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, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 107 107 107 107 107 UMBANDA X QUIMBANDA: O ETERNO DILEMA ENTRE A ‘ESQUERDA’ E A ‘DIREITA’ questão referente ao Bem e ao Mal e aos seus limites se coloca, conforme toda religião, de alguma forma, moralizada, como ele- mento central na umbanda. Esta não é, contudo, uma questão teologicamente equacionada, como no universo simbólico cristão, que é plenamente definida. No universo cristão, o mal está configurado na figura do diabo, personagem mítico essencial, pois sem ele a bondade divina seria sem sentido. Bem e Mal, Deus e diabo, anjos e demônios existem, opõem-se drasticamente e não comportam gradações entre si. Na umbanda, inicialmente, não é bem assim. Se o bem é inquestionável e identificado a Deus, os espíritos vistos aparente- mente como “maléficos” não são necessariamente maus, eles po- dem ser batizados, dogmatizados, doutrinados e evoluir nesta direção. SULIVAN CHARLES BARROS Resumo: este artigo parte da premissa de que o simbolismo ‘diabólico’ e transgressor dos exus e das pombas-giras – entidades espirituais que pertencem ao universo da quimbanda – constitui o cerne principal que dá sustenta- ção e legitimidade aos rituais de quimbanda que fazem uso de deter- minados símbolos de inversão e transgressão e acabam por se contrapor e subverter àqueles claramente associados ao universo cristão. Palavras-chave: violência, transgressão, quimbanda A A SIMBÓLICA DA VIOLÊNCIA E DA TRANSGRESSÃO NO UNIVERSO DA QUIMBANDA

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UMBANDA X QUIMBANDA: O ETERNO DILEMA ENTREA ‘ESQUERDA’ E A ‘DIREITA’

questão referente ao Bem e ao Mal e aos seus limites se coloca,conforme toda religião, de alguma forma, moralizada, como ele-mento central na umbanda. Esta não é, contudo, uma questãoteologicamente equacionada, como no universo simbólico cristão,que é plenamente definida.No universo cristão, o mal está configurado na figura do diabo,personagem mítico essencial, pois sem ele a bondade divina seriasem sentido. Bem e Mal, Deus e diabo, anjos e demônios existem,opõem-se drasticamente e não comportam gradações entre si.Na umbanda, inicialmente, não é bem assim. Se o bem éinquestionável e identificado a Deus, os espíritos vistos aparente-mente como “maléficos” não são necessariamente maus, eles po-dem ser batizados, dogmatizados, doutrinados e evoluir nesta direção.

SULIVAN CHARLES BARROS

Resumo: este artigo parte da premissa de que o simbolismo ‘diabólico’ e transgressordos exus e das pombas-giras – entidades espirituais que pertencem aouniverso da quimbanda – constitui o cerne principal que dá sustenta-ção e legitimidade aos rituais de quimbanda que fazem uso de deter-minados símbolos de inversão e transgressão e acabam por se contrapore subverter àqueles claramente associados ao universo cristão.

Palavras-chave: violência, transgressão, quimbanda

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A SIMBÓLICA DA VIOLÊNCIA

E DA TRANSGRESSÃO NO UNIVERSO

DA QUIMBANDA

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Utilizando-se neste momento de literatura religiosa, pode-se perceberque Kardec (1999), ao empreender seu trabalho de racionalizaçãodo mundo dos espíritos, equacionou as diferenças do universo sa-grado baseado na classificação dos espíritos em relação ao seu graude adiantamento, nas qualidades que adquiriram e nas imperfei-ções de que ainda devam se livrar. Os espíritos admitem geral-mente três categorias principais ou três grandes divisões:

• Espíritos puros: anjos, arcanjos e serafins: são espíritos que passa-ram por todos os graus da escala e se libertaram de todas as impu-rezas da matéria. Possuem superioridade intelectual e moral absolutaem relação aos espíritos das outras ordens.

• Espíritos de segunda ordem ou bons espíritos: são espíritos que têmainda que passar por certas provas. Há a predominância do espíritosobre a matéria; desejo do bem. Suas qualidades e poder para fazer obem estão em conformidade com o grau que alcançaram.

• Espíritos imperfeitos: são espíritos caracterizados pela arrogância,orgulho e egoísmo. Há a predominância da matéria sobre o espíri-to e, geralmente, são propensos ao mal (KARDEC, 1999).

