pepsi, Microsoft, IBM, Procter & Gamble
e HP podem lucrar com essa relação.
A cartografia das estruturas complexas do poder transnacional é uma tarefa também desenvolvida
pelo grupo Bureau d'Etudes. Um dos seus mapas é "Governo Mundial"192, uma representação das
“relações de poder no mundo detidas por um complexo intelectual capaz de coordenar, acumular e
concentrar os meios para a definição das normas e determinação do desenvolvimento do capitalismo".
O Bureau d'Études apresenta-se como um serviço informações (intelligence) open-source em que os
dados produzidos estão disponíveis livremente para todos. Segundo Brian Holmes, o aspecto artístico
das suas criações baseia-se sobretudo no "design gráfico, na invenção icónica, mas também na
audacidade experimental das hipóteses que desenvolvem, no sentido de explicitar o impacto de
hierarquias distantes implicadas na tomada de decisões na vida quotidiana" (Holmes, 2005). Tal
como outros artivistas, fazem questão de disponibilizar livremente os seus trabalhos em papel ou pela
Internet, colaboram nos projectos de outros colectivos, partilhando uma atitude de desconfiança face
ao sistema tradicional de distribuição da arte através dos museus. Nos seus planos futuros está o
privada de cada um acessíveis a todos: http://www.nytimes.com/imagepages/2005/10/10/opinion/1010opart.html190 Site disponível em http://www.theyrule.net.191 Site disponível em http://www.futurefarmers.com.192 Bureau d'Études (2004), Le gouvernement mondial, états post-nationaux, réseaux d'influence, biocratie, Estrasburgo,
Éditions Homnisphères. Este e outros mapas do colectivo estão disponíveis em http://ut.yt.t0.or.at/site/index.html.
139
desenvolvimento de um "gerador de mapas": "Uma máquina que permita que todos possam produzir
os mapas de que necessitem para as suas acções, mediante a introdução de dados relativos à empresa
ou instituição em que trabalham ou sobre a qual encontraram alguma informação"193. Com esta
tecnologia, pretende-se "identificar a organização espacial e a hierarquia de propriedade das linhas
fragmentadas de produção da economia global a longo prazo e, ao mesmo tempo, sugerir a
possibilidade de formações alternativas que possam articular diferentes públicos" (idem). Para Brian
Holmes, iniciativas como o Bureau d'Études e They Rule são formas de intervenção artística ao nível
da geopolítica que vão mais além da representação simbólica do inimigo no sentido em que revelam o
potencial político da sociedade mundial, a capacidade de transformar as hierarquias do poder global
(ibidem).
Visando romper com o “monopólio técnico-estético” dos navegadores da Web Internet Explorer da
Microsoft e Netscape Navigator da AOL, o Web Stalker194, do colectivo britânico I/O/D195, é um
browser alternativo que em vez de mostrar páginas comuns da Web, revela as redes de hiperligações
que estas páginas representam (Manovich, 2001; Berry, 2002; Galloway, 2004). Quando um
cibernauta introduz o endereço de uma determinada página, o Web Stalker exibe numa janela todas as
páginas ligados a esse endereço sob a forma de um gráfico de linhas, revelando noutra janela o
código-fonte da página. Este projecto demonstra que, como afirma Matthew Fuller, “uma vez que
todo o código HTML – linguagem de programação de páginas da Web - é recebido por um
computador sob a forma de um fluxo de dados, não existe nada nesse código que obrigue a seguir as
instruções de design nele escritas. Estas instruções são apenas cumpridas por um dispositivo
obediente a elas” (Fuller, 1998). Assim, a aparência do HTML no monitor depende do programa
empregue para recebê-lo. O fluxo de HTML é concebido pelos membros do I/O/D como uma corrente
que pode ser interpretada por um software diferente de uma forma completamente oposta à
inicialmente intencionada pelo Web designer.
A intervenção artística nas ruas com fins políticos e sociais é também uma componente dos projectos
colaborativos artivistas. A manutenção de um espaço virtual na Internet para divulgar informação é,
tal como no hacktivismo, uma prática corrente. O colectivo italiano Chainworkers196, de Milão, actua
como uma organização laboral que apesar de não ter quaisquer intenções estéticas directas, aspira
"desenvolver uma linguagem icónica que possa alcançar em simultâneo os jovens que desempenham
tarefas de serviços em cadeias de lojas, trabalhadores temporários e intelectuais free-lancers", refere
Brian Holmes (2004). Entre o seu leque de acções contam-se a realização de manifestações e a
193 Bureau d'Études (2004), "Resymbolising Machines: Art After Oyvind Fahlstrom", Third Text, nº 18, Junho, págs 609-616. Citado por Holmes (2004).
194 Site disponível em http://www.backspace.org/iod/iod4.html.195 Site disponível em http://www.backspace.org/iod/index.html.196 Site disponível em http://www.chainworkers.org.
140
afixação de faixas com mensagens de protesto em centros comerciais, o que é considerado ilegal uma
vez que o direito de reunião pública dentro destes espaços é bastante constragido (idem). O site deste
colectivo funciona como um recurso de informação jurídica e um meio de criar uma consciência
colectiva. O Chainworkers foi ainda responsável pela reinvenção da tradicional manifestação do
Primeiro de Maio, adaptando o conceito de manifestação às condições laborais do século XXI em que
as economias ocidentais assentam sobretudo no trabalho precário e flexível. O sucesso do
EuroMayday197 acabou por superar as iniciativas lideradas por sindicatos: a primeira edição, em 2001,
reuniu cinco mil participantes em Milão, ao passo que a terceira, em 2003, conseguiu congregar 50
mil pessoas na mesma cidade italiana. No ano seguinte, a iniciativa alargou-se a Barcelona e, em
2005, difundiu-se para o resto da Europa, tendo esta edição abarcado 19 cidades do continente. Brian
Holmes descreve um pouco o ambiente que se vai vendo ao longo das ruas durante estes eventos:
Dançarinos com écharpes de plumas rosa que entram numa loja Zara para sabotar o comércio da moda; trabalhadores africanos que envergam máscaras brancas que têm escrito "invísivel"; um boneco gigante representando os diferentes tipos de empregos temporários ("escravos" dos call-centers; entregadores de pizzas; operários da construção civil que recebem ao dia), Uma enorme faixa verde envolve a parte lateral de um camião que transporta uma aparelhagem sonora por entre a multidão: "A metrópole é uma besta: cultiva a micropolítica da resistência". Um dos cartazes do evento exibe um contorcionista de um circo antiquado - uma alegoria do trabalhador flexível na sociedade do espectáculo (ibidem).
Para além de desenvolver uma "linguagem estética sob a forma de um território de expressão”, o
EuroMayDay reinvidica um conjunto de garantias mínimas de modo a tornar o trabalho flexível
numa actividade digna e viável: "um ambiente urbano não-poluído; habitação e cuidados de saúde
generalizados; educação pública de qualidade; acesso às ferramentas de produção de informação -
mas também ao tempo e aos espaços necessários para a produção social e afectiva" (idem). Os
trabalhadores precários ou atípicos exigem assim um novo regime de segurança social que os protega
sem renunciar à flexibilidade, a "flexigurança", como é designada por Marcello Tari e IIaria Vanni
(2005). Do mesmo modo que outros elementos da geração pós-fordista a que pertencem, não
procuram obter uma posição permanente e para toda a vida (idem).
Em Fevereiro de 2004, os Chainworkers introduziram uma nova performance, São Precário198, o
santo patrono dos precários em substituição do papel tradicional de líder e porta-voz, uma figura com
uma história própria que tem surgido de uma forma nomádica em diversas cidades da Itália. Matteo
Pasquinelli considera que se trata de uma "estrela pop open-source (tal como o seu percussor Luther
Blissett) que funde personagens arquétipas do imaginário colectivo italiano (os santos) com as mais
recentes personagens sociais (os trabalhadores temporários)" (Pasquinelli, 2005). Na medida em que
197 Site disponível em http://www.euromayday.org.198 Site disponível em http://www.sanprecario.info.
141
se "apropria da tradição católica italiana de transportar estátuas de santos em procissões nos espaços
públicos", este novo héroi é visto por do mesmo ângulo que já abordámos anteriormente: funciona
simultaneamente como "um détournement, uma Zona Temporária Autónoma, um carnaval" (Tari e
Vanni, 2005). O santo, que também faz milagres, "aparece em espaços públicos durante a realização
de comícios, marchas, intervenções, manifestações, festivais de cinema, feiras de moda e, é claro,
procissões". A personagem fez as suas primeiras aparições a 29 de Fevereiro - data fixada para o dia
desta nova "devoção" -, e desde então multiplicou-se materialmente em diferentes disfarçes - pois
"não privilegia uma classe de precários em relação a outra", tendo também já surgido sob a forma de
uma figura feminina (idem). O culto gerou um grande número de seguidores, o que levou à criação de
uma série de acessórios e rituais associados à santidade como várias e diferentes estátuas que são
transportadas em procissões, atributos iconográficos, hagiografia - narrativa biográfica -, uma oração,
campo de especialização e até mesmo o seu próprio santuário, numa praia de Lido di Veneza
(ibidem).
A capacidade de São Precario se transfomar a qualquer momento num novo imaginário ficou bem
patente na sua mutação em Serpica Naro199, um estilista anglo-nipónico "virtual" com um site200
próprio de aspecto profissional semelhante aos de outros designers de moda, que conseguiu ser aceite
pelos organizadores da Semana da Moda de Milão, sem que estes soubessem que se tratava de uma
farsa. Mesmo antes de desfilar, a figura despertou um grande interesse junto dos media comerciais,
tanto generalistas como especializados, que eram incentivados por comunicados de imprensa
supostamente oriundos de um gabinete de comunicação em Tóquio. Para gerar mais controvérsia, os
Chainworkers puseram a circular a informação de que Serpica tinha explorado a comunidade gay
japonesa ao copiar e comercializar o seu visual depois de ter proposto uma colaboração com eles. O
desfile, realizado a 29 de Fevereiro de 2005, contou com oito modelos concebidos por Serpica
abordando o tema da flexibilidade e das condições de trabalho precárias, seguido de uma passagem
de modelos criados por jovens estilistas que se recusam a comprometer com o sistema da moda. No
final, foi anunciado que Serpica Naro não existia, tendo a comunicação social divulgado amplamente
a história. Matteo Pasquinelli considera que, para além de "ter sido útil na condenação das condições
dos trabalhadores precários dentro da indústria italiana da moda", a personagem serviu para "criar
uma metamarca - uma marca que engloba outras, como um franchising - aberta que qualquer estilista
de 'moda radical' pode empregar" (Pasquinelli, 2005). Mais do que uma mera partida, "Serpica Naro é
uma versão generosa da Marca Registada" em que "todos podem ser estilistas"; "qualquer um que se
identifique com Serpica pode fazer parte dele", pode-se ler no comunicado final201 elaborado pelos
Chainworkers.
199 Um anagrama do nome do santo, ou seja, uma palavra formada pela alteração da ordem das letras de outra palavra.200 Disponível em http://www.serpicanaro.com/website/index.html.201 Disponível em http://www.serpicanaro.com/press/oper_serpica_en.zip.
142
Yomango202 foi um dos grupos que elaborou modelos para o desfile de Serpica Naro. Trata-se de um
projecto da responsabilidade de Las Agencias203, um colectivo de Barcelona que desenvolve vários
projectos tácticos recorrendo a tecnologias digitais para produzir e distribuir fisicamente ou online
cartazes, folhetos, autocolantes e vídeos. O nome desta metamarca associa a cadeia espanhola de
lojas de roupa Mango com um termo do calão castelhano que pode ser traduzido para "Eu roubo
(gamo)". O projecto disponibiliza informação e recursos para promover o furto de roupas e outros
produtos comercializados por transnacionais como a Mango, organizando ainda acções colectivas de
"gamanço" e jantares "Yomango" para o consumo dos bens alimentares furtados.
Tal como as outras marcas, "o seu objectivo não é a venda de produtos mas de estilos de vida"
(Pasquinelli, 2005). Com a diferença de que enquanto que o "mercado capta desejos, expectativas e
experiências e vende-os como produtos, o estilo Yomango promove a 'reapropriação' do que foi em
tempos parte do domínio comum" (idem). Mas este tipo de sabotagem no espaço físico tem o
inconveniente de poder facilmente ser associado a e degenerar na criminalidade, acabando por entrar
no jogo do opositor. Esta situação gera um dilema em relação às potencialidades de mudança que os
media tácticos apresentam que desenvolveremos mais adiante.
202 Site disponível em http://www.yomango.net203 Site disponível em http://www.sindominio.net/lasagencias.
143
5.4 – A Rede Informativa Indymedia: Jornalismo open source
Toda a gente é testemunha. Toda a gente é jornalista. Toda a gente edita.
- Matthew Arnison, Open editing: a crucial part of open publishing.
Um dos órgãos de mediactivismo mais originais e populares do movimento por uma globalização
alternativa é a rede informativa Indymedia (Centro de Media Independente - CMI), criada em Seattle
no mês de Novembro de 1999, nas vésperas das manifestações contra a reunião da Organização
Mundial de Comércio que teve lugar nessa cidade norte-americana na mesma altura.
Desde então, esta rede cresceu exponencialmente, possuindo actualmente cerca de 150 centros
autónomos espalhados pelos cinco continentes e abarcando mais de 20 línguas, incluindo o
português204 e contando com cerca de cinco mil jornalistas-editores voluntários. Logo no primeiro mês
de vida, graças à extensa cobertura dos protestos contra a OMC, o site de Seattle205 atingiu uma média
de 1,5 milhões de acessos. Durante a semana dos confrontos em Génova, no decorrer da reunião do
G8 em Julho de 2001, as páginas dos sites da rede informativa chegaram aos cinco milhões de
visualizações. Segundo uma estimativa da Indymedia, as suas páginas são visualizadas 500 mil a dois
milhões de vezes por dia (Indymedia, 2005a). Cada centro está representado na Web com um site
multimédia que no seu conjunto fornecem uma fonte importante de informação em relação às lutas
dos movimentos activistas contra a globalização conduzida pelas empresas transnacionais, bem como
de notícias de campanhas locais, nacionais e internacionais a favor da paz e da justiça social. A
Indymedia caracteriza-se por uma estrutura não-hierárquica, dado que as decisões nos colectivos
locais e a nível internacional são tomadas em consenso, segundo um modelo de democracia
participativa. Funcionando com um orçamento bastante limitado, esta rede independente de notícias
subsiste com base em trabalho voluntário e doações. Baseando-se em simultâneo na tradição dos
media alternativos e no movimento dos media tácticos, o CMI funciona ao mesmo tempo a nível
local, regional e internacional, através de suportes multimedia online e outros media offline mais
antigos.
A sua principal contribuição advém, porém, do público, através de um sistema de publicação aberta –
open publishing - (Kidd, 2003 e 2003a; Meikle, 2003). Trata-se de uma nova forma de produção e
recepção mediática participativa que encoraja as próprias pessoas a tornarem-se nos media ao publicar
os seus artigos, análises e informação para os sites da rede a partir de qualquer computador ligado à
204 Para além do Centro de Media Independente Portugal (pt.indymedia.org), existe também o Indymedia Brasil (www.midiaindependente.org/). Este último, por sua vez, integra 11 CMIs locais: Belo Horizonte, Brasília, Campinas, Caxias do Sul, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
205 Disponível em http://seattle.indymedia.org.
144
Internet. Para além disso, “as audiências podem tornar-se nos seus próprios editores de notícias,
recorrendo a várias opções interactivas e em rede para seleccionar informação a partir de um vasto e
diverso conjunto de fontes informativas, links para recursos e oportunidades de discussão com origem
em vários locais do globo”, afirma Dorothy Kidd (2003).
Inicialmente desconfiados face à qualidade jornalística deste modelo aberto e politicamente radical, os
media comerciais dominantes passaram a citar as notícias produzidas pela Indymedia, sobretudo no
caso das grandes manifestações (Halleck, 2002). Na primavera de 2003, após a invasão do Iraque
pelos Estados Unidos, manifestantes paralizaram a cidade de São Francisco. Os jornalistas do CMI
estavam lá e "revelaram vários casos de brutalidade policial que escaparam aos principais órgãos de
informação" (Gillmor, 2004: 141). Posteriormente, Bob Cauthorn, antigo vice-presidente da divisão
de media digitais do jornal San Francisco Chronicle comentou: "O Indymedia mandou-nos ir dar uma
curva" (idem).
Como afirmam Cardon e Granjon, o sucesso desta rede mediática deriva “de um lado, da integração
horizontal de diferentes actores do movimento dos media alternativos norte-americanos e, de outro
lado, da implementação de processos organizacionais que favorecem a cooperação e a
horizontalidade” (Cardon e Granjon, 2003). Em 1999, antes do encontro da OMC em Seattle, os
colectivos independentes de videoactivismo como a Free Speech TV, a Paper Tiger TV, a Deep Dish
TV, a Big Noise Films, Whispered Media e outros estavam então bastante empenhados na campanha
de mobilização contra a condenação à morte do jornalista afro-americano de rádio Mumia Abu Jamal.
De forma a coordenar e concertar a intervenção mediática em oposição à data de execução marcada
pelo estado norte-americano da Pensilvânia, os activistas organizaram pontos de encontro físicos para
a partilha dos vídeos e programas radiofónicos produzidos pelos diferentes grupos. A iniciativa foi
bem sucedida, dado que o Estado adiou a execução, embora Mumia continue preso.
Tendo em conta a convergência de vários grupos no final de 1999 em Seattle, os organizadores da
iniciativa mediática em defesa de Mumia concluíram que “o mesmo tipo de campanha podia ser
utilizado para enviar a mensagem do movimento anti-corporation ao público”, como refere a activista
DeeDee Halleck numa entrevista (Vallauri, 2002). Seis meses antes da reunião da OMC começou
assim a ser projectada uma colaboração inter-mediática semelhante, através da criação de um site na
Web para partilhar documentos e informações contribuídos por vários colectivos mediactivistas e
videoactivistas. Na altura da organização da cobertura mediática das manifestações contra a OMC,
contudo, “a ideia de uma presença Web para o futuro evento era apenas um pequeno complemento em
relação às actividades mediáticas tradicionais que estavam a ser planeadas”, explica Kidd (2003). Para
além da publicação online, o CMI Seattle elaborou ainda um jornal diário impresso - "The Blind
145
Spot" -, uma hora diária de televisão por satélite e rádio (Halleck, 2002). Estes programas eram depois
retransmitidos por estações comunitárias nos Estados Unidos e um pouco por todo o mundo (idem).
A adopção do software open-source Active206, desenvolvido por Matthew Arnison, do colectivo
australiano de Sidney Catalyst (ou apenas CAT – Community Activist Technology)207, como base
tecnológica para o primeiro site do CMI foi fundamental para que o espaço online da rede mediática
independente assumisse o papel que veio a desempenhar na sua expansão. O Active integra três
funcionalidades: publicação aberta, serviço de alerta de recepção de emails e calendário de eventos.
Graças às potencialidades deste software, qualquer pessoa podia publicar no site um relatório, clip de
vídeo, fotografia ou ficheiro áudio. “Era tão fácil como enviar um email”, refere Graham Meikle
(2003). Do mesmo modo, qualquer um podia descarregar uma peça noticiosa em formato de texto,
vídeo e áudio no minímo tempo possível. O objectivo da arquitectura do site era disponibilizar a
máxima acessíbilidade aos seus utilizadores, tanto para o download como para o upload de ficheiros.
Este sistema tornou-se também a base para os outros centros Indymedia que surgiram posteriormente,
embora hoje não seja a única plataforma empregue nos sites da IMC (Meikle, 2002 e 2003, Halleck,
2003).
Como se pode ver, o CMI foi o resultado de uma conjuntura histórica em que um movimento social
global em emergência e dois grupos de trabalhadores qualificados cooperaram entre si utilizando
novas tecnologias digitais. Um desses grupos foi o dos técnicos informáticos e outros hackers,
oriundos de todo o mundo e compartilhando um espírito colaborativo herdado do movimento pelo
software livre. Foram eles que criaram o ambiente digital composto por software livre e código-fonte
aberto, responsável, em certa parte, pelo rápido crescimento da rede CMI, dado que todos os centros
podiam partilhar o software (Kidd, 2003). Trabalhando voluntariamente durante muitas horas, estes
técnicos imbutiram no CMI os valores da cultura hacker da Internet, em particular, a partilha do
código-fonte do software e a produção comunitária do código. Segundo Matthew Arnison, o CMI
adopta a mesma abordagem em relação à liberdade dos media que o movimento pelo software livre
aplica ao software (Arninson, 2001). Os conteúdos informativos são também publicados segundo
diferentes tipos de licenças abertas, consoante a decisão de cada centro. Enquanto o CMI-Portugal,
por exemplo, adoptou uma licença Creative Commons que autoriza a sua utilização para fins
comerciais, desde que a fonte seja mencionada, o CMI-Brasil - empregando incorrectamente uma
licença copyleft - apenas permite usos não-comerciais.
Outro factor importante para a constituição da Indymedia Seattle foi a colaboração entre
mediactivistas e artistas novos e velhos vindos de rádios e televisões comunitárias, colectivos
206 Site disponível em http://active.org.au/doc.207 Site disponível em http://www.cat.org.au.
146
independentes de produção de vídeos, zines – pequenas publicações produzidas por amadores,
frequentemente sem periodicidade regular – e da imprensa alternativa. “Esta colaboração inicial ainda
continua nas equipas regionais de vídeo, rádio e imprensa da CMI" assim como no grupo de trabalho
dedicado às notícias de destaque, que é responsável pela coluna central do site global”, escreve
Dorothy Kidd, acrescentando que “vários centros combinam os novos media com formatos mais
antigos como a imprensa, rádio, televisão e vídeo, actualmente ainda os media dominantes junto de
muitas classes trabalhadores e comunidades mais pobres, quer no norte, quer no sul” (2003).
A rede CMI contou também desde o seu início com a participação do movimento global por uma
justiça social – ou por uma globalização alternativa. Muitos centros surgiram como resposta a
conferências de entidades representando o capital corporativo global como a da OMC em Seattle, a do
G8 em Génova e a da Zona de Comércio Livre das Américas no Quebeque (Abril de 2001). A
emergência deste movimento fez com que os grupos activistas “reconhecessem a importância dos
media alternativos e o papel central da oligarquia da informação/entretenimento no capitalismo
global”, salienta DeeDee Halleck (2002). Os media comerciais eram, assim, considerados parte do
problema. “Para estes activistas, uma parte imprescindível da resposta ao neo-liberalismo consiste em
criar novos modos de comunicação” (idem).
De forma a combater a globalização orquestrada por instituições e empresas que não têm pátria, a
Indymedia apresenta-se também ela como um media sem fronteiras, expandindo com êxito o modelo
regional introduzido por alguns órgãos alternativos em décadas anteriores. Apesar do carácter global
da rede informativa, cada site da Indymedia publica informação relativa à sua comunidade ou país,
como é o caso do CMI-Portugal
Referindo-se à influência do movimento dos media tácticos e do festival Next Five Minute na IMC,
Halleck escreve:
Muitas correntes diferentes vieram a congregar-se na Indymedia: a comunidade videoactivista, os piratas de micro-rádios, escritores de código/hackers dos computadores, produtores de zines e o universo da música Punk. Estes activistas foram inspirados e projectados por uma série de eventos denominados Next Five Minutes, organizados por Geert Lovink, David Garcia e outros em Amesterdão, durante a década de 90. Estes encontros abriram uma janela para as possibilidades de mega-eventos colaborativos e participativos (ibidem).
O movimento Zapatista foi “uma das principais inspirações do CMI e um exemplo paradigmático de
pessoas coordenando grupos e accões locais no interior de uma comunidade global diversificada”,
afirma Douglas Morris (2004: 328). A utilização da Internet pelos zapatistas para fins de coordenação
e acção viria a influenciar os participantes da rede Indymedia. O Zapatismo funcionou como modelo
para a criação de uma comunidade global composta por vários centros locais, ligadas entre si pela
147
tecnologia, com vista a debater e a dar uma perspectiva noticiosa alternativa e em tempo real de
situações de emergência como a que ocorreu em Seattle, no final de 1999. A estrutura aberta e
horizontal que está por detrás da Indymedia é bastante valorizada pelos seus participantes, que são na
sua maior parte muito desconfiados em relação a qualquer tipo de liderança centralizada ou ‘quadro
de directores’ (Halleck, 2003).
Tal como outros media alternativos anteriores, a rede CMI rejeita o modelo dos media comerciais, em
que a informação é mercantilizada e comercializada a audiências passivas através dos canais dos
media corporativos. No entanto, em contraste com a lógica alternativa tradicional de oposição à
hegemonia dos media, a abordagem da IMC consiste em rejeitar as ideologias partidárias e em
colocar directamente os media ao serviço da mobilização, assemelhando-se assim à acção directa nas
ruas (Cardon e Granjon, 2003; Kidd, 2003). Os seus elementos não pretendem apenar difundir contra-
informação, mas também alterar as relações de produção e recepção dos media. O CMI promove uma
cultura DIY que abrange tanto os produtores como as audiências, o que implica o minímo de gate-
keeping possível. Assim, em vez de consumidores passivos de informação, as audiências são
encorajadas a navegarem de uma forma activa na enorme quantidade de notícias, artigos de opinião e
debates disponíveis nos vários sites locais da Indymedia, a publicarem as suas histórias e a
comentarem as dos outros, bem como a tornarem-se nos seus próprios editores de informação.
A partir da criação do centro em Seattle durante as manifestações contra a OMC, a rede CMI cresceu
muito rapidamente. Desde o início de 2000 até Outono de 2003, o ritmo de criação de novos centros
foi em média de um em cada 11 dias (Beckerman, 2003). À medida que a onda de protestos contra a
globalização neo-liberal ia crescendo, também a Indymedia se expandia, com a adesão de novos
centros ou devido ao aumento do apoio internacional em lugares de tensão espalhados pelo globo,
como Chiapas, Palestina, Israel, apesar de alguns, como o do Iraque208, não terem subsistido. Para
além de partilharem o código que serve de base aos sites, os centros tiram também partido dos
mesmos servidores. A estrutura descentralizada da rede possibilita que cada centro se administre a si
próprio, de uma forma autónoma, depois de assinar um acordo mútuo com a rede CMI, o que reduz ao
minímo os custos com gastos centrais (Kidd, 2003). Contudo, uma prática comum é a deslocação de
técnicos da Indymedia a partes empobrecidas do mundo para ajudarem à implementação dos centros e
prestarem formação em tecnologias de informação aos voluntários (Beckerman, 2003). Outro nível
em que a cooperação se nota é em relação ao aproveitamento das notícias produzidas pela rede, dado
que é frequente os textos serem traduzidos para duas ou mais línguas209.
208 Em 2004 o site informativo independente Al-Muajaha (www.almuajaha.com) tinha iniciado o seu processo de adesão ao CMI, mas presentemente (Dezembro de 2005) já não se encontra online.
209 Note-se, porém que que a grande maioria dos centros continua a localizar-se na Europa e América do Norte, em comparação com uma fraca presença dos centros existentes nos continentes africano (5) e asiático (11)., como se pode verificar na barra lateral esquerda do site principal da Indymedia.
148
Este ritmo impressionante de crescimento provocou, contudo, alguns efeitos secundários indesejáveis,
como esclarece Dorothy Kidd ao notar que, “tal como muitos dos anteriores media alternativos, a rede
CMI enfrenta continuamente problemas de sustentabilidade, distribuição desigual de recursos pelas
diferentes regiões do globo, ataques de governos e indíviduos hostis, bem como as dificuldades
inerentes à criação e manutenção de um modelo de comunicação mais democrático num ambiente
mediático corporativo cada vez mais privatizado e fechado” (Kidd, 2003).
De forma a contrariar essa privatização dos media e a romper com o modelo comercial que mistura
informação e entretenimento, apostou na abertura do sistema de comunicação através da rápida
admissão de novos grupos-membros, da partilha do código-fonte que serve de base aos seus sites e,
em especial, mediante o desenvolvimento da arquitectura de publicação aberta. Esta decisão, no
entanto, acarretou alguns problemas: vários sites, em especial os CMIs de Israel e da Palestina, foram
sistematicamente alvo de ataques de hacking e a rede está cheia de comentários racistas, de extrema-
direita e carregados de ódio ou artigos contendo propaganda comercial ou partidária. Isto também
acontece no CMI-Portugal, como veremos mais à frente. Do mesmo modo, apesar do processo rápido
de publicação de conteúdos ter permitido a difusão de uma quantidade enorme de material, a sua
qualidade é muito desigual. Muitos dos artigos são escritos por e para activistas, revelando pouco
cuidado na apresentação de informação antecedente e de um contexto para a história em questão. Os
artigos e comentários não contêm informação que possa identificar o autor como endereço de email e
IP, podendo, se quiser, empregar um pseudónimo. Do mesmo, os editoriais elaborados por cada
colectivo de voluntários não são assinados.
Embora a rede CMI tenha mantido em grande parte a sua estratégia de abertura, foram introduzidas
algumas alterações à arquitectura de publicação aberta de forma a dar resposta a esses problemas e a
promover a diversidade e unidade global. Em Março de 2002, circulou na rede uma proposta para
remover o serviço informativo permanente de publicação aberta da coluna central do site global,
substituindo-o por uma selecção dos editoriais publicados pelos sites locais. Em Abril de 2002, depois
de um processo de votação em que 15 centros, desde o Brasil até Barcelona, aprovaram
unanimamente a reforma, o serviço de newswire em modo de publicação aberta foi retirado da
homepage. Muitos sites locais adoptaram em seguida a mesma medida (Meikle, 2003). Por outro
lado, a maior parte dos centros são mais monitorizados, sendo por vezes atribuído aos artigos uma
classificação pelos utilizadores ou membros do colectivo. O grupo de trabalho responsável pela
coluna central elimina mensagens em duplicado e com conteúdo comercial, enviando as que possuem
conteúdo potencialmente desagradável para uma secção de ‘artigos escondidos’. Este conjunto de
alterações geraram alguma controvérsia, dado que muitos activistas opuseram-se a quaisquer novos
149
protocolos de gate-keeping.
Esta tendência em direcção à selecção ou, pelo menos, classificação dos conteúdos, poderá levar a
uma profissionalização da redacção e edição de notícias na Indymedia, com uma maior utilização de
jornalistas profissionais, aproximando-se assim do modelo tradicional dos media alternativos. Mas,
por outro lado, o novo destaque concedido às notícias locais, poderá significar um maior
envolvimento por parte do público, actuando potencialmente como editores: os membros da audiência
poderão, por exemplo, verificar factos e acrescentar fontes, corrigir a ortografia, gramática e
formatação, escolher um tópico dentro do qual cada estória pode ser arquivada ou traduzi-la para
outra língua. A este processo, Matthew Arnison dá o nome de ‘edição aberta automatizada’
(Arninson, 2002). Se for implantado com êxito, este conceito poderá revolucionar o jornalismo online
e o próprio jornalismo, na medida em que, como afirma Graham Meikle, “poderá envolver não apenas
mais pessoas no desenvolvimento de notícias informativas, mas envolvê-las através de novas formas,
apelando para uma gama mais vasta de capacidades e aptitudes do que a publicação aberta só por si”
(Meikle, 2003).
Meikle conclui que este modelo poderá potenciar a emergência de um novo ambiente mediático mais
pluralista. Mas essa possibilidade pode vir a ser comprometida, sobretudo se tivermos em conta as
acções de repressão e controlo que as forças de segurança norte-americanas e europeias têm vindo a
efectuar contra a Indymedia. Já em 2001, durante a reunião do G8 em Génova, o edíficio que
albergava o centro local foi alvo de um ataque pela polícia italiana que prendeu os 90 voluntários que
se encontravam no interior, danificou o equipamento informático aí existente e confiscou as cassetes
de vídeo que encontrou (IMC-Italy, 2001 e Kidd, 2003:63). Em Abril de 2005, começou o julgamento
dos cerca de 30 carabineiros envolvidos, acusados de terem ferido 62 pessoas que estavam no edíficio
e de terem fabricado provas que pudessem ser usadas contra os voluntários (Indymedia, 2005). Desde
então têm sido frequentes os casos de perseguição legal contra os sites da CMI, levando à suas
suspensão ou à instauração de processos a elementos de diferentes colectivos.
A apreensão de servidores da Indymedia no Reino Unido pelo FBI com o apoio das autoridades
britânicas a 7 de Outubro de 2004 em cumprimento de uma ordem emitida por um tribunal dos
Estados Unidos revela bem o carácter de cooperação transnacional entre as autoridades no combate às
actividades que consideram subversivas. Os servidores estavam alojados pela filial local da empresa
norte-americana Rackspace e a sua apreensão, uma semana antes da reunião de vários activistas em
Londres no âmbito do Fórum Social Europeu, levou a que 20 sites da Indymedia em 17 países
tivessem ficado temporariamente indisponíveis, incluindo os de Portugal e Brasil210. A ordem judicial
210 Leyden, John (2004). Como este artigo refere, já antes, em Agosto do mesmo ano, na sequência da publicação de um artigo anónimo no site do CMI de Nova Iorque que revelava informações pessoais relativas aos delegados que
150
foi obtida a pedido dos governos italiano e suiço, nos termos do Tratado de Assistência Legal Mútua,
um acordo bilateral entre os Estados Unidos e o Reino Unido que permite a cooperação policial
internacional em casos de "terrorismo internacional, sequestro e lavagem de dinheiro". O FBI viria a
devolver os servidores um dia antes da abertura do Fórum Social Europeu, mas um número de sites da
Indymedia não conseguiu recuperar alguns artigos e imagens211. Esta acção coordenada tem que ser
compreendida no contexto actual de acentuada globalização em que as fronteiras e o conceito de
Estado-nação se dissipam e da "guerra contra o terrorismo" que instaura um estado de excepção. Da
mesma forma que a Indymedia adoptou a forma de rede distribuída actuando tanto no global como no
local para combater o neo-liberalismo e o capitalismo flexível, nómada, baseado nas deslocalizações,
na subcontratação, na produção imaterial dos fluxos de informação e da propriedade intelectual,
também as forças de segurança começam a assumir traços de uma rede desterritorializada de controlo
contra as resistências reticulares.
iriam participar na convenção republicana a decorrer naquela cidade, o FBI exerceu pressão legal contra o serviço de alojamento desse site de forma a obter os seus registos de endereços IP. Na página disponível em http://indymedia.org/en/static/fbi é possível consultar toda a informação publicada pela Indymedia sobre estas e outras acções legais desencadeadas por agências de segurança dos Estados Unidos.
211 Num caso que consideram estar relacionado com esta investigação, em Junho de 2005 os responsáveis pelo servidor comunitário italiano Autistici (www.autistici.org) descobriram que as autoridades locais tinham um ano antes copiado as chaves necessárias para a desencriptação - descodificação - do seu sistema de webmail, tendo desde então acesso potencial a todos os dados aí guardados. Tal aconteceu com a colaboração do seu fornecedor de alojamento, que nunca chegou a informá-los do sucedido. Ver comunicado de imprensa emitido pelo Autistici a 21 de Junho de 2005 em http://autistici.org/ai/crackdown/comunicato_en_210605.html. A 27 desse mesmo mês foi a vez do servidor que alojava o site do CMI-Bristol ser apreendido pela polícia britânica de modo a obter detalhes sobre o endereço IP do autor de um artigo. Ver Leyden, John (2005), "Legal row after police seize Bristol Indymedia server", The Register, 28 de Junho. Disponível em http://www.theregister.co.uk/2005/06/28/indymedia_server_seizure_bristol/.
151
5.4.1 - O CMI-Portugal: Um Pequeno Estudo de Caso
Uma vez que o CMI-Portugal se insere na Indymedia, uma rede que classificámos como um exemplo
de media tácticos, decidimos realizar um pequeno estudo de caso de forma a verificar se este
colectivo local exibe de facto características consideradas tácticas, tendo em conta as definições
apontadas pelos CAE (2001: 8-11), Garcia e Lovink (1997) e os organizadores do festival N5M,
como o nomadismo, a utilização tanto de velhos e novos media, a subversão com fins políticos, a
valorização do amadorismo e da colaboração com outros grupos, a recusa da imparcialidade e das
velhas ideologias e o carácter efémero das suas acções. Apesar de alguns autores (Lovink, 2002;
Lovink e Schneider, 2002) identificarem certas práticas tácticas na Indymedia212, outros são mais
ambíguos. Graham Meikle, por exemplo, refere que enquanto que "muitos centros de media
independente são estabelecidos como projectos estratégicos a longo prazo (...), outros surgem sob a
forma de sites tácticos de curta duração" (Meikle, 2002: 121). Joanne Richardson, por seu lado, faz
questão de distinguir o CMI de colectivos como a RTMark que infiltram o sistema mediático
dominante para pirateá-lo ou subvertê-lo, apresentando a Indymedia como uma voz alternativa que
pretende ocupar um lugar ideológico diferente do mainstream (Richardson, 2002). A opção de
analisar o CMI-Portugal torna-se ainda mais pertinente se tomarmos em linha de conta o escasso
número de projectos localizados em Portugal que assumem um perfil táctico. Outra nossa intenção foi
averiguar de que forma é que se processava o processo de selecção de artigos escondidos e quais os
efeitos que essas decisões tinham no interior do grupo e nos utilizadores.
Decidimos então elaborar um questionário enviado por email aos voluntários do CMI-Portugal
através da lista geral de correio electrónico deste colectivo213. A recolha dos dados ocorreu entre a
segunda quinzena de Novembro e a primeira quinzena de Dezembro de 2005. O inquérito, composto
na sua maioria por questões abertas, estava dividido em dois grupos. Um primeiro conjunto abrangia
questões destinadas a traçar um perfil de identificação pessoal dos elementos do colectivo, bem como
a averiguar o tipo e nível de envolvimento de cada um e as suas opiniões em relação ao CMI. Outro
grupo referia-se à história, estrutura e actividade do Indymedia Portugal. Recebemos respostas de
quatro dos seis voluntários activos na altura214. Antes do envio deste questionário, tinhamos já
212 Lovink e Schneider vêem a Indymedia como "um parasita dos media comerciais" (Lovink e Schneider, 2002). 213 Para além desta lista geral ([email protected]), existe uma segunda lista dedicada à discussão e
aprovação de propostas de editoriais designada IMC-Features-Portugal ([email protected]).
214 Em termos de caracterização dos inquiridos, dois são do sexo masculino e dois do sexo feminino. Apesar da geração nascida depois do 25 de Abril estar em maioria - três têm entre 25 e 30 anos -, uma das voluntárias tem 46 anos. A maior parte diz residir na cidade de Lisboa e arredores, sendo que apenas uma das inquiridas reside na cidade do Porto. Em relação ao nível de escolaridade, todos os inquridos possuem formação superior e um dos voluntários possui mesmo habilitações ao nível de mestrado. Quanto à antiguidade da participação no CMI-Portugal. dois declararam pertencer ao colectivo há dois anos, uma voluntária explicou que entrou no colectivo há cerca de dois anos e meio a três, sendo que um outro adiantou que começou a colaborar activamente há "mais ou menos" quatro meses. Estes dados apontam para que o anúncio da suspensão das actividades em Setembro de 2003 tenha de facto tido um impacto impulsionador das actividades do colectivo. Aliás, uma das voluntárias refere mesmo "a crise no
152
efectuado a 13 de Julho a inscrição nessa lista e anunciado o nosso interesse em investigar o CMI-
Portugal. Durante este período de cinco meses, podemos observar à distância as actividades não-
editoriais realizadas pelo colectivo através da leitura das mensagens enviadas para a lista. Esta
familiarização prévia permitiu-nos obter um conhecimento teórico necessário para a formulação de
questões que fossem apropriadas ao contexto. De modo a apresentar mais claramente os nossos
objectivos de investigação e a obter a confiança do colectivo, tivemos ainda um encontro pessoal com
uma voluntária.
Durante o período analisado, de 13 de Julho a 31 de Dezembro de 2005, o número de mensagens
enviadas para a lista geral do CMI-Portugal foi de 587, o que dá uma média de pouco mais do que três
mensagens (3,4) de tráfego diário, se bem que em alguns momentos mais conturbados esse número
tenha sido superior a 20.
Para além do questionário, esta investigação é, por isso, complementada com alguns dados obtidos a
partir de uma análise da lista, embora não se apoie em grande parte nesta componente. Isto porque,
embora a lista de discussão seja pública215, tentámos proteger tanto quanto nos fosse possível a
privacidade e o anonimato dos voluntários. Tendo em conta os recentes acontecimentos de repressão
judicial no Reino Unido que chegaram a afectar indirectamente o CMI-Portugal - colocando-o offline
e provocando a perda de alguns conteúdos - a que se juntam os boatos insistentes de vigilância das
forças de segurança e os ataques verbais de grupos de extrema-direita que circulam nos artigos e
comentários da zona de publicação aberta do site, os elementos deste colectivo, tal como outros
CMIs, demonstram alguma preocupação em abordar publicamente assuntos relacionados com a sua
actividade. Para além disso, os editoriais publicados na coluna central do CMI-Portugal não são
assinados. Por outro lado, durante este período de contacto mais próximo com a lista registou-se a
expulsão de um membro do colectivo e, por motivos de responsabilidade ética, não gostaríamos de
expôr aspectos respeitantes à vida interna do colectivo e à privacidade dos seus voluntários.
Outro aspecto relacionado com este é que o número de elementos activos era na altura da recolha de
dados extremamente reduzido e tem variado muito ao longo da sua existência, com a entrada e saída
de vários elementos216. Um exemplo disso é que, com a expulsão de um elemento durante o período
de recolha das respostas ao questionário, o número de voluntários baixou de seis para cinco. Esta foi a
primeira vez que ocorreu uma expulsão no interior do colectivo por decisão de todos os restantes
CMI e a admiração pelo trabalho desenvolvido até à data" como razões para a sua entrada. 215 Apesar do seu funcionamento ser fortemente moderado. Qualquer pessoa pode enviar uma mensagem para imc-
[email protected] mas esta só será remetida para as caixas de correio dos assinantes se um dos voluntários a aprovar.
216 Daí advém também o perigo, para o investigador, de facilitar a sua identificação. Um factor de dificuldade adicional que se coloca numa investigação como esta é que se trata de analisar um grupo muito flexível. Assim, um elemento que num determinado momento decida comprometer-se voluntariamente com um trabalho como o do CMI-Portugal, que acarreta riscos de segurança, poderá, alguns meses mais tarde, querer desligar-se do colectivo.
153
voluntários, devendo-se a dificuldades de integração desse elemento no grupo, mas anteriormente já
tinham ocorrido "episódios de conflitos entre pessoas que resultaram na saída voluntária de
activistas", conforme nos confidenciou um dos inquiridos. Somando ainda as situações em que os
elementos se afastaram do colectivo devido à impossibilidade de conciliar a actividade profissional ou
académica com o trabalho de voluntariado, ao todo passaram pelo CMI-Portugal cerca de 15 a 20
pessoas. Contudo, o número actual de assinantes da lista geral é superior a 20, o que parece indicar, à
primeira vista, um fraco nível de participação activa no colectivo.
Como se pode concluir, grande parte da interacção entre os membros do colectivo é travada online,
através da comunicação mediada por computador. Para além das listas, são também organizadas
reuniões semanais todas as quintas-feiras à noite por IRC217 no canal #portugaliza da rede
irc.indymedia.org218. Mais esporadicamente também são realizadas reuniões presenciais. Durante o
período em análise realizaram-se duas reuniões, uma no mês de Julho de 2005 em Lisboa e outra em
Setembro no Porto. Segundo a informação transmitida pelo grupo, desde a criação do CMI-Portugal
realizaram-se cerca de dez reuniões. Uma das voluntárias realça a importância destes encontros na
medida em que "servem para discutir assuntos mais complexos que não conseguem ser discutidos nas
listas e para ganhar intimidade com as restantes voluntárias". Porém, devido a incompatibilidades
várias, a organização de reuniões através da lista é um processo muito demorado que pode levar
semanas e sofrer vários atrasos. A tal não será alheio alguma desmotivação por que a equipa estava na
altura a passar.
O CMI-Portugal foi criado a partir do site anarquista azine.org, com sede no Porto e criado em Julho
de 2000 "com a pretensão de se tornar num centro independente de informações", como se refere na
declaração de intenções do colectivo (CMI-PT, 2004). Cerca de um ano mais tarde, o Azine passou a
fazer parte da rede Indymedia (idem). No final de 2003, devido à fraca participação dos leitores e ao
escasso número de voluntários, o colectivo decidiu interromper as suas actividades. Em resposta, o
CMI Galiza219, que na altura também se encontrava num período de fraca actividade, iniciou contactos
com o centro português de forma a estabelecer uma colaboração entre ambos. Depois de uma reunião
na cidade do Porto foi criado o CMI-Portugaliza. O objectivo era congregar os esforços dos dois
centros para, tirando partido dos "fortes laços comuns, históricos, culturais e a unidade linguística
existente entre portugueses e galegos", criar uma "iniciativa pioneira de comunicação" que unisse os
media alternativos de Portugal e Galiza (idem). Ainda em 2003, com a entrada de novos voluntários,
foi criado um núcleo em Lisboa, pois até então muitos dos voluntários eram do Porto e estavam
217 Iniciais de Internet Relay Chat, isto é, um tipo de software que permite estabelecer conversas escritas em tempo real via Internet entre várias pessoas numa mesma sala virtual.
218 O canal #portugaliza pode ser acedido através de uma página do CMI-Portugal disponível em http://pt.indymedia.org/irc/?cidade=1.
219 Site disponível em http://galiza.indymedia.org.
154
ligados ao Azine. Porém, a colaboração com o CMI-Galiza não chegou a bom termo devido a
dificuldades internas deste centro220.
O CMI-Portugal compartilha com a rede Indymedia a missão de disponibilizar um medium directo
baseado na publicação aberta e que disponibilize uma "informação completa, honesta e exacta,
evitando, dentro do possível a simples propaganda" (ibidem)221. Tal como os outros CMIs, acredita na
possibilidade de conciliar a verdade com a luta política apaixonada pois considera que "só vê longe e
de forma profunda quem permite que a paixão sirva de alicerce ao seu olhar" (ibidem). Nas suas
práticas de edição e publicação, como iremos verificar, os voluntários recuperam assim de alguns dos
valores que caracterizam o jornalismo dos media comerciais e rejeitam outros, como a objectividade e
a imparcialidade: "Ao contrário deles (...), nós fazemos saber que somos subjectiv@s" (CMI-PT,
2004a). Esta distância face ao jornalismo profissional fica patente nas palavras de um voluntário ao
referir os motivos que o levaram a tornar-se voluntário. Na sua opinião, "os meios de comunicação
convencionais não garantem a divulgação da informação essencial ao conhecimento da realidade
social, política e económica". O Indymedia constitui para membros do colectivo como este uma
possibilidade de "utilizar os seus próprios conhecimentos" na prossecução dessa tarefa. De modo
semelhante, outra voluntária refere que a sua adesão ao grupo se deveu ao facto de "acreditar que a
Net pode ser o mais poderoso meio para combater a desinformação, fomentar a participação colectiva
no processo de decisão". O processo de decisão consensual empregue pelos centros de media
independente é visto como "um embrião dum processo alargado de debate e decisão horizontal".
As actividades e decisões do colectivo revelam também uma desconfiança face ao sistema partidário
tradicional, tal como na rede Indymedia em geral. A independência do CMI-Portugal em relação a
partidos e a ONGs é proclamada no documento que estabelece a sua política editorial (CMI-PT,
2004a: § 2.7). Este é mesmo um dos requisitos de filiação na Indymedia222. Em consequência, apesar
dos voluntários poderem ser em simultâneo militantes de organizações políticas, estão impedidos de
actuarem como seus representantes, exprimindo opiniões favoráveis a seu respeito ou promovendo as
suas acções. Aliás, de acordo com as respostas ao questionário, podemos depreender que a
220 A razão dessa suspensão "deveu-se à existência de fortes divergências entre as pessoas do colectivo galego", conforme nos foi explicado por um voluntário em resposta ao questionário que elaborámos. De forma a ter uma ideia do nível de actividade actual do CMI-Galiza, constatámos que desde o início de Julho a 31 de Dezembro foram publicados oito editoriais no seu site. Em contrapartida, o CMI-Portugal publicou 131 editoriais nesse mesmo período.
221 Como todos os outros CMIs, para ser aceite e permanecer na rede Indymedia o centro português tem que assegurar o cumprimento das alíneas que constam de dois documentos aprovados em consenso por todos os colectivos nacionais e locais: O primeiro enuncia um conjunto de 13 critérios básicos de filiação (ver http://docs.indymedia.org/view/Global/MembershipCriteriaPt) e o segundo contém 10 princípios de união (ver http://docs.indymedia.org/view/Global/PrinciplesOfUnityPt).
222 "J. (NÃO CONCLUÍDO) Não tenha filiação oficial com nenhum partido político, estado ou candidato a cargo no estado [comentário: produtores individuais têm o direito de fazer o que bem entenderem e CMIs locais podem apresentar matérias sobre partidos políticos e iniciativas] em Indymedia (2001), "MembershipCriteria". Disponível em http://docs.indymedia.org/view/Global/MembershipCriteriaPt.
155
participação no CMI-PT não parece ser uma actividade isolada no que diz respeito a intervenção
cívica ou activista: três dos inquiridos afirmaram colaborar com associações ou movimentos
ecologista, social e político e um dos voluntários declarou ser associado de uma organização de cariz
político-social.
Produção editorial do CMI-Portugal
O site do centro português encontra-se dividido em três secções, à semelhança do formato adoptado
na maior parte dos sites Indymedia: uma coluna central onde são publicados os editoriais em nome do
colectivo, uma segunda localizada à direita onde surgem os títulos dos artigos colocados online em
sistema de publicação aberta e outra posicionada à esquerda que se destina aos eventos colocados em
agenda pelos voluntários e que estes consideram interessantes223: exibição de documentários
activistas, festas e manifestações não-violentas ou marchas de velocípedes em espaços publicos
urbanos ("Bicicletadas"). Através dessa terceira barra pode-se ainda aceder aos comentários mais
recentes efectuados pelos leitores a todos os artigos, incluindo editoriais e a dossiers que reúnem
notícias do arquivo e links relacionados com temas especiais, como a Constituição Europeia, o Fórum
Social Europeu de 2004, alterações climáticas e o desastre ecológico do Prestige na Galiza. Ao
contrário do que acontece no site geral da Indymedia e nos de outros centros, a lista de ligações para
todos os CMIs está posicionada ao fundo e não à esquerda.
Os editoriais são acompanhados por uma imagem e visam destacar assuntos e acontecimentos
específicos, sendo por vezes seleccionados a partir dos vários artigos contribuídos pelos
utilizadores224. A actividade editorial do CMI-Portugal tem sido bastante elevada, a avaliar pelos
dados patentes no Quadro 1 na página 158 que indicam o número de todos os editoriais publicados no
site entre Setembro de 2003 - quando se deu o reínicio e a passagem completa da designação e do
domínio Azine.org para portugal.indymedia.pt - e Dezembro de 2005. Neste período, foram editados
572 textos pelo colectivo, o que corresponde a uma média de cerca de 20 editoriais por mês225. Estes
números podem parecer reduzidos quando comparados com a produção de um site noticioso
comercial, mas reflecte um pouco o trabalho que um pequeno grupo de "jornalistas" e "editores",
amadores e voluntários, podem produzir, apesar das constantes mudanças, da entrada e saída de
223 Tal como os editorias, os eventos a integrar na agenda são apresentados, debatidos e aprovados na lista IMC-Portugal-Features.
224 O colectivo disponibiliza um feed de RSS dos editoriais que publica. Assim, quem quiser receber os títulos dos textos recentemente publicados num agregador de conteúdos como o site Bloglines (www.bloglines.com), através da Web, pode fazê-lo inserindo o endereço http://pt.indymedia.org/parceiros/noticias.rdf.
225 Não existe nenhum editorial com a data de Setembro de 2004 porque o último backup - cópia de segurança - do servidor onde o CMI-Portugal estava então alojado e que foi apreendido pelo FBI tinha sido efectuado apenas no final de Agosto desse ano. Posteriormente, o colectivo conseguiu recuperar grande parte desses conteúdos que se julgava irremediavelmente perdidos. É por essa razão que o mês de Outubro apresenta o maior número de editoriais publicados, isto é, 38.
156
membros e das dificuldades resultantes da necessidade de se alcançar um consenso na tomada de
qualquer decisão. De notar que, quando questionados sobre se possuíam alguma experiência anterior
ao Indymedia em Jornalismo, nenhum dos voluntários respondeu afirmativamente. Outra das questões
que colocámos diz respeito ao número médio de propostas de editoriais que cada elemento do grupo
apresenta por mês ao colectivo e a este respeito verifica-se que as respostas variam muito. Uma
voluntária adiantou o número de cinco, outro voluntário respondeu entre dez e quinze e um terceiro
chegou mesmo a dizer que não apresentava propostas de editoriais. Reflectindo o mal-estar interno
que se sentia no grupo naquela altura, uma voluntária explicou que de momento não estava a
contribuir para esta tarefa por discordar da forma como o colectivo estava constituído mas que
habitualmente a média ronda as sete a oito notícias - "duas produzidas por mim própria e cinco ou seis
de outras fontes". Tal como no jornalismo profissional e segundo a licença Creative Commons
adoptada no site, no caso de a notícia ser de origem externa os voluntários costumam citar a fonte
original e fazer uma ligação para ela. A não identificação dos elementos que propuseram e
contribuiram para cada editorial é justificada com o facto de que "todos participam na sua
concepção", de acordo com uma voluntária. Outro membro do grupo acrescenta: "Parece-me bem que
seja todo o colectivo a dar a cara, por inúmeras razões... segurança, independência, egos reduzidos."
A pretensão da Indymedia é criar uma rede de informação alternativa que seja simultaneamente global
e local, adaptada aos interesses e preocupações das comunidades locais, regionais e nacionais de todo
o mundo. Mas a livre partilha em rede de todas as notícias produzidas pelos CMIs poderia levar a
pressupor que os centros com menos recursos ou mais pequenos, como é o caso do português, se
tornassem excessivamente dependentes de conteúdos de origem externa, descurando a produção
interna e o contexto nacional.
De forma a verificar se essa hipótese tinha alguma validade quando aplicada ao CMI-Portugal,
efectuámos uma classificação dos editoriais em duas categorias: uma de cariz internacional ou externo
e outra de âmbito nacional ou interno, em que se optou por integrar não só os editoriais que se
referissem à sociedade portuguesa e a acontecimentos ocorridos ou para acontecer em Portugal, mas
também aqueles que tivessem a ver com interesses nacionais226, cuja fonte tivesse origem em território
português ou que fossem relativos à cultura lusófona227.
226 Como é o caso de um texto sobre um processo judicial instaurado por trabalhadores de uma fábrica na Polónia contra o grupo Jerónimo Martins que exigem o pagamento de horas extraordinárias, publicado a 8 de Agosto de 2005 com o título "Polónia: grupo Jerónimo Martins processado por trabalhadores da Biedronka", disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=63484&cidade=1.
227 Inserem-se neste último tipo dois editoriais que destacam a língua galego-portuguesa: "O internacionalismo anti-lusófono de Gilberto Gil" datado de 25 de Julho de 2004 (disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=42311&cidade=1&forcarcomentarios=S) e "Galiza: a resistência lusófona a um genocídio linguístico" (disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=39452&cidade=1).
157
158
Número de Editoriais publicados pelo colectivo do CMI-Portugal
Nacionais Internacionais TOTAL
n % n % n %
Dezembro de 2005 11 45,8 13 54,2 24 100,0
Novembro de 2005 9 50,0 9 50,0 18 100,0
Outubro de 2005 9 50,0 9 50,0 18 100,0
Setembro de 2005 13 41,9 18 58,1 31 100,0
Agosto de 2005 11 50,0 11 50,0 22 100,0
Julho de 2005 12 42,9 16 57,1 28 100,0
Junho de 2005 6 35,3 11 64,7 17 100,0
Maio de 2005 11 61,1 7 38,9 18 100,0
Abril de 2005 13 65,0 7 35,0 20 100,0
Março de 2005 12 60,0 8 40,0 20 100,0
Fevereiro de 2005 10 38,5 16 61,5 26 100,0
Janeiro de 2005 11 57,9 8 42,1 19 100,0
Dezembro de 2004 11 44,0 14 56,0 25 100,0
Novembro de 2004 12 38,7 19 61.3 31 100,0
Outubro de 2004 16 42,1 22 57,9 38 100,0
Setembro de 2004 0 0,0 0 0,0 0 0,0
Agosto de 2004 3 17,6 14 82,4 17 199,0
Julho de 2004 8 34,8 15 65,2 23 100,0
Junho de 2004 5 29,4 12 70,6 17 100,0
Maio de 2004 4 22,2 14 77,8 18 100,0
Abril de 2004 5 29,4 12 70,6 17 100,0
Março de 2004 5 38,5 8 61,5 13 100,0
Fevereiro de 2004 4 25,0 12 75,0 16 100,0
Janeiro de 2004 7 38,9 11 61,1 18 100,0
Dezembro de 2003 5 29,4 12 70,6 17 100,0
Novembro de 2003 6 37,5 10 62,5 16 100,0
Outubro de 2003 8 42,1 11 57,9 19 100,0
Setembro de 2003 2 7,7 24 92,3 26 100,0
TOTAL 229 40,0 343 60,0 572 100,0
Esta distinção entre nacional e internacional ou interno e externo parece-nos pertinente para avaliar o
grau de adaptação da informação produzida pelo CMI-Portugal ao contexto local ou nacional. Poderá
também constituir um indicador, ainda que ténue, do nível de tratamento dessa informação pelos
voluntários do CMI-Portugal. Assim, com base nos critérios de selecção que enumerámos, podemos
ver no mesmo Quadro 1 que dos 572 editoriais publicados por aquele colectivo entre Setembro de
2003 e Dezembro de 2005, 229 foram classificados como informação nacional, contra 343 editoriais
referentes ao contexto internacional ou global. Em termos percentuais, esses números correspondem a
40 por cento de conteúdos com origem nacional face a 60 por cento de conteúdos cuja origem é
exclusivamente internacional. A proporção cumpre a estimativa de 30 a 40 por cento avançada por
uma das voluntárias na resposta ao questionário. Esta atenção concedida ao contexto nacional parece
resultar de uma política intencional do colectivo, como dá a entender outro voluntário: "Pessoalmente,
tento abordar a realidade quer nacional quer transnacional".
O sistema de publicação aberta e a filtragem de conteúdos
Os editoriais não se encontram divididos por secções, ao contrário dos artigos publicados pelos
visitantes através do sistema de publicação aberta. Através de um botão facilmente acessível que se
encontra no cimo da coluna à direita tem-se acesso a uma página onde qualquer um pode publicar
conteúdos audiovisuais como imagens, vídeos ou gravações áudio. Contudo, a grande maioria dos
artigos apresenta-se sob a forma de texto escrito, surgindo por vezes algumas imagens. O autor pode
atribuir até dois temas por artigo para efeitos de categorização por secção. Existem 16 temas à
disposição:
· Autodeterminações
· Cultura / Contra-cultura
· Ecologia / Ambiente
· Economia
· Globalização / Anti-globalização
· Guerra / Anti-militarismo
· Homossexualidade / Outras sexualidades
· Justiça / Prisões
· Migrações
· Minorias discriminadas
· Mulher
· Política
159
· Racismo
· Repressão
· Saúde
· Trabalho / Lutas Laborais
No topo da página de entrada, à direita, ao clicar na secção pretentdia através de uma barra de
navegação, pode-se aceder à página que contém todos os artigos classificados sob o mesmo tema.
Apesar de ser necessário indicar um nome e email para a publicação de artigos e comentários, a
utilização de pseudónimos e endereços falsos é generalizada uma vez que não é exigido qualquer tipo
de confirmação de identidade. O site não efectua o registo de informação relativa aos endereços IP
dos visitantes228. A possibilidade de participação livre e aberta com a protecção do anonimato quase
total num espaço virtual de partilha de informação e ideias sobre activismo libertário resulta por vezes
num discurso mais inflamado e agressivo que pode redundar em ataques e acusações pessoais,
sectarismo partidário ou ideológico, racismo, sexismo ou homofobia. Outro problema gerado pela
liberdade de expressão é a utilização do sistema de publicação aberta para fins de propaganda
partidária e religiosa e marketing comercial.
Uma das tarefas principais dos voluntários consiste, precisamente, em "esconder" as mensagens que
violam a política editorial do colectivo e que podem ser consideradas como lixo electrónico ou
spam229. Aliás, grande parte das mensagens enviadas para a lista de discussão do CMI-Portugal
referem-se a avisos sobre artigos que um dos elementos do colectivo escondeu ou, quando tem
dúvidas, que acha que devem ser escondidos de forma a que o resto do grupo possa analisar e aprovar.
Maior parte das decisões são pacíficas, mas em alguns casos mais controversos é mesmo impossível
chegar ao consenso desejado, valendo nessas situações a lei da maioria. De acordo com um
voluntário, "os conflitos raramente passam da discussão, já que qualquer pessoa do colectivo tem
direito de veto e utiliza-o (quase sempre) de uma forma conscienciosa". Outra voluntária é da opinião
de que "na maioria das vezes o grau de conflitualidade é muito baixo", embora admita que podem
ocorrer situações mais complicadas, acrescentando que existe na generalidade um grande sentimento
de confiança mútua que permite ultrapassar a maior parte dos problemas. Convém, porém, notar que
estas afirmações foram feitas antes da referida expulsão. Posteriormente a este episódio, um elemento
do grupo respondeu que "apesar de as discussões serem frequentes e, por vezes, esgotantes",
228 Como se pode ver na nota anexada pelo colectivo ao editorial "F.B.I apreende material do Centro de Média Independente Português" disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=50042&cidade=1 (acedido a 17 de Dezembro de 2005). A nível global, está a circular para aprovação na rede Indymedia uma proposta do centro de Sidney para a introdução de um novo 11º príncípio de unidade em que consta que "todos os CMIs deverão comprometer-se a proteger a privacidade e o anonimato dos seus utilizadores" e que "o registo de informação do endereço IP dos utilizadores se deva reduzir ao mínimo necessário para manter o controlo do servidor (...) em caso de ataque". Ver http://translations.indymedia.org/Translations/1129761641/index_html.
229 Os elementos do colectivo também podem, obviamente, colocar artigos online na zona de publicação aberta e efectuar comentários.
160
considerava que o colectivo atravessava agora uma fase mais estável e que era normal surgirem
conflitos num colectivo não-hierárquico onde "as diferenças de opinião são consideradas saudáveis e
dinamizadoras". Para além deste caso, algumas das questões mais polémicas debatidas na lista são,
por exemplo, as críticas de "censura" que os utilizadores fazem ao próprio colectivo quando
descobrem que as suas notícias foram escondidas da página principal ou de outras secções230, a
utilização do sistema de publicação aberta para promover blogs e se esse tipo de artigos deve ser
considerado marketing comercial, assim como a convocação por grupos de activistas de esquerda de
contra-manifestações de protesto a manifestações de partidos e movimentos de extrema-direita231. As
mensagens escondidas podem ser classificadas como:
· Marketing comercial
· Mensagem repetida
· Mensagens vazias
· Proselitismo e marketing religioso
· Proselitismo e marketing partidário
· Mensagens de carácter pessoal
· Mensagens com ataques
· Violações de privacidade
· Mensagens incriminatórias
· Contribuições administrativas
· Pornografia Ofensiva
Apenas algumas dessas mensagens ficam disponíveis para consulta. A partir do canto inferior direito
da página de entrada, tem-se acesso a essas secções, com indicação do número de artigos que contêm:
230 É o caso de uma notícia publicada a 28 de Setembro sobre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) (disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=64989&cidade=1) que foi escondida na secção de proselitismo e marketing partidário. Em resposta, o autor escreveu outro artigo intitulado "Será censura no Indymedia português?" (disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=64996&cidade=1). Justificando a sua decisão, o colectivo refere num comentário (disponível em http://portugal.indymedia.org/ler.php?numero=64996&cidade=1&forcarcomentarios=S#65034) que decidiu inicialmente colocar a notícia na secção de "proselitismo e marketing partidário" dos artigos escondidos por considerar que se tratava de "uma noticia tendenciosa e propagandista distanciada da realidade Colombiana" mas reponderou a sua decisão e tornou-la de novo acessível. A esse texto foi acrescentado outro comentário (disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=64989&cidade=1&forcarcomentarios=S#65032) que exprime a seguinte posição: "Consideramos que as FARC não são mais do que, citando José Saramago, "um bando armado" responsável por incontáveis violações dos direitos humanos. Esta posição é fundamentada por relatórios de associações autónomas e organizações não-governamentais, como a Human Rights Watch, (a mesma que Uribe, presidente da Colômbia, classificou de "terrorista" por denunciar violações de direitos humanos cometidos pelo Exército).
231 Podemos-nos aperceber da polémica que esta questão levanta entre os utilizadores através da leitura dos comentários à mensagem "censura no indymedia???" em que o autor manifesta o seu desagrado pela remoção de dois artigos a convocar a organização de uma contra-manifestação (disponível em http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=67061&cidade=1#67655).
161
· Proselitismo e marketing religioso (17)
· Proselitismo e marketing partidário (138)
· Mensagens de carácter pessoal (18)
· Contribuições administrativas (39)
· Marketing comercial (30)
O grande número de mensagens de propaganda política - segundo dados registados a 31 de Dezembro
de 2005232 - deve-se sobretudo a convocações para manifestações de movimentos e partidos de
extrema-direita, a comunicados de organizações maçónicas e, mais recentemente, a apelos ao voto
nos candidatos autárquicos e presidenciais. Outros dos maiores contribuintes de lixo electrónico são
os apoiantes de ideologias anti-semitas e sionistas. Uma das curiosidades que registámos ao
analisarmos estas secções é que um dos maiores spammers do CMI-Portugal, o Mídia Sem Máscara
(www.midiasemmascara.org), um site watchdog brasileiro de tendência conservadora chega mesmo a
utilizar refinados estratagemas para atrair os visitantes à sua página, como publicar uma mensagem
com um link para um site com um endereço semelhante ao do Indymedia. Com efeito, como Joanne
Richardson observa (Richardson, 2005), os grupos radicais de direita descobriram há muito tempo
que a utilização táctica da Internet pode constituir um óptimo meio para a difusão dos seus ideais233.
Ao tentar criar um ambiente mediático verdadeiramente aberto, a Indymedia acaba por ser assim
impelida a limitar a liberdade de expressão de outros, levando os centros locais a recorrer à filtragem
e selecção ou mesmo censura dos artigos publicados pelos utilizadores. Apesar dos princípios de
unidade deste projecto salientarem "a importância da auto-determinação colectiva, da participação
aberta e igualitária, da promoção do debate e de divergências de opinião, assim como da
transparência", a realidade do funcionamento regular de um sistema online de publicação aberta leva
a que sejam impostos "limites à participação daqueles cujas ideias, fins ou tácticas são anti-
democráticos ou discriminatórios" na medida em que "interferem com a auto-determinação de outros"
(idem). Aí reside uma das grandes dificuldades da Indymedia, pois o critério do que é anti-
democrático ou discriminatório é sempre subjectivo e pode mesmo gerar problemas internos dentro
dos colectivos, como acontece regularmente no CMI-Portugal. Neste sentido, a resposta dada por um
dos voluntários num comentário à acusação de censura pelo autor de uma notícia sobre as FARC
colombianas que tinha sido escondida é exemplificativa:
232 Convém talvez notar que o arquivo das mensagens escondidas só vai até Outubro de 2004, quando o servidor de alojamento foi apreendido.
233 Joanne Richardson, que também pertence ao colectivo editorial do CMI-Roménia (http://romania.indymedia.org), alerta para a existência de "media neo-fascistas - como a rede de sites Altermedia (site português disponível em http://pt.altermedia.info), que são baseados no Indymedia mas sem terem publicação aberta, tomada de decisões por consenso, transparência ou arquivos públicos " (Richardson, 2005). Estes órgãos valorizam a participação até certo ponto : "A Altermedia afirma ser 'a voz do povo' e os seus editores procuram activamente colaborações; querem que os recém-chegados se envolvam com o movimento e na produção do seu discurso (...) mas sem colocar questões, sem argumentar, debater ou deliberar e sem crítica interna" (idem).
162
RJA em 28-09-2005 às 19:42:53
A Indymedia é o que fizermos dela. Só criticar não serve de muito, participar sempre com duas pedras na mão, ainda menos.
Há um colectivo que faz o melhor possível para que o CMI-PT exista. Estás descontente, ou tens talvez ideias melhores? Participa, faz alguma coisa para que algo mude.
Provavelmente só pretendes "mandar vir", portanto...
diverte-te e um bom trabalho.
PS: este CMI não é assim tão mau, melhor, até não é nada mau. A minha opinião também conta, né?
beijos#65022234
Em resposta, outro utilizador deixou o seguinte comentário, antes da notícia ter sido recolocada
online juntamente com uma nota explicativa:
mente reflexa em 29-09-2005 às 05:52:02
Ouve lá ó RJA mas aqui não se trata de ter duas pedras não mão. Censuraram um texto! Percebes? Censuraram sem avisar os autores, sem qualquer tipo de argumentação, sem lógica aparente. Se estão a denunciar isto é porque não é a primeira vez e pelos vistos a tua opinião é a de que devem censurar alguns textos e que devem deixar outros, tipo os da maçonaria, dos fascistas não sei quê, etc. Se este é o teu CMI, que nem é assim tão mau, então fica com ele.#65029
Outro comentário à mesma notícia exprime uma mensagem de apoio ao colectivo:
Milé Sardera em 29-09-2005 às 16:42:35
Afinal o RJA até tem razão. O cmi não é tão mau como isso. Tem erros, é verdade. Mas existe. E existe há muito tempo. E resiste a crises internas e a ataques externos. E parece que vai continuar a existir. De quantos colectivos se pode falar assim?
E o cmi até se arrepende dos erros e até volta atrás nas decisões. De quantas pessoas podemos falar assim?
Há gente que não faz nada e come o mundo tal como ele é. Há gente que faz coisas para que o mundo melhore. Há gente que faz coisas para que o mundo piore. Estejamos atentos para ajudar o cmi a ser melhor, mas orientemos as energias para pôr a agir os que estão adormecidos e para parar os que nos estão a matar a todos.
Pessoalmente, sempre achei que o cmi não deveria fazer censura de opinião. E, portanto, nunca poderia estar de acordo com o retirar da notícia de propaganda às FARC, assim como não poderia estar de acordo com a retirada de propaganda fascista.
No meu planeta, Liberdade ainda se escreve com maiúscula e ainda é um valor absoluto. No meu planeta, toda a gente tem direito a exprimir uma opinião. Ainda bem que o cmi faz parte do meu planeta.
234 Disponível em http://portugal.indymedia.org/ler.php?numero=64996&cidade=1&forcarcomentarios=S#65022.
163
#65056
Face à controvérsia gerada pela interpretação que é dada aos diferentes tipos de mensagens que,
segundo a política editorial, devem ser escondidos, alguns utilizadores sugerem que cada item que
pode ser motivo de remoção seja melhor explicitado. Outros falam na existência de uma "cúpula" que
pretende capturar o Indymedia. Quando questionados sobre qual era, na sua opinião, a percentagem
de artigos escondidos em relação ao número total, dois dos membros do grupo responderam que
estimavam que devia ser bastante reduzida, não chegando talvez a um por cento do total. Uma
voluntária reconheceu, no entanto, que a prática de remover um texto do site corresponde, de certo
modo, a uma forma de censura, mas que "é absolutamente necessário para manter um mínimo de
qualidade e coerência". Acrescenta que "são mensagens que, na medida em que vão declaradamente
contra a política editorial, "fogem ao propósito do CMI-Portugal". Outro elemento acha que não se
trata necessariamente de censura: "Escondemos notícias porque não queremos ser responsáveis por
mensagens de ódio, boatos e rumores, ou porque sentimos necessidade de demonstrar que não somos
cordões umbilicais de partidos políticos". Um terceiro respondeu de um forma mais frontal: "Não
tenho qualquer problema em censurar spammers235 ou pura propaganda". Outra questão que
colocámos diz respeito aos critérios pessoais empregues na edição de artigos. Enquanto que uma
voluntária destaca valores como a "veracidade, oportunidade e importância da informação, clareza,
síntese, correcção sintáctica e ortográfica e a identificação das fontes", dois outros elementos
concedem mais importância à relevância e ao seu interesse pessoal sobre o assunto que o texto
aborda.
Indyzine e outros projectos
Paralelamente à actividade online, o CMI-Portugal elaborou ainda a Indyzine, uma publicação
impressa de tiragem reduzida e periodicidade mensal distribuída em festas e outros eventos activistas.
Conforme nos explicou uma voluntária, esta publicação consiste numa selecção dos editoriais
publicados online em cada mês mediante a apresentação de propostas para a lista IMC-Features-
Portugal que são sujeitas a votação. "Os artigos mais votados ficam, desde que ninguém se oponha à
sua publicação, como já aconteceu. Respeita-se sempre o consenso; se não há, não passa." A Indyzine
é também disponibilizada em formato digital (PDF) a partir do site. Contudo, em Dezembro de 2005,
este projecto encontrava-se parado devido à falta de voluntários suficientes, de acordo com o que nos
confidenciou outro elemento do colectivo. Até então tinham sido publicados 12 números, sendo que o
último datava de Setembro desse ano. Outra iniciativa concebida em suporte impresso foi a adaptação
para português do livro Argentina, crise e revolta do autor catalão Carlus Jové - sobre os eventos que
235 Autores de mensagens que constituem lixo electrónico ou spam.
164
ocorreram naquele país da América Latina em Dezembro de 2001 -, lançado em Abril de 2005236 e
que "resultou de um trabalho de tradução e revisão por parte de cinco ou seis activistas, a grande parte
dos quais já saiu do colectivo", de acordo ainda com o mesmo membro237. A escassez de voluntários
tem ainda dificultado a concretização de uma secção multimédia contendo vídeos e gravações áudio.
Tácticas Vs estratégias
Ao longo de mais de quatro anos de existência o CMI tem sobrevivido aos conflitos internos e à saída
constante de elementos, realizando um trabalho de redacção e edição jornalística que concilia a busca
pela veracidade, o rigor e a exactidão herdados do jornalismo profissional com a paixão e a
subjectividade dos movimentos activistas. Mas se considerarmos, tal como afirma um dos voluntários,
que "o colectivo só poderá constituir-se como uma alternativa informativa se existirem mais pessoas
dispostas a participar na sua administração", temos que concluir que a subsistência a médio e longo
prazo do CMI-Portugal não está de todo garantida. Neste sentido, se atentarmos à distinção feita por
Graham Meikle (2002: 121), pode-se concluir que apesar de ter como objectivo tornar-se um médio
alternativo e estratégico - a longo prazo -, o CMI-Portugal assume actualmente por necessidade a
forma de um media táctico: provisório e efémero238. Por outro lado, é também ainda táctico na medida
em que valoriza a prática amadora. Para além de nenhum dos inquiridos ter respondido que tinha
experiência anterior em jornalismo apenas uma voluntária afirmou possuir algum conhecimento em
Web design (em particular, Microsoft Front Page e Adobe Photoshop)239. Do mesmo modo, o CMI-
Portugal emprega qualquer medium que seja mais acessível ou esteja mais disponível - quer seja a
Internet (Web, email, IRC), quer seja as publicações impressas e, apesar de rejeitar a imparcialidade,
também recusa os velhos dogmas ideológicos. As identidades e as subjectividades são
permanentemente salientadas no seio do grupo240.
236 O preço de capa é de três euros, sendo as receitas destinadas a financiar o Indyzine e o site.237 Esta e todas as restantes actividades do colectivo são financiadas pelos próprios elementos. 238 Não só devido à sua reduzida dimensão, mas também devido aos riscos de segurança por parte das forças de
autoridade que o site, como ficou bem patente na perda de alguns conteúdos do arquivo devido à apreensão do servidor onde estava alojado. Os próprios elementos também não estão imunes a serem perseguidos, se levarmos em conta os processos instaurados em centros estrangeiros.
239 Devido ao afastamento de outros elementos, a mesma voluntária admite que existe um problema de centralização na sua pessoa dos conhecimentos técnicos necessários no domínio do design e administração do site. Na sua opinião, o colectivo precisa de arranjar formas de distribuir equitativamente o poder técnico. Têm sido apresentadas na lista geral várias propostas de realização de workshops de modo a que ex-voluntários com formação específica na àrea partilhem os seus conhecimentos com os restantes. Até agora, porém, essas tentativas foram infrutíferas. Registe-se ainda que dos inquiridos, só dois responderam que utilizam software livre, apesar de no documento que define a política editorial se referir que "O CMI-Portugaliza compromete-se a (..) 5- defender o uso, em particular de tecnologias de informação de fonte aberta" (open-source) (CMI-PT, 2004a, § 2.7).
240 Durante a leitura das mensagens trocadas através da lista geral constatámos que os elementos se tratavam entre si recorrendo a substantivos no plural onde a referência ao género masculino era substituído por uma arroba ou pelo feminino: por exemplo, "tod@s" ou "todas" em vez de "todos". Isto apesar de ambos os sexos estarem representados equatitativamente no grupo. Para uma das voluntárias trata-se de "uma questão de descriminação positiva. A língua descrimina cruelmente as mulheres. se 99 mulheres e um homem fizerem qualquer coisa notável, foram 'eles' e não 'elas', já foram sempre "eles" que fizeram tudo (...), já na internet, o ELES é enorme e excluente delas. Por isso, os nossos eles acharam por bem serem elas quando se fala do conjunto das voluntárias, em solidariedade connosco".
165
Mas, por outro lado, podem também ser identificados no CMI-Portugal certos traços dos media
alternativos e movimentos activistas anteriores. Como pudemos verificar, a política de moderação
existente gera uma dissonância entre o discurso e as práticas do colectivo: Com efeito, se "a
Indymedia é aquilo que fizermos dela", a centralização das tarefas de edição num grupo restrito de
pessoas, mesmo que voluntárias e actuando sempre que possível em consenso, acaba por contrariar os
princípios democráticos de abertura, igualdade, transparência e livre participação inscritos nos textos
fundacionais (CMI-PT, 2004 e 2004a). A acusação constante de censura feita pelos utilizadores ao
colectivo revela os limites de um modelo auto-proclamado de emancipatório que oferece apenas a
capacidade de publicação, de transmitir informação241. Não se trata apenas do direito à palavra, mas
do direito de essa palavra ser recebida nas mesmas condições em que foi enviada, sem ser controlada,
reapropriada ou mesmo eliminada, de acordo com Baudrillard (1995 [1972]). É também neste sentido
que entendemos Matteo Pasquinelli quando refere que no mediactivismo "o direito à informação está-
se afirmando progressivamente como direito à autogestão da comunicação”. E é neste sentido que
Arninson (2002) e Graham Meikle (2003) falam de edição aberta.
Neste aspecto, as experiências dos fóruns de discussão de publicação aberta como o Slashdot e, mais
recentemente, o Digg242 e da enciclopédia colaborativa Wikipedia podem ser instrutivas na medida em
que reflectem um modelo em que os poderes editoriais dos responsáveis pelo site são ainda mais
reduzidos. O Slashdot é um site de notícias e opinião sobre tecnologia muito ligado à cultura hacker e
ao software open-source em que os utilizadores propôem artigos que precisam de ser aprovados por
um moderador para serem publicados. Qualquer um pode efectuar comentários ao texto publicado.
Para facilitar a discussão e filtrar o conteúdo mais interessante243, os comentários são classificados
pelos utilizadores com uma pontuação de - 1 a 5. Assim, uma pessoa pode querer ler todos os
comentários a um artigo ou seleccionar apenas a pequena minoria dos que receberam cinco pontos. O
Digg, outro site de tecnologia semelhante ao Slashdot, publica links para outros sites da Web
submetidos pelos utilizadores para avaliação. Os outros utilizadores podem fazer comentários sobre
essas ligações e aprová-las. Mas a grande diferença em relação ao Slashdot é que aqui não são os
editores que escolhem quais os links que surgem na página principal mas sim os leitores. Este fórum
emprega um sistema que apelida de "controlo editorial não-hierárquico" em que as peças submetidas
são colocadas numa lista de espera onde permanecem até que um número suficiente de utilizadores as
aprove para que seja publicadas na página de entrada. Caso não recebam um número suficiente de
Esta opinião é corrobada por um elemento masculino do grupo: "Consideramos que a linguagem não resulta de códigos imparciais. A utilização do feminino é o resultado do uso e abuso do masculino, expressão das diferenças de género existentes nas nossas sociedades." Outra resposta masculina é mais divergente: "Sinceramente o abraços a todas (as pessoas, presumo) não me convence... por isso, não o utilizo. O Homem VS O Ser Humano. É-me indiferente, mas para algum@s não é. ;)"
241 Mesmo que a remoção das mensagens seja justificada em comentário sempre que o autor assim o solicite. 242 Site disponível em http://digg.com. 243 São frequentes as discussões que ultrapassam as duas centenas de comentários.
166
aprovações, acabam por sair da lista de espera. O Digg aproveitou o conceito de edição aberta
empregue no fórum de discussão Kuro5hin244. embora com muito mais sucesso que este último. A
única diferença entre os dois é que no Kuro5hin os utilizadores registados podem aprovar a
publicação do artigo na página principal ou numa secção específica ou ainda optar pela sua remoção.
Sistemas como estes são aplicações do espírito de colaboração, abertura e autonomia existente no
movimento do software livre no sector informativo que aplicam à letra o lema “Não odeies os media!
Sê os Media”, funcionando com grande sucesso. Apesar de alguns CMIs já terem começado a aplicar
o sistema de edição aberta, consideramos que a sua adopção generalizada pela rede Indymedia e, em
particular, pelo CMI-Portugal, poderá contribuir para fomentar a participação activa de um maior
número de cidadãos comuns e não apenas de activistas.
244 Site disponível em http://www.kuro5hin.org.
167
6 – Contributos Para Uma Crítica do Conceito
6.1 - "O Alt.everyhing da Cultura e da Política"
Começámos por referir na introdução desta dissertação que a maior das dificuldades que as práticas
tácticas enfrentam consiste na utilização de uma linguagem militarista e de guerrilha, centrada no
ataque a um adversário, acarretando assim o risco permanente de se tornarem no reflexo do inimigo
ao empregarem os mesmos recursos desse adversário. Mas antes de abordar este problema, no
subcapítulo 5 deste capítulo, de foma a servir de passagem para a última parte desta investigação,
gostaríamos de nomear outras críticas e obstáculos que se tornaram evidentes para nós ao analisarmos
os media tácticos. Uma das quais é a inexistência de uma definição minimamente estável daquilo que
une estas práticas classificadas como tal, de modo a que se possam distinguir claramente de outros
fenómenos vizinhos. Com efeito, embora sejam vários os teóricos (Garcia e Lovink, 1997; CAE,
2001) que tentem responder à questão "o que são os media tácticos?", estes autores são, como vimos,
os primeiros a reconhecerem esta dificuldade. Se Joanne Richardson (2002), tal como outros teóricos
(Lovink, 2002: 271; Meikle, 2002: 119-124), identifica no leque de exemplos mais comuns de media
tácticos a sabotagem de publicidade dos AdBusters, os sites de net.art plagiados pelos 01.org, as
versões satíricas do espaço online da campanha de 2000 de George W. Bush produzidas pelo RTMark
e os vídeos das manifestações anti-globalização realizados pela Indymedia, para além destes nomes
“canónicos”, as divergências abundam.
Em Protocol, Alexander Galloway chega mesmo a incluir os vírus informáticos debaixo desta
etiqueta, na medida em que “infectam sistemas informáticos proprietários e propagam-se através da
homogeneidade contida dentro deles”, ao explorarem as falhas dos protocolos de comando e controlo
das redes e do hardware (Galloway, 2004: 175-176). O movimento ciberfeminista245 é também
considerado por Galloway como um medium táctico, comparando-o a um vírus que corrompe o
funcionamento regular dos protocolos tecnológicos (idem: 185). Atendendo aos mais recentes
desenvolvimentos das tecnologias sem fios, Robert Hassan (2004: 121-122) coloca na mesma gaveta
o Warchalking, isto é, a prática de escrever com giz símbolos codificados nas paredes de edifícios ou
no chão das ruas para assinalar a quem entender estes símbolos e tiver um computador portátil com
uma placa de rede que ali existe uma rede privada sem fios que está desprotegida ou aberta da qual se
pode tirar partido para aceder gratuitamente à Internet246. O software livre, como já referimos, surge 245 Corrente teórica que desafia o domínio masculino sob os computadores e a tecnologia argumentando que as
mulheres sempre tiveram uma relação muito estreita com as máquinas. Sadie Plant e Allucquére Rosanne Stone e as VNS Matrix são algumas das maiores representantes deste movimento.
246 O Warchalking consiste numa adaptação da linguagem assente em símbolos de giz empregue nos Estados Unidos pela altura da depressão pelos hobos - nómadas desempregados - para avisar os outros de que numa determinada casa morava um médico que não cobrava as consultas ou um polícia ou da existência de um local seguro onde podiam tomar uma refeição.
168
também por vezes associado aos media tácticos (Berry, 2002; Hassan, 2004: 119-120).
Nos últimos anos, o número de projectos que se auto-encaixam ou são colocados dentro desta enorme
gaveta a que se dá o nome de media tácticos não tem parado de aumentar. A frase um tanto irónica de
Gregg Bordowitz em “What is Tactical Media” de que “os media tácticos são o que são quando o
necessitam de o ser” parece ser a mais adequada para descrever este movimento onde cabe quase tudo
o que mistura arte, activismo, tecnologia e política (Silva, 2002; Richardson, 2002). Empregando a
metáfora criada por Naomi Klein em No Logo (Klein, 2000), o CAE caracteriza com acuidade a
situação, dizendo que o termo se tornou no alt.everyhing da cultura e política (CAE, 2003). Para este
colectivo, “a componente táctica é apenas uma das muitas correntes de possibilidades de resistência
convergindo no vector cultural/político de resistência que, na ausência de um termo melhor, é
actualmente designado de media tácticos”. McKenzie Wark (2002) considera que os media tácticos
estão-se a tornar numa “forma cómoda de classificar projectos experimentais na àrea dos media que,
de outro modo, vão contra as categorias de actividade aceites”. Num tom semelhante, Sam de Silva,
compara o conceito a “um spam persistente que eleva e celebra os homems e mulheres dos media
tácticos como se possuíssem algum tipo de magia necessária para acabar com os males do seu mundo
global e/ou local” (Wark, 2002).
Na quarta e mais recente edição do N5M, realizada em Setembro de 2003, a organização incluiu no
programa iniciativas que anteriormente eram deixadas de lado. Até então, salienta Richardson (2002),
predominava a visão de que os media tácticos eram sobretudo uma ideia ocidental. No entanto, no
N5M4 foi possível encontrar projectos do Mali, Gana, Tanzânia, Uganda, Zâmbia, Jamaica, Bolívia,
Índia e Brasil organizados por autóctones ou por europeus e norte-americanos. Na sua grande maioria,
consistiam em iniciativas de combate à info-exclusão ou divisão digital que fornecem recursos em
tecnologias de informação e comunicação, bem como acesso à Internet a populações desfavorecidas.
Para Richardson, “ao classificar todas estas diferentes práticas de media tácticos, corre-se o risco de
ignorar as suas diferenças e fazer com que o termo deixe de ter sentido” (idem). Este esvaziamento de
significado “parece corresponder em proporção inversa ao ênfase recente dos media tácticos enquanto
rótulo cool no mercado das ideias”, surgindo associado a adjectivos como “bom, progressivo,
alternativo, etc. Não existe necessidade de colocar questões, a sua verdade parecer ser desde logo
óbvia” (ibidem).
169
6.2 - O Espectro da Cooptação pelo Capital
Mas será que “quando as tácticas deixam de constituir apenas formas de improvisar sob as condições
opressivas da sociedade e começam a obter a legitimação de valor artístico ou de modus operandi
político, ainda continuam a ser a 'anti-disciplina' em relação à ordem dominante?” (Berry, 2000). Esta
questão, remete-nos para outra das dificuldades que os media tácticos enfrentam já mencionada em
cima. Trata-se do risco da sua cooptação e recuperação pelo capitalismo – actuando, à maneira de
Certeau, como estratégia -, seguindo o mesmo destino de outras correntes alternativas do século
passado que acabaram por ser comercializadas sob a forma de mais uma mercadoria.
Este perigo tem várias causas interligadas entre si, umas intrínsecas ao próprio movimento em
questão e outras relacionadas com factores globais. A primeira deriva do processo de designação e
classificação de um conjunto de práticas que até há menos de uma década era invísivel aos olhos do
grande público, como adianta o CAE (2001). O acto de dar o nome a algo que até então era anónimo
representou, para este colectivo, a abertura de uma “caixa de pandora”, um gesto que libertou todos os
males. Opinião mais optimista tem Josephine Berry (2002). Começando por recordar Certeau, afirma
que “onde a lógica do capital (...) deve sempre procurar obter lucro dos seus investimentos mediante a
extração de um produto, o táctico rejeita o próprio (nomes próprios, identidades fixas, territórios
definidos) em nome do temporário, do precário, do efémero e do improvisador”, acrescentando que “a
tendência do campo da produção para assimilar as relações comunicativas e afectivas da sociedade
visa aproveitar as inovações da actividade táctica do quotidiano”. Apesar disso, conclui que o capital,
“mediante a conversão do que está em fluxo em algo fixo, acaba sempre por falhar as possibilidades
reais de invenção táctica” (idem).
Mas esta resposta é insatisfatória por ser incompleta. Para além disso, ignora o facto de que o capital
não é ameaçado pelo caos, antes prospera com ele, como nota David Garcia em “Old and New
Dreams for Tactical Media” (Garcia, 1997), onde, num tom prudente, alerta os praticantes tácticos
para o facto de “não só todos os seus actos de subversão poderem ser cooptados pelo capital, como
também de que o ciclo perpétuo de destruição e renovação característico dos media tácticos é uma
incorporação das forças libertadas pelo capitalismo”. Entre o capitalismo e os seus descontentes existe
uma relação de dependência mútua remontando ao século XIX, o que explica “porque é que
movimentos estéticos tão radicais como o Fluxus e o Punk foram cooptados tão facilmente” (idem).