O pensamento umbandista, de caráter acentuadamente dualista, estabe-leceu um corte no segundo plano, simplificando esta hierarquiamística: missionários do bem e missionários do mal. A essa divisãodicotômica entre bem e mal, reino das luzes e reino das trevas,direita e esquerda corresponde, no cosmos religioso, uma nova se-paração: umbanda, prática do bem; quimbanda, prática do mal.

A umbanda se opõe desta forma à quimbanda, que opera (em princípio)exclusivamente com espíritos imperfeitos que se situam nos con-fins da escala espiritual. Entretanto, o mal é um dado da realida-de, ele representa uma dimensão importante da vida cotidiana; opensamento umbandista deve, portanto, levá-lo em consideração.O problema que se coloca é o de como interpretá-lo no quadroreligioso. Segundo Ortiz (1984; 1999), a oposição entre reino dasluzes e reino das trevas vai encontrar, assim, uma solução interes-sante no seio da linguagem sagrada.

Em relação ao domínio da direita (quase) não há polêmica: agrupa os orixás,guias de luz ou mentores espirituais inquestionavelmente bons, apesarde diferenciados em termos de graus quanto à evolução espiritual.Neste domínio convivem caboclos, pretos-velhos, crianças.

Entidades espirituais como os boiadeiros, marinheiros, ciganos, baianose malandros podem ser identificadas também como de direita,

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embora suas características sejam de seres pouco moralizados, im-pedindo-os de uma convivência mais estreita com caboclos, pre-tos-velhos e crianças. Em geral, dizem que estes personagens fazemparte de uma linha mista ou intermediária.

Não se duvida de que estes possam praticar o bem, mas acredita-se queboiadeiros, marinheiros, ciganos, baianos e malandros devam serdoutrinados e controlados, evitando que bebam, falem palavrõesetc., ao menos em excesso.

Os exus e as pombas-giras, independentemente de onde possam traba-lhar, são sempre entidades de esquerda. Jamais poderiam ser dedireita, embora lá possam estar; no máximo, na linha mista, inter-mediária, na meia-esquerda, pois indubitavelmente fazem ou po-dem fazer o mal (NEGRÃO, 1996).

Dessa forma, a quimbanda passa a ser definida, pelos umbandistas, comoa linha ritual da umbanda que pratica a magia negra. Ela só traba-lha com exus e pombas-giras, que são representações do mundo dasombra, entidades telúricas cuja disponibilidade para o mal su-planta as intenções de auxílio fraterno. Mediante encomendas, estasentidades realizam feitiços ou contra-feitiços, visando favorecer ouprejudicar determinadas pessoas.

A zona da quimbanda aparece como fonte potencial de distúrbios; osexus, agindo no mundo, ameaçam a ordem umbandista. Os pró-prios adjetivos que qualificam o substantivo exu evocam a dimen-são sinistra da magia negra: corcunda, capa, caveira, “tranca rua,come fogo, meia noite, encruza, cemitério. Uma primeira aproxi-mação dos exus ao universo do estranho, do oculto, do maléficorealiza-se, assim, no nível do semântico (ORTIZ, 1999).

A quimbanda passa a ser apresentada como a dimensão oposta da umbanda.Ela é sua imagem invertida, “tudo que se passa no reino das luzestem seu equivalente negativo no reino das trevas” (ORTIZ, 1999,p. 88). Diante da realidade insofismável do mundo dos homens, omal é considerado um “mal necessário”, ele é a contrapartida dobem, fonte e justificação da miséria humana.

Esta oposição entre luz versus trevas corresponde a domínios e situaçõessociais e não simplesmente um universo moral. Os pedidos para osespíritos são singulares. Por exemplo, somente os exus e as pombas-giras podem atender as necessidades conotadas como imorais ouimpróprias: a morte de alguém, o desejo sexual, os pedidos finan-ceiros que impliquem na ruína de outros (fraude, roubo etc.). Isto

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mostra que as entidades sobrenaturais cultuadas na umbanda estãoem consonância com a ideologia da sociedade global brasileira.