170
É necessário assim talvez reconhecer, como o faz Peter Lamborn Wilson (1997), que o destino de
qualquer medium táctico acaba sempre por ser a sua integração num tipo de estratégia e que muitas
das trajectórias destes projectos terminam no “buraco negro fatal” que é o capital. Isto porque “todos
os media (...) estão ligados à representação”. Mesmo os tácticos, um tipo de produção cultural e
política que procura “manter-se sempre à frente da representação, de forma a obter uma relativa
invulnerabilidade face a esta, mediante a mobilização. Embora Lamborn Wilson não seja muito claro,
o termo representação poderá ser interpretado num sentido que se situa entre a simulação e/ou
manipulação (idem). “Os media, enquanto tecnologias (...) são representações-espelho perfeitas da
totalidade que os produz (ou vice-versa)”, afirma, apontando como exemplo a Internet, uma
tecnologia que “para além de reflectir uma origem militar, mantém também uma afinidade com o
Capital”, pois tal como este, a Rede ultrapassa fronteiras, é um “caos”, possuindo características
nómadas. Da mesma forma, tal como o capitalismo, “aproxima-se da virtualidade, do
desencorporamento, da prótese cognitiva” (ibidem).
A curta-duração das micro-intervenções dos media tácticos surge também para Geert Lovink e Ned
Rossiter como uma "armadilha" do capital, pois actua de acordo com o modo temporal do Pós-
Fordismo e da economia da informação (Lovink e Rossiter, 2005). Os autores apelidam de
"retrógada" a lógica efémera dos media tácticos. "Dado que o modelo do ataque pontual é a condição
dominante, os media tácticos têm uma afinidade com o que procuram opôr-se", sendo por isso
tratados com uma "tolerância benigna" (idem). Não aspirando a mais do que provocar "breves
instantes de ruído ou interferência", acabam por se prestar a si próprios à exploração pelo capital ao
apontarem as falhas no sistema e fugirem logo em seguida. Em seu lugar, Lovink e Rossiter propôem
as redes organizadas, um híbrido que é "em parte um medium táctico e em parte uma formação
institucional", assente num pano de fundo info-guerra e tendo como objectivo a sustentabilidade a
longo prazo das suas acções (ibidem).
171
6.3 - O Eterno Retorno do Sublime Tecnológico
A suposta “bondade” dos novos media e da tecnologia digital em relação a uma potencial utilização
emancipatória por parte dos cidadãos face aos media comerciais dominantes como as rádios e as
televisões, de forma a deixarem de ser consumidores passivos para se tornarem produtores activos é
também motivo de dúvida. Se seguirmos o ponto de vista de Lamborn Wilson, a cooptação pelo
capital resulta da mediação da realidade inerente aos próprios media. A crença – muitas vezes ingénua
e infundada - nos efeitos revolucionários do digital está na essência da teoria dos media tácticos e, se
bem que possa parecer que a sua origem remonte apenas aos anos 90, ela percorre grande parte da
segunda metade do século passado até ao momento actual. A atitude é bem sumarizada na frase já
quase clássica de William Gibson no conto “Burning Chrome” (1986): “The street always finds its
own uses for things”, ou seja, a tecnologia pode ser adaptada pelo cidadão comum de forma a dar
resposta aos seus desejos e necessidades.
A massificação da Internet em meados dos anos 90 levou alguns gurus hiper-optimistas como Kevin
Kelly247, Nicholas Negroponte248 e George Gilder249 a considerar esta como uma tecnologia
emancipadora face aos suportes radiodifundidos como a televisão e a rádio, conotados com um modo
centralizado e controlador. Tratavam-se de "previsões delirantes", como refere Joanne Richardson,
segundo as quais a nova tecnologia iria "ultrapassar a matéria, eliminar a escassez, descentralizar o
controlo hierárquico e possibilitar una nova democracia em rede"250. A sua iminência representava
uma ruptura cataclísmica da história", sendo que, depois dela "nada voltaria a ser o mesmo"
(Richardson, 2005).
O fascínio pela tecnologia patente nos dias de hoje em muitos projectos tácticos nascidos na Internet é
denunciado por Matteo Pasquinelli sob a forma do tecno-narcisismo (Pasquinelli, 2002)251 presente 247 Kelly, Kevin (1994) Out Of Control: The New Biology of Machines, Social Systems and the Economic World,
Reading - Massachusetts, Addison-Wesley.248 Negroponte, Nicholas (1996 [1995]) Ser Digital, Lisboa, Editorial Caminho. 249 Gilder, George (1994) Life After Television: The Coming Transformation of Media and American Life, Nova Iorque,
Norton.250 Richardson (2005). Richard Barbrook e Andy Cameron apelidaram esta visão optimista do futuro assente numa "fé
profunda no potencial emancipatório das tecnologias de informação" de "Ideologia Californiana" (Barbrook, Richard e Cameron, Andy (2001) "Californian Ideology" em Ludlow, P (ed.). Crypto Anarchy, Cyberstates, and Pirate Utopias, Cambridge - Massachusetts, MIT Press, pág. 364). Esta caracteriza-se por "combinar promiscuamente o espírito libertário dos hippies com o zelo empresarial dos yuppies", sendo no entanto, em simultâneo, pessimista e repressiva em termos sociais, na medida em que exclui os "info-pobres" do "info-ricos". Na opinião destes autores, "a tecnologia está assim mais uma vez a ser utilizada para reforçar a diferença entre senhores e escravos" (idem: 376-378).
251 Pasquinelli relaciona o tecno-narcisismo do mediactivista com o narcisismo dos media descrito por McLuhan. O canadiano adapta em Understanding Media (1964) o mito grego de Narciso ao ambiente comunicacional da tecnologia eléctrica. Segundo ele, a extensão do nosso corpo que os media nos oferece produz um efeito de narcose através da auto-amputação que o sistema nervoso central realiza sobre o sentido, função ou orgão afectado.
172
nos hackers envolvidos. Segundo ele, "não se pode dissimular uma ideologia dominada pelas
máquinas, uma prática orientada pela tecnologia", dado que esta última, "tal como as instituições e a
arquitectura, produz ideologia, ideias e comportamentos" que se impôem como "óbvias, naturais e
indiscutíveis” (idem). Não é, por isso, raro encontrar nos media tácticos "uma confiança
incondicional na libertação que a tecnologia acarreta automaticamente consigo, e na Rede, elevada a
instrumento perfeito da democracia, ignorando a divisão digital que coloca grande parte da sociedade
fora destes media" (ibidem). Richardson refere também os mitos associados ao activismo digital no
novo milénio e os seus heróis: "vanguardas e embusteiros da rede, guerreiros dos media tácticos e
multidões digitais" (Richardson, 2005).
Mas é necessário ir além dos mitos e das ideologias para ver a Internet como ela realmente é, nas
palavras de Richardson: "Uma relação social, uma ligação ou uma rede entre indivíduos mediada por
computadores e cabos" em vez da visão da "máquina incorpórea que surgiu do nada e continua a
produzir-se, multiplicar-se e a perpetuar-se a si própria a partir da sua energia vital e força viva",
descurando o papel dos agentes humanos na transformação social (idem).
Para compreender melhor este deslumbramento pelo que Leo Marx apelidou de “sublime
tecnológico”252 na sua vertente cibernética, convém recordar a polémica teórica travada entre Hans
Magnus Enzensberger e Jean Baudrillard no início dos anos 70. Tendo em conta a crescente difusão
das câmaras de vídeo, da televisão por cabo, dos satélites e dos computadores, o primeiro argumenta
no artigo “Constituents of a Theory of the Media” que “pela primeira vez na história, os media tornam
possível uma participação de massa num processo social produtivo” e que “os meios práticos desta
produção estão nas mãos das próprias massas” (2003 [1970]: 262). Enzensberger sustém que a
estrutura dos novos media é igualitária. Propõe um modelo de utilização emancipatória destes,
baseado numa comunicação descentralizada, interactiva, de “muitos para muitos” e politicamente
motivada, que contrapõe a um modelo de utilização repressiva dos media (idem: 265; 269).
Aludindo ao pessimismo da teoria crítica, o autor acusa a esquerda de sustentar uma teoria dos media
assente apenas no conceito de manipulação, uma posição que apelida de defensiva e que revela uma
impotência face ao domínio dos meios de produção pelo inimigo. Este “receio de ser engolido pelo
sistema é um sinal de fraqueza, pois pressupõe que o capitalismo é capaz de ultrapassar qualquer
contradição – uma convicção que pode ser facilmente refutada em termos históricos e que é
teoricamente insustentável”. Segundo ele, “a premissa básica não-dita da tese da manipulação”
252 Marx, Leo (1964), The Machine in the Garden, Nova Iorque, Oxford University Press.
173
consiste em pressupor que existe uma verdade pura e impossível de ser manipulada” (ibidem: 263-
264. Mas Enzensberger discorda dessa ideia, afirmando que “toda a utilização dos media pressupõe
manipulação (...) Desse modo, a questão não é se os media são manipulados, mas sim quem os
manipula. Um plano revolucionário não deverá exigir que os manipuladores desapareçam; pelo
contrário, deve transformar todos em manipuladores” (ibidem: 265). Os media são, pela sua natureza,
“sujos” na medida em que “o próprio acto da crítica exige o recurso às tecnologias dominantes de
manipulação” (Galloway, 2004: 57). Aqui, o ensaísta alemão antecipa-se ao modo de actuação em
espelho dos media tácticos assente no combate ao adversário aproveitando os recursos desse “outro”,
presente na contra-propaganda dos AdBusters e da Indymedia visando atacar as “falsificações” e
“mentiras” do discurso corporativo.
Anteriormente, também o surgimento da televisão253 e da rádio254 tinham já sido alvo de hinos
messiânicos. Na verdade, a história do sublime tecnológico está repleta de consagrações a cada
"nova" tecnologia anterior aos media electrónicos: desde a máquina a vapor de à energia nuclear,
passando pelos caminhos de ferro, o telégrafo e a electricidade, recorda Richardson, explicando que
"em cada um destes momentos históricos ocorreu um esquecimento activo das pretensões da
tecnologia anterior no sentido de tranformar totalmente o mundo tal como o conhecíamos".
253 Em 1940, David Sarnoff, o fundador da cadeia NBC e o homem que anunciou o primeiro televisor a cores no ano anterior, previu que a televisão "estava destinada a oferecer mais conhecimento a um maior número de pessoas, uma percepção mais verdadeira do impacto dos acontecimentos actuais, uma avaliação mais exacta dos políticos e uma compreensão mais vasta das necessidades e aspirações dos outros seres humanos". Esta frase encontra-se no prefácio a Lohr, Lenox R., (1940) Television Broadcasting, Nova Iorque, McGraw-Hill. Citado em Shenk, David (1997) Data Smog: Surviving The Information Glut, Nova Iorque, HarperCollins, págs. 59-60.
254 Já em 1932, Bertold Brecht salientava em "The Radio as an Apparatus of Communication" o potencial que a rádio possuia para ser uma rede de comunicações de duas vias. deixando de ser um mero meio de distribuição: "A rádio seria o mais formidável aparelho de comunicação imaginável para a vida pública, um enorme sistema de canalização. Ou antes, poderia sê-lo se não soubesse apenas receber mas também emitir; não somente fazer o ouvinte escutar, mas fazê-lo falar; não isolá-lo, mas colocá-lo em relação com os outros. Texto disponível em http://www.medienkunstnetz.de/source-text/8/ (acedido a 4 de Dezembro de 2005). Original em alemão publicado com o nome de "Der Rundfunk als Kommunikationsapparat" em Blätter des Hessischen Landestheaters, Darmstadt, Nº 16, Julho de 1932.
174
6.4 - A Subversão Impossível dos Media
Em resposta à teoria marxista dos media de cariz optimista esboçada por Enzensberger, Baudrillard
defende em “Réquiem pelos Media” que não existe uma estrutura inerente aos media, em termos
tecnológicos, como o teórico alemão e McLuhan sustêm. Ao mesmo tempo, remete a questão da
produção e do conteúdos para segundo plano face ao problema da falta de interactividade oferecida
pelos media. Estes são acusados de fabricarem não-comunicação e de impedirem sempre a produção
da resposta e todo o processo de troca. É aqui que, para Baudrillard, “se funda todo o sistema de
controlo e de poder”. Por isso, afirma que “a única revolução neste domínio (...) está na restituição da
possibilidade de resposta”, o que “pressupõe a subversão de toda a actual estrutura dos media” (1995
[1972]: 173).
O seu pessimismo em relação aos media leva-o a afirmar que “qualquer veleidade no sentido de
democratizar os conteúdos, de os subverter, de restituir a ‘transparência do código’, de controlar o
processo de informação, de forjar uma reversibilidade dos circuitos ou tomar o poder sobre os media
é sem esperança - se não for quebrado o monopólio da palavra” (idem). Isto não significa o mesmo
que cada um ter uma câmara e gravar vídeos domésticos ou mesmo, nos dias de hoje, um computador
portátil equipado para aceder à Internet sem fios e poder actualizar em todo o lado o seu blog, pois
isso apenas significaria “dar individualmente a palavra a cada um”, resultando num “amadorismo
personalizado”.
Para Baudrillard, o que está em causa é a possibilidade de comunicação verdadeira, de trocar e
retribuir a palavra, sem que possa alguma vez ser detida, fixada, armazenada e redistribuída. Pelo
facto da “revolução” proposta por Enzensberger “conservar no fundo a categoria de emissor (...),
fazendo de cada um o seu próprio emissor, ela não põe em cheque o sistema mass-mediático”
(ibidem: 187). Através de uma análise que pode ser também aplicada aos media tácticos, faz uma
crítica das estratégias - ou melhor, tácticas? - empregues pelo movimento estudantil do Maio de 68
em França e pela contra-cultura hippie dos Estados Unidos. Desta forma, nega o impacto subversivo
dos media, no sentido da difusão da mensagem revolucionária. “A transgressão e a subversão (...) não
passam sobre as ondas sem serem subtilmente negadas enquanto tais: transformadas em modelos,
neutralizadas em signos, são esvaziadas do seu sentido”. Não existe melhor forma de as reduzir do
que “administrar-lhes uma dose mortal de publicidade” (ibidem: 178).
175
À luz do único exemplo de comunicação interactiva dado em “Réquiem pelos Media”, isto é, os
cartazes, as serigrafias e os graffities que alteram o sentido dos cartazes publicitários255, designados
como os “verdadeiro media revolucionários” durante e após o Maio de 68 (ibidem: 181; 189), e tendo
em conta os escritos posterirores de Baudrillard sobre as simulações nos anos 80 e o virtual na década
seguinte, é provável que o filósofo francês olhe com a máxima suspeição a actual atracção
avassaladora e inquestionável pela tecnologia, pelo digital, pelas redes virtuais que atinge os media
tácticos. Mas, por outro lado, talvez o pessimismo de Baudrillard seja demasiado cínico, pois ao
valorizar a acção directa nas ruas, o modelo activista tradicional, “esquece-se“ que se encontra sempre
na posição demasiado cómoda de teórico. É necessário reconhecer, como o faz Lovink (2002: 265),
partindo da realidade actual dominada pela Internet, que tudo é simulação hoje em dia. Já em 1994 o
CAE defendia que, dado que o poder se estava a transferir dos espaços físicos para assumir uma
existência nómada na virtualidade, o combate nas ruas se tinha tornado ineficaz e que a resistência
devia combatê-lo no ciberespaço, bloqueando os seus fluxos de informação (CAE, 1994: 23-25). O
colectivo virá, como vimos, a propor mais tarde a desobediência civil electrónica, através do bloqueio
dos fluxos de informação que viajam pelas redes (CAE, 1996: 11). Também Stefan Wray, do grupo
hacktivista Electronic Civil Disturbance, vê o computador como uma ferramenta potenciadora de
resistência contra o capitalismo: "Dada a crescente preponderância dos computadores e o facto de que
os nossos opositores políticos estão entre os mais conectados no mundo, é insensato ignorar o
computador. É importante desviar a nossa atenção para o computador, de forma a compreendê-lo e a
transformá-lo num instrumento de resistência. Para os ludditas do mundo que resistem aos
computadores, considerem utilizar computadores para resistir" (1998b). Na nossa opinião, o caminho
a seguir para os media tácticos será porventura a coordenação de iniciativas compostas por uma
vertente virtual e acções reais. Os protestos de Seattle não tiveram lugar apenas no espaço público
físico mas também na Internet, através de ataques hacktivistas de Denial of Service aos servidores da
Organização Mundial do Comércio. Outra alternativa de reconciliação entre o real e o virtual é a
interligação e a “síntese rigorosa entre os movimentos sociais e a tecnologia” proposta por Lovink e
Schneider (2002), de forma a ter em conta os limites e as potencialidades dos novos media para o
activismo. Este parece ter sido o caminho tomado pelos activistas e hackers no A31, durante a
Convenção Republicana de 2004 em Nova Iorque, em que os telemóveis, as redes sem fio, os blogs e
o RSS permitiram coordenar a acção nas ruas e criar uma linguagem mediática colectiva.
É certo que as redes e os novos media sofrem de uma vertigem que tende em direcção ao abismo do
capital - resultado das suas origens militares-industriais -, mas também é verdade que a sua
arquitectura rizomática, descentralizada e aberta gera falhas no “sistema protocolar de comando e
255 Estes podem ser considerados as primeiras práticas de "piratagem" de cartazes publicitários, inserindo-se na categoria de culture jamming, enquanto prática de billboard liberation.
176
controlo”, como diz Alexander Galloway (2004). Se aproveitarmos estes buracos poderão surgir daí
fenómenos inesperados, aleatórios e emergentes baseados no princípio da troca que Baudrillard tanto
anseia, que poderão formar a multidão teorizada por Hardt e Negri ou a inteligência colectiva de
Pierre Lévy. Enquanto que o desenvolvimento cooperativo de software livre, as redes Peer-to-Peer
(P2P) de partilha de ficheiros e o movimento por uma globalização alternativa são casos de nível
macro, os projectos de media tácticos pertencem ao microscópico, actuando como “formigueiros”
reticulares dedicados a subverter com ironia e solidariedade o Império.
177
6.5 - A Retórica do Inimigo e a Metáfora Terrorista
Se os media tácticos atingissem alguma vez os seus objectivos legítimos, tornar-se-iam imediatamente redundantes como categoria autónoma. Nesse momento, passaríamos todos a ser mediums, rejeitando que o discurso público fosse controlado (ou monopolizado) por peritos e profissionais dos media. O 11 de Setembo teve precisamente esse efeito.
– David Garcia, “Islam and Tactical Media in Amsterdam”
A grande questão para o futuro dos media tácticos poderá estar em saber como ultrapassar o legado de
um termo como táctica que remete para uma história militar e para uma tradição de subversão do
espectáculo mediático influenciada pelo terrorismo (Richardson, 2002). A definição deste termo po
teóricos como David Garcia e Geert Lovink associa uma linguagem militarista e de guerrilha às
práticas tácticas, da mesma forma que outros projectos anteriores de media alternativos se inspiraram
na metáfora do terrorismo. Segundo estes autores e outros praticantes tácticos, um movimento de
media tácticos só é formado e apenas existe em função de um Outro, O Inimigo, para o qual se
convergem todos os esforços, legitimando até o recurso à violência. O próprio David Garcia admitiu
mais recentemente que alguns praticantes e activistas criticam a natureza militarista do termo táctico
por remeter a uma bipolaridade que, segundo eles, pertence ao passado. O autor, não deixa contudo de
afirmar que "o carácter militante do termo também ajuda a explicar a sua persistência obstinada",
tendo em conta "a política de consenso à Terceira Via" dos dias de hoje (Garcia, 2004).
Em causa para McKenzie Wark (1997), está uma “linguagem de mobilização herdada da guerra fria
em que se espera que intelectuais, artistas e profissionais dos media se alistem num ou noutro
‘movimento’ para combater contra este ou aquele adversário nesta ou naquela ‘emergência’”. As
liberdades política, estética e ética de todos podem ser legitimamente suspensas em nome de um valor
mais elevado (idem). No lugar de uma escolha entre táctica e estratégia está, para Wark, a opção entre
uma linguagem autoritária ou democrática para a produção mediática. Contestando o discurso
militarista e de guerrilha adoptado em relação aos media tácticos, McKenzie Wark afirma que de
entre as várias linguagens que se podem aplicar aos media – estética, ética e política, entre outras -, a
linguagem militar é a que é menos necessária (ibidem).
A pertinência destas críticas acentua-se num cenário pós-11 de Setembro de "guerra contra o
terrorismo" em que vigora o estado de excepção256: Detenções sem julgamento, o recurso a tribunais
256 De acordo com a concepção de Giorgio Agamben em Stato di Eccezone, Turim, Bollati Borighieri (2003), relativa à capacidade do Estado se defender a si póprio recorrendo a qualquer meio disponível. Nesta zona de vazio legal, de suspensão da ordem legal na sua totalidade, segundo Carl Schmitt, ou de indeterminação entre a anomia e o Direito, na acepção de Walter Benjamin, a Constituição - e, consequentemente, os direitos e liberdades dos cidadãos - é
178
militares e a campos de detenção no estrangeiro, o direito do governo de vigiar populações domésticas
e estrangeiras e outras disposições consignadas em leis como a USA Patriot Act fizeram com que as
actividades de activistas e artistas passassem a ser muito mais controladas pelas autoridades,
sobretudo os que desenvolvem trabalhos na àrea da privacidade e criptografia. A sua liberdade de
expressão e direitos civis começaram a estar em risco. As acções de desobediência e dissensão que
questionam as utilizações convencionais da tecnologia de um modo não-violento começaram a ser
ainda mais associadas ao terrorismo. A estrutura em rede, distribuída, modular e leve, baseada em
pequenos grupos autónomos, característica da Al Qaeda possui bastantes semelhanças com a dos
movimentos tácticos activistas-hacktivistas (Galloway, 2004: 201). Ambos executam acções creativas
e flexíveis que Jordan e Taylor (2004: 30) apelidam de acções de reverse engineering face ao sistema
opositor, explorando as suas próprias falhas. No caso dos hacktivistas, trata-se, no sentido literal, de
reapropriar esta técnica hacker para combater virtualmente o capital global. As organizações
terroristas em rede, por seu lado, "fazem uso dos mesmos canais de comunicação responsáveis pela
difusão dos valores comerciais norte-americanos" que rejeitam veemente, explicam Jordan e Taylor
(idem)257.
O terrorismo fundamentalista é, nas palavras de Joanne Richardson, “um espelho da sociedade em
rede de um capitalismo global sem Estado” (Richardson, 2002), no que se assemelha ao perfil do
praticante táctico: “Os militantes de Bin Laden educados no Ocidente não pertencem a qualquer país
específico; eles viajam pelo globo, da Bósnia a Paris e Nova Iorque, utilizam a Internet e telemóveis e
têm acesso a redes de comunicação mesmo numa gruta do deserto” (idem).
Tendo em conta "o ataque tão catastrófico e niilista de 11 de Setembro", David Garcia faz no ensaio
“Islam and Tactical Media in Amsterdam” (Garcia, 2002) uma auto-crítica ao manifesto fundador do
movimento dos media tácticos “The ABC of Tactical Media”. Tomando de exemplo a parte desse
texto em que se salienta a importância das tácticas das culturas migrantes, na sua tentativa de
passarem de caçados a caçadores, para os praticantes tácticos, considera que ele e Geert Lovink, co-
dissolvida de forma a evitar a sua destruição. Agambem defende que os Estados Unidosvivem actualmente num estado de excepção. Como nota Tobias C. Van Veen, "alguns membros do Partido Republicano e Democrata argumentaram que o USA Patriot Act colocam em causa determinadas passagens da Constituição dos Estados Unidos, em particular, os princípios democráticos relativos aos direitos e protecções" (2005). Ver também Hardt e Negri em Multitude (2004).
257 Distanciando-se de alguns comentadores conservadores que, mesmo antes do 11 Setembro, rotulavam os hacktivistas de terroristas da informação, estes autores "argumentam que o hacktivismo é uma tentativa defensável e imaginativa de se reapropriar das novas tecnologias de informação para benefício das sociedades" (Jordan e Taylor, 2004:30). Mas também dentro dos círculos da lista de correio electrónico Nettime surge por vezes a associação entre os media tácticos e as organizações terroristas islâmicas. Veja-se o caso da mensagem enviada pelo autor de ficção científica Bruce Sterling com o título "Yep, that's 'tactical media', all right" enviada a 6 de Agosto de 2005 (disponível em http://www.nettime.org/Lists-Archives/nettime-l-0508/msg00010.html), referindo-se a uma notícia sobre a utilização da Web para organizar e formar terroristas.
179
autor do manifesto, foram em certa medida prescientes, mas sobretudo, extremamente ingénuos por
assumirem implicitamente que os media tácticos, ao darem voz aos excluídos e marginalizados, iriam
estar automaticamente ligados apenas a movimentos sociais emancipadores (idem). Referindo-se aos
media das comunidades de imigrantes de Amesterdão, David Garcia explica que a “a ala militante do
Islão teocrático demonstrou ser tacticamente versada, utilizando combinações simples de ligações de
satélite para cabo”. Isto “permitiu-lhe interligar redes locais a media locais. Num verdadeiro estilo
táctico, as ferramentas das tecnologias de comunicação viraram-se para a própria sociedade
tecnológica” (ibidem). Coloca-se assim a dúvida de os praticantes tácticos terem sido vítimas do seu
próprio sucesso.
Numa época em que a tecnologia enquanto recombinação permite "cortar" e "colar" recursos como
obras criativas, software e componentes biológicos, recombinando-os em novas formações passíveis
de serem reproduzíveis para fins utilitários, "questionar a tecnologia torna-se o mesmo que questionar
o Estado". declara Tobias C. Van Veen (2005). É à luz do referido que podem ser entendidas as
acusações de bioterrorismo levantadas contra um dos cinco membros-fundadores do colectivo de
media tácticos Critical Art Ensemble que tem vindo a "promover um maior envolvimento colectivo na
invenção e implementação de tecnologias em que o público tem tido até agora pouca influência"
(idem) através de performances artísticas que desmistificam a ciência258.
No início da manhã do dia 11 de Maio de 2004, Steve Kurtz, também artista e professor de Arte na
Univerdade Estadual de Buffalo (Nova Iorque) acordou e encontrou a sua esposa, Hope, morta ao seu
lado por um ataque cardíaco. Decidiu então telefonar para o número de emergência 911. Quando a
polícia chega, encontra vários instrumentos de laboratório como tubos de ensaio, substâncias químicas
e diferentes tipos de bactérias que Kurtz estava a utilizar para um traballho artístico. Presumindo que
estava perante os preparativos de um atentado terrorista com armas biológicas, os agentes de
autoridade chamam o FBI a unidade de anti-terrorismo Joint Terrorism Task Force. O elemento do
CAE é detido, todos os seus bens são confiscados, incluindo material de trabalho e o corpo da mulher,
retido para análise. A sua casa é declarada "área de risco" pelo Departamento de Saúde da região de
Erie259. O FBI e a unidade de anti-terrorismo Joint Terrorisno Task Force acuusam Kurtz e Robert
258 Numa das suas performances denominada Flesh Machine (www.critical-art.net/biotech/biocom/index.html), o CAE extraiu o ADN de membros da audiência e convidou-lhes a calcular o valor potencial dos seus corpos na economia de mercado genética. Em Cult of The New Eve (http://www.critical-art.net/biotech/cone/index.html) representaram a promessa redentora e a retórica utópica da biotecnologia sob a forma da fé arrebatadora de um culto apocalíptico centrado no Projecto do Genoma Humano. Experiências biológicas poderam ser realizadas pelo público em Contestational Biology (http://www.critical-art.net/biotech/conbio/index.html), como a realização de reverse enginering em organismos geneticamente modificados.
259 De acordo com a secção FAQ do site de recolha de fundos para a defesa legal de Kurtz disponível em http://www.caedefensefund.org/faq.htm, em que se acrescenta que "apenas uma semana mais tarde, depois do Comissário de Saúde Pública do Estado de Nova Iorue ter examinado amostradas retiradas da sua casa e anunciado que não constituiam qualquer ameaça à segurança pública, é que Kurtz pode regressar a casa e recuperar o corpo da
180
Ferrel, cientista da Universidade de Pittsburgh, de fraude por correio e telegrama para a obtenção de
amostras inócuas de bactérias. As duas agências estaduais estão também a tentar recorrer a
disposições do USA Patriot Act. para acusá-los de bioterrorismo. Outros membros do CAE, como
Steven Barnes, foram entretanto chamados a testemunhar. O equipamento apreendido e alvo de
interesse pelas autoridades era um laboratório móvel para a realização de testes em ADN, usado para
alimentos possivelmente contaminados por organismos transgénicos, que fazia parte da
instalação/performance Free Range Grains260.
O caso mostra, tragicamente, que Steven Kurtz e o CAE acabaram por provar na pele o que
escreveram em Molecular Invasion (CAE, 2002: 111): "Na era do pancapitalismo, apenas as empresas
têm o direitos de administrar e controlar o abastecimento de alimentação. Se outro qualquer intervir, é
considerado terrorista". Embora afastando-se do mundo da tecnologia digital e aproximando-se da
tecnociência, a mais recente táctica deste colectivo - denominada Sabotagem Biológica Indefinida
(fuzzy) - assemelha-se ao trabalho dos hacktivistas, artivistas e outros praticantes de media tácticos, na
medida em que os autores apelam ao "hacking e à reverse engineering genéticos". Tal como a sua
anterior proposta da Desobediência Civil Electrónica, trata-se de permitir um maior envolvimento
colcetivo do público amador com a biotecnologia de formar a desafiar a apropriação privada por parte
das empresas e do Estado da ciência e do conhecimento, "actuando na linha ambígua entre o legal e o
ilegal" (idem: 100), "nas áreas que ainda não foram completamente reguladas" (ibidem: 99). Em
ambos os casos, de uma forma não-violenta. Apesar da sabotagem biológica ter efeitos destrutivos,
dado que lida com produtos vivos transgénicos, apenas procura "danificar os processos maquínicos e
recombinantes e não o indíviduo" (Van Veen, 2005). O CAE coloca-se deste modo contra a
sabotagem de locais de realização de testes ou fogo posto em plantações de organismos geneticamente
modificados, tácticas que considera meramente reactivas, reveladoras de um sentimento de desespero
e excessivas, um contra-espectáculo disponível à recuperação imediata (CAE, 2002: 107-109).
Esta postura pretende assim evitar que o capitalismo espectacular possa facilmente rotular os
praticantes tácticos de "sabotadores ou, ainda pior, de (eco)terroristas"(idem: 98). A utilização destes
termos tem o efeito de "gerar uma opinião pública negativa, o que por sua vez permite que a polícia
do Estado e os poderes empresariais possam reagir violentamente sem deixarem de parecer legítimos e
justos" (ibidem: 100). As tácticas destrutivas acabam por constituir um convite ai reforço da resposta
autoritária e a um maior investimento financeiro e de recursos em segurança (ibidem: 107). Mas,
acima de tudo, impedem o estabelecimento de um diálogo com o público, com vista à reapropriação
colectiva da tecnologia recombinatória utilizada como propriedade privada.
esposa". Na posse do FBI continuam até hoje os materiais apreendidos. 260 Site disponível em http://www.critical-art.net/biotech/free/index.html.
181
Este alerta do CAE contra o perigo de praticantes tácticos se deixarem cair em associações fáceis com
o terrorismo já estava presente no ensaio "The Mythology of Terrorism On The Net" de 1995
publicado em Digital Resistance (CAE, 2001: 39-40): "Devem ser tomados passos no sentido de
separar a acção política no ciberespaço dos símbolos da criminalidade e do terrorismo. A actual
estratégia do Estado parece ser a de rotular de criminoso tudo o que não optimize a difusão do
pancapitalismo e o enriquecimento da elite." No entanto, acabariam por reconhecer mais tarde que
"parece quase impossível escapar totalmente a esta classificação" (CAE, 2002: 100).
Tanto assim que o crítico cultural e jornalista Mark Dery apelida o colectivo de "célula terrorista
filosófica”261, chegando até a compará-lo com as Brigadas Vermelhas262 Outros grupos de media
deixam-se associar intencionalmente ao ideário do terrorismo, para fins de auto-promoção. O
colectivo artístico suíço eToy anuncia-se a si próprio como “terrorismo digital”, ao passo que a
RTMark dá-se a conhecer junto dos media comerciais pelo seu "terrorismo mediático", apelidando as
suas acções de "sabotagens inteligentes"263. Joanne Richardson afirma em “The Language of Tactical
Media” que o terrorismo estético continua a ser invocado como um título honorífico nos media
tácticos contemporâneos (Richardson, 2002). A autora salienta a existência de um antigo elo de
ligação entre o artista comprometido e o terrorista que se manteve até ao presente, desde a
Internacional Situacionista de Guy Debord e Raoul Vaneigem dos anos 50 e 60 percorrendo todas as
vanguardas artísticas da segunda metade do século XX (idem). Questionando-se sobre em que medida
é que esta afinidade consiste apenas numa metáfora, Richardson afirma que o terrorismo também “é
uma forma do fraco, estando em desvantagem de forças, tanto em número como em influência
política, poder tentar aproveitar-se do forte, infiltrando-se nos seus locais de poder, na esperança de
que a captura temporária de um edíficio-chave, um avião ou um político possa fazer mudar a situação,
oferecendo-lhe mais poder nas negociações” (ibidem). Na sua mais recente faceta, enquanto método
de propaganda dos actos terroristas, o terrorismo funciona através de um sequestro dos media. Como
refere a autora, “as cartas à imprensa e os comunicados asseguram cinco minutos de fama no
espectáculo mediático”. Na sua opinião, este tipo de iniciativas resulta de uma combinação dos media
tácticos com a estratégia (ibidem).
261 Numa entrevista com o CAE disponível em http://www.levity.com/markdery/cae.html, que, apesar de não datada, tudo indica que foi realizada mesmo antes dos eventos de 11 de Setembro, como se pode ver através das cópias de arquivo guardadas pelo Internet Archive em http://web.archive.org/web/*/http://www.levity.com/markdery/cae.html. Já em 1994, duranre uma conferência dedicada à Desobediência Civil Electrónica, o CAE tinha sido acusado de fomentar uma tactica terrorista por um membro da audiência (CAE, 2001: 32-33).
262 Organização terrorista italiana de extrema esquerda surgida nos finais dos anos 60 e que perpetrou vários ataques sucessivos de grande impacto durante a década de 70 e início da de 80.
263 Ver RTMark (1997), "A System for Change", Março. Disponível em http://www.rtmark.com/legacy/docsystem.html.
182
Embora a organização terrorista “possua consciência da separação entre a sua posição e a do inimigo”,
ela acaba por ser “uma réplica da organização política, sistema jurídico e modo de expressão do poder
a que se opõe”, Esta auto-definição sob a forma de um acto de oposição a um inimigo é também, na
opinião de Richardson, compartilhada pelos media tácticos, assim como pelos media alternativos
anteriores; "Uma falsa página GWBush não pode existir sem a original, a qual ridiculariza; A
Indymedia não pode existir sem o capital global, cujos abusos reporta, ou sem os media de massas,
cujas falsificações denuncia" (ibidem). No entanto, "o mainstream também precisa de uma
personificação da oposição". Actualmente, o terrorista desempenha o papel contra o qual os meios de
comunicação comerciais podem definir os seus valores em reverso, "a fantasia mediática perfeita"
(ibidem).
O problema desta teoria dos media baseada nos princípios da guerra de guerrilha é que a mera
imitação da linguagem do Adversário, do Poderoso, faz com que os media tácticos corram o risco de
se tornarem uma simples réplica em forma de espelho desse inimigo, funcionando como produtores
de contra-propaganda, manipulando, exagerando os factos e abusando do sensacionalismo, ou até
recorrendo à destruição de informação, o que contribui para a sua descredibilização. Esse é o risco
que está sempre presente na RTMark, nos culture jammers ou no Electronic Disturbance Theater,
como escrevemos anteriormente.
Mas para lá desta visão beligerante dos media tácticos, outros colectivos e grupos que actuam na
mesma xona de confluência entre arte, tecnologia, activismo e media mas com um trabalho menos
“espectacular” têm vindo a demonstrar que é possível conciliar a transgressão com a solidariedade,
sem a existência de um adversário concreto. É o caso do projecto unipessoal “Technologies to the
People” (TTTP)264 do artista espanhol Daniel Garcia Andújar que, tal como a RTMark ou a Etoy, se
define como uma companhia com fins sociais mas protegida por marca registada e que se encontra
alojada no servidor Web do sistema Irational265. As primeiras obras de TTTP, datadas de 1996,
questionavam os limites da informação legal e o livre acesso à tecnologia, bem como a suposta
interactividade da rede e a sua credibilidade” (Baigorri, 2003a), recorrendo para tal a simulacros como
264 Site dispnível em http://www.irational.org/tttp/primera.html.265 Sistema internacional que elabora informação “irracional”, isto é, serviços e produtos destinados ao diletantismo e à
vagabundagem – através da partilha de espaço online a artistas que comungam da mesma filosofia de actuação. O artivista Heath Bunting tem o seu site pessoal alojado no Irational. Como refere David Casacuberta:
O Irational foi um dos primeiros espaços do mundo digital que se deu conta do potencial da Internet como espaço para partilhar informação e fez seu o adágio hacker 'a informação quer ser livre'. Face a um artivismo mais intelectualizado, o Irational caracterizou-se por uma versão de acção mais directa, acção que requer sempre a cumplicidade dos demais que colaboram, abtindo também as portas a uma abordagem mais colectiva da acção política em formato artístico. (Casacuberta, David (2003), Creación Colectiva – En Internet el creador es el público, Barcelona, Editorial Gedisa, citado por Baigori, Laura (2003a)).
183
Video Collection266, uma colecção de videoarte que permite aceder online e de uma forma
completamente gratuita a grande parte dos trabalhos mais importantes neste campo artístico. Alguns
dos comentários enviados por email ao autor, revelam que o acesso livre a obras cuja exibição
dependeu sempre dos direitos de autor é motivo de estranheza e mesmo de hostilidade por parte de
utilizadores, distribuidores e outros artistas.
Noutro tipo de projectos, Andújar, ou melhor, TTTP, opta por combinar verdade e simulação de
forma perversa em que a ironia e o cinismo são empregues para subverter os convencionalismos
(idem) . Um dos exemplos disso é The Famous Art Power Database for ARTIST, uma repositório de
dados contém informação secreta destinada a artistas onde se pode encontrar recursos sobre segurança
online, hacking, phreacking267 e criptografia. A página encontra-se dividida em várias secções
temáticas: crime informático e propriedade intelectual, diccionário de hackers e glossário Linux, um
sector sobre ferramentas de ataque e defesa informáticas, para além de um guia de conhecimentos
básicos relativos a actividades de legalidade ou moralidade duvidosa (ibidem).
Photey, um CD-ROM informativo, prossegue essa mesma linha de investigação, consistindo numa
base de dados de ferramentas informáticas como vírus e outros programas que podem ser utilizadas
por qualquer pessoa Assim, enquanto um cracker com conhecimento dos códigos pode aproveitar
para penetrar nos computadores de grandes empresas e infectar servidores, um utilizador leigo pode
seguir as instruções de modo a, tirando partido do anonimato que estas ferramentas lhe oferecem,
realizar pequenas transferências bancárias ou escutar conversas telefónicas. Apesar de o autor avisar
logo no início que qualquer destas actividades é inteiramente ilegal e que a sua realização fica ao
critério do sentido da responsabilidade de cada utilizador, pressume-se que o livre acesso à
informação não significa necessariamente que se tenha que fazer um mau uso dela (ibidem).
Mais recentemente, desde o início deste século, o TTTP passou a estar associado a uma série de
iniciativas transparentes, completamente abertas à colaboração dos cidadãos que, segundo Baigorri,
resultam de “uma postura ética e de uma concepção profundamente social das novas tecnologias de
informação e comunicação” (ibidem). O modelo assenta no exemplo de fóruns de discussão como o
Slashdot e o Kuro5hin. Através de sites como e-valencia.org268, Andújar lança-se no domínio da acção
social directa. Neste caso em particular, trata-se de um portal de discussão sobre a política cultural e
artística da região espanhola de Valência em que os utilizadores são os responsáveis pelos conteúdos
aí publicados. Em lugar de informações ou simulacros compostos e recolhidos pelo autor, trata-se de
266 Site disponível em http://www.irational.org/video/.267 Actividade que visa tirar partido e explorar das falhas da rede pública de telefones como hobby ou para fins
utilitários. Enquanto que o hacking tem por objecto os computadores ligados em rede, o phreacking aplica-se aos telefones.
268 Site disponível em http://www.e-valencia.org
184
uma plataforma que funciona como um espaço cooperativo para a partilha de informação e debate
entre os cidadãos (ibidem). Outro portal com as mesmas características é e-barcelona.org269, embora
direccionado para as necessidades culturais da cidade de Barcelona e da Catalunha.
Infelizmente já desaparecido, o portal e-arco.org270, criado em 2003 por Andújar em parceria com Roc
Parés tinha como público-alvo os artistas e outros produtores culturais, visando partilhar informação
relativa aos seus direitos, um inquérito sobre os honorários que cobram e uma secção intitulada
“conflito” onde podiam relatar as suas experiências problemáticas com galerias, museus e outras
instituições. Para além de visar a livre participação, o site tinha uma forte componente crítica.
Conciliando as questões abordadas nos seus primeiros trabalhos com as potencialidades de
interactividade e do debate online exploradas mais recentemente, Individual-Citizen Republic
Project271 é definido pelo autor como “um projecto em desenvolvimento baseado na construção e
exploração de um protótipo social de cidadão autónomo que promove, utiliza e desenvolve recursos
obtidos de fontes de informação pública que oferece à comunidade como parte integrante do processo
social colectivo” (citado em Baigorri, 2003). A partir deste site, o utilizador pode explorar uma série
de recursos gratuitos e open-source sobre cracking, hacking, linux, phreaking, privacidade e
criptografia, segurança, vírus, tecnologias sem fios, etc. Partindo da missão do TTTP de facilitar o
acesso à tecnologia a todos os cidadãos, Andújar organiza workshops no âmbito do mesmo projecto
em que os participantes aprendem a ligarem-se à Internet através de redes comunitárias sem fios e a
partir de computadores em segunda mão com Linux.
Apesar de os projectos do TTTP se integrarem frequentemente no circuito artístico através de
instalações presenciais que visam complementar ou dar uma maior visibilidade à sua existência
online, têm como objectivo primordial estabelecer uma relação participativa directa com o espectador,
mediante a partilha de informação. O seu carácter táctico advém do paradoxo de, apesar de ainda
necessitarem da mediação artística institucional (em termos de espaço físico de exposição), estas
iniciativas têm como fim último legitimarem-se à margem das instituições artísticas, de modo a
transformarem o espectar em mais que um consumidor passivo.
A mesma relação paradoxal com as instituições está presente noutra iniciativa que aqui referimos
269 Site disponível em http://www.e-barcelona.org. Surgido em 2003, nas vésperas do Fórum Universal de Culturas, o e-barcelona.org funcionou desde o início de forma independente e desligada deste e de outros eventos organizados pelos poderes públicos. Ver Roma, Valentin (2005), “ A critical reading of www.e-barcelona.org and of the context of Catalonia”, 16 de Setembro, Mono, número especial, Valência-Estugarda. Disponível online em http://www.nettime.org/Lists-Archives/nettime-l-0509/msg00038.html.
270 Ver cópia de arquivo em http://web.archive.org/web/20030805124350/http://www.e-arco.org.271 Site disponível em http://www.irational.org/tttp/banquete. Em Abril de 2006, o endereço não se encontrava,
contudo, acessível.
185
como um exemplo de medium táctico em sentido alargado. O Sarai272 é um centro de investigação
sobre novos media localizado em Nova Deli, Índia, fundado em 1998 e que, apesar de estar associado
a uma instituição académica (o Centre for the Study of Developing Societies), é coordenado por um
colectivo de artistas-teóricos independentes, o Raqs Media Collective, mantendo-se até hoje como um
espaço à margem do sistema académico. Embora conte entre os seus campos de investigação temas
tão diversificados como cinema documental, história do cinema, culturas e políticas urbanas, artes
digitais, o Sarai valoriza a produção mediática táctica273. Em Novembro de 2002, o Sarai organizou
um laboratório de media tácticos em Nova Deli que integrou a rede de eventos distribuídos um pouco
por todo o mundo associados ao festival Next Five Minutes. Neste laboratório, participantes da Índia,
Nepal, Irão e Austrália aprenderam a programar scripts de código de computador em línguas
regionais como o hindi274 e o urdu275, utilizando para tal software livre como Linux.
Actuando na mesma área dos media tácticos, os dois laboratórios experimentais de media
Cybermohalla276 criados em 2001 e 2002 em bairros periféricos da cidade indiana têm vindo a
possibilitar o contacto diário das pessoas com menos recursos com as novas tecnologias. Estes
telecentros estão equipados com computadores, uma ligação à Internet de 64 kbps, impressora,
scanner e outro hardware adicional. Rapazes e raparigas entre os 16 e os 25 anos são encorajados a
exprimirem e a interpretarem criativamente a cidade em que vivem. Eles actuam como repórteres no
terreno, utilizando os computadores para registar em sons, fotografias, cartoons e texto a vida
quotidiana dos seus bairros, compostos por construções ilegais constantemente ameaçadas de
demolição. Apesar de os centros estarem bem apetrechados, o principal suporte destes repórteres-
cidadãos é um jornal de parede escrito em Hindi. Até agora, este grupo editou dois livros publicados
em conjunto pelo Sarai e pela Ankur, a Sociedade Indiana para as Alternativas na Educação, uma
instituição que também financia os dois centros. Nestas publicações escritas em hindi mas contendo
sempre a tradução em inglês lado a lado, é possível ler histórias sobre incidentes da vida destas
comunidades: um esfaqueamento, uma conversa entre marido e mulher, a falta de água potável e
electricidade, uma fotografia retratando o dia-a-dia dos bairros, um cadáver encontrado num poço.
272 Site disponível em http://www.sarai.net. 273 “No Sarai os media tácticos são apenas uma de entre diversas formas e modos de fazer coisas (e pensar), bem como
de implementar tecnologias, dependendo dos contextos e públicos”, explicou-nos Monica Narula, do Raqs Media Collective e co-fundadora do Sarai num email pessoal enviado a 13 de Janeiro de 2006. As informações que se seguem são recolhidas de uma série de entrevistas com os elementos do Raqs Media Collective: Breitsameter, Sabine (2004), "The Internet has changed urban popular culture in India", AudioHyperspace, Abril. Disponível em http://www.swr.de/swr2/audiohyperspace/engl_version/interview/narula_senguptal.html; Caloud, Mike (2002), “Sarai”, Rhizome, 18 de Abril, disponível em http://www.noemalab.org/sections/ideas/ideas_articles/caloud_sarai.html; Rollin, Laurent (s/d), Interview Raqs Media Collective, New Delhi, Tour du Monde du Web – Centre Pompidou. Disponível em http://www.fluctuat.net/tourdumonde/intw_2.htm. Sollfrank, Cornelia (2002), “The situation is tense but under control”, Nettime, 10 de Setembro. Disponível em http://www.artwarez.org/?p=11.
274 Língua oficial da Índia, de origem indo-ariana e falada por 75 por cento dos indianos.275 Língua indo-europeia da família indo-ariana, falada sobretudo no Paquistão, onde é a língua oficial, mas também em
alguns estados da Índia (Jammu, Caxemira e Uttar Pradesh). 276 Site disponível em http://www.sarai.net/community/saraincomm.htm.
186
Também de salientar no trabalho com implicações tácticas do Sarai é o OPUS (Open Platform for
Unlimited Signification)277, uma plataforma online de colaboração criativa. Este espaço na Web onde
artistas, programadores e outros criadores podem criar, partilhar e transformar imagens, sons, vídeos e
textos. Após descarregarem o seu trabalho, outros membros da comunidade OPUS poderão fazer
comentários em fóruns de discussão. O autor original pode também permitir que a sua obra sirva
como inspiração e ponto de partida para os novos trabalhos de outros. Seguindo as mesmas regras
vigentes nas comunidades de programadores de software livre, o OPUS permite, através de uma
licença própria, que o código-fonte, neste caso, os objectos mediáticos, possa ser livremente utilizado,
editado e redistribuído. Visa-se assim criar uma cultura digital baseada no princípio da partilha das
obras, preservando ao mesmo tempo a criatividade individual de cada um. Os utilizadores são
convidados a abandonar a sua posição de espectadores e a tornarem-se produrores, colaborando em
grupo no desenvolvimento de novos objectos. A ideia é possibilitar o surgimento de bens digitais
comuns que pressupõem a dispersão e a elaboração do conceito de autoria ao longo do tempo. Deste
modo, uma linha de trabalhos resulta de vários autores que intervêm no processo de criação em
momentos diferentes ou que estão localizados em espaços diferentes.
Ao contrário de colectivos de media tácticos que adoptam uma atitude mais activista e de denúncia,
em permanente confronto com um adversário concreto, projectos como Technologies To The People
e o Sarai valorizam sobretudo a partilha de informação e conhecimento, de forma a que os cidadãos se
possam apropriar da cultura e da tecnologia278. Estes aspecto é particularmente saliente no trabalho de
Sarai que actua num cenário urbano, inundado de tecnologia mas relativamente periférico em termos
de fluxos de informação como o da cidade Nova Deli. Tal como o Metáfora, o MetaReciclagem e
outros colectivos brasileiros, procuram dar ferramentas à população local para que possam comunicar
entre si as suas vivências. Em parte, estas iniciativas incorporam o conselho dado por Joanne
Richardson:
À medida que as guerras grassam à nossa volta – guerras que racionalizam o tráfico de mercadorias sob a sombra de princípios nobres, guerras contra o terrorismo, guerras contra as drogas, guerras de informação contra informação – talvez do que precisamos menos é de anunciar a nossa prática como uma extensão de um ou outro princípio da guerra. Quando nos é pedido para tomar partido, a favor ou contra, apoiando um exército ou outro, por vezes a única verdadeira resposta está em não entrar em jogo. Esta recusa não deve ser confundida com uma fuga, uma passividade silenciosa ou uma resignação conformada. Trata-se do cuidado de pensar, para além do óbvio, de uma terceira, quarta ou quinta alternativa à visão apocalíptica ou utópica dos media. (Richardson, 2002)
277 Site disponível em http://www.opuscommons.net.278 Apesar de considerarmos que pelo menos, parcialmente, estes colectivos partilham com os hacktivistas digiltamente
correctos uma agenda política de defesa do acesso ilimitado à informação e ao conhecimento, eles não se limitam a facultar o acesso, pois possibilitam o diálogo com a população local e, acima de tudo, cumprem uma tarefa de educação digital de um ponto de vista crítico, em que a tecnologia é questionada e desconstruída.
187
Segunda-Parte
1 - O "Jeitinho" Digital Brasileiro: "Gambiarras", "Mutirões" e "Puxadinhos"
(No Brasil) temos uma tradição antropofágica que é totalmente coerente com a cultura hacker, combinando elementos de
origens diferentes em produtos criativos. Somos historicamente periféricos (...) Aqui, a colaboração é sempre uma
estratégia de sobrevivência.
- Hernani Dimantas, "Linkania - A Multidão Conectada"
Os media tácticos são o mais recente invasor a ser consumido pelos jovens canibais gentis do Brasil.
- David Garcia, "Fine Young Cannibals, of Brazilian Tactical Media"
Iniciativas como o Projecto Metáfora e o seu descendente Metareciclagem não surgiram
isoladamente, desligadas do contexto local. Antes pelo contrário, elas são fruto do seu meio ambiente.
Apesar de as destacarmos nesta investigação, elas nasceram no mesmo período - durante os primeiros
anos do século XXI - que outros colectivos brasileiros actuando com as tecnologias mediáticas mais
simples e acessíveis para fins de activismo político, crítica dos media comerciais ou inclusão social.
Quer se considerassem a si próprios media tácticos, quer ignorassem que o que estavam a fazer tinha
esse nome, esses grupos partilharam desde o início uma lógica criativa e Do-It-Yourself. Este
movimento de colectivos que ocupa uma posição marginal face ao sistema artístico e discurso político
dominantes foi caracterizado pelo teórico dos media Ricardo Rosas de Vingança Low-Tech279 (Rosas,
2004), uma vingança "contra a elite tecno-fetichista, high-tech e auto-indulgente dos Web-artistas no
Brasil que se interessa apenas com o seu egoísmo obsessivo". Uma vez que grande parte da população
não tem acesso às mais recentes tecnologias de ponta do modo como o circuito da arte e as grandes
empresas dispõem, a melhor maneira de se lhes opor consiste em tirar partido das ferramentas
disponíveis.
Apesar do método destes grupos assentar no recurso a tecnologia acessível para produzir acções e
trabalhos no espaço físico, eles mantêm interligações e colaboram entre si através de comunidades
virtuais na Internet. Segundo Karla Brunet, "são projectos de oposição não só ao poder, mas que
também criam um novo poder na Net" (Brunet, 2005) e, nesse aspecto, diferenciam-se de outras
práticas tácticas dominantes em zonas mais centrais como a Europa e a América do Norte. Tendo em
conta o contexto nacional, dedicam uma atenção especial à inclusão digital e à educação. O seu
objectivo não é, por isso, apenas disponibilizar um maior acesso à Internet e a outras tecnologias
digitais, mas também a promoção da utilização crítica e criativa dos media através de "diversas
279 O termo low-tech refere-se a uma prática comum entre os hackers de empregar tecnologia barata para subverter o sistema da indústria da tecnologia de ponta, aliando a criatividade à falta de recursos.
188
formas e padrões de modo a que se transformem em algo novo, experimental e criando
ocasionalmente ruído e distúrbios" (idem). Estes projectos visam assim adaptar o conceito de media
tácticos à realidade de um país de graves contrastes sociais e económicos como o Brasil, onde a
maioria da população não tem acesso à educação, saúde e habitação própria e o sector dos media é
dominado por grandes conglomerados multimédia como a Globo e a Abril.
Ricardo Rosas acusa estes gigantes de "representarem os interesses da elite e de tentarem manter a
aparência de um consenso complacente, mesmo face a conflitos sociais intensos". Na sua opinião, a
sociedade brasileira encontra-se submersa num consenso mediatizado formado pelas telenovelas e
reality-shows, o que faz com que os pontos de vista críticos tendem a ser escassos e bastante
marginais (Rosas, 2004). Se olharmos para o caso da estação televisiva Globo, por exemplo, podemos
verificar o poder desta influência na população quando verificamos que, para além de ser um dos
maiores conglomerados de media do mundo, é o maior produtor privado de programas em todo o
mundo (Wells, 2005). Como refere David Garcia, "tal como o império de Berlusconi, a Globo vai
muito para além da televisão: ela abarca todos os media possíveis, incluindo a imprensa", dispondo
assim do poder de "determinar os resultados de eleições e de influenciar importantes decisões
políticas num curto espaço de tempo"280 (Garcia, 2004a).
Em resposta, alguns colectivos surgidos no início deste século pretendem constituir uma forma de
antídoto destinada a curar "uma sociedade mediatizada de uma natureza particularmente virulenta"
como a brasileira "em que vastas hordas da população são literalmente anestesiadas pela dieta de
telenovelas da Globo" (idem). Trata-se de transformar os espectadores em protagonistas que não se
limitem a criticar e a reagir aos media a partir da posição passiva que ocupam quando apenas mudam
de canal com o comando. Para tal, consideram necessário um "Vietcongue dos media", nas palavras
do artista gráfico Latuff, citado por Garcia, através do qual as pessoas possam recriar a sua própria
realidade mediante a produção dos seus próprios media e que transforme radicalmente as estruturas
existentes da propriedade e utilização dos media electrónicos281 (ibidem).
1.1 - Mídia Tática
280 Para saber mais sobre o monopólio da Globo, em especial durante o periodo da ditadura militar, ver o documentário Beyond Citizen Kane de Simon Harzog (BBC), realizado em 1993, que continua oficialmente proibido no Brasil apesar de poder ser acedido através do site do Centro de Media Independente brasileiro: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/08/260618.shtml.
281 Ricardo Rosas insere o aparecimento dos media tácticos e do activismo digital no século XXI no contexto de uma história de mais de 30 anos de produção mediática independente no Brasil: "Durante a última ditadura, nos anos 70 (,,,) a 'imprensa nanica' - pequena -, produziu inúmeras fanzines, samizdats e revistas culturais contra o governo, o que gerou uma espécie de contracultura (...) A partir da década de 80 este movimento foi gradualmente reduzido ao mercado comercial das publicações para fãs. A renovação dos media agit-prop ocorreu apenas no final dos anos 90, a seguir à vaga mundial dos protestos anti-globalização" (Rosas, 2004)..
189
Foi com base nesta filosofia de acção de questionamento do monopólio mediático dos conglomerados
multimédia que Ricardo Rosas e as artistas Tatiana Wells e Giselli Vasconcelos organizaram em
Março de 2003 na cidade de São Paulo o festival Mídia Tática Brasil282, um laboratório de media
tácticos que decorreu no edifício Casa das Rosas, situado na Avenida Paulista - o centro financeiro e
económico da cidade -, que consistiu numa versão brasileira do Next Five Minutes de Amesterdão,
realizado a par de outros eventos semelhantes que tiveram lugar em várias partes do mundo ao longo
desse ano. Apesar do orçamento bastante limitado, o festival atraiu cerca de quatro mil visitantes e
uma enorme cobertura mediática. Sobretudo, devido à presença do Ministro da Cultura e cantor
Gilberto Gil
Entre os colectivos intervenientes, para além do Metáfora, participaram videoactivistas com
motivações políticas - A Revolução Não Será Televisionada e Bijari283 -, grupos de acção directa e
intervenção urbana – Batukação, Rejeitados e Bicicletadas -, iniciativas dedicadas à criação de farsas
e paródias - Projecto Sid Moreira - produtores de fanzines - A Cria -, revistas destinadas ao apoio dos
sem-abrigo – Ocas284 -, um colectivo de DJs que realiza raves gratuitas nos subúrbios – Interfusion285
-, artistas com trabalhos de intervenção nos media – Latuff286 e Formigueiro -, uma rádio livre - Rádio
Muda287 -, e um grupo que recolhe narrativas individuais de anônimos em São Paulo – Museu da
Pessoa288. Embora uma parte imporante destes colectivos fossem originários de São Paulo, muitos
estavam espalhados por outras grandes cidades do país. Como explica Ricardo Rosas, "havia tanta
diferença e diversidade entre os diferentes grupos que parecia, por vezes, que as suas práticas eram
contraditórias entre si." (Rosas, 2004). O evento congregou durante quatro dias teóricos, activistas e
artistas brasileiros e estrangeiros e o seu programa abarcou apresentações dos colectivos, debates,
workshops, conferências, uma exposição, espectáculos musicais, performances, festas espontâneas e
"uma estação temporária de rádio pirata que desafiou as políticas repressivas em relação às emissoras
livres no Brasil" (idem), a rádio "Pega Eu", que iremos referir mais à frente neste capítulo.
Impressionados com o êxito do primeiro laboratório de media tácticos no Brasil, os três organizadores
decidiram expandir o conceito Mídia Tática e estabelecer um movimento com o mesmo nome visando
funcionar como uma rede de media tácticos que facilitasse a comunicação e a colaboração com outros
grupos desenvolvendo trabalhos na àrea de intersecção entre a arte, os media e a tecnologia (Wells,
2005). O Mídia Tática289 funciona como uma plataforma simultaneamente offline e online que
organiza e apoia a criação de ambientes comuns - como festivais, publicações, sites ou laboratórios 282 Site disponível em http://www.midiatatica.org/mtb/index.htm.283 Site disponível em http://www.bijari.com.br.284 Site disponível em http://www.ocas.org.br.285 Site disponível em http://www.interfusion.com.br.286 Site disponível em http://latuff2.deviantart.com.287 Site disponível em http://muda.radiolivre.org.288 Site disponível em http://www.museudapessoa.com.br. 289 Site disponível em http://www.midiatatica.org.
190
temporários - em que estes colectivos independentes e autónomos se podem reunir e trocar ideias e
experiências.
Esta rede de parceriais foi implementada pela primeira vez na prática nas favelas e subúrbios de São
Paulo, através do projecto Autolabs290 iniciado em Fevereiro de 2004. Os Autolabs constituem
"laboratórios de literacia dos media, experimentação tecnológica e criatividade desenvolvidos com o
apoio das comunidades locais", de acordo com Ricardo Rosas (2004). Empregando software livre e
outros media DIY acessíveis, estes laboratórios ensinam os princípios, conceitos e práticas tácticas de
forma a incentivar a produção cultural independente. A aprendizagem é aqui realizada de um modo
colaborativo e em rede, incidindo na utilização e domínio de ferramentas de produção gráfica, sonora
- rádios livres, VJing e DJing -, vídeo - televisão pirata - e direccionada para a Web por parte de
jovens que normalmente não dispõem dos recursos que o acesso às tecnologias de comunicação exige.
Este tipo de zonas temporárias autónomas são fruto de parcerias estabelecidas entre iniciativas sociais
autónomas como o Metareciclagem, o CMI-Brasil, o Colectivo de Histórias Digitais291, o Museu da
Pessoa, o colectivo de design experimental BaseV292 e a Rádio Muda que prestam formação nas suas
respectivas àreas de actuação.
Em Julho de 2004, no final do projecto, tinham sido implementados três centros de media em São
Miguel Paulista, Ermelino Matarazzo e Itaquera, bairros da zona leste de São Paulo. O projecto foi
parcialmente financiado através de uma bolsa atribuída pela Unesco e resultou de uma aliança com a
organização não-governamental La Fabbrica - ligada ao grupo italiano Fiat -, por intermédio de un
projecto de acção social denominado CAJU (Centro de Acção Juvenil). Outro apoio inesperado foi o
da autarquia local, através da sua agência de tecnologia Governo Electrónico. Esta instituição tem
vindo a desenvolver ao longo dos últimos anos várias iniciativas de combate à divisão digital, sendo
uma das mais importantes os Telecentros293, isto é, centros de acesso público à Internet com
computadores correndo Linux e outro software livre294 – e. Juntamente com o Prodam, empresa
municipal especializada na disponiblização de infra-estrutura tecnológica, forneceu uma ligação em
banda larga rápida à Internet. Depois do fim dos workshops, os laboratórios foram integrados na rede
de Telecentros e alguns dos jovens que receberam formação foram empregues como monitores dos
centro públicos. Aliás, é importante frisar que os Autolabs surgiram em parte como reacção e crítica
290 Site disponível em http://autolabs.midiatatica.org.291 Esta iniciativa de Tatiana Wells que surgiu a partir de discussões dentro da lista do Metáfora no Yahoo! e, tal como
o Museu da Pessoa, dedica-se à recolha de histórias das comunidades periféricas. Site disponível em http://chd.memelab.org. Para saber mais sobre os workshops de histórias digitais do Autolabs verhttp://www.contratv.net/HD/. O material que resultou desses cursos está disponível em http://autolabs.midiatatica.org/modules/mydownloads/viewcat.php?op=&cid=14.
292 Site disponível em http://www.basev.has.it/.293 Site disponível em http://www.telecentros.sp.gov.br.294 Segundo dados obtidos do site do programa da prefeitura de São Paulo em Fevereiro de 2006, existiam nessa altura
119 Telecentros contando no total com 847 mil utilizadores registados.
191
aos Telecentros. Como Garcia coloca a questão: "O que é que importa que os computadores corram
Linux se os visitantes apenas utilizam os serviços de mensagens e navegam e m sites de pornografia
ou da Globo?" (Garcia, 2004a). Os organizadores dos Autolabs consideram que os Telecentros se
baseiam numa crença errónea no poder da informação, só por si, desencadear transformações sociais,
acabando por oferecer pouco mais do que acesso à Net. Na medida em que são um instrumento de
"inclusão digital", os Telecentros são vistos por activistas como Rosas como um exemplo de uma
política estabelecida de cima para baixo e unidireccional pelo Estado que se limita a oferecer acesso
às tecnologias digitais àqueles que não possuem computadores, acabando por "reflectir o mesmo
ethos de desigualdade e hierarquia que aparentemente se propõe a desafiar" (Rosas, 2004). As práticas
e utilizações diárias, assim como as necessidades das comunidades visadas são ignoradas, "dando
mais ênfase ao consumo do que à produção crítica e criativa". Para Ricardo Rosas, "esta política tenta
responder às consequências e não às causas da realidade em que procura intervir", e "cria
frequentemente mais problemas do que soluciona"295. Não admira por isso que alguns dos envolvidos
nos Autolabs considerem que a recente ligação com o poder político através da integração nos
Telecentros compromete os objectivos iniciais de autonomia e independência (Garcia, 2004a). Por
outro lado, David Garcia indica que o modelo crítico de educação para os media, produção mediática
e reciclagem de computadores presente nos Autolabs tem sido levado em conta nos mais recentes
projectos de inclusão digital desenvolvidos pelo Ministério da Cultura (idem). Ricardo Rosas nota que
os novos Telecentros híbridos são bastante diferentes do protótipo original, no sentido em que
combinam a intenção de autonomia e ligação às comunidades presente nos Autolabs. Falando em
termos metafóricos, Rosas vê os Autolabs como "um conceito 'alienígena' vivendo dentro do corpo
uma política 'hospedeira', aí implementado uma forma de 'subversão prática' ao mesmo tempo que são
financiados e apoiados por grandes instituições" (Rosas, 2004)296.
Apesar da desconfiança inicial, a relação entre os colectivos de base e o governo tem-se estendido a
todo o sector do movimento do software livre e das utilizações sociais das novas tecnologias. Para
além de São Paulo, centenas de Telecentros foram também sendo introduzidos noutras cidades
brasileiras controladas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) - que ocupa actualmente o governo -, de
modo a permitir uma inclusão digital da população dos bairros mais carenciados, através da utilização
295 Da mesma opinião são outros activistas como Tatiana Wells, do Mídia Tatica, e Felipe Fonseca e Hernani Dimantas, do Metáfora e Metareciclagem. Wells refere que o modelo estatal dos telecentros centrado no simples acesso à informação é insuficiente se se pretende compreender o fenómeno da segregação digital num cenário mais alargado de discriminação racial, sexual e de classe (Wells, 2005). Fonseca sugere uma via alternativa que passa pela apropriação tecnológica: "Muitos telecentros funcionam como cibercafés gratuitos (...) A preocupação é que as comunidades tenham acesso à internet. Mas pouco se fala que as pessoas não precisam ser apenas utilizadores, e que podem ser co-autores. Se o que procuramos é transformação sustentável, gerar autonomia é fundamental" (Fonseca, 2005a). Segundo Dimantas, as acções dos Telecentros e infocentros correspondem a uma segunda fase de inclusão digital em que, para além do mero acesso ao computador, existe o acesso à informação. Para Dimantas, este processo requer uma terceira fase que garanta o acesso à informação e sua circulação, bem como a produção local de conhecimento. Do seu ponto de vista, projectos como o Metáfora e o Metareciclagem representam modelos dessa nova fase, pautada pela colaboração descentralizada (Dimantas, 2004a)
296 Esta perspectiva optimista da experiência dos Autolabs de Rosas não é, no entanto, partilhada por Felipe Fonseca (2005) que, como veremos mais à frente, faz um rescaldo mais pessimista.
192
de software livre. Com a ascensão de Lula da Silva à presidência, os Telecentros passaram de
experiências locais a iniciativas federais297. Um dos coordenadores desta iniciativa é Claúdio Prado.
Enquanto responsável pelas políticas digitais do Ministério da Cultura, Prado foi também o arquitecto
de uma experiência semelhante, as BACs (Bases de Apoio à Cultura), que "previa cerca de cinquenta
mega-centros de cultura digital em comunidades periféricas em todo o Brasil, com estúdios de
produção multimédia e uma grande infra-estrutura tecnológica integrando todos eles" (Fonseca,
2005)298. Este projecto foi, no entanto, substituído pelos Pontos de Cultura, inserido na estratégia
Cultura Viva299 do Ministério que prevê o desenvolvimento de mil centros multimédia espalhados
pelo país e baseados nos princípios da colaboração e autonomia, visando potenciar a democratização
da produção cultural. Para além do Midia Tática, o MetaReciclagem é, como veremos mais à frente
em pormenor, um dos colectivos que está ligado aos Pontos de Cultura, sendo que alguns dos seus
elementos que começaram por desenvolver trabalho voluntário aí foram entretanto integrados como
funcionários do Ministério da Cultura.
O evento seguinte organizado pelos elementos do Mídia Tática foi o festival Digitofagia300, que teve
lugar em Outubro de 2004 em São Paulo e no Rio de Janeiro, que reuniu activistas, teóricos e artistas
nacionais e estrangeiros com o objectivo de "repensar a prática antropofágica na era dos
computadores e dos novos media através de uma antropofagia das práticas de media tácticos
actuais"301. O termo deriva de uma tentativa de adaptação para o contexto dos media digitais às
práticas do movimento artístico modernista antropófago surgido nos anos 20 do século passado que,
por sua vez, retomou o conceito de antropofagia, isto é, as práticas de canibalismo dos indíos
brasileiros. "Só me interessa o que não é meu" exclamou o escritor Oswald de Andrade no manifesto
fundador do movimento em 1928302. Apesar das ideias de apropriação, justaposição e colagem
parecerem estabelecer uma ligação com o dada, o surrrealismo e outros movimentos modernistas
(Garcia, 2004a), a especificidade do contexto pós-colonial do Antropofagismo brasileiro advém desse
297 Como refere David Garcia, "o governo brasileiro tem uma das políticas mais activas e vocíferas do mundo sobre o software livre e as licenças abertas de propriedade intelectual" (Garcia, 2004a). Encontra-se actualmente em planeamento a migração de todo o o software nos computadores da Administração Pública para Linux. Foi também apresentada uma lei na Assembleia Federal do país para introduzir uma licença Creative Commons comum para todo o trabalho imaterial gerado no Brasil. O próprio Gilberto Gil licenciou já a sua música Oslodum no âmbito da Creative Commons, tendo sido incluída uma remistura dessa faixa realizada pelo DJ Dolores num CD que contava com 16 faixas de vários artistas como Wilco e Björk e que foi oferecido junto com o número de Novembro de 2004 número da revista Wired. Ver mais em http://www.wired.com/wired/archive/12.11/linux.html. Outra iniciativa do Governo Federal para promover a adopção do software livre em grande escala é o PC Conectado, lançado em Janeiro de 2006 e que financia a aquisição de computadores com um preço até 1500 reais (cerca de 500 euros) em 24 prestações.
298 Ver também Freire, A. et al. (2005).299 Site disponível em http://www.cultura.gov.br/programas_e_acoes/cultura_viva/index.php. Ver também página na
wiki do MetaReciclagem em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/PontosdeCultura.300 Site disponível em http://www.midiatatica.org/digitofagia/.301 A iniciativa foi preparada ao longo de três meses através de uma lista de correio electrónico em português e outra
em inglês. Uma selecção dos textos e discussões mais importantes foi publicada num documento disponível em formato PDF disponível em http://www.midiatatica.org/ip/downloads/digito_cookbook.pdf.
302 Ver texto do Manifesto Antropófago em http://www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifantropof.html.
193
movimento não tanto de apropriação mas de absorção próprio do canibalismo, nas palavras de Garcia
(idem). Referimo-nos ao ritual da cultura guerreira dos indíos Tupi de comer órgãos dos corpos dos
seus inimigos após as batalhas. Ao contráro da visão europeia do canibalismo como uma prática tabu
que classifica o outro de bárbaro, ignorante e incivilizado, sendo constituído através de uma alteridade
radical e ameaçadora, a cultura indígena estabelece uma assimilação rejubilante do outro sem
discriminação303. Ao mesmo tempo que comiam os guerreiros mais destemidos das outras tribos para
assimilar a sua força e coragem, os índios também devoravam os colonizadores - que detestavam - de
modo a eliminá-los. O movimento antropofágico retoma a ideia de "comer" o que vem do exterior,
como as vanguardas europeias da época - e "digeri-lo" misturando-o com as circunstâncias locais para
criar um novo estilo304. Para além dos objectivos concretos do evento Digitofagia tal como estão
indicados no seu site, o colectivo Mídia Tática pode assim ser entendido como um esforço no sentido
de não só adaptar o conceito de antropofagia a uma época dominada pela tecnologia digital mas
também de assimilar as práticas tácticas comuns na Europa Ocidental e na América do Norte ao
ambiente local. Certo elementos do Metáfora/Metareciclagem, como Hernani Dimantas, por exemplo,
também fazem questão em assinalar a ligação entre esta tradição antropofágica e a cultura e ética
hacker de fundir elementos de diferentes origens em produtos criativos (Dimantas, 2005; Fonseca,
2003d e 2005).
Foi com a intenção de fomentar novas redes de colaboração no campo da inclusão digital que os
elementos do Mídia Tática criaram em 2005 o IP:// Interface Pública305, que Tatiana Wells descreve
como sendo um espaço de trabalho intersectando as àreas da arte, media, comunicação e tecnologia.
Para além de ser um centro de media no Rio de Janeiro dedicado à produção autónoma em novos
media, à reciclagem tecnológica - contando mais uma vez com o apoio do Metareciclagem306 e
software livre, assim como na investigação de uma pegadogia crítica dos media. Resultado de uma
parceria com o centro de media Sarai, de Nova Deli, e a Sociedade Waag Para os Velho e Novos
Media, em Amesterdão, do seu programa constam acções e eventos como workshops, residências de
artistas, activistas e hackers, uma conferência307 e o alojamento de seis projectos. Está ainda previsto
a edição de uma publicação. O MetaReciclagem também faz parte desta parceria308.
303 Schütze (2000). Este autor vislumbra uma ligação entre as práticas antropofágicas e as tácticas de incorporação parasítica de alguns projectos artivistas como a RTMark, Mongrel (www.mongrelx.org), JODI (www.jodi.org), m9ndfukc (www.m9ndfukc.org) e Shredder (www.potatoland.org/shredder) de Mark Napier.
304 Esta metáfora seria também adoptada pelo Tropicalismo, o movimento de música popular brasileira do final dos anos 60 representado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre outros, que efectuaram uma fusão do samba com a contra-cultura e a música Pop e Rock da altura, como se pode ler no site do Digitofagia e no texto de Felipe Fonseca (2005).
305 Site disponível em http://www.midiatatica.org/ip/.306 O "esporo" ou núcleo do Metareciclagem no Rio de Janeiro é coordenado por Ricardo Ruiz e Tatiana Wells que são,
paralelamente, membros do Midia Tática. 307 Intitulada Submidialogia, teve lugar em Campinas no final de Outubro e serviu para discutir os media digitais
brasileiros e contou com convidados estrangeiros como Monica Narula, do Sarai, e Derek Holzer, organizador do N5M e artista multimedia. Ver site em http://radiolivre.org/submidia/submidialogia.
308 Em resultado desta Fellowship, Beatriz Rinaldi e Fernando Henrique viajaram para Nova Deli em Julho de 2005, para realizarem uma residência de dois meses num dos Cybermohalla, centros multimédia instalados pelo Sarai em
194
1.2 - Contratv
Um dos projectos alojados no IP:// é a Contratv309, um colectivo de produção e distribuição de
programas televisivos e outras experiências narrativas para a Web que vão contra o modelo das
televisões comerciais como a Globo, como por exemplo, "anti-novelas" que alteram o sentido e
revelam as mensagens escondidas nas telenovelas, reapropriando-se delas. Este grupo já participou
em iniciativas anteriores do Mídia Tática, tendo sido o responsável pela formação em narrativas
digitais nos workshops realizados nos Autolabs em colaboração com o Colectivo de Histórias Digitais
e o Museu da Pessoa. No seu site pode-se aceder ao programa desses cursos, às páginas concebidas
pelos jovens das comunidades abrangidas e aos vídeos produzidos colectivamente. Quem quiser pode
ainda enviar textos, imagens e vídeos amadores para serem colocados online. e um guia passo-a-passo
explica como "libertar o seu computador", isto é, a instalar Linux em computadores Apple baseados
no sistema operativo proprietário Mac OS X. Partindo do conceito de "imaginofagia" como resposta à
construção e reconstrução quotidiana das identidades dos telespectadores exercida pelas estações de
televisão, a Contratv propõe que estes últimos criem os seus próprios programas, reconstruindo assim
essa mesma surrealidade de forma a impedir a reprodução do poder estabelecido. Para tal,
disponibiliza online um tutorial para a criação de programas Contratv baseados em cinco princípios:
amadorismo, não-edição - cenas com maior duração -; lentidão - de forma a gerar uma monotonia e
desprender a atenção do espectador do ecrã -; subtileza e verosimilhança - "de modo a mostrar o que a
TV não mostra: o dia a dia" (Contratv, s/d).
1.3 - Re:combo
Aplicando ainda mais à letra do que a Contratv o lema antropofágico de "só se interessar por tudo
aquilo que não é seu", o colectivo Re:combo310 constitui um projecto audiovisual colaborativo
baseado nas práticas da recombinação, a improvisação e a intertextualidade que permite efectuar a
partir do seu site o download de músicas e imagens, remisturá-las e descarregar as novas versões. O
grupo é formado por cerca de 40 elementos, entre músicos, artistas plásticos, designers,
programadores, DJs e profissionais de vídeo. Estes colaboram em várias obras divididos em "células
de áudio e vídeo" espalhadas por cidades do Brasil como Recife, João Pessoa, São Paulo, Caruaru e
Belo Horizonte que, à distância, via Internet, se dedicam à produção de novas criações ou retomando
trabalhos em desenvolvimento. Organizam ainda exposições e performances em que colaboram em
tempo real com outros DJs da Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra e Roménia. Considerando que o
bairros degradados da cidade. 309 Site disponível em http://www.contratv.net.310 Site disponível em http://www.recombo.art.br.
195
copyright representa uma força restritiva ao processo de criação artística, inicialmente o Re:combo
começou por remisturar ou samplar311 todos os trabalhos produzidos pelos seus membros ou cujos
autores permitiram declaradamente a sua reutilização, explica h.d. mabuse, membro fundador do
colectivo em entrevista (Beguelman, 2002). Mas em 2003, introduziu uma licença de Uso Completo
Re:combo (LUCR) para disponibilizar as suas criações e facilitar a reutilização dessas obras por
outras pessoas, sem receio de problemas legais. No ano seguinte, a LUCR passou a ser uma licença
Creative Commons aplicável ao sampling ou recombinação de obras (Re:combo, 2004).
1.4 - Rádios Livres: Rádio Muda
O movimento das rádios livres tem também uma grande força no Brasil e revela bem quer o espírito
de colaboração existente nesse país, como também a relação complexa e paradoxal entre os media
tácticos brasileiros e o governo do PT. Estas estações encontram-se reunidas no radiolivre.org312, um
"rizoma" que se destina não só à troca de informação, experiências e solidariedade, funcionando ainda
como um fornecedor de serviços para rádios livres, como a transmissão em directo pela Internet, o
alojamento de sites, listas de discussão e email, e o armazenamento de arquivos e fóruns. Segundo a
secção de Perguntas e Respostas do seu site, uma rádio livre pode ser considerada "uma emissora de
baixa potência onde qualquer pessoa pode assumir o papel de programador, locutor ou DJ. A rádio
procura trocar o conceito de broadcasting - de um para muitos - pelo de multicasting - de muitos para
muitos -, onde todo o cidadão e cidadã pode tanto ouvir rádio como participar activamente da
construção de uma emissora" (Radiolivre.org, 2005). Distingue-se assim de uma rádio comunitária na
medida em que nesta última é habitualmente "uma associação que assume para si o dever de informar,
manter a programação e gerir uma emissora". As primeiras rádios livres surgiram no Brasil no início
dos anos 80 e apesar de ainda hoje serem "consideradas ilegais pelo Estado e perseguidas pelas
empresas de rádio comercial do país, através da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e
pela Polícia Federal"313, desenvolveram-se bastante nos últimos anos, tendo passado de 100 em 1982
para 1500 em 1995 e 10000 em 2002 (Andriotti, 2004: 110). Tendo em conta a distinção de Andriotti
(idem: 197) e seguindo a dicotomia estabelecida por Garcia e Lovink (1997) e Meikle (2002),
311 De acordo com a definição para o termo equivalente "samplear" - em português brasileiro - do Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, consiste no acto de "gravar e processar (sons previamente gravados) por meio de um sampleador" - sampler no original em inglês -, isto é, "um instrumento electrónico" que utiliza esses excertos sonoros que são gravados e "armazenados digitalmente na sua memória, podendo alterá-los de diversas formas, à maneira de um sintetizador". Ver entradas relativas a "samplear" e "sampleador" no mesmo dicionário (2003: Vol. VI). A técnica do sampling começou por ser introduzida na música popular através do Hip-Hop no início dos anos 80.
312 Site disponível em http://www.radiolivre.org. 313 Andriotti (2004). Esta autora distingue com maior detalhe a história das rádios livres e comunitárias e as suas
ligações recíprocas. Para esta autora, inicialmente as rádios brasileiras de comunicação popular eram consideradas todas livres, na medida em que estavam ilegais e não tinham fins lucrativos, ao contrário das emissoras piratas que possuem intuitos comerciais (idem: 12-13). Mas com o processo de legalização das primeiras rádios livres, desencadeado pela lei 9612/98 que regulamento a radiodifusão de baixa potência, as estações que se institucionalizam passam a ser designadas de comunitárias (ibidem: 122-123; 150-151). Esta dissertação inclui ainda um estudo de caso sobre a Rádio Muda FM, onde colabora desde 1993.
196
poderíamos assim considerar as rádios livres como projectos tácticos, na medida em que são
emissoras flexíveis, com uma estrutura aberta, baseadas num modelo de desobediência civil e, por
isso mesmo, permanentemente susceptíveis de serem encerradas pelas autoridades, e as rádios
comunitárias como projectos de media alternativos ou estratégicos, uma vez que apresentam uma
estrutura mais centralizada e ligada a movimentos sociais ou políticos e uma programação mais
orientada por critérios de qualidade do que pela possibilidade de participação de todos, uma vez que
optaram por institucionalizar-se e seguirem os trâmites da lei, de modo a serem aceites pelo Estado.
Uma das rádios livres que tem sido frequentemente alvo de mandatos de encerramento é a Rádio
Muda, que surgiu na segunda metade da década de 80 no seio da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) e que tem o seu estúdio numa caixa de água na praça central do campus. A estação
transmite para toda a cidade com uma potência de 50 watts na frequência 105.7 MHz e, através de
streaming pela Internet, para todo o mundo. O seu nome deve-se às inúmeras suspensões e paragens
derivado a problemas legais e técnicos, que continuam ainda hoje, mesmo após o novo governo314.
Como menciona Andriotti (2004: 151), a sua história está associada à história de resistência e livre
apropriação do meio rádio, sendo vista como "uma referência nacional de rádio popular e
democrática". Esta emissora esteve sempre ligada à questão da libertação de frequências radiofónicas
para apropriação pública. Há mais de dez anos que se desvinculou da associação de estudantes local,
funcionando desde então como uma iniciativa autónoma, possuindo uma estrutura de organização
horizontal, em que o colectivo responsável pela sua gestão é composto pelos próprios programadores
- que rondam os 200, para um total de cerca de 100 programas inscritos (idem: 162) e a emissão é
aberta a todo o público, na medida em que qualquer pessoa pode difundir o seu programa.
A Rádio Muda tem estabelecido várias parcerias com outros colectivos de media tácticos e
alternativos. Para além da parceria com o Mídia Tática, através dos workshops ministrados no âmbito
dos Autolabs com o através de um subgrupo de programadores, a Submidia315, esta estação mantém
314 Veloso (2003). Neste artigo, Thiago Novaes, locutor da Muda, refere que nos poucos meses após a entrada em funções do novo governo de Lula "foram fechadas mais rádios do que durante o governo FHC (Fernando Henriques Cardoso) inteiro". Na verdade, o número de rádios fechadas pela Anatel durante o primeiro ano do actual governo cresceu 37 por cento, de acordo com os dados de uma notícia publicada a 10 de Outubro de 2004 pela Agência Brasil - um serviço noticioso público - (disponível em http://www.radiobras.gov.br/materia_i_2004.php?materia=204512&editoria=). Um facto revelador das contradições internas do executivo é que Cláudio Prado é responsável pelo programa Imidiático emitido nessa mesma estação. A propóstio do exemplo de resistência da Muda, o articulador de políticas digitais do Ministério da Cultura afirma: "O que acho bonito nessa história é que as rádios brasileiras estão mudas e a Muda está falando" (Veloso, 2003). De salientar que Thiago Novaes é hoje um dos coordenadores da acção Cultura Digital do mesmo ministério, trabalhando directamente com Prado.
315 A Submidia apresenta-se no seu site como sendo um "grupo de pesquisa e actuação pela subversão dos padrões sociais de uso das tecnologias de comunicação enfatizando a imaginação, criação e aplicação de OUTRAS relações com os meios" criado por estudantes da Unicamp e que actua na àrea da rádio para a Web e do software livre. Site
197
uma colaboração regular com o Centro de Media Independente do Brasil. A transmissão da rádio
pela Internet é possibilitada mediante o alojamento da emissão num servidor do CMI em Inglaterra,
através de uma tecnologia de software livre. Esta aliança - a que não é alheia a existência de várias
afinididades entre os dois colectivos, no sentido em que ambos assumem uma estrutura
descentralizada e rejeitarem a intermediação do mercado nos media - estabeleceu-se na segunda
edição do Fórum Social Mundial316, em Janeiro de 2002, na cidade de Porto Alegre, onde o CMI
possuía um ponto de acesso à Internet e uma equipa de técnicos especializados (ibidem: 204): "Ali
mesmo no Acampamento da Juventude durante o II Fórum Social Mundial é realizada com sucesso a
primeira experiência de transmissão do sinal da Rádio Muda via Internet." A partir desse encontro,
surgiu a ideia de criar uma rede de rádios livres brasileiras que se concretizou com o desenvolvimento
do site radiolivre.org. O projecto tem também o objectivo adicional de permitir a retransmissão de
toda a programação das rádios livres pela Internet (ibidem: 211). Outra colaboração com o CMI foi a
criação da rádio livre "Pega Eu" que funcionou durante o período de duração do Festival Midia Tática
em Março de 2003, em directo da Casa das Rosas "com os microfones abertos a qualquer um que
deles se quisesse apropriar, além das tradicionais oficinas" (ibidem, 223). O CMI elaborou uma carta
que foi enviada à Anatel e ao governo federal uma semana antes do evento em que anunciava a
criação da estação e desafiava as autoridades a virem fechar a rádio317. Este acto de desobediência
civil serviu para gerar uma maior visibilidade para a questão dos encerramentos das emissoras livres,
aproveitando a presença dos media comerciais no local.
1.5 - CMI-Brasil
Pelo que pudemos ver até agora, o CMI-Brasil têm desempenhado um papel fundamental na
coordenação de iniciativas activistas de carácter táctico no país. Apesar de já termos abordado a rede
Indymedia e o CMI-Portugal, achamos que seria importante mencionar aqui as actividades deste
Centro de Media Independente que se destacam e se distinguem de outros CMIs. Actualmente, conta
com 11 centros em grandes cidades brasileiras, encontrando-se em processo de formação mais 13
outros núcleos espalhados pelo Brasil318. Tendo surgido em Setembro de 2000, no seguimento de
protestos do movimento por uma globalização alternativa contra a reunião do FMI e do Banco
Mundial que decorreu nesse mês em Praga, o CMI-Brasil colocou o seu site online em Dezembro de
disponível em http://submidia.radiolivre.org.316 Andriotti (2004: 193-221). A autora aborda a história da participação da Muda nas três primeiras edições brasileiras
do Fórum Social Mundial, inicialmente à margem da programação oficial do evento, com a instalação de uma emissora móvel no local destinada a efectuar a cobertura radiofónica do Fórum e a realização de oficinas de formação em rádio para outras estações livres e comunitárias.
317 Ver texto da carta em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/03/249595.shtml. 318 Ver página solicitando a participação de novos voluntários disponível em
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/static/volunteer.shtml.
198
2000 (Cabral, 2005). Devido à disparidade de acesso à Internet e às tecnologias digitais existente no
país, os colectivos locais procuraram “combinar a tecnologia digital e de internet com os meios
tradicionais de forma a potencializá-los", explica Pablo Ortellado, do Indymedia brasileiro (Ortellado,
2003).
No campo da rádio, por exemplo, para além da colaboração com a Rádio Muda, o CMI-Brasil
integrou o projecto da Área de Rádios Livres das Américas (ARLA) em paralelo com o Encontro de
Rádios Livres em Novembro de 2003, permitindo a criação de uma emissão radiofónica conjunta
transmitida pela Web319 destinada a realizar a cobertura das mobilizações contra a Área de Livre-
Comércio das Américas (ALCA), durante a reunião em Miami dos responsáveis por este organismo
regional impulsionado pelos Estados Unidos. Outra acção do CMI-Brasil que resulta da colaboração
com as rádios locais é a produção de um boletim de notícias seleccionados do seu site que é enviado
para rádios livres e comunitárias que, entre outras, abrange dezenas de estações localizadas na região
de Porto Alegre. Isso permite estabelecer um intercâmbio mútuo, já que as rádios também enviam
notícias das suas comunidades locais para os colectivos Indymedia no Brasil, nota Ortellado (idem).
Um dos media com que os colectivos brasileiros da Indymedia têm obtido mais visibilidade é o vídeo.
O documentário "Não começou em Seattle, não vai terminar em Quebec (A20)", realizado pelo
núcelo do Rio de Janeiro que filmou as manifestações contra a ALCA em São Paulo, no mês de Abril
de 2001320. Tendo em conta as dificuldades financeiras e de acesso à Rede da população, o CMI
nacional possibilita não só a publicação de vídeos no seu site, tal como o centro português, mas
conjunga esforços com outros grupos activistas de vídeo e associações locais para a facilitação de
espaços de exibição. A cooperação internacional através da Internet facilita a troca e difusão de
vídeos com centros de outros países. Ortellado salienta que esta rede de distribuição permitiu que o
documentário sobre os protestos contra a ALCA "fossem vistos por mais de 20 mil pessoas ou que
comunidades de sem-abrigo em São Paulo ou de favelas no Rio de Janeiro conhecessem uma
realidade semelhante, a dos trabalhadores desempregados de Buenos Aires" (ibidem).