Assim, para dar melhor suporte a este argumento, utilizo aqui os frag-mentos das entrevistas realizadas com dois pais-de-santo da cida-de de Codó, no Maranhão, em que eles afirmaram trabalhar, naquelaépoca, tanto na linha da direita (magia branca) quanto na linha daesquerda (magia negra). Ambos pais-de-santo explicitam a exis-tência de uma dicotomia entre umbanda e quimbanda:

Na umbanda você só procura praticar o bem, fazer o que é bom. E naquimbanda não, você só trabalha com forças diabólicas. Cada umtem um ponto de vista. Agora só tem uma coisa, o trabalho da quimbandatambém ajuda. Ele ajuda porque a gente às vezes tá com uns fluídospesados e você na umbanda, você é difícil conseguir fazer sua ‘limpeza’.Então essa atividade é justa. Faz um despacho e aquilo alivia rapidamente.A quimbanda tem isso também. Ela prejudica e tem um fim, mas elatem um ponto positivo também, ela tem (Pai-de-santo M., entrevista,Codó(MA), ago. 1999).

O lado da esquerda é o seguinte, pega pro bem e pega pro mal. Que seuma pessoa procura lhe atrair, pelo um progresso de sua vida, de seustrabalhos, de seus negócios. Aí a gente tem que pegar um frango pretopra cortar em cima do teu nome e do nome daquela pessoa pra cortara intimidade dela pro teu lado. Deixar a tua vida viver em paz. E oque nós queremos é paz, sossego e tranqüilidade pelo estabelecimentoda nossa vida, dos nossos trabalhos e dos nossos negócios. E é isso quepedimos pra Deus. Mas Deus deixou que essa pessoa que procura atrair,e esse não é da parte de Deus, esse é da parte do diabo. Então nós temosque entrar com a magia negra. Que é pra mode que nós podemosvencer. Porque ele pode ser cruel, porque tem gente de muita natureza.Tem uma d’uma natureza boa e tem outra da natureza miserável queprocura só mesmo nos atrair. Então nós temos que fazer um corte pracortar ele da nossa frente. É justamente isso, pois é (Pai-de-santo J.R., entrevista, Codó(MA), ago. 1999).

Segundo a fala desses dois interlocutores, a separação entre umbanda/magia branca e quimbanda/magia negra apresenta dimensões ba-seadas geralmente na distinção entre práticas do bem e práticas domal, da parte de Deus e da parte do diabo. Contudo, essas duas

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dimensões fazem parte de um mesmo fenômeno e estão intima-mente interligadas. Se a umbanda é sempre vista como benéfica,na ótica de seus praticantes, a quimbanda é, na maioria das vezes,condenada porque se acredita nos seus poderes maléficos.

Dependendo das circunstâncias, a magia negra, mesmo relacionada a for-ças diabólicas, que na visão de outra mãe-de-santo, “é aquela quedeixa Deus prum canto” (Mãe-de-santo R. F., entrevista, Codó (MA),ago. 1999), em determinadas ocasiões, pode ser vista como justa,positiva, “pega pro mal”, mas também é aquela que “pega pro bem”.

Dependendo da situação, o uso da magia negra, para esses interlocutorestorna-se necessário e o único meio eficaz para o restabelecimentoda vida do indivíduo que necessita de seus préstimos.A grande maioria de pais e mães-de-santo entrevistados ao longodestes quase dez anos de pesquisa alega utilizar os serviços dos exusapenas para a prática do bem. No máximo, admitem apelar a essasentidades com finalidades defensivas e contra-defensivas. “Eles fa-zem, nós desfazemos”, esta é a frase mais comum ouvida por eles.Defendendo seus clientes e seus próprios terreiros dos ataques e dainveja dos demais, os exus são tidos como seus principais guardiões.

Partindo para a análise e interpretação do cosmos religioso, é possívelnotar que às sete linhas rituais da umbanda correspondem as setelinhas rituais da quimbanda, comandadas pelos seguintes exus:Exu 7 Encruzilhadas, Exu Pomba-Gira, Exu Tiriri, Exu Gira-Mundo,Exu Tranca-Ruas, Exu Marabô, Exu Pinga Fogo.

Cada Exu, no seu plano espiritual, comanda sete chefes de legiões; poroutro lado, eles se comunicam com as linhas da umbanda, o quetorna mais complexa a rede de mensagens divinas. A existência domundo das trevas, habitado por exus e pombas-giras, é funda-mental para a existência do mundo das luzes.

Montero (1985), ao afirmar que se esses dois universos opõem-se pela suanatureza, demonstra também que eles permanecem intimamenteligados, uma vez que um existe em função do outro: o Bem só o é àmedida que tem como meta combater o Mal; este, por sua vez, sóganha sentido sendo a inversão de uma ordem definida como Bem.

As representações coletivas embutidas na construção das personagens dosexus e pombas-giras explicitam o compromisso dessas entidadescom a área urbana marginal. Dizem respeito à imagem social deinsubmissos, criminosos e vagabundos que em vida foram seresanônimos e ao morrerem tornaram-se deuses.

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Freqüentemente os exus são associados ao estereótipo do malandro (em-bora se tenha também uma categoria mítica própria para estes),tipo social que se caracteriza pela astúcia com que utiliza, em pro-veito próprio, de artimanhas mais ou menos ilícitas. Representamo avesso da civilização, das regras, da moral e dos bons costumes.Sua versão feminina, a pomba-gira, representa o estereótipo daprostituta ou de mulheres de conduta moral condenável e sua se-xualidade se manifesta, sobretudo, no nível da linguagem.

Em oposição aos chamados espíritos de luz ou de direita, os exus e aspombas-giras constituem a esquerda. Isso significa que, ao contrá-rio daqueles, exus e pombas-giras são vistos como perigosos e mausou ao menos potencialmente capazes de atuar maleficamente.

Constituem a categoria mítica mais controversa para os umbandistas ea mais instigante para os pesquisadores. Exus e pombas-giras sãoentidades mais próximas das fraquezas humanas e as aceitam semconstrangimentos. Estes são considerados a escória da sociedadeastral.

De acordo com a divisão do trabalho espiritual1, quando há um pedidoequívoco do ponto de vista moral a ser feito, exus e pombas-girassão os guias apropriados. Um agrado os satisfaz e amortece suasconsciências em processo de formação. São problemas concretosdo cotidiano que são tratados por eles. Sem terem sido doutrina-dos, isto é, carentes de consciência moral, os exus realizam o quelhes pedirem, em troca de bebidas e comidas.

Nos terreiros em que existem as práticas de quimbanda se usam os exuspara práticas maléficas contra desafetos, desde aquelas conside-radas mais brandas, como terem os caminhos fechados na suavida pessoal e profissional ou prejuízos materiais, até aquelas con-sideradas mais graves, como acidentes, doenças e até mesmo amorte.

Analisando os tipos de demandas que os homens endereçam aos espíri-tos, observa-se que a morte forma uma categoria à parte, podendosomente ser considerada pelos exus. Jamais um fiel ousaria pedir amorte de alguém a uma entidade de luz; ele se arriscaria certa-mente a ela se indispor e a ser punido. Ora, um exu, mediantecertas oferendas e donativos, pode realizar tais desejos.

Questões de amor, sexo e de amarração constituem-se, contudo, no cam-po específico de atuação das pomba-giras. Se Exu é em parte dia-bólico e animalesco, a pomba-gira, vista pelos umbandistas como

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a mulher de exu ou exu fêmea, é a estereotipia da “meretriz, mu-lher da zona, mulher do mundo, dona de mil nomes e de milamantes” (Mãe-de-santo M. J., entrevista, Brasília(DF), set. 2000).

Por ter tido uma vida passada que espelha certamente uma das maisdifíceis condições humanas, a prostituição é a condição que dis-pensa à pomba-gira um total conhecimento e domínio de umadas áreas mais complicadas da vida das pessoas comuns, que é avida sexual e o relacionamento humano fora dos padrões sociais decomportamento aceitos e recomendados.

A um pedido sempre corresponde algum tipo de oferenda. Veja-se, atítulo de ilustração, um caso contado por uma interlocutora, deum trabalho feito por uma pomba-gira, em que um homem desejadespertar o interesse sexual de uma conhecida:

Fui no quintal, fiz o ponto da pomba-gira, chamei ela, que ela vemno redemoinho, meu filho. Eu amostro a qualquer pessoa. Eu fiz oserviço. Comprei o material do jeito que ela mandou: meio metro depano vermelho, meio metro de pano preto, sete caixas de fósforos, setevelas vermelhas, sete velas pretas, sete velas brancas. Uma garrafa decachaça pra banhar ele. Foi só isso que ela mandou eu fazer e chamarela na hora (Dona M. J., entrevista, Codó(MA), ago. 1999).

Descobrir qual é a oferenda certa para agradar a exus e pombas-giras eassim conseguir os favores almejados representa sempre um gran-de desafio para pais e mães-de-santo que presidem os cultos. Oprestígio de muitos deles vem da fama que alcançam por ser con-siderados por seus seguidores e clientes bons conhecedores dasfórmulas corretas para esse agrado.