Tal como o colectivo português, os núcleos do CMI-Brasil produzem "jornais relativamente
periódicos, com pequena tiragem, como o Ação Direta de São Paulo que são distribuídos para
organizações sociais diversas, em determinadas localidades ou eventos" (Cabral, 2005). Devido à
falta de recursos e de técnicos especializados, os voluntários brasileiros optaram por passar a produzir
jornais-murais, em tamanho A3 com uma periodicidade mais ou menos regular, afixados em muros,
319 Ver arquivo das emissões em http://ftaaimc.org/or/static/radio_en.shtml.320 Disponível em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/05/253927.shtml.
199
paredes e paragens de autocarro de cidades como Rio de Janeiro, Fortaleza e Florianópolis. Ortellado
considera que esta solução permite aumentar o número de leitores com um custo muito baixo.
O CMI-Brasil actua ainda ao nível da inclusão digital através da constituição de centros de acesso
público à Internet com computadores equipados com software livre, semelhantes aos Autolabs e aos
Telecentros. Em São Paulo, o colectivo local instalou um cibercafé numa ocupação urbana -
"actualmente funciona em conjunto com a ONG Ação Educativa - que resultou na criação de uma
rádio livre com transmissão via Internet montada por crianças de oito a 12 anos, após a participação
num curso ministrado no local (Ortellado, 2003; Cabral, 2005). Mas de acordo com Ortellado, o
objectivo é abrir mais cibercafés CMI noutras cidades. De forma a adaptar o software livre para
produção mediática já existente para português, está a ser desenvolvida uma distribuição de Linux
específica chamada Indymix que deverá ser implementada nos futuros centros de acesso público.
Adaptando o conceito dos cibercafés CMI para um cenário "no terreno", os colectivos têm vindo a
desenvolver laboratórios temporários de media em eventos especiais. Estes espaços ministram um
conjunto de cursos integrados e colectivos dos quais resulta uma produção constante e contínua de
conteúdos de media com participação livre e aberta a todos. As primeira experiências do CMI-Brasil
com laboratórios de media decorreram durante a terceira edição do Fórum Social Mundial de Porto
Alegre, em Jameiro de 2003 e durante o Primeiro Fórum Social Brasileiro, que teve lugar em Belo
Horizonte no mês de Novembro desse mesmo ano. No último caso, tratou-se da Casa Macunaíma, um
local onde vários comunicadores e jornalistas que estavam a fazer a cobertura do Fórum se puderam
congregar e colaborar na produção de peças audiovisuais, representando "um espaço colectivo de
comunicação democrática" (Cabral, 2005) que contou com o apoio da Associação Brasileira de
Radiodifusão Comunitária (ABRACO) - órgão representante das rádios comunitárias brasileiras. O
êxito da iniciativa levou à criação de um novo espaço Macunaíma durante o Fórum Mundial da
Educação que decorreu em São Paulo em Abril de 2004. Posteriormente, foi ainda implementado um
outro laboratório de media, o Polimídia321, que integrou a programação oficial da 4ª Conferência da
Rede OurMedia, dedicada ao estudo e investigação dos media alternativos e independentes, realizada
em Julho de 2004 novamente em Porto Alegre. Nesse espaço, activistas do CMI, produtores
independente e investigadores académicos puderam efectuar colaborativamente experiências práticas
de comunicação e desenvolvimento e trocar conhecimentos, através de workshops e apresentações de
projecto relacionados com a utilização autónoma e comunitária do vídeo, da rádio e da Internet
(idem).
321 Ver wiki do Polimedia Lab em http://docs.indymedia.org/view/Global/NossoMidiaLab.
200
1.6 – Brasil, Nação Hacker
O que resulta da análise do trabalho de todos os projectos aqui referenciados é uma tentativa de
transposição daquilo a que poderíamos chamar "jeitinho" brasileiro para o domínio dos media e das
tecnologias digitais. Esta expressão popular pode ser definida como uma "maneira hábil, esperta,
astuciosa de conseguir alguma coisa, especialmente algo que à maioria das pessoas se afigura
particularmente difícil", recorrendo à economia informal ou mesmo marginal. A "gambiarra" ou
"gato" é um dos exemplos desse "jeitinho" aplicado na prática que os elementos do Midia Tática
referem no site do Digitofagia e que se insere na cultura antropofágica de apropriação daquilo que é
do outro. Trata-se de "uma extensão puxada fraudulentamente para furtar energia eléctrica"322
geralmente utilizada em favelas ou ocupações de casas e terras.
A "gambiarra", tanto em sentido literal ou como metáfora para a subversão da tecnologia e dos media
- como se se tratasse de um hack -, na nova interpretação que o colectivo Mídia Tática faz da palavra,
apresenta-se assim como um dos exemplos mais concretos e realistas das astúcias tácticas que Michel
de Certeau assinalou, uma vez que elas são incorporadas pelas populações no seu quotidiano. Em Arts
de Faire, o autor francês chega mesmo a fazer várias referências ao modo como a cultura popular
brasileira resiste à assimilação pelo outro, um poder externo, recorrendo a linguagens e crenças
populares próprias para subverter a língua imposta pelo colonizador e a religião imposta pelo
missionário, chamando a esse tipo de sabedoria um misto de estratagema - trampolinagem323 - e de
trapaçaria, isto é, astúcia e esperteza no modo de utilizar ou de esquivar-se aos termos do contrato
social (Certeau, 1990 [1980]: 34). Mas estas "mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro"
representam, na nossa opinião, mais que "um prazer em alterar as regras do espaço opressor" (idem).
Apesar da alegria e o gozo estarem habitualmente presentes, o que está em questão é quase sempre a
sobrevivência no dia a dia. O mesmo se passa com as novas "gambiarras" digitais. Dados os enormes
problemas que a população brasileira tem que enfrentar, a resposta não reside num mero pessimismo
mas num "talento interminável para a improvisação, para vislumbrar (e criar) possibilidades", tal
como salienta David Garcia que inventou a apropriada designação de "terra do possibilismo" para
descrever o ambiente que, "contra todas as probabilidades", encontrou no Brasil (Garcia, 2004a).
Assim não podemos ver estas práticas Do-It-Yourself que identificámos neste capítulo como meros
media tácticos mas "como um método prático de fazer coisas para alterar os sistemas, de não esperar
para que o governo ou as instituições façam o trabalho", nas palavras de Brunet (2005). Falando como
brasileira, esta autora faz questão de salientar que "no Brasil, nós temos que lutar para obter estas
322 Citações retiradas das entradas"jeitinho" e "gambiarra" do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2003), IVº volume, Lisboa, Círculo de Leitores.
323 Certeau explica que este termo consiste num jogo de palavras que associa a acrobacia de um saltimbanco com a sua arte de saltar no trampolim (Certeau, 1990 [1980]: 34).
201
coisas (alimentação, educação e saúde). Não sobrevivemos se esperarmos pelo governo. É por isso
que aqui surgem muitos estilos de vida alternativos" (idem). Essa luta pela sobrevivência face aos
graves problemas económicos do país e à dificuldade em arranjar emprego na economia formal têm
levado milhões de brasileiros a recorrerem a esquemas mais ou menos ilícitos no domínio da
economia informal. Em 2004, 60 por cento da população activa, isto é, 47,5 milhões de pessoas,
estavam na informalidade324. Felipe Fonseca chama a esse "mundo alternativo de trabalho" de
"economia pirata", caracterizada pela criatividade e pelo dinamismo, um "empreendedorismo" na
gambiarra, tendo um círculo próprio de produção e distribuição (Fonseca, 2005). Uma das suas
figuras é o "camelô", o vendedor ambulante ou instalado num local fixo que, por conta própria e
frequentemente desafiando a lei - escapando ao pagamento de impostos -, comercializa produtos
contrabandeados e até falsificados em barracas ou bancas pelas praças e ruas das cidades do país325.
Felipe Fonseca descobre um elo de ligação entre o camelô e os "media tácticos do primeiro mundo, na
medida em que ao optar pela venda de CDs, DVDs e jogos pirateados para obter a sua subsistência,
aquele "também chega (...) a questionar os domínios da propriedade intelectual e do poder dos media
de massas, em especial, o branding empresarial" (idem) 326
Mas da mesma forma que o "jeitinho" brasileiro é simbolizado pelas "gambiarras", as astúcias e
manhas dos fracos para fugir aos espaços e muros erguidos pelos outros, também o é pela
colaboração, pela generosidade e pela criação de solidariedades entre identidades distintas mas que
partilham a sua condição de excluídos, tendo por isso um interesse comum: sobreviver no quotidiano.
Os activistas tácticos brasileiros possuem uma consciência profunda de que no Brasil "a periferia é o
centro" (Dimantas, 2004 e 2005; Estraviz, 2001), na medida em que "lá a comunidade se organiza"
(Estraviz, 2001) e colabora colectivamente327. Do mesmo modo que as "gambiarras" DIY, "a
colaboração aqui (no Brasil) é sempre uma estratégia de sobrevivência", afirma Hernani Dimantas,
que acrescenta: "O que seria deste país se não fosse a gentileza entre pessoas que jogam na mesma
324 Ver Pastori, José (2005), "Perspectivas e Problemas do Emprego no Brasil", Seminário Brasil-Canadá: Desafios para a Criação de Empregos, CEBRI, Brasília, 10 de Março. Disponível em http://www.cebri.org.br/pdf/232_pdf.pdf (acedido a 13 de Janeiro de 2006). Este sociólogo brasileiro refere ainda que "em 1985 havia um emprego formal para cada 2,7 trabalhadores; em 2002, essa proporção subiu para 1 emprego formal para cada 3 trabalhadores".
325 Porém, esta percepção de que o número de vendedores ambulantes no Brasil extremamente grande contrasta com os dados relativoa a 2003 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Serviço Brasileiro de Apoio âs Micro e Pequenas Empresas (SEPRAE), segundo os quais, apenas existem 711,8 mil "camelôs" no Brasil, o que corresponde a 6,9 por cento das 10,3 milhões de empresas informais. Contudo, este estudo sobre a Economia Informal Urbana apenas considera como empresas informais as que que tenham até cinco empregados e não separam a sua contabilidade da do proprietário. Ver estudo em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/ecinf/2003/default.shtm (acedido a 13 de Janeiro de 2006).
326 Com a intenção de oferecer um retrato pitoresco e irónico da economia informal brasileira ao resto do mundo, a delegação brasileira no festival Next Five Minutes de 2003, em Amesterdão, composta por Felipe Fonseca, Ricardo Rosas, Ricardo Ruiz e Tatiana Wells teve a ideia de fazer uma instalação/intervenção "à entrada do De Balie, o centro do evento que consistitu numa banca de 'camelô' com o câmbio invertido: os europeus só podiam comprar com reais, que custavam três euros cada" (Fonseca, 2005).
327 Esta posição assemelha-se também em parte à filosofia de actuação do colectivo Mídia Tática de, com o Autolabs, alcançar o centro a partir da periferia no sentido de provocar mudanças nas políticas públicas de inclusão digital (Garcia, 2004a e Rosas, 2004).
202
equipa da miséria, os agora chamados 'excluídos'" (Dimantas, 2005). Essa ideia fica bem expressa na
cultura popular brasileira através do conceito de "mutirão", que pode ser definido como "qualquer
mobilização colectiva e gratuita de cidadãos para execução de um serviço que beneficie a
comunidade"328. Este termo é frequentemente utilizado pelos membros do Metáfora e do
Metareciclagem para descreverem as suas acções com a tecnologia digital e a sociedade brasileira.
Para Dimantas, por exemplo, a periferia é o centro" porque "vive de mutirão, respira colaboração"
(idem). Um mutirão tanto pode ser uma acção conjunta de limpeza das ruas de um bairro, a pintura de
uma creche ou uma escola de samba. O "puxadinho" ou "puxada" é, no entanto, talvez o exemplo
mais pertinente do que um "mutirão" pode ser na prática, referindo-se ao costume de "acrescentar
uma ou duas divisões de uma casa, aproveitando uma das paredes externas"329 quando uma família se
torna mais numerosa através do casamento de um filho ou do nascimento de mais outro. Esta é assim,
tal como a "gambiarra" uma forma de improvisar e solucionar um problema concreto do quotidiano
de milhões de brasileiros: a falta de espaço para habitação e de recursos financeiros para comprar uma
nova casa.
A importância da colaboração entre pessoas repercutiu na tentativa dos activistas brasileiros
trabalhando com media tácticos de adaptarem este e outros conceitos originalmente criados na Europa
e América do Norte para o contexto brasileiro. "Em termos de colaboração, nós, elite cultural
revoltadinha brasileira, temos mais a aprender do que a ensinar com as culturas populares", refere
Felipe Fonseca (2005). A proposta destes colectivos pode, efectivamente, ser vista como uma
digitofagia, uma antropofagia das tecnologias digitais e dos media analógicos mais acessíveis que
combina traços comuns da cultura popular brasileira com a ética hacker: colaboração,
descentralização, ênfase na reputação e informalidade (idem)330. Através de uma nova abordagem da
inclusão digital que vai para além do mero acesso às tecnologias digitais, os projectos atrás referidos,
assim como o Metáfora/Metareciclagem, tentam oferecer à população de baixos rendimentos e que
vive na periferia meios para ampliar sua voz, para se reapropriar da tecnologia tendo em conta as suas
necessidades e os seus interesses. Porque apesar de essas pessoas estarem excluídas do acesso às
ferramentas tecnológicas, elas não estão excluídas da cultura da colaboração, da criatividade e da
sobrevivência (Dimantas, 2005). Elas “são capazes de tomar as próprias rédeas, andar sozinhas e
protagonizar suas próprias vidas” (Dimantas, 2004). Com vista à reapropriação da tecnologia pela
328 Ver entrada para "mutirão" em Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (2003), tomo V, Lisboa, Círculo de Leitores. Este dicionário apresenta ainda outras definições semelhantes de "mutirão": "mobilização colectiva para auxílio mútuo de carácter gratuito, especialmente entre trabalhadores do campo, por ocasião da roçada, colheita, etc. (...) Serviço sem ónus prestado por membros de uma comunidade, geralmente visando a construção ou o melhoramento de um imóvel".
329 Ver entrada para "puxada" no Dicionário de Língua Portuguesa (2003), idem. Outros sinónimos do mesmo termo referidos por este dicionário são "puxá", "puxado" e "puxação".
330 A este propósito Felipe Fonseca afirma terem exisitido raízes culturais hackers no país desde muito antes da criação do primeiro computador (Fonseca, 2005).
203
sociedade brasileira, Felipe Fonseca sugere que em vez de tentarem transformar um "camelô" num
funcionário de escritório, os coordenadores de projectos públicos e do terceiro sector de inclusão
digital deviam pensar como é que a tecnologia pode melhorar a sua actividade de venda em locais
público (Fonseca, 2005a). Fonseca propõe ainda que se aproveite as características culturais
brasileiras para obter o máximo das tecnologias fomentando o recurso à Internet por essas pessoas da
periferia onde se estabeleça "a troca de conhecimentos, a colaboração e a mobilização colectiva"
(idem). Em lugar de uma “inclusão digital” que entende o computador e a Internet como ferramentas
de empregabilidade, projectos como o Metáfora/Metareciclagem apontam para um caminho
alternativo em que a tecnologia facilita a comunicação das pessoas da periferia entre si e destas para
com a sociedade.
204
2 – Projecto Metáfora: Caos e Ordem numa Inteligência Colectiva
Hoje em dia, a maior dificuldade para começar um projeto de pesquisa é a definição do nome. Que nome dar a um projecto que tem por objetivo entender e propor aplicações para uma realidade em que passaremos do online/offline para uma cultura permanentemente conectada? Como definir uma cultura em que definir o nome de um projecto é mais difícil do que estabelecer um fórum de comunicação entre os seus membros? E isso é só o começo. Virtualização da presença, k-logs331, m-log332s, RSS, telecentros comunitários, inteligência colectiva, o novo nomadismo, são alguns dos assuntos que vão nos guiar.
- Felipe Fonseca, “Metáfora”
Foi com esta frase em epígrafe enviada para uma nova lista de discussão por email que se deu início
ao projecto Metáfora, a 28 de Junho de 2002333. O objectivo era trocar ideias e talvez conceber
tecnologias que incorporassem na prática noções como conhecimento livre, redes sociais, colaboração
e copyleft334. Na origem do Metáfora esteve outra lista, a Joelhasso, que também servia de nome a um
blog criado por Felipe Fonseca em 2001, que trabalhava na altura na indústria da publicidade. Aí se
congregaram virtualmente os integrantes de outras listas brasileiras sobre marketing e comunicação,
entre os quais Hernani Dimantas, Paulo Bicarato e Charles Pilger, que viriam mais tarde a fazer parte
do Metáfora. Como conta Fonseca, os assuntos em discussão na Joelhasso abrangiam a Internet sem
fios, dispositivos em rede, XML, integração de equipamentos e conversações (2005). Desagradados
pelo que consideravam ser o atraso da indústria tecnológica brasileira, Fonseca e Dimantas criaram
em jeito de resposta a primeira mailing-list Metáfora com o intuito, nas palavras do primeiro, de
"tentar consolidar as novas ideias que um monte de gente estava gerando". Na entrevista que
realizámos, Fonseca esclarece que o Metáfora surgiu como uma saída para a frustração que sentia no
seu emprego na altura: “O Projecto Metáfora tornou-se o ambiente onde a criatividade não enontrava
limites e onde começavam a aparecer pessoas que tinham interesses e perspectivas em comum
comigo” (Fonseca, 2005b). Hernani Dimantas complementa essa afirmação, afirmando que “o
carácter aberto do projecto deu ao grupo as possibilidades para o exercício total da criatividade”
(Dimantas, 2004).
Tendo em conta um "quotidiano hiperconectado", a lista visava estimular o debate sobre "os limites
cada vez mais ténues entre online e offline, entre digital e analógico, e o conhecimento livre como
331 Utilização de weblogs no ambiente corporativo com a finalidade de estimular a colaboração e a organização pessoal do conhecimento.
332 Utilização de weblogs em empresas para serviços de marketing junto de clientes. 333 Grande parte do arquivo desta lista encontra-se disponível em
http://metareciclagem.org/metafora/temp/lista_ygroups/. O arquivo está dividido em cinco ficheiros: o primeiro – grab.htm - vai até à mensagem nº 1501, o segundo – grab2.htm - vai da 1502 à 3001, o terceiro – grab3.htm – vai da 3002 à 4501, o quarto – grab4.htm – vai da 4502 à 6001 e o quinto – grab5.htm – vai da 6002 à 7501. Este arquivo não contém, contudo as mensagens datadas desde o final de Março até ao final de Junho de 2003, isto é, cerca de 2500 do total de 10 mil enviadas para a lista.
334 Forma de protecção dos direitos de autor que tem como objectivo prevenir que sejam colocadas barreiras à utilização, difusão e modificação de uma obra criativa devido à aplicação clássica das normas de Propriedade Intelectual. A General Public Licence, licença que protege a maior parte do software livre, é uma forma de copyleft.
205
metodologia de colaboração" em que se passasse para além da crítica, no sentido da apresentação de
alternativas concretas (Fonseca, 2005). No mesmo texto, Fonseca recorda o processo de formação da
nova comunidade online: "Criei a lista de discussão no Yahoo! Groups e convidei 12 pessoas. Quase
todas aceitaram" (idem). Dimantas afirma a este propósito que ambos combinaram inicialmente que
ele faria a articulação externa e Fonseca ficaria a cargo da articulação interna. "Abri o diálogo do
Meta com instituições do governo, algumas ONGs mais institucionalizadas e com participação
política e a academia", refere no questionário que elaborámos. Por seu lado, Fonseca – que utilizava
nesses primeiros tempos a alcunha Izquierdo, El Horrible - incentivava as pessoas que iam chegando
à lista a conversarem entre si.
A lista começou por ser uma conversa entre um grupo de 15 pessoas, mas no período de um mês já
tinham sido aí publicadas mais de 1200 mensagens entre 45 elementos. Foi assim criada uma wiki
onde começaram a ser guardados os inúmeros bookmarks de notícias e artigos que eram debatidos na
lista (Fonseca, 2003). De seguida, foi redigido o rascunho de um projecto. Três dias mais tarde, este
rascunho transformou-se na descrição completa de um projecto, tendo os participantes começado a
elaborar projectos colaborativos a partir da wiki (idem). O Metáfora viria a acabar em Outubro de
2003. Um mês antes, durante a sua intervenção no N5M, em Amesterdão, Felipe Fonseca afirmava
que o Metáfora contava com “cerca de 200 pessoas, desde lurkers335 a gestores de projectos, e mais de
25 projectos, estando actualmente quase metade deles a serem desenvolvidos”, todos eles
funcionando graças ao voluntariado dos participantes (ibidem). Embora a grande maioria dos
elementos mais activos do Metáfora tenha pertencido à região de São Paulo, o projecto alastrou-se
também a outras cidades brasileiras como Belo Horizonte e Rio de Janeiro, contando ainda com
participantes nos Estados Unidos.
De início, as conversas na lista, versando sobre telemóveis ligados à Internet, m-blogs, PDAs e
computadores de bolso, evidenciavam um certo pendor para o tecno-narcissismo que, como Matteo
Pasquinelli acusa (2002), predomina em muitos projectos autónomos trabalhando com media e
tecnologia. Gradualmente, no entanto, assistiu-se a um desviar da atenção sobre a tecnologia em si
para uma maior consciencialização sobre as necessidades reais das pessoas comuns de forma a ir de
encontro a elas336.
Tal como outros grupos abordados anteriormente, o Metáfora conseguiu juntar no mesmo projecto
hackers, filósofos, jornalistas, artistas, antropólogos e designers, todos eles actuando em quatro
335 Meros leitores das mensagens enviadas para a lista de discussão, que nunca intervêm publicamente. 336 Ver mensagens nº 7, 8 e 9 do arquivo trocadas entre Paulo Colacino e Felipe Fonseca e a mensagem nº 1191 que
contém uma reflexão do primeiro sobre o que tinha sido a evolução da lista até então. No questionário por email que realizámos, Tupi Namba assemelha o discurso inicial do Metáfora com “o empreendedorismo geek flower power de Silicon Valley e do anarquismo do periodo punk".
206
grandes àreas: comunicação, tecnologia, educação e arte. “O Metáfora é totalmente independente. É
aberto e flexível. Não é um projeto académico. É uma nova forma de gerar conhecimento. O nosso
enfoque é o incentivo de projectos pessoais através da colaboração entre os participantes”, explicou
Hernani Dimantas (2004). O carácter transdisciplinar do projecto é recordado por Felipe Fonseca:
“Baseados em tecnologia que hoje (Novembro de 2005) até parece pouco sofisticada (uma wiki e uma
lista de discussão), fomos capazes de mobilizar efectivamente mais de uma centena de pessoas
dispostas a experimentar novas formas de lidar com o conhecimento e de encontrar soluções para
problemas em comum” (Fonseca, 2005b). Esta convergência de esforços resultou naquilo a que o
colectivo denominou de aprendizagem distribuída em que “um grande número de pessoas com os
mais variados repertórios, esforçando-se por fugir aos jargões e por expressar-se de uma maneira que
todos compreendessem, foram responsáveis por uma disseminação multilateral de conhecimento com
um ritmo que eu nunca tinha visto” (idem). Na base desta “comunicação multi-facetada, multi-lateral,
interactiva e independente” (Dimantas, 2004) esteve a ideia de “xemelê”, que Fonseca define como
sendo “um esforço positivo no sentido de manter um nível de linguagem que pudesse ser mutuamente
compreensível” de modo a que todos pudessem participar nas discussões (Fonseca, 2005)337. O termo
remete para um episódio concreto da história do Metáfora, quando Dalton Martins enviou uma
mensagem para a lista sobre computação distribuída e Fonseca respondeu: “xemeleia aí que eu não
entendi nada”338. Xemelê viria a ser, aliás, o nome da segunda lista do Metáfora, criada em meados de
Junho de 2003, quando a primeira lista, alojada no serviço de alojamento eGroups do Yahoo! estava
prestes a ultrapassar o limite de armazenamento de emails - dez mil mensagens - imposto por aquela
empresa339.
Em pouco mais de um ano, o Metáfora passou de uma mailing-list a um grupo de acção para um
conceito de colaboração, uma infra-estrutura ou incubadora para a criação de projectos colaborativos,
em que os próprios projectos, como explicou Felipe Fonseca (2003) “criam grupos de acções, como
se do caos surgisse uma ordem fractal”. Aliás, um dos termos mais empregues pelos participantes do
Metáfora para definir o processo de funcionamento do projecto era o de ‘caordem’, uma mistura de
caos com ordem, que nos faz remeter para conceitos como rizoma, swarming e multidão já abordados
anteriormente340. Outro conceito essencial para compreender o Metáfora é o de Inteligência Colectiva,
337 Esta intenção de adequar a linguagem do discurso ao resto da sociedade está patente numa mensagem de Felipe Fonseca enviada para a lista a 24 de Julho de 2002 (nº 1059):
Acho que a nossa história aqui, como eu postei antes, xemlê de ideias, e tal, é fazer o meio termo de algumas coisas. Não ser tão geek, nem tão mercado, nem tão jornalixta, nem tão revolucionário que impeça o diálogo com os outros e com a sociedade (que, ao menos na minha opinião, é uma das motivações de projectos abertos como nosso grupim).
338 Ver mensagens nº 5651 (Dalton Martins) e 5661 (Felipe Fonseca) no arquivo da lista. 339 Ver arquivo quase completo da lista em http://amsterdam.servershost.net/pipermail/xemele_projetometafora.org.
Deste arquivo não constam as mensagens enviadas para a lista na segunda quinzena de Setembro de 2003. O backup original do arquivo desapareceu irremediavelmente em 2004.
340 A ideia de caordem foi introduzida na lista, logo no início, por Paulo Colacino, numa mensagem enviada para a lista sobre o modo de organização que iria reger a lista:
207
introduzido por Pierre Lévy, segundo o qual estamos a assistir à emergência de uma nova era do
conhecimento que irá produzir uma consciência humana global341. No texto de apresentação342 do
colectivo, pode-se ler: “Metáfora é uma inteligência colectiva para gerar inteligências colectivas. Um
projecto aberto de pesquisa e desenvolvimento em diversas áreas do conhecimento, baseado em
algumas premissas do modo de produção open source.” Mais à frente, verifica-se que o plano de
actuação do projecto passava pela realização de “acções multiplicadoras de inteligência colectiva
envolvendo o uso de redes de informação”. Do mesmo modo, Hernani Dimantas enfatizava essa visão
do Metáfora inteligência colectiva num artigo publicado na revista electrónica Nova-E ainda durante a
fase inicial do projecto343.
Primeiramente valeu Felipe pela criação do espaço. Vamos provar aqui que várias cabeças, dão mais cabeçadas que uma só e juntas cabeceam melhor do que sozinhas. É isso aí.
O segundo desafio é organizar isso aqui, se é que será possível. Vamos ter um diretriz, projetos, um objetivo, ou vamos discutir à esmo ? Caos ? Ordem ? Ou caordem ?
Felipe Fonseca respondeu de forma contundente:
Caordem.
Arquivos e Bookmarks: Caordem também. Cadum faz do jeito que quiser. Desde que passe o recado.
Ver mensagens nº 3 e 6 do arquivo da lista. O termo vem do inglês chaord introduzido por Dee Hock, fundador e director-executivo emérito da Visa, para designar qualquer organismo, organização ou sistema, tanto fisíco, biológico como social, que seja complexo, não-linear, auto-organizado e capaz de se adaptar ao seu meio-ambiente apresentando um comportamento que funde harmoniosamente características de caos e ordem. Uma chaord seria também qualquer entidade cujo comportamento revela padrões e probablidades observáveis que não são controlados ou explicados pelo comportamento das suas partes. Hock aplicou o conceito de “organização caórdica” à Visa, seguindo os princípios organizativos fundamentais da natureza. Ver Hock, Dean (1999), “Birth of the Chaordic Age”, Berrett-Koehler Publishers.
341 Inspirado no conceito de noosfera teorizado pelo jesuíta francês e paleontólogo francês Teillard de Chardin relativo a uma esfera do pensamento humano composta por todas as inteligências humanas que evolui em direcção a uma maior integração, Lévy argumenta de um modo optimista que as redes de computador, os ambientes virtuais e o multimédia estão a possibilitar o surgimento de um espaço do conhecimento que irá unir as nossas mentes num todo que será potencialmente maior que a soma das partes:
O que é a inteligência colectiva? É uma inteligência globalmente distribuída, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que conduz a uma mobilização efectiva das competências (...) O fundamento e o fim da inteligência colectiva é o reconhecimento e o enriquecimento mútuo das pessoas e não o culto de comunidades fetichisadas ou hipostasiadas (Lévy, 1997 [1994], 38).
Empregando um discurso teórico que será mais tarde explorado por Hardt e Negri no conceito de “Multidão”, embora numa perspectiva mais marxista (2000 e 2004), Lévy escreve:
O colectivo inteligente não submete nem limita as inteligências individuais; pelo contrário, exalta-as, fá-las frutificar e abre-lhes novas potencialidades (...) Faz crescer uma forma de inteligência qualitativamente diferente, que vem juntar-se às inteligências pessoais, uma espécie de cérebro colectivo ou de hipercórtex.
Hipercórtex foi, aliás, o nome de um dos projectos individuais de Felipe Fonseca antes do Metáfora, e que seria uma “combinação de enciclopédia, jornal, dicionário, fórum e chat” construída pelos utilizadores, partindo do modelo do Slashdot. Fonseca iria retomar o termo como nome de um blog.
342 Disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?Apresenta%E7%E3o.343 Cópia de arquivo do texto “Metáfora: incubadora colaborativa” disponível em
http://web.archive.org/web/20021223221540/http://www.novae.inf.br/neuraldigital/metafora.html.
208
Os projectos do Metáfora abrangiam desde soluções para acesso à internet até alternativas para
estimular o espírito empreendedor das comunidades desfavorecidas. Tais iniciativas estavam baseadas
numa organização conceptual denominada a Tríade da Informação:
· Infra-estrutura física: computadores pessoais, modems, routers, cabos, hubs, gateways;
· Infra-estrutura lógica: padrões de interligação, sistemas de publicação online, gestão de
conhecimento, redes de processamento distribuído, protocolos;
· Interacção: colaboração, capital social, formação, conhecimento partilhado, mobilização,
participação.
Este modelo baseia-se em parte no conceito dos três níveis dos sistemas de comunicação introduzido
pelo jurista Yochai Benkler e retomada por Lawrence Lessig (2001: 23-25), compostos por um nível
físico, situado em baixo, um nível intermédio lógico ou relativo ao código e um nível superior,
relativo ao conteúdo. A diferença substancial situa-se nesta última camada: enquanto Benkler e Lessig
utilizam o termo conteúdo, os elementos do Metáfora preferem recorrer ao conceito de interacção de
modo a fomentar a autonomia das comunidades344. “Sempre me pareceu pretensão a visão segundo a
qual um grupo de pretensos especialistas definem qual o 'conteúdo' interessante para um determinado
grupo”, refere a este respeito Felipe Fonseca na entrevista (2005b).
Apesar da sua curta duração, de apenas 15 meses, o Metáfora deixou um legado bastante valioso de
projectos que ainda hoje subsistem. Destes, o MetaReciclagem foi o que obteve maior êxito, tendo
chegado a todas as grandes cidades brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto
344 Inicialmente, o modelo da tríade incluia o conteúdo em lugar da interacção, de acordo com a mensagem nº 967 de Daniel Pádua enviada para a lista a 22 de Julho de 2002 relativo à proposta de criação da UTIL (União pela Tríade da Informação Livre, que não veio a ser posta em prática. Em reacção às tentativas das indústrias de tecnologia e entretenimento de controle e vigilância através de tecnologia supervisionada por extensões de hardware, software proprietário e conteúdos de acesso restrito, a UTIL deveria ter uma missão de “evangelização” no sentido de alertar os utilizadores para a necessidade de uma estrutura de comunicação online livre assente em: 1) tecnologia reciclada e redes comunitárias sem fios; 2) software livre; 3) blogs, redes P2P e conteúdos abertos e livres. Ver página do projecto na wiki em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?UTIL.
Felipe Fonseca iria mais tarde, a 14 de Agosto, surgerir que a estrutura da tríade servisse como modelo das actividades do Metáfora, dado que a maioria dos projectos podia ser encaixada em cada uma das três partes (mensagem nº 1626). Em resposta, Paulo Colacino (mensagem nº 1627) propôs a inclusão da interacção ao esquema, de modo a salientar a importância das relações entre nós humanos. O logotipo do Metáfora, um círculo com três setas viradas para o centro – consiste numa representação gráfica do conceito da tríade implementada por Tupi Namba – aprovada pelo colectivo através de uma votação -, a partir de uma ideia de Bernardo Schepop (mensagem nº 1991). Ver página na wiki em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?IdentidadeVisual.
209
Alegre, Recife, Salvador, Brasília, Curitiba, Manaus, etc. Como o nome indica, o MetaReciclagem
dedica-se à reciclagem de computadores obsoletos doados, equipando-os com componentes usados
que estejam em condições de funcionamento e instalando-lhes software livre. Depois de
reapetrechadas, as máquinas são pintadas por artistas plásticos e cedidas a associações e centros
comunitários de bairros periféricos. O colectivo desenvolve ainda nessas comunidades laboratórios de
reciclagem onde os jovens aprendem a utilizar não só Linux mas também o próprio processo de
reciclagem de PCs, demonstando e remontando os computadores. Pretende-se assim fomentar a
reapropriação da tecnologia visando a transformação social.
Uma das influências na criação do MetaReciclagem foi o Lowtech.org345, uma ONG britânica surgida
em 1997 a partir do grupo de artistas Redundant Technology Initiative (RTI) de Sheffield que recicla
computadores doados e resgata componentes informáticos da sucata para desenvolver manifestações
artísticas a partir destas máquinas como instalações de video-walls, trabalhando também
exclusivamente com software livre. Possui um laboratório de media, o Access Space, onde
disponibiliza acesso à população e ministra cursos de formação em tecnologias aplicada às artes.
2.1 – Eventos e Projectos
Tendo em conta a visibilidade que o MetaReciclagem obteve - sobretudo graças aos apoios junto de
autarquias, ONGs e do governo346 -, grande parte dos projectos desenvolvidos no Metáfora caíram
num relativo esquecimento. Questionado sobre as razões da projecção pública do MetaReciclagem em
particular. Felipe Fonseca sugere como um dos motivos o facto de os outros projectos terem sido
muito abstractos, ao passo que a metodologia da reciclagem de computadores teve sempre uma
aplicação mais concreta:
A (actividade) da MetaReciclagem, apesar de ter vários níveis de compreensão, pode ser entendida mesmo por quem não tem nenhum interesse em media alternativos, activismo ou acção social. Trata-se da desconstrução de tecnologias que costumam ser vistas como monolitos inalcançáveis. O funcionamento é esmiuçado, novas combinações são propostas. A 'tecnomagia' está ao alcançe de qualquer um e de todos. Os apoios que a MetaReciclagem alcançou em diversas instâncias da sociedade - instituições e governo – se devem em grande parte à sua facilidade de entender pelo menos uma parte dela (Fonseca, 2005b)
Ao analisarmos as mensagens trocadas na lista e as páginas da wiki concluímos, no entanto, que o
Metáfora não deve ser encarado como um mero “embrião” do MetaReciclagem.. Deste modo, é nossa
345 Site disponível em http://www.lowtech.org. Durante as discussões na lista que deram origem ao MetaReciclagem, Schepop indicou o exemplo desta ONG como uma possível referência para o novo projecto (mensagem nº 335 e 553.
346 Ver o arquivo de notícias publicadas sobre o MetaReciclagem em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/Clipping.
210
intenção demonstrar nas próximas páginas a importância das outras iniciativas esboçadas ou
implementadas pelo colectivo do Metáfora, na medida em que – em alguns casos - subsistiram por si
próprias, mas sobretudo, porque as suas ideias e práticas marcaram não só o ambiente dos media
tácticos brasileiros, mas também as próprias políticas públicas de tecnologias da informação e
comunicação do Brasil, nomeadamente, a nível governamental.
A primeira iniciativa que resultou do Metáfora foi o BlogChalking347, um sistema de busca no
Blogger348 que permitia procurar blogs por país, cidade e até por bairro a partir de um motor de
pesquisa, utilizando meta tags349. Baseado no sistema Warchalking de símbolos feitos com giz nas
paredes de prédios ou no chão das ruas para assinalar a existência de pontos de acesso sem fios à
Internet desprotegidos, esta pequena ferramenta criada por Daniel Pádua a 5 de Julho de 2002 obteve
um enorme sucesso por todo o mundo350. Em poucos dias, o site subiu ao primeiro lugar das listas dos
links mais citados pelos blogs de todo o mundo, como o Daypop e o Blogdex, tendo sido ainda
divulgado em vários grandes órgãos de comunicação social brasileiros como os jornais O Globo e
Estado de S. Paulo. Actualmente, o Blogchalking continua a ser empregue por muitos bloggers351.
Pádua explicou-nos que se tratou de "uma brincadeira massiva de auto-localização geográfica". Na
sua opinião, a exposição alcançada pelo sistema nos media comerciais ofereceu uma maior
visibilidade ao Metáfora, o que levou a um rápido crescimento do número de assinantes da lista.
Outro membro da lista, Tupi Namba, sugeriu algumas semanas mais tarde, a 24 de Julho, uma
347 Site disponível em http://www.blogchalking.com. A versão original ainda está disponível em http://www.blogchalking.tk. A página do projecto na wiki do Metáfora está disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?BlogChalking. Foi também criado um blog para anunciar as novidades do projecto em http://blogchalking.blogspot.com.
348 Serviço de alojamento gratuito de weblogs. Disponível em http://www.blogger.com. 349 Dados inseridos no código HTML de páginas Web que descrevem os dados aí contidos. 350 Pádua explica o funcionamento do BlogChalking numa mensagem enviada para a lista Metáfora :
Já há algum tempo, eu sinto falta de um sistema de busca no Blogger que me permita procurar blogs por país, cidade e até bairro. Qual seria a graça desse sistema? Bom, eu leio o blog de vocês, fico conhecendo um pouco mais destes seres humanos e a distância impede muitas vezes encontros reais que poderiam trazer vários momentos felizes para a minha vida. Mas, se eu pudesse também vasculhar a rede em busca de pessoas próximas de mim (mesma cidade no mínimo), isso aumentaria o potencial de interconexão (...) E também seria legal se quando eu entrasse num blog desconhecido, ao passar o mouse sobre uma gif - imagem - no blog, a caixinha alt da gif exibisse um rápido sumário sobre aquela pessoa, tipo língua que ela fala, cidade que mora, idade, etc.
Daí que observando a lógica do 'todo-mundo-se-ajuda' do http://warchalking.org eu pensei: porque não criar um sistema que possibilite às pessoas colaborar umas com as outras para gerar essa mútua indentificação? (...) A idéia é que, dentro de umas duas/três semanas depois da inserção da meta tag, seja possível entrar no Google, por exemplo, e fazer uma busca assim: blogchalk 21-25 Brazil Belo Horizonte o que me retornaria uma lista de blogs de pessoas de 21 a 25 anos que moram aqui em BH.
Ver cópia da mensagem em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?BlogChalking%2FSumario.351 Uma pesquisa pelo termo "blogchalk" efectuada a 23 de Janeiro de 2006 no Google indicava 514 mil resultados.
211
derivação do projecto, o Blogchalking Reverse352, que consistia numa tentativa de transpor o sistema
de identificação online de bloggers para o ambiente offline, através de uma linguagem de símbolos de
giz, tal como o Warchalking. Da mesma forma que o Blogchalking utilizava sinais offline para
localizar blogs no ambiente online, o Blogchalking Reverse visava localizar blogs no mundo real
empregando símbolos da Web. A segunda versão do site blogchalking.tk lançada por Pádua a 19 de
Agosto incluia já o alfabeto hobo proposto por Tupi Namba.
Outro projecto que, tal como o Blogchalking, também se autonomizou do Metáfora foi o
MetaONG353, uma comunidade de notícias e informações sobre e para o sector das organizações não-
governamentais sem fins lucrativos que surgiu a partir de uma ideia de Felipe Albertão354. O projecto
resultou de outra acção do Metáfora, o MetaComunidade355, iniciada por Felipe Fonseca e que
consistiu numa adaptação para o português do Brasil, tendo em conta as necessidades das
comunidades locais do país, do software open-source Drupal de gestão e produção de conteúdos
online que permite um modelo de publicação e edição aberta semelhante ao Kuro5hin e ao Digg, onde
qualquer utilizador pode submeter notícias e outros artigos, que serão moderadas pelos outros
utilizadores: as notícias vão para uma fila e os utilizadores aprovam quais os artigos que serão
incluídos na página inicial e os que são eliminados do arquivo do site. Actualmente (Janeiro de 2006),
o site permanece ainda em funcionamento, embora com um nível reduzido de actualização. No total
foram ai publicados até hoje 742 textos, encontrando-se estes dividindo nos seguintes assuntos:
ambientalismo (56), captação de recursos (45), cidadania (115), cultura (40), desenvolvimento
sustentável (72), ecologia digital (4), empreendedorismo (121), gestão (55), inclusão digital (92),
informática (12), legislação (7), microcrédito (22), política (13), sustentabilidade (22) e voluntariado
(42). Notícias (184), estudos de caso (146) e artigos (129) são o tipo de conteúdos mais
predominante.
A Buzzine356 foi outro projecto criado no seio da "incubadora colaborativa" chamada Metáfora,
segundo a expressão de Hernani Dimantas (2004), de quem partiu a ideia desta revista electrónica.
Esta e-zine inspirava-se na ética open-source e no modelo de negócios introduzido pelo Manifesto
Cluetrain, uma das principais referências da nova economia da Internet e outra das grandes
352 Página do projecto no Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?BlogChalking%2FTarefa006. Arquivo do site disponível em http://web.archive.org/web/20030605130557/http://www.dpadua.org/blogchalking/reverse.
353 Site disponível em http://www.metaong.info.354 Ver mensagem nº 588 de 16 de Julho de 2002 e 2400 de 6 de Setembro de 2002 do arquivo da lista Metáfora. 355 Página do projecto na wiki do Metáfora disponível em
http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?MetaComunidade. Ver mensagem nº 314 enviada para a lista por Felipe Fonseca a 11 de Julho de 2002.
356 Ver arquivo do site em http://web.archive.org/web/20040526094553/http://www.buzzine.tk/. A página da Buzzine na wiki do Metáfora está em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?Buzzine.
212
influências do Metáfora357. Baseada na plataforma Drupal, a Buzzine permitia a publicação de um
modo aberto de artigos de opinião e notícias sobre os mercados e a cultura digital, sendo a moderação
efectuada colectivamente. No cômputo geral, contudo, a participação na revista electrónica foi
escassa, tendo o nível de actualização sido reduzido, o que levou ao seu desaparecimento em 2004.
No ano seguinte, Dimantas retomou o nome para o seu novo blog individual358.
Um dos projectos do Metáfora especificamente no domínio da arte e tecnologia foi o Memelab359, que
partiu de uma ideia de Bernardo Schepop. Inicialmente designado de GrafoConexo360 ou MetaMedia
Lab, a iniciativa destinava-se à realização de intervenções artísticas e a experimentações mediáticas
de forma colaborativa relacionadas com interacção, arte e narrativas não-lineares em ambientes
digitais. Como se pode ler no texto de apresentação disponível na wiki, o Memelab pretendia ser um
espaço "aberto à experimentação, na interacção homem-máquina, indivíduo-conhecimento, indivíduo-
ambiente, indivíduo-indivíduo, sempre procurando explorar diferentes maneiras de 'contar uma
história', seja esta ficcional ou real, individual ou colaborativa"361. O ênfase era dado mais uma vez ao
software livre, a soluções não proprietárias e a licenças de autoria semelhantes à GPL. Todas as obras
e intervenções elaboradas no âmbito do Memelab deveriam ser assinadas em nome colectivo dado
que "a autoria, no âmbito artístico, tende a uma individualização da obra, o que não nos interessa".