Segundo Negrão (1996), a quase universalidade da presença dessas enti-dades deve-se a uma razão bastante simples: são eles os agentespreferenciais para desfazerem os males provocados por eles própri-os, mediante um pagamento mais compensador. Desfazer o traba-lho realizado significa reverter sobre quem os pediu os malefíciospretendidos.

Apesar de ser essa reação considerada moralmente justificável, os guiasde direita têm seus escrúpulos. Apela-se então aos exus e às pom-bas-giras doutrinados ou batizados para os serviços de contra-ma-gia da esquerda.

Apenas os exus devem defrontar-se com os próprios exus, sobretudo quando

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estes, ao agirem maleficamente, revelam ausência de elevação espi-ritual, sendo incompatíveis, portanto, com os guias de luz. Poroutro lado, exus e pombas-giras entram em locais que, pela suasantidade, são vedados às outras entidades: cemitérios e encruzi-lhadas. E há a necessidade de adentrá-los, pois é somente ali quese pode desfazer o mal, no mesmo local engendrado.

Na interação entre orixás, caboclos e exus, um ponto que reflete as dife-renças entre o culto a cada um está na relação praticante e entida-de. Enquanto se zelam pelos orixás, caboclos, pretos-velhos e demaisentidades espirituais, cuidam-se dos exus e das pombas-giras.

Estes comportamentos não podem ser entendidos apenas em uma pers-pectiva semântica, mas por meio da prática cotidiana de propriaçãoreligiosa. Segundo Caroso e Rodrigues (2001), para com as pri-meiras entidades citadas, pode-se manter um relacionamento di-reto e pessoal, isto é, cotidiano e amigável. O zelar, neste caso,corresponde a uma expectativa de reciprocidade positiva, paulati-namente, a uma espécie de devoção.

Por outro lado, a interação entre a pessoa que cuida de um exu e a enti-dade cuidada é mediada muitas vezes de modo tenso por umaespécie de contrato. Por pertencerem ao escalão mais baixo do de-senvolvimento espiritual e, sobretudo, porque as vias de ascensãosocial estão para eles de antemão bloqueadas, os exus podem per-mitir-se trilhar atalhos que levem ao êxito com maior eficácia queaqueles pautados na lógica da caridade, do conformismo e da hu-mildade. O cuidado para com exus e pomba-giras talvez possa sermelhor entendido muito mais como proteção ou precaução pessoal,espiritual e social que como devoção religiosa.

O caráter ambíguo de trickster e de demônio atribuídos a essas entidadesé assim expresso por esta mãe-de-santo:

Eles são bem brincalhão. É por isso que a gente gosta. Mas eu acho queeles são um pouco zangado, né?. Porque se não fizer direito, eles sezangam e as coisas ficam mais pesadas. [...] Eu considero eles todos,porque eu preciso deles também. Pra mim eu considero eles também.Tá certo que eles são da parte do outro [diabo]. Mas eu também nãoposso dizer que eles não são da parte de Deus. Nós tamos sabendo queeles são outro povo, né? Mas tudo também é deixado por Deus, porquese Deus não querendo, nada acontece. Não é não? (Mãe-de-santoM.S., entrevista, Codó (MA), ago. 1999).

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Com o fragmento do discurso acima, é possível perceber sentimentoscontraditórios dos adeptos para com essas entidades. As pessoasligadas aos cultos afro-brasileiros expressam admiração e respeito,aliados a um certo temor a tudo que se encontra relacionado aosexus e às pombas-giras.

Essas entidades invariavelmente aparecem associadas ao diabo, na acepçãocristã, do qual são destacados seus aspectos negativos como divin-dades promotoras e veiculadoras do mal, daí advinda a capacidadede proporcionar ganhos para alguns às custas de perdas muito al-tas para outros, por meio dos trabalhos de magia.

Se exus e pombas-giras têm o poder de interferir na vida das pessoas, tantopositiva quanto negativamente, não resta escolha àqueles que elesescolhem senão buscar obter efeitos favoráveis dessa interferência.Segundo Caroso e Rodrigues (2001, p. 354), “esta tentativa é ex-pressa no cuidado ritual para com estas entidades que significa, paraos adeptos, encontrar a justa medida entre as exigências dela e ascompensações materiais e simbólicas resultantes”.