Este questionamento da conceito de propriedade intelectual está bem patente em Wikifiction, uma
wiki de experimentações narrativas ficcionais baseado num cenário de fragmentação da comunicação
e de caos semiótico que apresentava um modelo semelhante ao colectivo italiano Luther Blissett de
produção descentralizada, onde se tornava impossível designar o autor de uma ideia e a obra criativa
deixava de ser algo estável e perene. Esta wiki, contudo, já não está online362. Apesar dos planos
ambiciosos do Memelab - pretendia-se estabelecer uma rede de parcerias com instituições
357 O manifesto, escrito por Chris Locke, David Weinberger, Doc Searls e Rick Levine, decreta o fim da estrutura tradicional do sector empresarial devido ao impacto da Internet que potencia o surgimento de um mercado interconectado, aberto e transparente e uma comunicação directa entre os consumidores e as organizações. As novas tecnologias estão a levar as pessoas a compreenderem que "os mercados são conversações": “Começou uma poderosa conversa global. Através da Internet, as pessoas estão a descobrir e a inventar novas modos de partilhar rapidamente conhecimento relevante. Em resultado directo disso, os mercados estão a ficar mais espertos — e mais espertos que a maioria das empresas". O documento surgiu pela primeira vez online em Abril de 1999 em http://www.cluetrain.com. O site contém uma versão portuguesa que foi traduzida por Felipe Albertão do Metáfora: http://www.cluetrain.com/portuguese/index.html. Em 2000 foi publicado em livro pela editora Perseus com o subtítulo The End of Business as Usual ("O Fim dos Negócios como os Conhecemos"), que desenvolve as 95 teses do manifesto.
358 Site disponível em http://www.buzzine.info.359 Site disponível em http://www.memelab.org. A wiki do Memelab está disponível em http://wiki.memelab.org. 360 Ver mensagem nº 1974 de 24 de Agosto de 2002 em que Schepop publica uma definição de grafo e grafo conexo. 361 Schepop aborda um pouco mais em detalhe as ideias sobre a relação entre arte e tecnologia que deveriam guiar o
MemeLab no documento de apresentação Memefesto onde faz referência à obra pioneira de RoyAscott no domínio da telemática durante os anos 60 e à questão da poética tecnológica. Ver texto em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?memeFesto.
362 Página do projecto na wiki do Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?WikiFiction. Ver cópia de arquivo da wiki em http://web.archive.org/web/20030813055806/wikifiction.memelab.org/HomePage.
213
estabelecidas e convidar artistas para a elaboração de pesquisas e trabalhos comuns -, o projecto não
chegou a registar muita actividade, continuando após o fim do Metáfora como espaço de alojamento
de iniciativas individuais de Schepop e de outros membros do Metáfora, como o Colectivo de
Histórias Digitais de Tatiana Wells, que produz e recolhe narrativas digitais colaborativas de cariz
literário ou jornalístico a partir de histórias pessoais elaboradas por jovens da periferia de São Paulo
em workshops como os do Autolabs363.
Para além destes, o Metáfora também contava com projectos de cariz mais activista, como o
Recicle1Político364, uma iniciativa que teve origem numa proposta de Tupi Namba através de uma
mensagem enviada para a lista Metáfora a 2 de Outubro e visava alertar para a poluição visual gerada
pela propaganda política e para o desperdício que esta representava através da recolha dos cartazes,
faixas, panfletos e outro ‘lixo’ composto de material impermeável e não-biodegradável deixado pelas
ruas das cidades nas vésperas das eleições presidenciais brasileiras de Outubro e Novembro de 2002.
Depois de recortado, o material seria reciclado e reaproveitado, transformando-o em arte urbana, land
art e instalações de arquitectura nómada como um circo, máscaras, um acampamento para os sem-
terra, cabanas para os sem-abrigo, toldos para bailes funk, concertos de hip-hop, moínhos de vento,
entre outros objectos. Este tipo de zonas temporárias autónomas (TAZs) decorreram em São Paulo e
Belo Horizonte365. Nesta última cidade, o Recicle1Político terminou com uma intervenção no âmbito
do evento ProvOs366 de Novembro de 2002, coordenado por Daniel Pádua e Adriana Veloso – que
também fazia parte do Metafóra. Este festival, o primeiro de media tácticos no Brasil, abrangeu um
conjunto de acções descentralizadas semelhantes a TAZs visando a democratização da informação e
do acesso aos media367. Numa acção de reciclagem de cartazes, o colectivo artístico local Renúncia
realizou uma instalação denominada “Argumentos” no edíficio que alojava o evento368, enquanto que
o artista plástico André construiu máscaras com mensagens de crítica social a partir de autocolantes
dos candidatos eleitorais369. Apesar do fim do Metáfora, o Recicle1Político foi retomado em Agosto
363 Antes das oficinas dos Autolabs, Wells tinha já coordenado outra iniciativa no âmbito do CHD ainda durante o período do Metáfora, o Livro Vivo, que visava resgatar a história das famílias dos jovens pertencentes a comunidades periféricas, ensinando-os simultaneamente a trabalhar com as novas tecnologias. Foi assim realizado um workshop de literatura interactiva com os alunos do Instituto Dom Bosco, uma ONG de apoio a crianças e jovens de famílias em situação de exclusão social em São Paulo. Ver página do Livro Vivo na wiki do Metáfora em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?LivroVivo.
364 O site do projecto já não se encontra disponível, mas é possível consultar a sua página na wiki do Metáfora em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?Recicle1Politico.
365 Ver registos das acções em São Paulo em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?Recicle1politico.tk%2Facompanhe. Algumas imagens das colchas de retalhos elaboradas com o material reciclado em Belo Horizonte estão disponíveis em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?Recicle1Politico%2FEstrategia.
366 O nome destinava-se a homenagear o movimento ProvOs de contracultura surgido na Holanda nos anos 60.367 Incluem-se aqui mesas redondas sobre software livre, media tácticos e rádios comunitárias e livres, peças de teatro,
declamação de poesia, uma exposição do artista gráfico Latuff e um workshop de edição e produção mp3 com o colectivo Re:combo, para além de intervenções urbanas anti-propaganda por parte do grupo local Renúncia. Para acompanhar a programação do ProvOs foi criado um blog que pode ser acedido em http://prov0saction.blogspot.com. Ver, em especial, o arquivo de Novembro de 2002.
368 Ver imagens da instalação em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2002/11/42706.shtml. 369 Ver imagens das máscaras de André em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2002/11/42711.shtml.
214
de 2004 pelo movimento Midia Tatica Brasil370.
Inserindo-se também no domínio do activismo mas de uma forma mais simbólica, o Protest'o'371 foi
um projecto individual criado por Tatiana Wells nas vésperas da Guerra do Iraque. Depois de ter
recebido por email várias cartas de protesto contra a guerra, Wells decidiu construir uma página na
wiki do Metáfora para disponibilizar essas mensagens de forma a que não perdessem o seu valor ou
fossem consideradas fenómenos isolados e onde qualquer pessoa podia também publicar o seu
depoimento contra a guerra ou links para notícias sobre manifestações de protesto que iam ocorrendo
em todo o mundo, bem como convidar amigos e conhecidos a participarem na iniciativa a partir de
um modelo de uma mensagem-convite.
É necessário reconhecer, contudo, que no cômputo geral o número de projectos do Metáfora que
ficaram meramente sob a forma de rascunhos na wiki foi bastante superior ao dos que foram
concretizados na prática. Um desses projectos foi o GASLI (Grupo de Argumentação para o
Software Livre)372, grupo de trabalho e pesquisa que apenas começou a ser iniciado e visava a criação
de um site que serviria para esclarecer a opinião pública brasileira das vantagens do software livre. Na
altura, antes da subida ao poder do governo de Lula e do PT, um grupo de deputados do Congresso
brasileiro estava a tentar a aprovação de um projecto de lei que tornaria prioritária a utilização de
alternativas livres no Estado. Funcionando como um instrumento de lobbying, o site deveria incluir
um guia que explicaria o conceito de software livre e recolheria os argumentos técnicos, sociais e
económicos para a utilização deste tipo de aplicações informáticas, para além de notícias e ligações
para estudos e pesquisas semelhantes, bem como um abaixo-assinado. Todo este material seria no
final enviado aos deputados e media comerciais.
Mas a importância concedida ao conceito de conhecimento livre não se restringia apenas ao mundo do
software e da tecnologia. Desde o início, aliás, se pôde sentir na lista uma forte pulsão para alargar a
filosofia do copyleft incorporada na GPL a domínios como a cultura e a educação. Um esforço nesse
sentido foi a MetaLicença373, uma licença de propriedade intelectual criada por Felipe Fonseca em
Julho de 2002 que deveria abranger todos os documentos publicados na wiki do Metáfora e os
projectos criados a partir daí. Antes mesmo da introdução de uma versão das licenças Creative
Commons no Brasil374, a MetaLicença autorizava o acesso, reprodução e modificação de todas as
370 A página que alojava esta iniciativa, http://recicle1politico.midiatatica.org, já não se encontrava, porém, disponível em Janeiro de 2006-
371 Página na wiki do Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?Protest%B4o%60.
372 Página na wiki do Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?GASLi. Uma cópia de arquivo do site original do projecto está disponível em http://web.archive.org/web/20030901123624/http://gasli.tk.
373 Página na wiki do Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?MetaLicenca.374 O processo de adaptação da Creative Commons, efectuado pela Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro,
215
obras licenciadas nos seus termos desde que a sua autoria fosse atribuída ao criador original e que não
fossem disponibilizadas sob a forma de conteúdo fechado ou pago. Contudo, este projecto nunca
chegou a ser completado.
Outro projecto que ficou pelo caminho foi o MetaLearning375, um sistema de aprendizagem
distribuída que se pretendia que fosse uma aplicação prática das ideias teorizadas na lista a este
respeito. Baseado no MetaComunidade, o MetaLearning partia do pressuposto que “cada indíviduo
que trabalha em qualquer área tem o potencial de se tornar num educador nos seus assuntos de
interesse”, possibilitando que estas pessoas actuassem como “facilitadores de conhecimento”. Este
conhecimento compartilhado seria permanentemente avaliado pelos outros utilizadores e o que fosse
considerado como válido seria ao fim de um certo tempo disponibilizado a todos. Os participantes
podiam escolher o que aprender e com quem, bem como os assuntos sobre os quais desejavam falar,
sem distinção entre professor e aluno. A aprendizagem seria realizada entre pares ou grupos auto-
definidos. A avaliação assentaria num sistema de reputação por pontos – karma – semelhante ao do
Slashdot.
À medida que o Metáfora ia crescendo quer em número de sub-projectos, como de mensagens
trocadas na lista e de participantes inscritos, foram sendo criados núcleos especializados de modo a
auxiliar as outras iniciativas. Um deles foi o MetaDev376, o núcleo de desenvolvimento tecnológico do
Metáfora, composto por programadores e outros voluntários dotados de uma formação especializada
que davam resposta às necessidades técnicas de outros projectos, como a construção de módulos
adicionais377 para o MetaComunidade. Tendo em conta o esquema da tríade, o MetaDev representava
assim a infra-estrutura lógica do Metáfora. Apresentando-se como “os arquitectos da caordem”
Metáfora, o MetaMeme378, por seu lado, estava encarregado da comunicação do grupo com o mundo
exterior, para fins de divulgação, obtenção de recursos financeiros e captação de novos voluntários
não-inscritos nas listas de discussão. Este núcleo organizava e distribuía ainda toda a informação
necessária sobre os projectos do colectivo, para além de assumir o contacto com os media comerciais.
2.2 - A Participação no Midia Tática Brasil
A participação do Metáfora no festival Midia Tática Brasil, em São Paulo, no mês de Março de 2003,
assegurou uma maior projecção pública ao projecto, apenas conhecido até então por um núcleo
iniciou-se em Maio de 2003 e a sua implementação ocorreu em Junho de 2004. Ver arquivo da lista de discussão em http://lists.ibiblio.org/pipermail/cc-br/ e site da Creative Commons Brasil em http://www.creativecommons.org.br/.
375 Página na wiki do Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?MetaLearning.376 Página na wiki do Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?MetaDev.377 Página na wiki do Metáfora disponível em
http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?MetaForaComunidade%2FModulos.378 Página na wiki do Metáfora disponível em http://ogum.metareciclagem.org/metafora.wiki/index.php?MetaMeme
216
restrito de pessoas – sobretudo bloggers, uma vez que os dois fundadores do colectivo mantinham
blogs379. Numa sala da Casa das Rosas, a sede do evento, o colectivo montou um laboratório com
computadores reciclados – um servidor e cinco estações de trabalho – ligados em rede a partir dos
quais os visitantes podiam aceder às páginas dos projectos na wiki380. Apesar da apresentação ter sido
um pouco desorganizada381, os workshops sobre colaboração online desenvolvidos no âmbito do
programa do festival em três telecentros da Prefeitura de São Paulo em Guaianases, Lajeado e Cidade
Tiradentes foram bastante importantes na medida em que representaram a concretização de uma das
premissas iniciais do projecto: o contacto directo com a periferia e as suas comunidades. Alguns dos
assuntos abordados foram as ferramentas de construção colaborativa do conhecimento como os blogs,
as wikis e os fóruns de discussão, a reputação, o conhecimento livre e as trocas de informação. Os
participantes nos workshops puderam, mediante registo, participar num site colaborativo382
desenvolvido previamente, baseado na plataforma Drupal. Para além de permitir a publicação de um
blog pessoal, possibilitava ainda outras formas de acção como um livro colaborativo, sala de
conversa, fóruns, publicação de artigos, mensagens pessoais e agregação de conteúdos através de
RSS. Contudo, o comportamento dos utilizadores face à tecnologia disponibilizada gerou alguma
frustração junto dos voluntários do Metáfora, como relata Felipe Fonseca: “Eles entravam, escreviam
um pouco sobre as suas vidas, comentavam o que os outros escreviam. Mas depois de alguns minutos,
muitos deles voltavam ao bate-papo do UOL ou a algum site de notícias” (2003c). Essa
“subutilização” da tecnologia devia-se, na sua opinião, ao facto de as pessoas não estarem
acostumadas a escrever livremente desde a escola, ao nível de experiência que os ambientes
colaborativos exigiam e à falta de intuitividade da interface dos sistemas de colaboração para os
leigos (idem). Apesar dos resultados da iniciativa terem ficado àquem do previsto, as lições retiradas
daí seriam aproveitadas em projectos do MetaReciclagem, após o fim do Metáfora.
2.3 – A Tentativa de Criação de uma ONG e o Fim
Com o desenrolar das conversas e o crescimento do número de esboços de projectos, surgiu também a
ideia de conceder um carácter mais institucional ao Metáfora e às suas iniciativas, através da criacção
de uma organização não-governamental e sem fins lucrativos que servisse para angariar recursos
financeiros de modo a colocar em prática as iniciativas do colectivo. Houve, contudo, desde sempre
379 Deve-se também salientar aqui a reputação que Hernani Dimantas granjeava na época na Internet brasileira graças ao seu blog Marketing Hacker (www.buzzine.info/marketinghacker), que veio a dar origem ao livro com o mesmo nome e o subtítulo A Revolução dos Mercados, publicado em 2003 pela editora Garamond. Outro blog que contribuiu para a divulgação do Metáfora foi o Interney (www.interney.net) de Edney Souza, que em Fevereiro de 2006 surgia em oitavo lugar na lista TopLinks dos sites com maior número de ligações (280 – à frente de todos os outros blogs) por parte dos bloggers brasileiros desde todos os tempos, disponível em http://toplinks.idearo.com.br/todos.php.
380 Ver mensagem nº 6748 enviada para a lista por Bernardo Schepop, fazendo o balanço da primeira reunião física oficial do Metáfora a 24 de Fevereiro de 2003 no “galpão” do Agente Cidadão.
381 Como reconheceu mais tarde Felipe Fonseca (2003c). 382 Cópia de arquivo disponível em http://web.archive.org/web/20030608043454/www.memelab.org/telecentros.
217
uma forte divisão no interior do grupo face a essa questão da institucionalização. Aliás, como iremos
referir mais a frente na análise dos questionários realizados aos antigos integrantes do projecto, vários
dos inquiridos mencionam a tentativa de constituição de uma ONG como factor motivador de
disputas internas. Com efeito, se a dissolução do grupo se deveu directamente à desistência de Felipe
Fonseca do cargo de moderador das listas e dos projectos, podemos, no entanto, concluir que a
decisão de Fonseca teve origem numa situação de atritos que já se arrastava desde há alguns meses,
somada à multiplicação caótica de projectos colectivos ou individuais associados ao Metáfora.
A vontade de constituir uma ONG a partir do Metáfora surgiu logo no início do projecto. O primeiro
membro do colectivo a colocar esta hipótese na lista foi Daniel Pádua, na mensagem nº 130 datada de
5 de Julho de 2002:
Uma ONG para distribuir computadores 'open-sourced' já preparados para funcionar em redes livres?
Uma ONG para divulgar e ensinar tecnologia aberta na sociedade, através de palestras e workshops de grátis (oo não)?
Uma ONG para fomentar um debate sobre a evolução da inteligência coletiva na sociedade brasileira (inicialmente, mas quem sabe na sociedade mundial)?
Uma ONG para educar os partidos políticos, o congresso e o escambau a quatro(...)?
Uma ONG para pensar, propor, desenvolver e experimentar meios de um cotidiano 100% online?
Face a este repto lançado por Pádua, outros elementos tinham, porém, uma posição mais cautelosa: Colacino
considerava que seria mais adequado numa fase inicial conceber o Metáfora como uma ONG virtual que
desenvolvia “projectos .ORG” e mobilizava pessoas em torno dessa causa, estabelecendo progressivamente
ligações e contactos com o resto da sociedade: associações, empresas, universidades e media comerciais, em
vez de uma ONG tradicional, não descurando no entanto a hipótese de o projecto evoluir nesse caminho383.
Fonseca assertou que a ideia da institucionalização seria ainda um pouco precipitada e sugeriu desdobrar as
ideias propostas por Pádua em projectos individuais384. Felipe Albertão colocou a possibilidade de o grupo
fundar uma ONG especificamente direccionada para a prestação de serviços de formação, consultoria e
assistência técnica em informática utilizando open-source para outras instituições não-lucrativas385. O assunto
foi, no entanto, esquecido nas semanas seguintes.
Retomando esta questão a 4 de Setembro a propósito da doação de computadores reciclados para concretizar
os planos do MetaReciclagem, Bernardo Schepop salientou a necessidade de formalizar o Metáfora sob a
383 Ver mensagens nº 293 de 11 de Julho e 473 de 15 de Julho de 2002.384 Ver mensagem nº 321 de 11 de Julho de 2002. 385 Ver mensagens nº 327 de 11 de Julho, 330 de 12 de Julho e 482 de 15 de Julho de 2002. Albertão veio inclusive a
criar um projecto na wiki do Metáfora relativo à formação de uma ONG que prestaria serviços de consultoria em software open-source a outras ONGs através de voluntários com formação técnica adequada, o UnusMundus, em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?UnusMundus.
218
forma de uma ONG que se responsabilizasse pelos compromissos assumidos com as empresas doadoras, de
forma a que estas se assegurassem que qualquer utilização das máquinas cedidas não pudesse resultar num
processo legal contra elas. Alertou contudo para o facto de que a institucionalização do Metáfora poderia
acarretar, por um lado, uma lentidão burocrática que atrasaria a velocidade de difusão de novas ideias e, por
outro, um fechamento do ambiente aberto e colaborativo do projecto. Outra alternativa seria continuar como
um colectivo que apoiasse iniciativas de outras entidades, embora isso significasse um menor grau de
autonomia, pois os voluntários teriam que “depender sempre de uma segunda instituição para assinar e
assumir as consequências”. Face a este dilema, Schepop perguntava se havia um caminho intermédio386.
Essa via é desenvolvida por Felipe Fonseca através de um plano que passava pela criação de ONGs
independentes do colectivo por alguns dos elementos individuais do Metáfora de forma a implementar
projectos específicos – em linha com a ideia proposta semanas antes por Albertão. Mais do que uma TAZ
efémera ao jeito do modelo teorizado por Hakim Bey (2001 [1991]) ou uma ONG com estatuto e regras, o
Metáfora seria, na sua opinião, “uma nuvem espalhando-se sobre ONGs, prefeituras, associações de bairro,
empresas e cada um de nós” ou ainda “uma biblioteca onde a gente pega as ideias e escolhe as pessoas para
desenvolver cada uma delas, mas não a estrutura que viabiliza cada uma delas”387.
Adriana Veloso, por seu lado, afirmava: “Gosto da caordem daqui e não me agrada a institucionalização
deste projecto, mas todos passamos por isso. Há modelos organizacionais horizontais, que funcionam por
consenso que acredito serem mais interessantes”388. A necessidade a médio prazo de captar apoio financeiro,
receber equipamentos e de garantir a protecção legal dos projectos desenvolvidos obrigava, contudo, para
Paulo Colacino, à constituição de uma ONG. Na sua opinião, era possível montar uma estrutura económica
que permitisse a viabilização das actividades do grupo e manter a criatividade sob a forma do “xemelê de
ideias” na lista e na wiki389. Antes da formalização em larga escala do núcleo do colectivo, deveria-se,
contudo, segundo Daniel Pádua, pensar primeiro em implementar um trabalho comunitário concreto e que,
para tal, não seria preciso uma estrutura jurídica que levaria obrigatoriamente a uma perda de espontaneidade
e capacidade de transformação da comunidade. Assim, numa perspectiva “caórdica”, o Metáfora funcionaria
como uma conversação livre empregando ferramentas online a partir da qual surgiriam núcleos
descentralizados mas interligados entre si através de um consenso gerado na lista. Estes núcleos poderiam ser
formalizados pelos interessados, podendo outras pessoas que quisessem participar juntar-se a essa
entidade390.
Esse seria o modelo a ser seguido até ao fim do Metáfora, em projectos como o MetaONG e o
MetaReciclagem, embora ambos nunca tenham chegado a efectivar uma verdadeira
institucionalização. Em vez disso, no caso deste último em particular, o colectivo estabeleceu uma
relação de colaboração com uma ONG, o Agente Cidadão, através do qual recebeu as suas primeiras
doações de computadores. Houve, contudo, nos últimos meses do Metáfora, um esforço concreto de
386 Ver mensagem nº 2326 de 4 de Setembro de 2002. 387 Ver mensagens nº 2330, 2331e 2358 de 4 e 5 de Setembro de 2002. 388 Ver mensagem nº 2332. 389 Ver mensagem nº 2357 de 5 de Setembro. 390 Ver mensagem nº 2373 de 5 de Setembro.
219
criação de uma entidade sem fins lucrativos. Para tal, foi aberta uma lista de discussão separada da
principal – da qual já não existe registos -, de acesso restrito e Bernardo Schepop chegou mesmo a
redigir um estatuto e organigrama da futura instituição que se deveria chamar Co:Lab391. A ONG
deveria destinar-se ao desenvolvimento de projectos e redes sociais colaborativas, tendo por
objectivos a realização de estudos e pesquisas em tecnologias livres e abertas de modo a fomentar o
desenvolvimento social, o apoio especializado de outras ONGs, a promoção da partilha livre do
conhecimento e a defesa dos direitos civis. Schepop recorda esse período no questionário que
realizámos:
Quis muito que o Metáfora se viabilizasse como uma alternativa. Cheguei a elaborar junto com os demais um possível estatuto para uma futura ONG Metáfora. Isso envolveu um grande número de encontros e debates (...) O grupo concluiu que seria melhor não oficializarmos nada. Deixar o Metáfora neste instante flutuante (...) Mas, neste ponto, sem intenções de se estabelecer definitivamente, o 'projecto' diluiu-se
Num texto escrito em 2005 onde faz um resumo da história do Metáfora, Felipe Fonseca dá a
entender que a ONG não foi a avante devido a outros problemas gerados dentro do grupo392:
Complicações em alguns projectos começaram a acicatar atritos que até então estavam sublimado, as brigas feias começaram a acontecer quase diariamente. Percebemos que uma ONG não era o caminho. A nossa principal força eram as acções descentralizadas mas coordenadas. Mas os atritos persistiram ainda por algum tempo (Fonseca, 2005).
Em entrevista, Fonseca acrescenta:
Sempre tivemos essa predilecção pela mobilidade, pelo nomadismo psíquico como diz o outro... Hoje também vejo que, constituindo uma pessoa jurídica, é possível que tivéssemos que definir um foco de actuação mais limitado. Talvez tivéssemos escolhido trabalhar só com reciclagem de computadores. E isso teria limitado muito a nossa actuação (Fonseca, 2005b).
No início de Outubro de 2003, poucas semanas depois do seu regresso de Amesterdão para integrar a
delegação brasileira do festival N5M, Felipe Fonseca publicou uma mensagem na lista Xemelê e no
seu blog da altura, o hipocampo, a anunciar que desistia de ser moderador e que cedia essa função a
quem tivesse interessado393:
391 Ver página da wiki em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?Co%3ALab. O termo CoLab, que remete através do prefixo “co-” para companhia, cooperação e colaboração e através do sufixo “-Lab” para experimentação, pesquisa ou laboratório, foi também pensado por alguns elementos do colectivo – André Passamani/Maratimba e Felipe Fonseca - para designar um espaço que funcionaria como um misto de café, bar, restaurante, sala de conferências e debates, ponto de acesso à Internet sem fios e livraria/bibilioteca. Fonseca teve a ideia para este espaço, que serviria como “uma extensão das conversações online” após a sua participação em Setembro de 2003 no festival N5M, em Amesterdão (2005). Ver página relacionada na wiki do Metáfora em http://ogum.metareciclagem.org/metafora/wiki/index.php?OpenSpace.
392 Um dos casos onde a tensão entre os elementos do grupo foi mais evidente consistiu nas discussões travadas na lista Xemelê em finais de Junho de 2003 a propósito do ConecTAZ, o evento que estava a ser planeado para Outubro/Novembro desse ano e que deveria marcar o lançamento da nova ONG CoLab.
393 Lamentavelmente, esta mensagem original já não está disponível excepto no texto posterior que Fonseca escreveu.
220
Como eu acredito que vocês devem ter percebido, a lista Xemelê parou. Quero contar para vocês o que eu estou fazendo a respeito: Nada. O fato é, eu cansei de ser moderador da Xemelê. Principalmente porque ela deixou de fazer jus ao nome. Não vi mais xemelê por ali, e não vou me esforçar em resgatar um cadáver (Fonseca, 2005).
No mesmo texto posterior já mencionado, Fonseca adianta uma das motivações por detrás dessa
decisão: “As brigas dentro da lista do ProjetoMetáfora tornaram-se diárias e eu continuava tentando
ouvir todos os lados antes de dar a minha opinião (...) Passava muito tempo tentando apaziguar as
brigas e não podia dedicar-me a nenhum projecto específico” (idem). Por outro lado, sentia que certos
participantes da lista estavam-se a apropriar do nome do projecto e da sua reputação para se
apresentarem em iniciativas individuais como 'integrantes do Metáfora' sem terem realizado um
trabalho válido no interior do colectivo”. Na sua opinião, o Metáfora era um conceito de producção
colaborativa e não um grupo de acção, sendo composto por colaboradores e não por membros. “Peço
mais uma vez: não usem o nome do projetometafora. Minha opinião: Ninguém pode se definir como
Fulano do MetaFora ou vender o nome do metafora como realizador de um projeto. Não o façam e
não aceitem que o façam” (idem). De um modo aparentemente involuntário, contudo, pode-se
concluir que o gesto de Fonseca precipitou o fim do projecto. “Para minha decepção, depois dessa
mensagem recebi quase uma dezena de e-mails de membros-chave do projecto dizendo que também
estavam cansados das brigas e que saíriam comigo do ProjetoMetaFora”, escreveu ele mais tarde
(idem). Pode-se ver por aqui que apesar da valorização atribuída à abertura e à colaboração, o papel
de coordenador de todos os sub-projectos desempenhado por Fonseca era considerado essencial pelos
outros voluntários. Para assinalar a despedida do Metáfora foi colocado um texto na página inicial do
site do Metáfora:
MetaFora não é mais o que era. A máfia que controlava as senhas foi pra Croatã. Deixaram algumas coisas de herança para o mundo:
- Um wiki recheadaço. - Uma pá de idéias para projetos coletivos. - Um método de produção colaborativa. - Os arquivos das listas MetaFora e Xemele. - Três listas em funcionamento: infrafísica, infralógica e ações.
Apropriem-se.
Alguns projetos que nasceram aqui e descolaram como esporos de uma samambaia:
- MetaReciclagem. - MeMeLab. - Co:Lab. - Buzzine. - MetaOng. - MidiaTaticaBrasil
221
Estão sendo realizados eventos abertos em todo o mundo para comemorar o fim da ditadura no MetaFora.
Se fores justo, serás avisado394.
O título original do texto, “Dispersando, cambada!” foi depois alterado para “Reagrupai e esporificai-vos”,
por sugestão de André Passamani/Maratimba. A frase sintetiza com clareza aquilo que foi desde o princípio a
filosofia de actuação, o lema do projecto Metáfora, de servir como incubadora de projectos colaborativos que
deveriam crescer e replicar-se de uma forma autónoma por toda a sociedade.
2.4 - Liderança e Motivação numa “Caordem”
O texto de despedida do Metáfora também remete para as relações de liderança no interior do projecto
– ainda que de forma invertida e com uma grande dose de auto-ironia... Felipe Fonseca assumiu desde
o início a função de “ditador benevolente”395. Humoristicamente e com camaradagem, muitos
elementos do Metáfora reconheciam-no legitimamente como tal396. Porém, o único poder efectivo que
Fonseca chegou a exercer, e apenas durante um curto período de tempo, foi o de moderar as
mensagens enviadas pelos novos subscritores da lista. O termo “ditador benevolente” está associado
ao papel desempenhado pelo líder ou comité de líderes nos projectos de software livre que decide em
definitivo quais as peças de código a integrar na versão oficial do programa. Segundo Manuel de
Landa, estes “ditadores benevolentes” possuem uma autoridade inquestionável que lhes advém do
facto de facilitarem e fomentarem a criação de uma comunidade de apoio ao projecto e não tanto de
concentrarem em sim o processo de tomada de decisões (Landa, 2001). Tal como Eric Raymond
constatou a propósito do modelo de desenvolvimento implementado por Linus Torvalds no Linux –
baseado no lançamento constante de novas partes do código (release early, release often) e na
delegação de responsabilidades a outros interessados -, a existência de líderes é indispensável em
qualquer projecto de software livre, mesmo em colectivos com uma estrutura organizativa horizontal,
descentralizada e baseada no consenso. Do mesmo modo que no campo da programação informática,
no Metáfora Felipe Fonseca desempenhava esse cargo tentando ser o menos egocêntrico possível, no
sentido de promover a colaboração entre todos397, tendo apelado várias vezes aos outros voluntários
que assumissem a liderança das diferentes iniciativas do Metáfora de forma a levá-las a cabo:
O bom dos projetos colaborativos é a liberdade e toda aquela onda de inteligência coletiva e tal. Mas para começar qualquer projeto é necessária uma pessoa disposta a se
394 Uma cópia da página inicial do site do Metáfora está disponível em http://www.metareciclagem.org/metafora. 395 Ver a mensagem nº 96 de Felipe Fonseca enviada para a lista a 4 de Julho de 2002 em que este rectifica Paulo
Colacino por lhe ter chamado de Imperador. 396 Ver mensagens nº 149, 174, 220, 442, 501, 1268, 1699, 1708, 1771, 2186, 2197, 2971, 3567, 3925 e 6194 da lista
do Yahoo!. Ver também na lista Xemelê: http://amsterdam.servershost.net/pipermail/xemele_projetometafora.org/2003-June/000050.html e http://amsterdam.servershost.net/pipermail/xemele_projetometafora.org/2003-July/000413.html.
397 No decurso do projecto, foram sendo lançadas várias “pesquisas de opinião” de forma a aprovar, rejeitar ou escolher determinadas propostas que alguns dos voluntários sugeriam em relação ao núcleo central do Metáfora.
222
dedicar pelo menos a estimular a colaboração (...) É necessário (...) um 'champion', um líder para o projeto398.
Muitas vezes, porém, mesmo quando as ideias eram executadas na prática, havia uma tendência para
os projectos serem abandonados ou para evoluírem de uma forma independente do resto do grupo,
como Fonseca se queixava:
Já repeti um milhão de vezes que cada projeto precisa de um líder. As coisas têm funcionado assim, até agpra. Mas eu sinto a falta de um feedback para o grupo. Os projetos saem daqui e não voltam (...) acredito que o líder de cada projeto interno, ou o representante metafórico de cada projeto externo precisam relatar periodicamente por aqui o que acontece399.
Em contraste com esta posição estava Adriana Veloso, que questionava a noção de líder:
Num grado muito de concentrar as coisas em um indivíduo principalmente quando se trata de projetos colaborativos em que há nucleos (ou pelo menos pessoas) de diversos locais. Essa coisa de representatividade e liderança é resquício da nossa cultura política que precisa de uma hierarquia pra poder pensar em organização. Mas entendo o que vc quer dizer com o relato. Acho que em cada projeto há um nível de envolvimento que nem sempre é contínuo. As pessoas empolgam com as coisas e depois já tem idéia melhor ou outro o que fazer. É esse nível de envolvimento com o projeto e com o grupo que levam o indivíduo a dar esse feedback que você está sugerindo (...) Num sei se vocês repararam na organização do ProvOs, mas (...) tá todo mundo no mesmo nível como um rizoma. Num tem representatividade. As decisões são tomadas de acordo com o nível de envolvimento de cada um dos voluntários e está tudo aberto para críticas e ajuda400.
Em resposta, Fonseca retorquiu:
Concordo que projetos colaborativos têm como grande força a descentralização. Mas hás de concordar que, se não fosse o albertão, metaong não existiria; se não fosse dri (Adriana Veloso) e dpadua, provOs não existiria; se não fosse tupi e dri, recicle não existiria... é necessário um impulso inicial. E isso não é resquício de autoritarismo ou ditadura ou hierarquização. Ou, ok, é uma hierarquização, mas temporária e para um assunto específico. Não acredito muito em igualdade a priori. Cada indivíduo vai ter um interesse maior em um determinado assunto, e os projetos só vão sair se esse cara conseguir conquistar pessoas suficientes para realizar o projeto (...) Sou contra a autoridade pré-definida, mas um grau de autoritarismo está presente em cada ato de comunicação (...), e temos que ter consciência disso e saber lidar401.
Adoptando uma posição conciliatória, Daniel Pádua dizia partilhar da mesma opinião de Veloso,
salientando porém que as lideranças que tinham funcionado até então no Metáfora eram de pessoas
com interesse no projecto que tomavam a iniciativa para o levar à avante. “Mas para isso acontecer,
não adianta 'eleger' um líder, o que seria burlar a caordem”, pois “a liderança que um projeto precisa
398 Ver mensagens nº 2988 enviada para a lista por Fonseca a 18 de Outubro de 2002. Ver também as mensagens nº 2576 de 10 de Setembro de 2002 e 4570 de 24 de Outubro de 2002.
399 Ver mensagem nº 5619 de 17 de Dezembro de 2002. 400 Ver mensagem nº 5631 de 17 de Dezembro de 2002. 401 Ver mensagens nº 5638 e 5640 de 18 de Dezembro de 2002.
223
surge do caos”, concluía402. Fonseca salientou em seguida que não se tratava de uma questão de
eleição, mas da necessidade de encontrar uma estrutura que permitisse ao responsável pelo projecto
incentivar mais voluntários a participarem e comunicarem com o resto da rede colaborativa403.
A falta de envolvimento de mais pessoas para além do líder era também criticada por André
Passamani/Maratimba, para quem não faltavam líderes para os projectos, mas sim um consenso,
havendo em troca um excesso de egocentrismo dos outros colaboradores. “Não espero que um líder
seja responsável pelo consenso, quero isso do grupo”, na medida em que “o cara que finaliza e o cara
que tem a ideia original têm o mesmo valor”, acrescentava404.
Com base na análise das listas de discussão e da wiki, podemos verificar que, não obstante a
existência da figura do “ditador benevolente” encarnada na pessoa de Felipe Fonseca, o processo de
liderança emergindo do caos a que Daniel Pádua fazia referência pode ser encaixado na organização
do Metáfora durante a sua existência. Esse modelo organizativo fica explícito numa declaração de um
autor anónimo recolhida por Paulo Bicarato sobre o modo como o festival Midia Tática Brasil foi
montado:
Foi construído de cima para baixo. As lideranças são aquelas obedecidas a milanos, as lideranças naturais que simplesmente vêm e dizem: eu fiz o que era para ser feito pro evento rolar pra todo mundo. O líder natural que vem servir ao coletivo, um coletivo que não precisa de muitas palavras para reconhecer a verdade405.
Este depoimento reflecte o espírito que se sentiu nos 15 meses de existência do Metáfora. Mais ainda,
há que salientar que a lista do projecto serviu de fórum para muitas das discussões preparativas do
Midia Tática Brasil, havendo muitos colaboradores comuns a ambas as iniciativas. Em último caso,
contudo, pode-se dizer que a desistência de Fonseca e o consequente fim do Metáfora se deveu a uma
fraqueza inerente ao modelo organizativo da “caordem”. Com a profusão de projectos, muitos dos
quais permanecendo apenas na fase de rascunho e abrangendo àreas tão diferentes entre si, como arte,
media, tecnologia, educação, cultura, activismo político e intervenção social, o núcleo central do
Metáfora desagregou-se e deixou de haver um elo de ligação entre esses projectos. Mas, ao mesmo
tempo, a “caordem” estabelecida no interior do colectivo foi também a maior mais-valia do Metáfora,
uma vez que permitiu a autonomização e a replicação de um novo tipo de paradigma e metodologia
baseados na partilha do conhecimento livre, como foi o caso mais vísivel do MetaReciclagem406. 402 Ver mensagem nº 5640 de 18 de Dezembro de 2002. 403 Em Março de 2003 viria a ser implementado um sistema de comunidade online baseado na plataforma Drupal de
forma a dar resposta a essa necessidade de uma maior comunicação interna e externa. Este sistema, integrado no site do Metáfora, já não se encontra disponível. Ver cópia de arquivo em http://web.archive.org/web/20031022213440/http://drupal.projetometafora.org/
404 Ver mensagem nº 5669 de 19 de Dezembro de 2002.405 Ver mensagem nº 6982 de 28 de Fevereiro de 2003. 406 No início de 2005, Felipe Fonseca retomou a ideia do Metáfora sob o nome de CoLab, através de uma lista de
discussão e de uma wiki. Ver arquivos da lista em http://www.colab.info/cgi-bin/mailman/listinfo/lista e wiki em
224
http://www.colab.info/wiki/index.php/Pagina_Inicial. Apesar do ímpeto inicial na troca de ideias, um ano depois o projecto encontrava-se estagnado, servindo apenas para discussões de ideias não relacionadas com os assuntos debatidos na lista do MetarReciclagem. Entre as iniciativas apresentadas no âmbito do CoLab contam-se:
● Academia Livre - visava a montagem de espaços de interacção presencial baseados no conceito de aprendizagem distribuída do MetaLearning, de forma a possibilitar o debate e a produção de conhecimento livre. O financiamento de cada espaço seria assegurado através de um modelo de sustentabilidade baseado em cotas de associados e numa moeda virtual. Ver página em http://www.colab.info/wiki/index.php/AcademiaLivre.
● CursosCoLab – ambiente online baseado na plataforma open-source Moodle destinado à criação e frequência de cursos de estudo relacionados com os colectivos de media tácticos brasileiros. Até ao início de 2006 tinham sido criados oito cursos abordando temas como produção mediática autónoma e independente, construção de distribuições GNU/Linux, sistemas colectivos de bookmarks e RSS, tecnologia social, semiótica, design gráfico e animação digital.
● MochilaWiFi – projecto para a criação de uma mochila equipada com um computador rodando Linux, uma placa USB WiFi e uma antena repetidora de sinal, em que esse terminal estaria ligado a um módulo de mão formado por um monitor e um teclado de um telemóvel usado. Esta mochila permitiria partilhar o acesso à Internet sem fios em zonas periféricas não abrangidas pelos serviços das empresas de telecomunicações.
Na entrevista que realizámos, Fonseca explica a suspensão do CoLab da seguinte forma: “Talvez colab tenha sido um pouco de ingenuidade. Aliás, começamos como ProjectoMetáfora/dois, tentando ressuscitar a agitação que acontecia no Projecto Metafora. Mas o momento já era outro. Não fazia sentido pensar que tinhamos feito uma pausa e que seria só carregar em play novamente.”
225
3 - MetaReciclagem: Reapropriação da Tecnologia para Fins de Transformação Social
Somos low tech por posicionamento.
Somos low tech por ideologia
Somos low tech por posicionamento político
Somos low tech porque temos fome
Somos low tech porque criamos cubos mágicos em espaços abstractos
Somos low tech porque esporificamos verborragias
Sejamos ousados.
Pensemos, a cada minuto, a quem servimos.
- Dalton Martins, “Low Tech”
A reciclagem de computadores surgiu pela primeira vez no Metáfora numa mensagem de Daniel Pádua
enviada para a lista a 3 de Julho de 2002407. a propósito de uma discussão anterior sobre redes comunitárias
sem fios. Na sua opinião, a resposta para a criação de uma rede completamente livre e descentralizada entre
pares (P2P), que passasse completamente ao lado dos media comerciais e dos fornecedores de acesso à
Internet tinha que começar numa infra-estrutura física de conectividade que aproximasse a tecnologia das
comunidades periféricas. Como solução, Pádua sugeria a criação de um protótipo de uma rede local sem fios
usando placas WiFi em segunda mão, antenas repetidoras feitas com latas de batatas Pringles e computadores
reciclados correndo Linux que poderiam ser obtidos em armazéns de equipamento usado, funcionando como
pontos de acesso a essa rede em escolas públicas e associações comunitárias.
A única entidade que na altura se dedicava à reciclagem de computadores com objectivos sociais era o
Comité para a Democratização da Informática (CDI)408. Contudo, essa ONG apenas utilizava na altura
software proprietário como o Windows, para além de ser patrocionada pela Microsoft409. Dado o interesse do
Metáfora em criar instrumentos de inteligência colectiva, o recurso a tecnologias open-source e mesmo livres
era considerado prioritário. Alguns elementos do grupo, como Daniel Pádua, justificavam essa posição
argumentando que a inteligência colectiva se baseia em fluxos livres de informação, ao passo que as soluções
407 Ver mensagem nº 63. Paulo Colacino fez um apanhado das mensagens enviadas para a lista do Metáfora que dão conta das origens do MetaReciclagem e que está disponível em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/LivroVerdeOrigens
408 Site disponível em http://www.cdi.org.br. A CDI foi criada em 1993 no Rio de Janeiro por Rodrigo Baggio a partir de uma BBS (Bulletin Board System) com a intenção de fomentar o uso das tecnologias de informação como meio de integração social junto da população desfavorecida do Rio de Janeiro. Em 2005, possuía cerca de 1000 Escolas de Informática e Cidadania espalhadas por 19 estados brasileiros, bem como em mais 10 países, contando com 1800 educadores, mais de meio milhão de educandos formados, seis mil computadores instalados e 1200 voluntários.
409 Ver notícia “CDI chega a mais cinco países” publicada no Jornal do Brasil a 8 de Março de 2001 disponível em http://www.cdi.org.br/midia/midia_20010308.htm, que faz menção a uma doação da Microsoft de cinco milhões de dólares. A partir de 2003, contudo, a CDI tem disponibilizado alguns computadores com arranque duplo em Windows e Linux. Ver Cornils, Patrícia e Couto, Verônica (2005), “Reciclagem: o computador com atitude”, Revista A Rede, nº 2, Maio. Disponível em http://www.arede.inf.br/index.php?option=com_content&task=view&id=20&Itemid=99.
226
proprietárias controlam a informação410. Poucos dias depois, a 16 de Julho, Dalton Martins – que viria a
assumir a coordenação do MetaReciclagem - entrava na lista e sugeria que se tentasse solicitar doações de
computadores411.
Depois de uma tentativa falhada de receber doações de uma ONG norte-americana especializada na
reciclagem de computadores412, no final de 2002 Felipe Fonseca conseguiu obter uma parceria com o
Agente Cidadão413, uma ONG de São Paulo criada por Ike Moraes e Adilson Tavares que transporta
material doado, encaminhando-o para projectos e instituições sociais. Inicialmente com o nome de
Roupa Velha, esta entidade começou por recolher apenas roupa, tendo mais tarde ampliado a sua
actividade de “logística da cidadania” para mobílias, colchões e todo o tipo de objectos domésticos414.
Na altura, Moraes e Tavares disseram a Fonseca que tinham recebido dois computadores mas que não
sabiam o que fazer com eles. A partir de Janeiro de 2003, o Metáfora/MetaReciclagem passou assim a
ocupar um espaço num armazém onde o Agente Cidadão tinha o seu depósito, num centro comercial
na zona noroeste de São Paulo. Dalton Martins assumiria a responsabilidade técnica do laboratório de
media instalado no “galpão”, onde as máquinas que iam chegando eram triadas e reequipadas,
passando a funcionar com Linux415. Os equipamentos que não podiam ser aproveitados eram vendidos
ou trocados por outros componentes nos “cemitérios” de peças de computador da Rua de Santa
Efigénia, uma artéria de São Paulo famosa pelas suas lojas e camelôs de produtos electrónicos. O
material de plástico e ferro que sobrava servia para construir objectos decorativos ou instalações
artísticas, sendo, em último caso, levado para a reciclagem de lixo. Esta metodologia tornou-se o
modelo de trabalho das actividades do MetaReciclagem. Em meados de Março, o projecto recebia a
sua primeira grande doação, cerca de 100 computadores cedidos por uma empresa416.
Juntamente com o Agente Cidadão e já posteriormente à dissolução do Metáfora, o MetaReciclagem
montou o Cybersocial, um telecentro temporário no âmbito do Mês Social do SP Market, o centro
comercial onde aquela instituição estava instalada. Este evento abrangeu uma exposição e uma feira
de produtos fabricados por ONGs da região de São Paulo. Para o telecentro, foi utilizado um servidor
410 Ver mensagem nº 544 de Pádua, bem como a 122 de Colacino e a 124 de Fonseca. 411 Ver mensagens nº 510 e 535. Fonseca tinha já criado anteriormente, a 11 de Julho, uma página na wiki com o nome
de MetaReciclagem, contendo a proposta de Pádua. Ver mensagens nº 292 e 527. 412 Adriana Veloso, que era também voluntária do CMI-Brasil, tinha enviado a 26 de Agosto de 2002 um mensagem
para a lista (nº 2004) avisando que o Alameda County Computer Resource Center (ACCRC – www.accrc.org), uma ONG da Califórnia que recebe computadores e outro equipamento informático usado, reciclando-os e doando-os em seguida a projectos sociais espalhados por todo o mundo, tinha enviado um carregamento de 500 PCs, material de rádio e placas WiFi para os centros da Indymedia na América Latina, sendo que alguns seriam redistribuídos a outros movimentos. Essa hipótese não se veio, contudo, a realizar, devido ao custo elevado do frete e do processo de legalização e ao facto de o Metáfora não ter o estatuto de uma ONG. Ver mensagens nº 5597 enviada por Veloso a 16 de Dezembro de 2002 e nº 7000 enviada por Tatiana Wells a 1 de Março de 2003, redireccionando um email de Pablo Ortellado, do CMI-Brasil.
413 Site disponível em http://www.agentecidadao.org.br.414 Ver mensagem nº 5592 enviada para a lista por Fonseca a 16 de Dezembro de 2002. 415 Ver mensagem nº 5998 em que Martins faz um relato dos trabalhos iniciais de metareciclagem no “galpão”. 416 Ver mensagem nº 7337 de 18 de Março enviada por Dalton Martins.
227
médio que exportava o ambiente gráfico e as aplicações para terminais reciclados sem disco rígido e
com as caixas e os monitores pintados417. Este tipo de rede de thin clients418 seria utilizado
futuramente noutros projectos temporários do MetaReciclagem. Durante dois meses, o CyberSocial
disponibilizou cursos abertos de introdução à informática a mais de uma centena de pessoas (Fonseca,
2005).
A participação do MetaReciclagem nos Autolabs, de Fevereiro a Julho de 2004, em parceria com a
ONG La Fabbrica, a Perfeitura de São Paulo e o colectivo Midia Tática foi também assegurada graças
a uma doação de 45 computadores pelo Agente Cidadão que foram montados em três laboratórios de
media na zona leste de São Paulo. Para além da realização de workshops de reciclagem de máquinas
aos 300 jovens inscritos no programa, o MetaReciclagem oferecia ainda orientação aos finalistas que
quisessem criar a sua própria empresa de suporte e assistência técnica, com a promessa de que
receberiam da autarquia o apoio financeiro necessário – uma bolsa-trabalho. Apesar dos objectivos
ambiciosos – ver capítulo anterior -, o balanço que Felipe Fonseca fez dos Autolabs é bastante
negativo:
Devido a diversos factores que envolveram complicações com a coordenação do projeto, má-vontade de alguns instrutores com o software livre e microdisputas de poder, o projecto pode por um lado ser considerado um fracasso retumbante. Dos 300 jovens que se inscreveram, pouco mais de dez tentaram desenvolver acções depois de encerrado o processo, e, sem o apoio de que precisavam para ir adiante, acabaram de mãos vazias (Fonseca, 2005).
A parceria com o Agente Cidadão iria durar até depois do fim do Metáfora, tendo terminado em
Outubro de 2004, quando a nova direcção da ONG perdeu parte do espaço que ocupava no centro
comercial e decidiu acabar com a actividade de manutenção e reparações. Em consequência, o
MetaReciclagem deixou de ser uma estratégia da ONG - embora continue a receber doações dessa
entidade -, tendo o laboratório no “galpão” sido desmontado419.
Dalton Martins e Hernani Dimantas tinham entretanto começado a implementar em Agosto de 2003
um segundo núcleo do MetaReciclagem no Parque Escola, um projecto da Prefeitura de Santo André,
uma cidade de 665 mil habitantes nos arredores de São Paulo que conta com uma administração do
Partido dos Trabalhadores. O Parque Escola é um complexo de jardins botânicos concebido pelo
arquitecto Henrique Zanetta como se fosse um quebra-cabeças, tendo sido completamente construído
com materiais reciclados. Restos de obras, pneus gastos, contentores, portões descartados e até um
carro de bombeiros foram transformados em edifícios e salas de aula. O projecto dedica-se a 417 Algumas imagens do Cybersocial estão disponíveis em http://metareciclagem.org/midia/imagens/cybersocial.418 Computadores-cliente que integram uma rede de arquitectura cliente-servidor e que possuem pouco ou nenhum
poder de processamento, dependendo de um servidor central que corre as aplicações. 419 Ver página da wiki do MetaReciclagem em http://xango.metareciclagem.org/wiki/index.php/Agente_Cidadão. Esta
informação foi também retirada de Rinaldi (2005).
228
actividades de reciclagem e educação ambiental de forma a promover a importância da preservação
ecológica (Rinaldi, 2005 e Fonseca, 2005).
A ideia de criar um centro de reciclagem no Parque Escola partiu de um encontro de Dalton Martins,
Felipe Fonseca e Hernani Dimantas com Solange Ferrarezi, secretária-adjunta de Educação da
autarquia de Santo André, durante a segunda edição da Oficina de Inclusão Digital, que decorreu em
Maio de 2003 em Brasília. Através dela, os voluntários conheceram Zanetta e ambos chegaram à
conclusão que o MetaReciclagem e o Parque Escola partilhavam de uma mesma visão social e
ecológica baseada na reciclagem. O laboratório de media instalado pelo grupo num dos contentores
disponíveis no complexo recebeu do Agente Cidadão uma doação de 50 computadores e foi aí
desenvolvido um curso de Informática dirigido às cooperativas apoiadas pela incubadora de
empreeendedorismo social da autarquia420. Resultando de uma proposta de Jorge Gouveia, do
Departamento de Geração de Renda e Trabalho do município, esta acção de formação que decorreu
entre Dezembro de 2003 e Fevereiro de 2004 abrangeu 16 trabalhadores de oito associações com
actividades de venda de flores, reciclagem de lixo e papel e confecção têxtil que aprenderam a utilizar
aplicações de escritório (processador de texto e folha de cálculo) e a aceder a informação na Internet.
No final, foram doados alguns computadores a essas associações (Rinaldi, idem). Contudo, cinco das
cooperativas não fizeram uso das máquinas, tendo-se queixado da falta de impressoras para imprimir
documentos. Como refere Rinaldi (ibidem), as cooperativas brasileiras, tal como muitas companhias
do país, continuam a depender em grande parte de documentos impressos na sua actividade, enviando
cartas de correio postal e preenchendo impressos burocráticos para ser entregues ao Estado. Dalton
Martins, que foi contratado pela autarquia para coordenar a iniciativa, concluiu mais tarde que esta
iniciativa teria corrido melhor se tivessem sido incluídas impressoras junto com os computadores
doados. As três restantes associações conseguiram, contudo, arranjar impressoras e passaram a utilizar
regularmente as máquinas doadas.
Todos estes computadores foram pintados por Glauco Paiva, um artista local de Santo André. A
participação de Paiva deu um novo sentido às acções do MetaReciclagem421. Como referiu Hernani
Dimantas a Beatriz Rinaldi (2005), o projecto “obteve uma nova forma de expressão. Um computador
é transformado numa obra de arte, não interessa se é novo ou não. Até então, a linguagem da
reciclagem era cinzenta”. Para além da desconstrução técnica através da reciclagem, as pinturas
realizadas nas máquinas com cores vivas e motivos decorativos ligados à cultura popular brasileira
permitem a “desmistificação do hardware”, visando tornar a aquisição de conhecimento um processo
420 Dalton Martins escreveu sobre a abertura do laboratório à população local e sobre o início do curso de formação em http://dmartins.blogspot.com/2003/12/muito-tempo-sem-escrever.html e em http://dmartins.blogspot.com/2003/12/comecou-nessa-terca-feira-o-curso-de.html, respectivamente.
421 Ver imagens dos computadores reciclados no Parque Escola de Santo André em http://201.6.103.134/gallery/parqueescola.
229
mais divertido (Paiva, 2005). A incorporação da arte no hardware reciclado transformou-se
gradualmente num dos elementos fundamentais da metodologia de reapropriação da tecnologia do
MetaReciclagem, em que as pinturas adquirem um cariz pedagógico na medida em que aproximam as
máquinas de pessoas que têm muitas vezes receio da tecnologia (idem). Nos workshops do
MetaReciclagem junto das comunidades locais de bairros periféricos, os formadores conversam com
os formandos sobre os motivos a serem trabalhados, explicam o processo de formulação das cores e
dão algumas noções de história de arte. Os alunos são depois incentivados a recorrerem a temas locais
relativos à memória da sua comunidade nas “obras” com que estão a trabalhar. Os materiais
empregues consistem em pincéis e tintas, aerógrafo422 e compressor. Estamos assim perante uma
produção colectiva que estabelece uma relação entre o equipamento, as pessoas e o espaço em causa –
o centro ou associação social onde esses computadores vão ser utilizados pela população (ibidem). As
experiências de interligação entre arte e tecnologia levaram à criação de totems, isto é, terminais de
acesso à Internet que consistem em esculturas feitas a partir de sobras e outras peças dos
computadores. Ao tornarem a máquina num objecto ainda mais descontraído e atraente, estas
construções artísticas demonstram, segundo Paiva, “que as pessoas podem sim assimilar este
conhecimento de uma forma aprazível e rápida e aí dá-se o apoderamento” (ibidem).
No Parque Escola, o MetaReciclagem montou ainda um videowall interactivo com nove monitores
funcionando a partir de computadores Pentium MMX de 200 Mhz e uma antena WiFi
disponibilizando Internet sem fios a todo o perímetro do parque e uma àrea de cinco quilómetros em
redor. Esta tecnologia de comunicações visava possibilitar a implementação de uma rede de
telecentros municipais – seguindo em parte o modelo da rede livre e descentralizada idealizado por
Daniel Pádua ainda durante o Metáfora.
Depois da formação prestada às cooperativas, o MetaReciclagem organizou com o suporte do
gabinete de apoio à juventude da autarquia de Santo André um curso de reciclagem de computadores
dirigido a 12 jovens do núcleo habitacional de Sacadura Cabral, uma favela de 3200 habitantes que
tinha sido recentemente reurbanizada pela Prefeitura. Dalton Martins coordenou o curso que contou
com a colaboração de Julio Milan para ministrar as aulas que decorreram diariamente durante o mês
de Abril de 2004, onde os alunos poderam aprender a realizar a manutenção das máquinas, a montá-
las e a instalar e utilizar Linux. Na base desta iniciativa, esteve uma filosofia de emprendedorismo de
social, de auto-gestão, que tinha sido uma das pedras de toque do colectivo já desde o Metáfora. Mais
do que a mera formação, visava-se a autonomia das comunidades, isto é, fomentar e apoiar a criação
de micro-empresas e cooperativas.
422 Espécie de pistola de ar comprimido que funciona como instrumento de pintura através de jactos de tinta.
230
No final, dois alunos, André Garrão e António Bento Edson Dias Ferreira, abriram uma cooperativa
chamada InforMeta423, dedicada à venda de máquinas recicladas a preços acessíveis e à prestação de
serviços de assistência técnica. Os computadores para comercialização são obtidos através de doações
do MetaReciclagem e reciclados por pessoas da comunidade. Os preços são de 300 reais (117 euros)
para os modelos mais fracos (Pentium com 32 Mbytes de memória, 1 Gbyte de disco e drive de
disquetes) ou de 500 reais (195 euros), para uma linha mais avançada (Pentium com 64 Mbytes de
memória, 3 Gbytes de disco, drive de CD-ROMs e de disquetes, placas de rede e de som), podendo
ser em ambos os casos adquiridos em prestações de 100 reais por mês (cerca de 40 euros) (Cornlis e
Couto, 2005). A InforMeta pretendia atrair como clientes jovens do ensino secundário, pequenas
empresas e utilizadores domésticos com rendimentos médios ou baixos. Porém, ultimamente, tem tido
mais sucesso com o seu serviço de acesso pago à Internet em rede local para fins de jogos em rede. A
receita obtida pela cooperativa é suficiente para pagar os salários de três pessoas. António Bento
tentou também instalar um telecentro no centro comunitário local, que deveria ser financiado pelos
recursos gerados pela InforMeta. Nesse espaço, o MetaReciclagem possuia um laboratório de
reciclagem de máquinas onde os voluntários do projecto deram alguns cursos424. O plano não foi, no
entanto, bem sucedido. Devido a dificuldades para colocar em funcionamento uma rede Linux
composta por um servidor e terminais sem disco, os organizadores mudaram para Windows. “Como
não conseguimos encontrar alguém para dar um melhor conteúdo às crianças, nem para tomar conta
do local, tirámos a rede do ar”, explicou António Bento à revista electrónica A Rede (Cornils, 2006).
Ainda no Parque Escola, o MetaReciclagem começou a colaborar com a autarquia de Santo André na
implementação da infra-estrutura física e lógica da Escola Parque de Arte e Ciência (EPAC), um
projecto de popularização da ciência e tecnologia destinado aos estudantes e professores das escolas
públicas. O EPAC funcionaria em simultâneo como um parque público, escola modelo, centro
multimédia e de formação de professores, museu de ciência, galeria e biblioteca. Dalton Martins e
Glauco Paiva começaram a desenvolver experiências sobre reciclagem tendo a tecnologia, a arte e a
educação como denominadores comuns.
As eleições autárquicas de Novembro de 2004 vieram, porém, a interromper a participação do
MetaReciclagem em iniciativas públicas na cidade de Santo André. Apesar de o prefeito da autarquia
local ter sido reeleito, ele alterou toda a sua equipa de direcção. Em resultado, o EPAC transitou da
Secretaria da Administração da Educação para a dos Serviços Públicos. O projecto perdeu o seu
laboratório no Parque Escola, parte das doações de computadores aí recebidas e o acesso à infra-
estrutura425.
423 Site disponível em http://www.informeta.com.br/.424 Ver imagens do telecentro de Sacadura Cabral em http://201.6.103.134/gallery/sacadura.425 Ver o resumo que Felipe Fonseca fez da situação do MetaReciclagem a 4 de Maio de 2005 no seu blog em
http://www.metareciclagem.org/fff?p=1151.
231
Nos primeiros meses do MetaReciclagem, antes do fim do Metáfora, a distribuição do Linux que era
utilizada nos PCs reciclados era a Kurumin, uma versão brasileira do Knoopix, que não necessita de
ser instalado no disco rígido para ser testada num PC – daí se chamar a esse tipo de distribuições de
LiveCDs. Argumentando que o Kurumin tinha uma série de programas inúteis para o trabalho
realizado pelo grupo, um novo voluntário, Fernando Henrique, decidiu em Maio de 2003 desenvolver
o MetaLinux426, uma distribuição dirigida especificamente a computadores mais antigos como os que
eram recebidos no “galpão” (Pentiums com uma velocidade entre 75 e 200 Mhz, 16 a 32 Mbytes de
memória e disco rígido com menos de 2 Gbytes) e, ao mesmo tempo, com um interface mais
apelativo e fácil de utilizar para utilizadores com pouco ou nenhum contacto prévio com a
informática. A primeira versão disponibilizada publicamente, a 0.5, utilizava como base a Gentoo por
ser uma plataforma conhecida pelo seu bom desempenho em jogos e multimédia. A terceira e última
versão do MetaLinux, lançada após o fim do Metáfora em Janeiro de 2004, chegou a incorporar várias
características de outras distribuições do Linux, como um LiveCD de 50 Mbytes.
Devido a uma falta de comunicação entre Fernando Henrique – então, o único responsável pela
distribuição - e os outros elementos do MetaReciclagem, as novas acções desenvolvidas pelo
colectivo passaram a utilizar a plataforma Slackware em vez do MetaLinux. O programador propôs a
elaboração de uma documentação que designou de Komain que ensinava a criar uma distribuição
Linux a partir do zero – de uma forma auto-didacta e Do-It-Yourself, de forma a compartilhar o
conhecimento que possuia aos potenciais interessados para que estes pudessem contribuir para o
MetaLinux427. Henrique enviou a documentação para a nova lista do MetaReciclagem mas o interesse
suscitado não foi muito grande. Em resultado da fraca adesão, decide extinguir o desenvolvimento do
MetaLinux e continuar com o Komain como um hobby pessoal lateral ao MetaReciclagem. Mas numa
reunião com os outros voluntários do projecto em que é levantada a necessidade de uma distribuição
própria, Henrique propõe o desenvolvimento conjunto do Komain com o grupo428. Em 2005, a
distribuição contava com oito programadores, sendo apenas dois activos.
426 Site disponível em http://metalinux.codigolivre.org.br/index.html. Na wiki do MetaReciclagem, Fernando Henrique conta a história da evolução do MetaLinux: http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/MetaLinux. Foi também criada uma lista de discussão em http://listas.cipsga.org.br/pipermail/metalinux/
427 Ver mensagem de Henrique enviada para a lista MetaLinux a 15 de Junho de 2004 em http://listas.cipsga.org.br/pipermail/metalinux/2004-June/000029.html. O site do Komain está disponível em http://komain.sourceforge.net. Fernando Henrique explica um pouco a origem e história do Komain numa página da wiki do MetaReciclagem em http://metareciclagem.org/wiki/index.php/Komain.
428 Ver mensagem de Henrique enviada para a lista MetaLinux a 19 de Julho de 2004 em http://listas.cipsga.org.br/pipermail/metalinux/2004-July/000049.html.
232
3.1 - A Replicação da Metodologia da MetaReciclagem
No início de 2005, com a perda dos laboratórios que o colectivo ocupava no “galpão” do Agente
Cidadão e no Parque Escola de Santo André, o MetaReciclagem começou uma nova fase. Como
reconheceu Felipe Fonseca, “sem um espaço próprio disponível o MetaReciclagem não conseguiu
subsistir enquanto grupo”429. Mas, na verdade, alguns dos voluntários do projecto como o próprio
Fonseca – seguindo o modelo herdado do Metáfora -, concluíram que nunca tiveram como objectivo
constituirem-se como grupo de inclusão digital ou mesmo uma ONG, considerando em vez disso que
a sua actividade podia ser definida como uma acção descentralizada, uma metodologia emergente de
trabalho para a reapropriação da tecnologia visando a transformação social (Fonseca, 2005). O
fracasso do modelo de actuação como grupo levou esses elementos a encararem o projecto como
“uma aglutinação de pessoas que fazem MetaReciclagem (...) uma maneira de lidar com a
tecnologia”. Foi então alcançado um consenso mínimo sobre uma definição conceptual desse
processo da MetaReciclagem que, segundo a wiki do projecto, consistiria em:
Construir junto de comunidades um processo de autonomia tecnológica baseada em princípios da reciclagem e do software livre, abrir canais de geração de trabalho e rendimento com base nos produtos desse processo, obter não apenas o acesso à tecnologia, mas a efectiva apropriação da mesma como meio de desenvolvimento e criação. Dessa forma, comunidades iniciam a venda de produtos de tecnologia a baixo custo para um público interno, ocupam espaços em Centros Comunitários criando TeleCentros para acesso a tecnologia reciclada, laboratórios de reciclagem transformam-se em centros de formação profissional local430.
Uma vez mais, tal como nos tempos do Metáfora, a ideia de descentralização e disseminação por
esporos era valorizada em detrimento de uma territorialização num local específico e próprio, dado
que, segundo os elementos do núcleo-fundador do projecto, esta última abordagem implicaria
necessariamente um certo grau de institucionalização. A MetaReciclagem seria assim uma “ocupação
pirata de acções governamentais relacionadas com inclusão digital, educação e 'geração de
rendimentos'“ que colaborava simultaneamente com ONGs e outros projectos independentes. O
conceito assemelhar-se-ia mais a um meme que dissemina a ecologia de reciclagem de computadores
como instrumento de desenvolvimento social e autonomização criativa e financeira por todo o Brasil
do que um grupo coeso, fixo e estável composto por técnicos e dividido em filiais. A este propósito,
Felipe Fonseca comentou na entrevista:
Acreditámos desde o começo na descentralização integrada por questão de princípio: não
429 Fonseca, Felipe (2005), “Outro Balanço”, 4 de Maio de 2005. Disponível em http://metareciclagem.org/fff/?p=1151. Nesse mesmo mês de Maio, o MetaReciclagem perdeu o servidor que alojava a lista de discussão até então, o que levou à perda do arquivo. O novo arquivo da lista está disponível em http://dischosting.nl/pipermail/metarec/ e em http://dir.gmane.org/gmane.politics.organizations.metareciclagem.
430 Ver página sobre replicação do conceito de metareciclagem na wiki do projecto em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/Replicação. Aí se encontra também uma descrição mais completa da metodologia de trabalho implicada neste conceito, através de uma divisão em 11 etapas.
233
queriamos tornar-nos em especialistas ou únicas referências. A rede continua a crescer como rede, a sua topologia muda a cada momento. Dessa forma, pudemos manter o nosso ritmo de inovação e recriação (Fonseca, 2005b).
Tendo em conta esta nova concepção do MetaReciclagem como meme, foi estabelecido um esquema
de actuação que se articula em três níveis:
• Esporos – laboratórios físicos onde pessoas fazem MetaReciclagem. Nestes espaços também
são realizadas acções de investigação e desenvolvimento, tanto técnico como teórico sobre
MetaReciclagem. Um exemplo de esporo seria o “galpão” no espaço do Agente Cidadão ou o
Parque Escola de Santo André.
• Infra-estrutura online – ambiente onde decorrem as conversações sobre MetaReciclagem. Esta
camada - que corresponde à infra-estrutura lógica do Metáfora – assegura a comunicação e o
contacto entre as várias partes do projecto, compreendendo a lista de discussão, a wiki, os
blogs pessoais dos diferentes elementos e outros espaços de interacção online criados para um
evento ou acção específica. Uma vez que, sendo um projecto descentralizado, cada pessoa
pode empregar a plataforma que prefere, foi criado um agregador de RSS para disponibilizar
de forma integrada e numa única página da Web toda a informação que for sendo
produzida431.
• ConecTAZes – laboratórios temporários ou permanentes, fixos ou móveis, que “beneficiam”
de acções de MetaReciclagem. Estes podem abranger tanto workshops de colaboração com
recurso apenas a papel e lápis, como a uma Linux InstallFest432 ou a uma sessão de exibição
de vídeos. As ConecTAZes podem-se tornar em telecentros multimédia independentes, como
ocorreu com os Autolabs. Outros espaços que se enquadrariam nesta categoria seriam a
ocupação no Midia Tática Brasil e o Cybersocial.
É a partir deste novo modelo de articulação descentralizada que se insere a integração da prática de
reapropriação tecnológica do MetaReciclagem no projecto Pontos de Cultura da responsabilidade do
Ministério da Cultura (MinC), através da sua estratégia Cultura Viva. Organizado por um grupo de
articuladores433, o Pontos de Cultura consiste numa série de centros culturais promovendo o
desenvolvimento da produção cultural, em particular na inserção das culturais locais em rede através
de tecnologias da informação e da produção de software livre. Como explicam Freire, Foina e
Fonseca, pretende-se desta maneira criar “uma rede descentralizada de produtores culturais
431 Agregador disponível em http://agregador.metareciclagem.org. Existe ainda um weblog colectivo em http://blog.metareciclagem.org.
432 Evento onde qualquer pessoa pode trazer o seu computador de modo a que voluntários instalem nele Linux e outro software livre.
433 Este grupo de articuladores foi formado em meados de 2003 a partir de colectivos autónomos e que tinham sido convidados por Cláudio Prado, coordenador de políticas digitais do MinC, a desenvolver acções direccionadas para a apropriação de tecnologias digitais à escala nacional através do projecto BACs (Bases de Apoio à Cultura). Como vimos anteriormente, este projecto viria a ser substituído pelos Pontos de Cultura.
234
intercambiando experiências sobre os mais diversos contextos culturais do Brasil” (2005). Até ao
final de 2005 já tinham sido seleccionados 264 centros, mas espera-se que este número aumente para
400 até ao final de 2006:
Um Ponto de Cultura é, ao mesmo tempo, produtor e consumidor cultural. É uma casa, uma sala, um depósito, uma estrutura física localizada estrategicamente em qualquer lugar onde haja uma produção cultural local. O projeto propõe-se captar essa produção cultural e irradiar seu conteúdo a todos os demais Pontos ao redor de todo o país (...), e também, possibilitar uma infra-estrutura básica, permitindo que se produza bens culturais utilizando-se programas de Software Livre e de Código Aberto, distribuindo essa produção em uma rede de Pontos por meio de licenças Creative Commons e CopyLeft, de forma a permitir a remixagem e a colaboração com outros Pontos (Freire, Foina e Fonseca, 2005).
Estes centros são baseados em iniciativas locais já existentes, que contarão com a doação de um kit de
tecnológico para produção multimédia (áudio, vídeo, produção gráfica, desenvolvimento de software
e apropriação de hardware)434 e que serão interligados através de uma ferramenta de publicação
online empregando uma rede de distribuição P2P435. No contexto dos Pontos de Cultura, a aplicação
da metodologia da MetaReciclagem assegura a disponibilização do hardware que os elementos das
comunidades locais com maior incidência de exclusão social e pobreza necessitam para desenvolver
as suas próprias produções culturais. Alguns dos elementos do MetaReciclagem foram já contratados
como consultores do projecto, colaborando no planeamento conceptual e técnico, bem como na
implementação e suporte dos diversos centros436. Tal como os outros integrantes do grupo dos
articuladores, a equipe ligado ao MetaReciclagem começou por colaborar com o governo apenas de
uma forma voluntária por acreditarem que os Pontos de Cultura seria a única forma de aplicar na
prática e a nível nacional as ideias planeadas em projectos autónomos como o Metáfora que careciam
dos recursos financeiros necessários.
Este grupo de pessoas que iniciou todo o esforço coletivo de pensar/trabalhar, não tem necessariamente comprometimento com o governo em si, ou com a sua ideologia. O que não significa que não considerem o projecto como essencialmente de natureza política, mas que agem como uma invasão hacker dentro do sistema, com gestão própria e objectivos bem definidos. A maioria só quer ver o projeto funcionando, pontos de cultura organizados em rede, autónomos e sustentáveis, distribuidos pelo país, colaborando e compartilhando sua produção cultural livre (Freire, Foina e Fonseca, 2005).
A promessa é que, depois de constituída a rede descentralizada de centros espalhados pelo país, esta
434 Este kit é composto por um servidor de rede, uma estação de trabalho multimédia, uma câmera de filmar mini-DV e equipamento de som. Ver mais informação no post “Sobre a 'novela' dos kits previstos no primeiro edital do Cultura Viva” publicado por Vítor Cheregati, um dos articuladores do projecto, a 5 de Dezembro de 2005 em http://converse.org.br/sobre_a_novela_dos_kits_previstos_no_primeiro_edital_do_cultura_viva.
435 No início de 2005 começou a funcionar o Conversê (http://converse.org.br), um site colaborativo baseado em Drupal que funciona como um ambiente online de interacção entre os diferentes pontos de cultura e fomentar a sua articulação em rede.
436 Incluem-se aqui Felipe Fonseca, Dalton Martins, Glauco Paiva e Fernando Henrique.Outros colectivos associados aos Pontos de Cultura são o Estúdio Livre (www.estudiolivre.org) – encarregue de testar, adaptar e implementar soluções multimédia totalmente baseadas em software livre, o movimento de rádios livres radiolivre.org, assim como o grupo Midia Tática.
235
venha a funcionar de forma auto-suficiente, sem o apoio financeiro do Estado, de forma a que não
seja vulnerável a uma eventura futura mudança de governo. O conceito baseia-se numa ampliação a
nível de todo o Brasil da experiência dos Autolabs realizada em parceria com a Prefeitura de São
Paulo, que Ricardo Rosas descreveu como uma “subversão prática”, uma invasão alienigena do
sistema político (Rosas, 2004). Iniciativas como o Autolabs e os Pontos de Cultura constituem, nesta
mediada, hacks de projectos governamentais (Freire, Foina e Fonseca, 2005)437. Refutando os dilemas
do risco de cooptação e recuperação que a colaboração com o governo e outras entidades com uma
agenda própria colocam habitualmente a colectivos activistas autónomos, Felipe Fonseca afirmou-nos
em entrevista:
Na medida em que sempre nos baseámos na ideia de conhecimento livre, um dos nossos objectivos é a cooptação. Mantendo-se certos princípios, qualquer apropriação das nossas ideias (a apropriação da reapropriação?) é desejada (...) Melhor que ter uma ideia genial e convencer actores de peso da pertinência dela, é fazer esses actores acreditarem que tiveram uma ideia genial. Antes que persuadir, influenciar. MetaReciclagem hoje está dos dois lado do principal debate político: simultaneamente dentro de projectos do Partido dos Trabalhadores e do PSBD438. Simultaneamente num projecto nacional do governo (...) e com militantes anarco-punks. Simultaneamente no Ministério das Comunicações, comandado por um imbecil439, e dentro de grupos que combatem a actuação do mesmo ministério. Quando, buscando esse tipo de influência, precisamos parecer uma ONG, temos cartões de visita, fato e gravata. Quando estamos no nosso ambiente, em campo, estamos de havaianas e camiseta. A nossa mobilidade confunde, mas alcança os seus objectivos. Somos múltiplos..Eu tenho muitos 'sobrenomes' (Fonseca, 2005b).
Para o desenvolvimento e implementação dos Pontos de Cultura foi criado um centro experimental na
galeria Olido, um antigo cinema localizado na zona central de São Paulo. O complexo conta
actualmente com cinema, salas de ensaio e apresentação de dança, galeria de exposições, telecentro e
outras actividades. Aí funciona também desde meados de 2004 um esporo do MetaReciclagem440,
437 Saliente-se que a questão da cooptação foi o tema de um painel da conferência sobre media tácticos Submidialogia que teve lugar em Outobro de 2005 na Universidade de Campinas. Neste painel, intitulado “quando meus amigos se tornaram .gov – problemas e soluções ”, tentou-se responder às seguintes questões.
Num curto período de tempo, dezenas de iniciativas e centenas de pessoas que participavam de movimentos de comunicação independente, media tácticos, software livre e movimentos de base foram, directa ou indirectamente, incorporados nas agendas e contratos governamentais. Qual o motivo dessa rápida incorporação? Como direcionar tais acções num governo como o brasileiro? quais as consequências? E como é que o governo tem lidado com os projectos e ideologias dos envolvidos com as pesquisas e implantações? Qual a actual situação de projectos como o da TV Digital e GESAC (Ministério das Telecomunicações) e Pontos de Cultura (Ministério da Cultura).
Ver programação em http://www.midiatatica.org/wakka/wakka.php?wakka=ProgramacaoSubmidialogia.438 Partido da Social Democracia Brasileira – principal força política de oposição ao governo de Lula da Silva. O ex-
presidente Fernando Henriques Cardoso foi um dos fundadores deste partido que pode ser situado ao centro do espectro político. Um dos seus dois candidatos às eleições presidenciais de 2006 é José Serra, actual prefeito de São Paulo.
439 Fonseca refere-se aqui a Hélio Costa, ministro das Comunicações. O MetaReciclagem encontra-se presente no Ministério das Comunicações através do programa GESAC (Governo Electrónico – Serviços de Atendimento ao Cidadão) que disponibiliza acesso à Internet de banda larga por satélite em aldeias indígenas e comunidades rurais localizadas em zonas não abrangidas pelas redes das empresas de telecomunicações. Nesses locais realizam-se cursos de metareciclagem abertos à população. Ver site do GESAC em http://www.idbrasil.gov.br.
440 Ver fotografias do espaço em http://metareciclagem.org/gallery/mezanino.
236
graças a uma parceria com a Secretaria Municipal de Cultura e do Governo Electrónico da Prefeitura
de São Paulo, o projecto Cibernarium441. Nesse espaço têm lugar acções de reciclagem de
computadores e seminários técnicos. Em Outubro de 2004, Felipe Fonseca e Elly Chagas ministraram
aí um workshop sobre colaboração, comunicação em rede e low-tech para 27 elementos de
organizações não-governamentais pertencentes à Corrente Viva442, uma incubadora de ONGs que
conta com 23 associações espalhadas pela cidade de São Paulo443. Esta acção resultou numa parceria,
através da qual o MetaReciclagem desenvolveu já um site para a Corrente Viva, estando ainda em
paralelo a ser desenvolvido um projecto de implementação e formação em tecnologias de informação
em todas as ONGs atendidas por esta rede.
No domínio da infra-estrutura lógica online, uma das ferramentas ligadas ao MetaReciclagem foi o
LigaNois444, um site colaborativo baseado em Drupal que esteve online entre finais de 2003 e de 2004
destinado aos utilizadores e monitores dos telecentros da Prefeitura de São Paulo, expandido assim a
experiência do fórum criado ainda na época do Metáfora, no âmbito do festival Mídia Tática Brasil. O
objectivo, como explica Felipe Fonseca, era mostrar ao utilizador desse e doutros projectos de
inclusão digital no Brasil que “a Internet era principalmente um ambiente de interacção com outras
pessoas” (Fonseca, 2003c). O site chegou a ter 800 utilizadores registados e cerca de 600 visitantes
por dia (Rinaldi, 2005).
De modo a recuperar a discussão conceptual dos tempos do Metáfora, foi também implementado
outro site. Denominado Xemelê445, numa alusão à segunda lista da incubadora de projectos, aquele
espaço online acabou por tornar-se, no entanto, no sistema de conversações, publicação, gestão de
contactos e partilha de arquivos destinado a integrar os pontos de cultura (Fonseca, 2005). No mesmo
domínio está também alojada a plataforma de pesquisa446 estabelecida entre o Midia Tatica, o
MetaReciclagem, a Sociedade Waag e o laboratório de media Sarai.
As parcerias do MetaReciclagem com grandes instituições públicas têm também continuado, embora
numa vertente mais focada na implementação de ConecTAZs. No segundo semestre de 2004, em
colaboração com a Sampa.org447 e o Banco do Brasil, foram instalados dois telecentros na região de
São Paulo. Um situa-se em Capão Redondo, distrito que é considerado uma das áreas mais pobres e
441 Este projecto, que integra a @lis (Alliance for the Information Society”, é uma iniciativa da União Europeia no campo da divulgação e capacitação digital de carácter pedagógico que actua em nove cidades europeias e da América Latina no sentido de combater a exclusão digital. Ver site em http://www.alis-cibernarium.org.
442 Site disponível em http://www.corrente.org.br.443 Ver alguns testemunhos de participantes nesse workshop em
http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/OficinaColaboracaoCorrenteViva.444 Ver cópia de arquivo do site em http://web.archive.org/web/20040327142816/http://www.liganois.com.br.445 Site disponível em http://xemele.org.446 Site disponível em http://platform.xemele.org.447 ONG brasileira que trabalha com projectos de inclusão digital que abriga iniciativas que trabalham nas áreas da
educação, cultura, formação técnico-profissional e comunicação. Site disponível em http://www.sampa.org.
237
violentas da cidade. Juntamente com a associação Chico Mendes, uma colectividade local, foi
montado um espaço equipado com computadores doados pelo governo federal e reciclados pelo
MetaReciclagem. Uma semana após a abertura todos os computadores foram roubados. Desde então,
o telecentro encontra-se encerrado (Rinaldi, 2005)448. A outra ConecTAZ foi implementada em
Jarimu, uma pequena vila rural a 70 quilómetros de São Paulo. Dalton Martins, Glauco Paiva e Elly
Chagas abriram um telecentro equipado com 30 computadores numa sala da Associação das Mulheres
de Jarinu. Mais recentemente, o projecto do governo federal Casas Brasil começou a ministrar cursos
de metareciclagem em todos os seus 90 telecentros dotados de uma infra-estrutura multimédia e
laboratórios de reciclagem de computadores.
Durante o ano de 2005, o número de esporos independentes assinalou um crescimento notável449. Para
além do centro de media IP://, no Rio de Janeiro, criado por Tatiana Wells e Ricardo Ruiz, surgiram
também mais laboratórios de reciclagem em zonas como: Salvador (em associação com a Faculdade
Ruy Barbosa); Arrail D'Ajuda, na costa histórica da Baía, através do colectivo Bailux450; no Recife451;
Teresina, no Piauí452; Manaus, no estado do Amazonas453; no centro do Movimento Humanista no
bairro de Santa Cecília em São Paulo.
Segundo Felipe Fonseca, em Março de 2006, o MetaReciclagem integrava um núcleo-base de uma
dúzia de participantes activos que dedicam grande parte do seu tempo ao projecto; outro grupo de 20 a
30 pessoas que colaboram regularmente – uma vez por semana ou de quinze em quinze dias454. A lista
de correio electrónico possuia 158 subscritores. Estes números não incluem, é claro, as pessoas que
realizam acções de metareciclagem nos esporos espalhados pelo país.
448 Ver também relato de Elly Chagas em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/ChicoMendes.449 Ver lista de esporos em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/Esporos e lista de ConecTAZes em
http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/ConecTaz.450 Site disponível em http://bailux.wordpress.com.451 Site disponível em http://recife.metareciclagem.org.452 Este esporo, que fornece a infra-estrutura para a criação de três telecentros, situa-se no Centro de Referência da
Cultura Hip Hop, da responsabilidade do Movimento Hip-Hop Organizado Brasileiro (MHHOB). O Piauí é o estado mais pobre do Brasil.
453 Site disponível em http://manaus.metareciclagem.org.454 Os dados constam de uma mensagem de email enviado por Fonseca para a lista de discussão a 24 de Março de 2006,
disponível em http://article.gmane.org/gmane.politics.organizations.metareciclagem/3101/match=ars+electronica.
238
4 - Análise dos Dados Obtidos por Questionário
4.1 - Perfil dos Colaboradores do Metáfora e do MetaReciclagem
Em seguida apresentamos os dados que obtivémos do questionário realizado por email junto de 22
elementos do núcleo-inicial do Metáfora e do MetaReciclagem, do qual recebemos 11 respostas455.
Por opção metodológica, decidimos, ao contrário do que temos vindo a fazer neste capítulo, não
nomear individualmente nenhum dos inquiridos no que diz respeito ao conjunto de questões fechadas
e semi-fechadas destinadas a obter um perfil global dos colaboradores do Metáfora e do
MetaReciclagem. A não-discriminação deve-se a uma questão de ética do investigador no sentido de
respeitar a privacidade dos inquiridos quer em relação a terceiros, quer em relação aos outros
elementos dos colectivos.
Dos inquiridos que responderam, nove (81,8%) pertencem ao sexo masculino e dois (18,2 %) são do
sexo feminino. Em relação à idade, os colaboradores do Metáfora divididem-se nos seguintes
escalões etários:
• 25-29 anos: 5 (45,4%)
• 30-34 anos: 3 (27,3%)
• 35-39 anos: 1 (9,1%)
• 40-44 anos: 1 (9,1%)
• 45-49 anos: 1 (9,1%)
A partir dos dados fornecidos pelos inquiridos, cálculámos que a sua média de idades ronda os 32
anos (31,7 anos). É preciso, no entanto, recordar que o período de actividade do Metáfora – entre o
final de Junho de 2002 e o início de Outubro de 2003 – esta média seria de cerca de 29 anos.
Outro traço de identificação que quisemos obter junto dos elementos do núcleo inicial do Metáfora
foi a sua cidade/região de residência. Tendo já conhecimento, a partir da leitura das listas e da wiki,
de que uma grande parte destes residiam na altura na zona de São Paulo e arredores, pretendíamos
determinar qual a importância da participação dos residentes nesta cidade nas actividades do projecto
e se registou alguma alteração a este quadro nos últimos anos após o fim do Metáfora e a expansão do
MetaReciclagem. Assim, nota-se que uma grande parte dos inquiridos, isto é, seis (54,6%), afirmam
455 Uma vez que esta investigação incide sobre o Metáfora e o MetaReciclagem, não incluímos neste questionário todas as pessoas que fazem MetaReciclagem. Beatriz Rinaldi realizou um inquérito dirigido a todos os “metarecicleiros”, no qual nos baseámos em parte e que está disponível em http://ogum.metareciclagem.org/wiki/index.php/LevantamentoMetarecicleiros.
239
residir em São Paulo456 e os restantes cinco (45,4%) podem-se enquadrar numa categoria de nómadas
- como uma das inquiridas se designou a si própria – na medida em que mudaram uma ou mais vezes
de cidade nos últimos três anos.
Tendo também em conta o facto de as acções associadas ao Metáfora e das ideias discutidas na lista
se terem disseminado inicialmente457 através da blogosfera brasileira, por intermédio dos blogs dos
próprios fundadores do projecto e de outros bloggers que pertenciam à sua rede social, quisémos
averiguar qual o número de inquiridos que possuiam blogs e há quanto tempo é que os mantinham.
Confirmando as expectativas, nove dos inquiridos (81,8%) disseram que já tiveram um ou mais blogs
e somente dois (18,2%) responderam negativamente458. No que toca à data em que iniciaram o seu
primeiro blog, as respostas podem ser enquadradas nos seguintes anos:
• 2000 – 1 (11,1%)
• 2001 – 4 (44,4%)
• 2002 – 3 (33,3%)
• 2003 – 1 (11,1%)
Por aqui se pode ver que uma parte significativa dos colaboradores mais activos do Metáfora já
possuia um blog antes do início do projecto. Fazendo uma leitura destas respostas, podemos dizer que
o projecto resultou da “linkania” proporcionada pela blogosfera brasileira que na altura (2002-2003)
começava a florescer459.
456 Note-se que todos estes elementos do Metáfora já residiam na altura do início do Metáfora em São Paulo. 457 Antes das primeira doacções de computadores reciclados recebidas do Agente Cidadão e do festival Midia Tática
Brasil, que geraram alguma repercussão nos media comerciais brasileiros.458 Sendo que, destes dois, um respondeu que já tentou manter um blog mas que reconheceu não ter um perfil de
blogger.459 Numa interpretação literal, o termo “linkania” diz respeito ao costume praticado entre os bloggers de fazer ligações
para os blogs de outros bloggers. A inclusão de ligações a outros diários da Web é habitual quando o autor leu um post que achou interessante, por mera questão de reciprocidade ou quando o outro blogger é um amigo ou colega seu. O blogroll, a lista colocada num menu lateral do blog que contém os blogs favoritos e mais visitados do autor, é nesta perspectiva o local onde se consolidam todas estas ligações de amizade, trabalho ou interesses comuns.
Apontando para uma definição mais vasta que se aproxima do rizoma de Deleuze e Guattari e dos princípios do manifesto Cluetrain de que “os mercados são conversações” e que “os hiperlinks subvertem a hierarquia”, Marcelo Estraviz – presença irregular nas listas do Metáfora e responsável pelo blog Tipuri - escreveu um artigo muito influente na blogosfera brasileira em que propunha a “linkania” como uma nova expressão de cidadania, visando ocupar o vazio deixado pelo discurso desta num mundo cada vez mais desterritorializado e online (Estraviz, 2001a). Segundo ele, a “linkania” pode ser definida da seguinte forma:
É a cidadania sem cidades (...) A acção dá-se localmente mas a ligação é global. É o link do amigo, do vizinho. É a dica. É o negócio entre duas empresas de 2 continentes diferentes. É a ajuda que o teu primo te dá de Madrid por email. É a discussão que circula na lista para visitar tal exposição, e o link para a exposição, que imprimem e colocam no mural da creche. Tudo isso é link. É a matéria que um blogueiro comenta e que te faz pensar. É a descoberta valiosa do desempregado que vai a um infocentro e regista-se num programa do governo que lhe irá dar um emprego. E foi o vizinho que disse. Deu a dica, o link (idem).
Hernani Dimantas aprofundou mais tarde a metáfora de “linkania” sob a forma de “multidão hiperconectada”. Na
240
Um dos indicadores que revela a dedicação e o grau de “profissionalização” de um blogger é o facto
do seu blog possuir um domínio próprio – www.projetometafora.org, por exemplo -, o que implica o
registo anual desse endereço da Web por uma determinada quantia, ou se, pelo contrário, está alojado
num serviço gratuito de alojamento de blogs como o Blogger - com um endereço
projetometafora.blogspot.com, por exemplo. Nesse sentido, é sintomático que, dos nove inquiridos
que mantêm um blog, sete (77,8%) tenham respondido que possuem um domínio próprio, enquanto
dois (22,2%) afirmaram que o seu blog está alojado no Blogger.
A totalidade dos membros do Metáfora que participaram neste questionário declararam utilizar
regularmente software livre, o que demonstra o verdadeiro grau de adopção deste tipo de aplicações
junto do colectivo. O tipo de utilização, contudo, varia muito entre cada inquirido: assim, enquanto
um disse trabalhar com um sistema operativo proprietário mas correndo aplicações open-source por
cima, outro afirmou correr Linux e Windows no mesmo computador por necessidades de
compatibilidade de formatos e outros três responderam que recorrem também a opções não-
proprietárias como a linguagem de desenvolvimento PHP e a base de dados MySQL em servidores
Web para alojamento de sites. A situação mais frequente é, todavia, o recurso ao Linux num ambiente
de desktop – computador de secretária – e a outro software aberto como o navegador da Web Firefox,
o editor de imagens Gimp e o pacote de ferramentas de escritório OpenOffice.
Uma vez que o Metáfora teve desde o começo, um interesse em espalhar as suas ideias e projectos
através de associações com ONGs e que o MetaReciclagem se tem destacado por um trabalho de
contacto directo com esse tipo de instituições, não surpreende muito que sete (63,6%) dos inquiridos
tenham afirmado que colaboram com alguma ONG ou outro tipo de associação semelhante. Pelo
contrário, apena quatro (36,4%) responderam negativamente. Por outro lado, dado que o Metáfora e o
MetaReciclagem tiveram sempre uma preocupação muito grande com a questão da inclusão digital –
se bem que na sua perspectiva mais holística de reapropriação da tecnologia para fins de
transformação social –, através de acções concretas que se vieram a repercutir nas políticas públicas
do sector, queríamos também determinar em que medida é que esta influência no interior do governo
resultou em contratações dos colaboradores do núcleo inicial do Metáfora. Neste aspecto, apenas
quatro (36,4%) dos inquiridos disseram possuir qualquer tipo de vínculo laboral com a administração
pública, sendo que sete (63,6%) deram uma resposta negativa.
sua opinião, a “linkania” é “um movimento de auto-organização do caos (...) Um pensamento, uma inserção no mundo das ideias e das coisas”. Trata-se de um conceito imanente, ligado às pessoas. Por isso, acrescenta, o termo não deve ser confundido com uma mera relação de links como a que se encontra na blogosfera ou no software social – como o agregador social de bookmarks Del.ici.ous. (http://del.ici.ous) -, devendo ser encarado como “a generosidade de linkar (...) o acto, o prazer, o amor de buscar na colaboração uma nova forma de produzir e ser feliz. De se compreender como um link. Mais ainda, ela deve ser também vista como “a expressão do engajamento – participação activa – das pessoas em rede. Uma troca generosa de links que catalisa a conversação, provoca e solidifica o engajamento” (Dimantas, 2005).
241
No que toca ao modo como tiveram conhecimento da lista do Metáfora no Yahoo!, três dos inquiridos
afirmaram que já conheciam os fundadores (Felipe Fonseca e Hernani Dimantas) dos tempos da
Joelhasso, a lista precedente mantida por Fonseca; dois disseram que conheceram a lista através de
contactos pessoais com outros membros e três que tiveram conhecimento do colectivo através da
Web.
Em relação às listas de correio electrónico associadas ao projecto Metáfora e seus descendentes –
MetaReciclagem e CoLab - que os inquiridos assinaram e/ou assinam, a lista inicial no Yahoo!
eGroups foi assinada por todos, enquanto que a Xemelê e a lista do MetaReciclagem foi subscrita por
nove, ao passo que a CoLab foi assinada por dez. Destes dados pode-se depreender que a colaboração
no Metáfora não foi completamente efémera, apesar da curta duração do projecto, tendo, na maior
parte dos casos, os laços estabelecidos naquele projecto perdurado ao longo dos anos seguintes. É
preciso notar, todavia, que dos participantes no questionário que responderam que já tinham subscrito
a lista do MetaReciclagem e a CoLab, um acrescentou que tinha, entretanto, deixado de participar em
qualquer das listas associadas ao antigo Metáfora, ao passo que outro caracterizou o seu contacto com
os outros elementos do MetaReciclagem como sendo actualmente muito eventual.
Na medida em que a subscrição das listas não é um indicador completo da participação dos elementos
nos diferentes projectos, tentámos também obter um número de encontros e reuniões presenciais do
Metáfora e do MetaReciclagem em que os inquiridos participaram. Aqui, as respostas variaram muito.
A maior parte, contudo, disse não ter uma noção precisa de quantas reuniões frequentou e quantas
foram realizadas. Uns foram mais vagos, dando respostas como “não tenho a menor ideia”, “não
lembro” ou “inúmeras”. Outros adiantaram um número aproximado:
“Praticamente todas... não saberia estimar. Encontros mais gerais, diria que meia
centena.”
“Nem sei contar, mas certamente, perto de uma centena.”
“Reuniões 'formais' foram talvez uma dezena, mais ou menos. Já as 'informais' são
incontáveis...”
“Do Metáfora, acho que todas (não me lembro quantas houveram). Do Metareciclagem,
devo ter participado de aproximadamente 15-20 reuniões.”
Três dos inquiridos deram, no entanto, um número exacto:
242
“Umas oito.”
“4.”
“Reunião formal 0, encontro com participantes em outros eventos relacionados 2 (de
forma anónima).”
Como se podia esperar, os elementos com uma menor presença em reuniões dos projectos são os que se
lembravam melhor do número de encontros realizados. Apesar da imprecisão dos números avançados,
podemos concluir pela existência de dois grandes grupos de colaboradores do Metáfora e do
MetaReciclagem460: um composto por voluntários com uma participação esporádica e irregular nos projectos
– embora tenham, quase todos, permanecido subscritores de todas as listas - e outro constituído por aquilo a
que podemos chamar um “núcleo” duro de elementos que continuaram presentes no MetaReciclagem após o
fim do Metáfora e para quem este projecto constituiu uma “experiência transformadora nas suas vidas”, nas
palavras de um inquirido461. Esse “núcleo”, localizado maioritariamente na região de São Paulo, teve, por sua
vez, a capacidade de catalisar por via online e offline a participação de outros interessados na metodologia da
metareciclagem. Estes novos voluntários – muitos dos quais desconhecem sequer a origem do
MetaReciclagem - actuam como agentes de replicação da prática dentro das suas comunidades espalhadas
pelo país de forma a estimular o interesse das pessoas locais. Embora o MetaReciclagem assuma um carácter
descentralizado, a função dos elementos desse “núcleo” inicial pemanece importante pois são eles que
articulam os diferentes esporos independentes e facilitam a comunicação entre eles.
4.2 - Opiniões em Relação ao Metáfora e MetaReciclagem
4.2.1 - Inspiração Política dos Projectos
Uma segunda parte do questionário que enviámos por email aos participantes activos do Metáfora e do
MetaReciclagem foi constituída por questões abertas, de âmbito mais vasto, que visaram obter a sua opinião
em relação a ambos os projectos. Assim, comecámos por perguntar se consideravam que as duas iniciativas
tiveram/têm algum cariz político e em que medida. Neste ponto, encontrámos três tipos de respostas:
enquanto alguns realçaram que tudo é político462, outros foram da opinião que o Metáfora e o
460 Não incluimos aqui, obviamente, os lurkers que assinam as listas dos projectos e as pessoas que participaram e participam nas discussões travadas nas listas.
461 Um depoimento semelhante ilustra de modo exemplar a importância que a experiência colaborativa do Metáfora teve nas vidas desse “núcleo”:
Minha vida inteira foi transformada pelas relações que estabeleci a partir do Metáfora. Já morei, trabalhei, namorei com diversas pessoas que estavam lá, e as relações com todas elas continuam até hoje, de diversas maneiras, transformando a vida de todos diariamente.
462 Incluem-se aqui Felipe Fonseca (“acho que qualquer acção humana tem um viés político”), Bermardo Schepop (“qualquer acção que extrapola o espaço privado é uma acção política”) e Daniel Pádua (“tudo o que fazemos tem impactos políticos, uma vez que usamos instrumentos diversos para conjurar mobilizações sociais e arranjos produtivos autónomos diversos”).
243
MetaReciclagem evoluíram progressivamente no sentido de uma apropriação política:
Acho que passaram a ter (um cariz político). Antes, quando eu falava de democracia directa, anarquismo e revolução escutava de volta que precisávamos ganhar dinheiro. O MetaReciclagem foi sendo delineado com inspirações políticas, mas realmente foi ganhando essa cara aos poucos (Adriana Veloso).
O meta é um projecto que visa impactar a microfísica do poder; actuamos num espaço informacional sob uma ética hacker de apropriação e ocupação desses espaços (Hernani Dimantas)
Acho que os assuntos abordados (mais que os projectos), como software livre, reciclagem, media tácticos e democratização da informação tinham abordagens políticas e que ao longo do percurso, alguns transformaram-se ou já eram medidas de políticas públicas. Isso facilitava a absorção, cooptação ou mesmo uma colaboração com algum trabalho político (Giseli Vasconcelos)
Uma terceira corrente de opiniões reconheceu nos dois projectos uma componente política em sentido
amplo:
Se tomarmos o termo 'político' no seu sentido mais amplo, sim. Isto porque cada projecto (...) traz embutidos vários conceitos revolucionários, a grande maioria deles voltados para a democratização da informação, a facilitação e capacitação do acesso às novas tecnologias, a formação de redes sociais e a geração de autonomia/apoderamento, entre outros (Paulo Bicarato)
Acho que os projectos têm relações políticas, sim, na medida em que se propôem a mostrar alternativas às políticas públicas em relação à inclusão digital. Somos um grupo que tem por objectivo experimentar, criar, além dos horizontes que o poder público possui para a articulação e desenvolvimento. É claro que temos por objectivo influenciar esse poder público nas suas políticas, como no caso dos Pontos de Cultura (Dalton Martins).
4.2.2 - Distinção entre Inclusão Digital e Reapropriação Social da Tecnologia
Face à questão do MetaReciclagem visar a inclusão digital, a opinião dominante foi que a sua acção
tem um alcance mais vasto do que o que é normalmente abrangido pelos projectos públicos e de
ONGs que se identificam com esse conceito. Esse âmbito mais alargado é onde se pretende, como o
projecto refere na página de apresentação da sua wiki463, que ocorra a prática da reapropriação da
tecnologia com vista à transformação social. Tendo em conta que, como os próprios referem, se trara
de um objectivo controverso e um pouco vago e abstracto, interessou-nos também saber, na
perspectiva de cada um dos elementos do colectivo, o que é que aproxima e separa essa reapropriação
da inclusão digital. Na opinião de Felipe Fonseca, os dois termos “não são conceitos excludentes”,
embora o primeiro “tenha uma escala mais experimental e uma maior profundidade”. Fonseca
desenvolve esta distinção no texto “O Fantasma da Inclusão Digital”:
463 Ver página em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/MetaReciclagem.
244
A proposta da Metareciclagem é algo muito mais profundo. Trata-se da apropriação de tecnologia e da reapropriação de tecnologia tida como obsoleta, proporcionando e fomentando o uso crítico das ferramentas de comunicação com o objectivo de transformação social. O corte é outro, não o do excluído e do incluído, mas o do uso meramente instrumental contra o uso consciente, engajado e criativo. Exactamente por isso, o nosso caminho nunca foi a montagem em série de telecentros, mas a constante re-invenção, pesquisa e desenvolvimento de novos caminhos. Exactamente por isso, nunca nos concentrámos na equação montagem de estrutura + capacitação e sim em mudar os nossos próprios hábitos de uso da rede464.
Para Dalton Martins, o MetaReciclagem introduz uma nova concepção de inclusão digital na medida
em que “visamos o desenvolvimento da sensibilidade em relação à tecnologia”, através da criação de
autonomia, da promoção da colaboração e da espiritualização das tecnologias. Na sua opinião, a
reapropriação da tecnologia para fins de transformação social é um processo que permite “entender e
compreender as tecnologias descartáveis como estratégias para o desenvolvimento de projectos
pessoais, como possibilidade de geração de trabalho e rendimento, como meio de alavancar
articulações entre pessoas”, indo muito mais fundo que a inclusão digital, “que normalmente tem por
objectivo apenas fornecer o acesso à tecnologia”.
Uma perspectiva semelhante tem Paulo Bicarato, para quem a inclusão digital é uma expressão pobre
relativa a apenas um aspecto mais vísivel entre várias outras questões envolvidas no MetaReciclagem:
“apoderamento (capacitação e valorização de pessoas, gerando oportunidades de rendimento e
trabalho), preservação ambiental (o lixo tecnológico é altamente poluente, e a sua reciclagem reduz
esse potencial), entre outros." Bicarato acrescenta ainda que “obviamente, a simples doação de
máquinas e computadores a uma determinada comunidade não quer dizer absolutamente nada.
Quando esta doação de máquinas vem acompanhada de software proprietário, o problema intensifica-
se: a comunidade, ou as pessoas atendidas, correm o sério risco de tornarem-se reféns de um sistema
monolítico."
De acordo com Hernani Dimantas, o MetaReciclagem trabalha com a inclusão digital de um ponto de
vista colaborativo e emergente que diverge da perspectiva de cima para baixo proposta pelo governo,
pela academia e pelas ONGs.
Na opinião de Daniel Pádua, “a” metareciclagem enquanto reapropriação da tecnologia visando a
transformação social “é uma prática de reconstrução cognitiva constante da linguagem, dos artefactos
e das relações”. Para Pádua, “metareciclar é repensar o mundo a todo instante, em função da
necessidade pessoal, e tornar esta perspectiva imaginária em realidade através da acção colaborativa
sobre ele." Na medida em que este processo “passa por expandir a fronteira da redes telemáticas em
464 Reflexão disponível em http://metareciclagem.org/weblog/?p=4 e redireccionada por Fonseca como resposta à pergunta em causa na entrevista por email que realizámos.
245
todas as direcções, então pode-se dizer que há 'inclusão digital'”.
Por seu lado, Tupi Namba concede que embora o MetaReciclagem vise tal como outras iniciativas de
inclusão digital, “a possibilidade do acesso à Internet e a hardware para os menos favorecidos”, o
projecto distinguiu-se dessas iniciativas que apenas constituem uma continuação do modelo de acesso
das corporações da indústria de telecomunicações centrado nos consumidores e na audiência e da
formação profissional para essas empresas. A aposta do MetaReciclagem está, pelo contrário, na
“capacitação dos agentes como protagonistas e empreendedores de uma forma autónoma e
descentralizada, com conhecimento livre e aberto”.
Na acepção de Adriana Veloso, a reapropriação social da tecnologia “significa pegar uma latinha de
pringles e fazer uma antena, pintar um computador velho e fazer uma instalação num bairro pobre,
sujo e feio, reciclar videocassetes para fazer transmissores de TV, etc. Acho que inclusão digital é
feito como um favor, uma obrigação, um trabalho, etc. Metareciclagem é feito por vontade, por
desejo."
Fazendo uma interpretação mais material, Edney Souza argumenta que "a inclusão digital pura e
simples necessita de investimentos financeiros que serão convertidos em acesso digital”, enquanto
que “a reapropriação da tecnologia requer capital humano para transformar sucata em vias de acesso
digital.” Já André Passamani/Maratimba salienta que a reapropriação proposta pelo MetaReciclagem
é uma abordagem libertária do mesmo tema da inclusão digital “no sentido de não haver um
conformismo... uma acomodação ao status quo”.
Alguns inquiridos, contudo, não concebem de todo o MetaReciclagem como uma acção de inclusão
digital. É o caso de Giseli Vasconcelos, para quem "a reapropriação tecnológica é de transformação
quando conjuga a consciência (política e social) do uso da tecnologia com a habilidade (que pode ser
mínima) de recondicioná-la ou transformá-la para dar voz, disseminar e democratizar. A
(re)apropriação é um instrumento amplo que não determina quem está ou não incluído (...)
dinamizando possibilidades mais abrangentes para quem está a frente ou não das máquinas".
Após apresentadas estas diferentes perspectivas sobre o que é a reapropriação da tecnologia para fins
de transformação social e o que a distingue da inclusão digital, a ideia que transparece é que se
tratam, como afirma Bernardo Schepop, de questões complexas para as quais não existem respostas
objectivas. Em lugar destes conceitos, Schepop prefere empregar a palavra inclusão em sentido amplo
– atribuindo pouca importância ao adjectivo “digital” - na medida em que “para conseguir o
envolvimento dos grupos 'participantes' tem que se ir muito além dos computadores. Só os uns e zeros
246
não dão conta do recado de incluir quem quer que seja”.
4.2.3 - Avaliação dos Pontos Fortes e Fracos
De forma a obter um retrato mais pessoal das experiências obtidas por intermédio do Metáfora e do
MetaReciclagem que permitisse ao mesmo tempo distinguir claramente entre um projecto e outro,
questionámos os inquiridos sobre o que consideravam melhor e pior nos dois colectivos e, no caso do
MetaReciclagem, quais as eventuais sugestões que propunham para colmatar esses problemas.
Um dos aspectos positivos do Metáfora mais mencionados foi a afinidade criada entre os seus
participantes, simultaneamente resultado e consequência da troca de ideias na lista e dos projectos
desenvolvidos. Do lado oposto, a dispersão e o egocentrismo resultante foram alguns dos aspectos
negativos mais citados pelos inquiridos.
Paulo Bicarato, por exemplo, destaca como mais positivo “o envolvimento apaixonado da maioria dos
integrantes e a intensa discussão conceptual que sempre norteou todo o grupo”. Mas na sua opinião
essa “mesma paixão (...) levou por vezes à dispersão de parte dos integrantes. E faltaram,
naturalmente, em determinados momentos, recursos financeiros inviabilizando determinados acções”.
As amizades estabelecidas e os “metaprojectos” levados a cabo são favoravelmente destacados por
Adriana Veloso, para quem os piores aspectos do colectivo foram o “egocentrismo” e “as críticas
levadas para o lado pessoal que decorreram em brigas”.
As afinidades estabelecidas entre os participantes e a organização colaborativa de eventos como
festivais, encontros e projectos são referidos por Giseli Vasconcelos como pontos fortes do projecto.
Na sua opinião, os pontos fracos consistiram nas “brodagens (compadrio) e hierarquias” que se foram
desenvolvendo naturalmente, “criando dissidências constantes (principalmente entre projectos)”. De
modo semelhante, Daniel Pádua salienta como mais positivo “o encontro das pessoas” e negativo “a
fragmentação das relações estabelecidas horizontal e descentralizadamente, devido a algumas sub-
organizações autoritárias e altamente estruturadas”.
A falta de uma estrutura organizativa mais estável é criticada por Tupi Namba, em particular a
“dependência de articuladores presenciais, a ausência de inventário e património digital” como
“software, serviços online, arquivos dos sites e conversas”, para além da inexistência de “um modelo
de sustentabilidade e de distribuição de recursos” que fosse “transparente, autónomo e
desterritorializado”. Em compensação, Tupi realça pela positiva o MetaReciclagem e os projectos
realizados em cooperação com autarquias.
247
Para Dalton Martins, por seu lado, “o melhor foi a multidisciplinaridade e o carinho que as pessoas
tinham por aquelas discussões. O pior foi quando tentamos virar uma ONG. Aí apareceu muitos lados
que não foi legal ter conhecido de algumas pessoas”. Edney Souza assinala ainda que o Metáfora fez-
lhe “perceber que o esforço de cada indivíduo faz a diferença e pode transformar vidas. Contudo, não
deixa de registar como desagrável o facto de ter havido pessoas que “utilizaram as criações do
colectivo para a sua própria ascensão profissional”. A visão mais optimista da experiência do
Metáfora encontra-se, no entanto, no testemunho de Bernardo Schepop: “Não teve nada de pior. Foi
o que tinha que ser.” Schepop destaca como mais positivo a união de ideias possibilitada pelo
projecto.
Fazendo a mesma questão a respeito do MetaReciclagem, Adriana Veloso considera que “a expansão
do projecto” foi o seu ponto forte, criticando por outro lado a tendência para a centralização que este
revela. De modo a resolver este problema, sugere a documentação do que foi feito até agora e a
adopção de uma metodologia formatada de modo a “dar suporte aos esporos”. A “universalidade” do
projecto é também outra característica salientada por Paulo Bicarato, na medida em que “pode ser
ampliado para qualquer lugar do mundo (...) A inclusão do MetaReciclagem em projectos do
Ministério da Cultura, do Governo Federal, também mostra como os conceitos podem ser absorvidos
como políticas de Estado, independentemente de questões partidárias”. Dalton Martins refere-se a
esse modelo de replicação como “livre” e “solto. Na sua opinião, “o pior é sempre a incerteza dos
rumos a tomar, embora também usamos isso como forma de aprendizagem. Minha sugestão é: crie
livre, experimente livre que as coisas (...) podem seguir cursos extremamente interessantes...”.
O “carácter anti-autoritário e anti-consumista” das acções é, para Daniel Pádua, o melhor do
MetaReciclagem, sendo o pior “o excessivo condicionamento às linguagens digitais”. Por isso
propõe: “Conversem com outras linguagens – expressão corporal, escrita -, aprendam a compartilhar
conversando sem o computador”. O defeito de “um certo tecnocentrismo” é também reconhecido por
Felipe Fonseca, segundo o qual a parte mais positiva é “o dinamismo e as provas concretas de que o
conceito de esporos funciona realmente”. Apesar de ter aberto espaço para outros projectos no sentido
da esporificação, o MetaReciclagem, admite Hernani Dimantas, “está a perder a capacidade de auto-
crítica e de mediactivismo ao ficar ensismado em metodologias que nem sempre são tão colaborativas
como pregadas pela articulação”.
Na perspectiva de André Passamani/Maratimba, mal grado “as oportunidades e liberdade
conquistadas”, existe “uma falta de método” e de “continuidade nos projectos”. Já TupiNamba
identifica como mais positivo o intercâmbio com movimentos do exterior (Holanda e Índia), o
248
laboratório de media tácticos IP:// no Rio de Janeiro e a projecção das lideranças nos media
comerciais e instituições. Alerta no entanto, para um “excesso de discussão teórica e ajuste ao direito
estabelecido, falta de desobediência civil e articulação com movimentos populares” como
“cooperativas de reciclagem, Movimento Sem Terra, sem-teto, vendedores ambulantes, motoristas,
autonómos”. Tal como na resposta à pergunta anterior, Bernardo Schepop não destaca nenhum
aspecto negativo: “A iniciativa em si é o melhor do projecto (...) Alguns insucessos decorrentes de
tentativas fazem parte, são ensinamentos importantes”.
4.2.4 - Visões Pessoais Sobre o Metáfora e o MetaReciclagem
Por último, procurámos obter dos inquiridos a sua opinião pessoal e resumida sobre o que foi o
Metáfora e o que é actualmente o MetaReciclagem. Alguns dos participantes encaram ambas as
iniciativas como TAZs efémeras onde “o ciclo de colaboração só pode existir com a impermanência
das acções”, como Dimantas refere, uma vez que “a continuidade traz consigo a burocratização das
acções e a falta de diálogo”:
O Metáfora abriu as possibilidades de reapropriação de ideias e a catalização dos conhecimentos. O MetaReciclagem deu continuidade ao processo, tende a extinguir-se com o próprio crescimento (Hernani Dimantas)
(Foram) projectos de vida :) Em primeiro lugar, uma vivência colectiva radical, de questionamento profundo sobre as fronteiras da criatividade e do trabalho colectivo (Felipe Fonseca).
Uma maioria de inquridos faz no entanto uma distinção clara de um projecto do outro, concebendo o
Metáfora como um laboratório de ideias, provisório e temporário, e o segundo como o resultado
concreto dessa “incubadora colaborativa” que subverte a lógica tradicional dos projectos de inclusão
digital. Um testemunho representativo é o de Tupi Namba, que entende o Metáfora como tendo sido
um “lugar para conversar sobre alternativas terceiro-mundistas de uso de tecnologia, caminhos para
inclusão social adaptados às mudanças do sistema económico” e onde os media tácticos e o software
livre eram compreendidos como “instrumentos de transformação económicos e social”. Mais ainda,
na sua opinião, este espaço serviu para colocar em prática alguns projectos e performances. Segundo
Tupi, o MetaReciclagem constitui uma “alternativa não-corporativa aos programas de inclusão
digital”, bem como um “possível embrião de um modelo de educação, negócios e empreendimentos
adaptados à realidade terceiro-mundista tupiniquim”. Outros depoimentos de participantes
corroboram esta posição:
Metáfora foi a porta para um novo mundo. MetaReciclagem é o jeito de viver nesse novo mundo (Dalton Martins).
249
O Metáfora foi a semente de um novo movimento de rearranjo social a partir de dinâmicas menos focadas na propriedade e autoridade e mais ligadas à solidariedade, ludicidade e autonomia. O Metareciclagem é a primeira instância concreta desse rearranjo social. E tem muito ainda a evoluir (Daniel Pádua)
Metáfora é (foi) um grande laboratório de idéias: todos *xemelizando* conceitos e idéias, culminando na concretização de alguns projetos específicos, como o MetaReciclagem.
São, ambos, uma somatória de tudo isso citado acima. E, ao mesmo tempo, uma certeza de que se pode construir algo somente com a união de algumas pessoas, e uma esperança de que podemos construir um mundo mais justo e colaborativo (Paulo Bicarato).
Metáfora mostrou-me que existe vida além do limbo digital, vida pensante e ativa, MetaReciclagem é a ação resultante desse pensamento vivo, uma prova de que a organização social como conhecemos e as teias que envolvem os grupos estão para ser redefinidas num futuro próximo (Edney Souza).
Metafora foi... uma ilusão colectiva? Não, na verdade acho que (...) foi uma tentativa muito bem sucedida do Felipe de unir pessoas interessantes, pensantes em uma lista ativa. O Metareciclagem para mim é um exemplo de como se deveria fazer 'inclusão digital' (Adriana Veloso).
Por último, registámos também as impressões de um grupo de participantes do núcleo inicial do
Metáfora que se desligaram do colectivo após o seu fim e o prolongamento autónomo do
MetaReciclagem:
Entendi que o Metáfora estava mais para um levantamento Hakin Bey, uma TAZ, que para uma acção. O Metáfora era um XML, ou xemele, no sentido de um código aberto de informações (...) Deste levante muitas foram as idéias novas. Um fluxo intenso (...) A interacção entre alguns persiste, mas o Metáfora não existiu de forma tangível (Bernardo Schepop).
Metáfora foi uma junção de assuntos e idéias pertinentes ao período (principalmente concentrada numa grande cidade), que necessitavam de discussão para esclarecer/desmistificar/facilitar práticas, visando alguns pontos críticos da relação da tecnologia da informação com a sociedade (Giseli Vasconcelos).
250
Conclusão Final
O termo media tácticos foi introduzido por David Garcia e Geert Lovink no âmbito do Festival Next
Five Minutes, que se realiza desde 1993 de três em três anos em Amesterdão para designar um
conjunto de meios de comunicação DIY (Do-It-Yourself – Faça Você Mesmo) que estavam na altura,
em meados dos anos 90, a emergir na Europa Central e do Norte, como resultado da colaboração entre
grupos de artistas, hackers e activistas que tiravam partido de tecnologias electrónicas acessíveis
como o cabo, o computador e, progressivamente, a Internet para fins não-comerciais, artísticos e
subversivos (Garcia e Lovink, 1997).
Esta teoria dos media tácticos parte da distinção entre “tácticas” e “estratégias” que Michel de Certeau
aplica à relação entre o consumidor e a produção das indústrias culturais (Certeau, 1990 [1980]). Ao
conjunto de artimanhas e de astúcias que o utilizador rebelde emprega para subverter de forma
subreptícia e fragmentária o discurso dominante, o autor francês atribui a designação de tácticas,
opondo a este conceito o de estratégia, que corresponde aos modos de agir do poder económico,
político e científico através de relações de força relativas a um lugar que pode ser circunscrito a um
próprio. O princípio de táctica é contraposto por Certeau ao de estratégia no sentido em que não
possui um local próprio, antes, insinua-se no lugar do outro, evitando o confronto directo e
enveredando por intrusões temporárias e silenciosas no território do inimigo, através de acções de
roubo, sabotagem e sequestro. Trata-se de uma “arte do fraco”, em que este “deve incessantemente
tirar partido de forças que lhe são estranhas”.
Os media tácticos inserem-se assim na tradição dos media alternativos remontando aos anos 60, com
as fanzines, as primeiras rádio e televisões comunitárias e os samizdats elaborados na Europa do
Leste ainda durante o período de influência soviética. Mas ao contrário destes meios de comunicação
que se apresentavam como porta-vozes de uma contra-cultura e assumiam muitas vezes identidades
ideológicas estáveis – em consequência da ligação a partidos políticos e movimentos sociais -,
acabando por se afirrmar como alternativas aos media de massas, os media tácticos optavam por
infitrar-se no discursos dominante através de tácticas quase sempre de curta duração, recusavam as
certezas ideológicas das décadas anteriores, e, na medida em que enveredavam por um
experimentalismo radical e sem fronteiras disciplinares, rejeitavam as dicotomias rígidas entre
amador e profissional, artista e activista, público e privado, etc (Garcia e Lovink, 1997 e 1999).
Para além da influência dos media alternativos, os media tácticos reaproveitaram um conjunto de
técnicas e conceitos teóricos antecedentes como: o détournement, uma prática artística utilizada nos
anos 50 pelos situacionistas que consistia na apropriação de imagens e palavras veiculadas pela
251
cultura de massas de forma a transmitir novas mensagens de teor subversivo (Debord e Wolman,
1956); a ideia de Zona Temporária Autónoma, introduzida por Hakim Bey nos anos 80 para se referir
a uma estética de fuga, desvio e sabotagem sustentada em espaços de libertação ocupados por
nómadas, enclaves à margem ou mesmo contra o sistema e a Lei (Bey, 2001 [1991]); e o rizoma de
Deleuze e Guattari (1980), que devido à sua estrutura de múltiplas ligações desentralizadas alguns
autores como Stefan Wray (1998) associam às novas redes de resistência como a dos zapatistas e
outros movimentos por uma globalização alternativa que se desenvolveram no mesmo contexto
temporal dos media tácticos, sobretudo após os protestos de Seattle contra a OMC, em 1999.
De igual modo, o movimento do software livre contribuiu decisivamente para o desenvolvimento dos
media tácticos. Para além da identificação com os valores da cooperação e partilha de conhecimentos
que caracterizam a ética e cultura hacker dos programadores daquele tipo de software, os grupos e
colectivos que realizam este tipo de produção mediática promovem também, à sua maneira, a
dissolução entre utilizador e produtor, de uma forma auto-didacta. Daí que a opção por programas
livres e abertos para os seus trabalhos seja bastante frequente.
Com o intuito de demonstrar uma das nossas hipóteses iniciais de investigação, a saber, que as
tácticas de protesto dos media tácticos representam uma posição de permanente combate contra um
adversário concreto e explícito (Estado-nação, instituição supra-nacional ou empresa transnacional),
efectuámos uma análise teórica das práticas associadas a este tipo de produção mediática, como a
sabotagem publicitária do Culture Jamming, os ataques de desobediência civil electrónica e outros
protestos virtuais de hacktivismo, o experimentalismo estético online e offline com motivações
políticas do artivismo e o modelo de jornalismo em publicação aberta da Indymedia.
Na medida em que se baseiam numa linguagem de guerrilha e beligerante, estes colectivos correm o
risco se tornarem uma simples replica em forma de espelho desse inimigo, funcionando como
produtores de contra-propaganda, manipulando, exagerando os factos e abusando do sensacionalismo,
ou ate recorrendo a destruicao de informacao, o que contribui para a sua descredibilizacao. Por outro
lado, a cooptação ou recuperação das próprias técnicas dos activistas através da apropriação dos
símbolos com conteúdo subversivo que passam a ser empregues para difundir mensagens com fins
comerciais e de controlo é também um risco constante, na medida em que os media tácticos acabam
frequentemente por reflectir em forma de espelho a forma de actuação dos seus grandes adversários,
as grandes empresas transnacionais.
Um modelo alternativo de media tácticos
252
Partindo da outra hipótese colocada no início da nossa investigação, a análise que efectuámos aos
projectos brasileiros Metáfora e MetaReciclagem teve como objectivo verificar a existência de um
modelo alternativo de media tácticos relativo a iniciativas que apesar de partilharem do
experimentalismo, da efemerabilidade, flexibilidade, hibridismo e amadorismo que caracterizam os
projectos tradicionalmente são classificados como pertencentes a este movimento, como por exemplo,
a rede Indymedia, os Adbusters, a RTMark e outros colectivos hacktivistas e artivistas, não se
identificassem com a retórica e as práticas de protesto e de denúncia de um adversário concreto
empregues por aqueles.
Não possuindo uma agenda política de protesto que se possa comparar ao activismo de outros
projectos que são classificados e se assumem como media tácticos, a abordagem adoptada pelo
Metáfora e continuada, pelo menos parcialmente, pelo MetaReciclagem tem importantes implicações
políticas que se coadunam com o sentido do termo de tácticas na acepção original de Michel de
Certeau, isto é, truques e astúcias, manipulações e subversões várias que no seu conjunto, consistem
numa arte do fraco contra o forte, embora não num sentido de confronto directo e intencional.
A “caordem” e o “Xemêlê” que orientaram permanentemente a actividade do Metáfora podem ser
vistos como metáforas para os conceitos de nomadismo, hibridismo, mobilidade, amadorismo que
autores europeus e norte-americanos como Garcia e Lovink e o Critical Art Ensemble (2001)
empregam e que são normalmente aplicados a práticas com contornos mais activistas e de protesto.
Nesse sentido, esses termos exprimem uma adaptação “tropicalista” dos media tácticos que esteve
sempre presente em ambos os projectos, embora muitas vezes de um modo não-deliberado.
Partindo do contexto da sociedade brasileira, marcada por grandes contrastes económicos, estas
iniciativas visam oferecer métodos para transformar as ferramentas mediáticas de forma a melhorar a
vida da população, tendo em conta que esta é maioritariamente pobre e afastada da tecnologia, da
cultura letrada, do mercado e da Democracia. Segundo Felipe Fonseca, essas pessoas que vivem em
bairros periféricos não têm nada para dizer nem pretendem afirmar algo a um público; querem apenas
comunicar, conversar e interagir entre si. Para tal, dá como exemplo o facto de os telecentros públicos
serem principalmente utilizados para aceder às salas de chat (Fonseca, 2003a)465.
Na medida em que a cultura brasileira é entendida por Fonseca como uma cultura hacker, nesta
465 No ensaio “Brasil is a Hacker Culture”, apresentado na edição de 2003 do festival Next Five Minutes, na Holanda, Fonseca enquadra esta capacidade comunicacional tipicamente brasileira na linhagem de uma cultura hacker fruto de hibridizações, miscenizações e nomadismos vários que remontam ao período colonial, aos cultos religiosos dos escravos negros que combinavam os deuses africanos com os santos católicos, percorre o movimento modernista antropofágico das primeiras décadas do século XX e os tropicalistas dos anos 60 que fundiram o Rock com o samba, chegando, mais recentemente, aos “camelôs” ou vendedores ambulantes que, fugindo aos impostos, vendem produtos roubados e CDs pirateados para poderem sobreviver no meio de uma economia em crise (Fonseca, 2003a)
253
perspectiva o papel tradicional dos media tácticos deixa de fazer sentido, uma vez que o interesse da
população na utilização dos media não é tanto o de atingir uma audiência, mas o de falar entre si. Isto
explica, na sua opinião, a incapacidade da maioria dos projectos tácticos que envolvem a produção de
media por pessoas pobres em produzir conteúdos com uma mensagem crítica, não passando quase
sempre de “uma paródia ou simulacro dos media comerciais tradicionais” (idem).
Na opinião de Felipe Fonseca, a população brasileira não necessita de jornais locais, rádios
comunitárias e vídeos amadores mas de media que utilizem a comunicação para integrar as pessoas de
forma a que estas possam partilhar a informação que realmente importa para elas. Tendo em conta
esta especificidade local, a função dos media tácticos não consistiria tanto em trazer mais pessoas
para a era da informação, mas em “transformar a tecnologia de forma a que elas possam melhorar de
algum modo a sua qualidade de vida” (ibidem). Detectando traços comuns na actividade do Metáfora
e do centro de media Sarai, propõe um modelo periférico de media tácticos relativo a países como o
Brasil e a Índia em que a comunicação no sentido de diálogo entre muitos e da integração de
comunidades em torno de objectivos comuns ocupe o lugar da transmissão unidireccional de
informação, constituindo “uma rede à margem dos media tácticos, mas que talvez não seja
classificável como tal. Mais uma reinvenção dos media. Pessoas que se esforçam em criar novos usos
para a tecnologia” (Fonseca, 2003c).
Esta última frase assemelha-se à ideia expressa pelo escritor de ficção científica William Gibson
quando escreveu que “a rua encontra sempre novos usos para as coisas”, isto é, a tecnologia.
Referindo-se às suas divergências com o modelo euro-americano de media tácticos como contra-
propaganda, Felipe Fonseca deixa algumas pistas para o futuro deste tipo de práticas mediáticas no
contexto de países periféricos como o Brasil:
Se vamos pensar num medium (ou vários media) que tenham o objetivo explícito de beneficiar milhões de pessoas que hoje estão ausentes do debate sócio-político-científico-cultural, não podemos criar simulacros dos media de massas. Claro que estes são úteis, mas com o objetivo único de desmascarar a credibilidade das mega-corporações de comunicação. Mas isso é combater o passado e o presente. Se vamos pensar no futuro, creio que devemos infundir desde o início as possibilidades que surgem com as novas tecnologias: a colaboração, o relacionamento de pessoas com pessoas (e não de mensagens para pessoas), a construção de conhecimento colectivo e adequado a cada realidade (...) Digo, não fazer contra-media, mas romper as nossas hesitações em relação ao uso de tecnologia (tinta na caverna, lápis e papel, Jabber466 e Drupal) para juntar as pessoas com ideias, perspectivas e objetivos em comum. Pensar em estratégia e táctica autoconstruindo-se, simultaneamente (Fonseca, 2003b).
Nesta dissertação, foi nossa intenção realçar a distinção entre um modelo periférico e um modelo
activista de protesto e denúncia dos media tácticos, associado aos colectivos da Europa Ocidental e da
América do Norte, em particular, através das análises empíricas que efectuámos quer ao
466 Software open-source de Instant Messaging. Disponível em http://www.jabber.org.
254
Metáfora/MetaReciclagem, quer ao CMI-Portugal. Na medida em que o Indymedia português vê-se
obrigado a recorrer à censura e à centralização das tarefas de edição para aplicar a sua política
editorial467, acaba por correr o risco de cometer os mesmos erros que denuncia nos órgãos de
comunicação social dominantes, como a falta de transparência e a propaganda ideológica. Em
contraste, tanto o Metáfora como o MetaReciclagem basearam-se num ambiente online aberto e
colaborativo (wikis e listas de discussão não-moderadas), tendo adoptado uma estrutura
descentralizada de núcleos autónomos, uma “caordem” situada entre o caos e a ordem que, apesar de
implicar uma actuação a curto prazo e efémera, elimina qualquer nível de intermediação entre o
medium ou a tecnologia e o indivíduo que possa constituir um obstáculo à auto-produção mediática.
“Reservas feitas, os nomes conhecidos por aí de media tácticos fazem uma espécie de contra-media.
Muitas vezes usam as mesmas ferramentas dos media de massa (manipulação, exagero, falso
testemunho, sensacionalismo) no sentido contrário”, criticou Felipe Fonseca (2003c), para quem a
maior parte das iniciativas do projecto Metáfora “não foi exactamente activista” no sentido do modelo
tradicional de media tácticos468. Dois anos depois do fim do Metáfora, Fonseca esclareceu a sua
posição a este respeito na entrevista que realizámos:
O nosso trabalho nunca foi tão concentrado na questão mediática em si. Sempre houve um grande interesse pelas acções de media tácticos, mas creio que não constituímos um agente coerente que se limitou a esse contexto. A MetaReciclagem chegou inclusive a questões muito mais profundas do que somente a comunicação: propondo a desconstrução das tecnologias e o estudo das gestualidades a que essa desconstrução conduz, pudemos propôr outro tipo de questões a respeito do papel que as tecnologias podem desempenhar na transformação pessoal (Fonseca, 2003b)
No entanto, esta desconstrução da tecnologia parece estar no cerne de toda a actividade dos media
tácticos, de acordo com alguns autores como Alexander Galloway (2004: 206) para quem o objectivo
deste tipo de práticas é moldar a tecnologia de forma a que dê resposta às verdadeiras necessidades e
desejos dos utilizadores ou com Graham Meikle (2002: 119), segundo o qual se tratam de utilizações
subversivas e/ou criativas das tecnologias de comunicação por indivíduos normalmente excluídos do
acesso a elas. Numa entrevista realizada por ocasião de uma visita ao Brasil, Geert Lovink chega
mesmo a referir o MetaReciclagem como um exemplo de um modelo alternativo de media tácticos
que vai para além das meras tácticas antagonistas e de protesto para interferir no quotidiano das
467 Neste sentido, as conclusões do estudo de caso que efectuámos ao CMI-Portugal vão de encontro a algumas das previsões que Graham Meikle (2003) a efectuou respeito da Indymedia a propósito das alterações introduzidas a nível global em 2002 pela rede informativa no sentido da moderação e do relegar para um local menos destacado nos sites do sistema de publicação aberta. Na sua opinião, estes sinais poderiam apontar para uma edição mais apertada e centralizada, de forma semelhante à que ocorre aos órgãos de comunicação social comerciais e alternativos. Gal Beckerman (2003) descreve também o modo como a moderação foi implementada no site do CMI de Nova Iorque (nyc.indymedia.org). A autora considera que apesar de se ter tratado do abandono de parte do ideal democratico do projecto, as alterações implementadas foram inevitáveis de forma a salvar o projecto.
468 Ver cópia de arquivo de entrada do blog de Fonseca datada de 25 de Setembo de 2003 que contém o conteúdo de uma mensagem trocada com Mónica Narula do Sarai : http://web.archive.org/web/20040627074405/http://hipocampo.hipercortex.com/pivot/entry.php?id=38
255
pessoas:
Raquel Rennó: (...) Você disse, em entrevista à revista Artnodes que “existe uma distância entre assuntos abstractos como a dívida do Terceiro Mundo, os acordos mundiais de comércio, as políticas financeiras e a miséria quotidiana, com a sua luta local, concreta. Não creio que o activismo na internet, ou aliás, os media tácticos, sejam capazes de superar essa distância. O que podemos fazer é um intercâmbio de conceitos”. As acções de grupos como o Irational, de Daniel Andújar, da Espanha, ou o Metareciclagem, do Brasil, não serviriam como exemplos de procedimentos concretos que pretendem ir além da simples denúncia, criando uma possibilidade de interferência local através da educação digital (ensinar as pessoas a construir hardware e a usar software de fonte aberta) de indivíduos economicamente excluídos?
Geert Lovink: Sim, a maior parte dos grupos de media tácticos facilita o acesso a fim de fomentar novos diálogos. Não há nada contra isso. No entanto, o que me interessa mais é o que acontece a seguir, depois do acesso e do intercâmbio. Na minha opinião, as iniciativas interessantes de media tácticos não apenas facilitam, mas questionam e desconstroem, especialmente a mitologia das suas próprias tecnologias.
O Irational e o Metareciclagem não são telecentros comuns que fornecem formação para o uso de software hegemónico. Tratam-se de projetos profundamente metafóricos, críticos, conceptuais. São protótipos. Realizam experiências sociais numa era de demo design. Constróem memes (Lovink, 2005).
Na medida em que propõe uma reapropriação activa das tecnologias de informação e comunicação, o
MetaReciclagem pode ser entendido como uma forma de bricolage, artesanato tecnológico, que opõe
o conhecimento fechado do engenheiro e técnico especializado a uma abordagem aberta assente na
autonomia do indíviduo em relação ao hardware, que passa pela liberdade para abrir os
computadores, entender o seu funcionamento, juntar novas peças e assim “criar novas classes de
máquinas pensantes”. O computador deixa de ser um instrumento de domínio, uma caixa preta
impenetrável a que o utilizador se deve submeter de modo a adquirir as capacidades valorizadas no
mercado de trabalho, passando a ser “um brinquedo onde as peças se encaixam, surgindo de repente
um conjunto de novas possibilidades”469.
Neste sentido, estamos perante uma reinvenção da táctica da sucata, essa “arte do desvio” que Michel
de Certeau refere como uma das práticas, juntamente com o acto de ler, cozinhar ou deambular pela
cidade, que “introduzem jeitos de artistas e competições de cúmplices no sistema da reprodução e da
compartimentalização pelo trabalho e pelo lazer” (Certeau, 1990 [1980]: 50). Para o teórico francês,
o trabalhador que recupera material descartado para proveito próprio e utiliza as máquinas por conta
própria deitado fora pela fábrica onde trabalha, subtraindo à fábrica tempo com vista a um trabalho
livre, criativo r não lucrativo, realiza “golpes” no terreno da ordem estabelecida. Desta forma, o
MetaReciclagem, ao negar a obsolescência forçada da tecnologia pelo mercado, surge também como
469 Ver entrada “Hardware Aberto” do Livro Verde na wiki do MetaReciclagem em http://www.metareciclagem.org/wiki/index.php/LivroVerdeHardwareAberto.
256
uma forma de se insinuar junto do sistema tecnológico como “um estilo de trocas sociais, (...) de
invenções técnicas e (...) de resistência moral, isto é, uma economia do «dom» (de generosidades
como desforra), uma estética de «golpes» (de operações de artistas) e uma ética da tenacidade (mil
maneiras de negar à ordem estabelecida o estatuto de lei, de sentido ou fatalidade” (idem: 45-46).
257
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