No mundo do santo, geralmente as pessoas têm medo dos exus ou pelomenos dizem que têm. Mesmo representando entidades de baixonível hierárquico de religiões de baixo prestígio social, sua presen-ça no imaginário extravasa os limites de seus seguidores para sefazer representar no pensamento das mais diversas classes sociaisdo país. Assim, estabelecem-se as relações de reciprocidade entreexus e seus adeptos, que favorecem aos segundos com resultadosproveitosos e aos primeiros com perpetuação de seu culto.

Exus e Pombas-Giras: conhecendo um pouco mais os reis e asrainhas da quimbanda

Difícil falar em exu sem comentar a controvertida face do mal que seformou no imaginário popular. Não há quem ignore a força e operigo potencial atribuídos pela umbanda aos exus. Eles repre-sentam, antes de tudo, o outro lado da civilização, o lado mar-ginal, caótico e ambíguo, aquele que deve ser eliminado,esquecido.

São cinco as características principais dos exus que aparecem nos depoi-mentos dos meus interlocutores, nos pontos de saudação a essasentidades e em suas próprias falas por intermédio de seus cavalos:para muitos, eles são vistos como perigosos e maus, são os repre-

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sentantes em potencial da esquerda. A controvérsia principal é:eles são ou não são demônios?

Os exus, a gente tem que tomar o maior cuidado com eles. Eles são bemperigosos, podem até matar alguém porque eles são da ‘esquerda’. Todoo cuidado com eles é pouco, tá entendendo? (R. N., entrevista,Brasília(DF), ago.2003).Eu tenho por mim, que eles foram espíritos muito maus, entende? Eeles vem pra se vingar. Os crentes dizem que eles são os demônios, massobre isto eu não posso dizer nada. Mas é muito bom a gente tomarcuidado com eles, né? Damos a comidinha, a bebidinha deles e aí nãocarece de ter problema não (A., entrevista, Brasília(DF), ago. 2003).

Alguns de seus pontos cantados demonstram a proximidade dos exuscom a figura do diabo:

Meu Santo Antonio pequeninoamansador de touro bravoQuem mexer com exuTá mexendo com o diabo.

Satanás, SatanásLúcifer é SatanásSatanás, SatanásÉ um exu, é Satanás,Lúcifer é Satanás.

Em entrevista, uma entidade que se apresenta como da linha de exufaz a seguinte afirmação, quando manifestada no corpo de seucavalo:

Eu sou ruim, eu sou maldoso. Eu quero matar, eu quero ver os outrosno chão2.

Outros, entretanto, demonstram que os exus devem ser vistos como a“polícia de choque” da umbanda, isto é, são eles os responsáveispor “cobrar o que tem de ser cobrado”, não havendo nenhumaligação dos exus com a figura do demônio. Alguns pais e mães-de-santo falam o seguinte a esse a respeito:

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Exu não é demônio. Isso de pensar que exu é demônio. Isto tudo éignorância das pessoas. Eu não acredito nisso. Porque nós trabalhamoscom exus que ajudam as pessoas, curam, abrem os caminhos, e, se fossedemônios, eles não fariam tudo isso, né verdade? (Pai-de-santo A.,entrevista, Brasília(DF), ago.2003).

Olha, os exus são muito bons. Eles têm uma missão religiosa a cumprir.Eles são os espíritos mais próximos da gente, aqueles que sofreram muitona vida quando encarnados. Por conhecerem bastante esse lado da dor,da tristeza, das coisas ruins, eles são a nossa ‘polícia de choque’. Eles sãoos únicos que podem entrar em cemitérios, encruzilhadas e outros lugaresde energia negativa pra desfazer o mal feito por espíritos sem luz, comoé o caso dos exus pagãos e dos quiumbas, que são espíritos muito atrasados,sem nenhum tipo de luz. Estes sim, estes não têm consciência do que estãofazendo e são muito maus. Então os nossos exus, que já são batizados,evoluídos, eles já têm responsabilidade, já tem conhecimento e eles vãocobrar o que tem que ser cobrado. Porque tudo o que a gente faz aquinessa Terra, a gente tem que pagar. E eles também são da justiça porqueninguém passa na vida por aquilo que não é de seu merecimento, não éverdade? (Mãe-de-santo C., entrevista, Brasília(DF), set. 1996).

Um cavalo incorporado com o seu exu afirma o seguinte:

Eu ajudo as pessoas boas e destruo as pessoas ruins. [...] Eu faço apenaso que tem que ser feito, sem nenhum tipo de arrependimento. Eu souda justiça e se pra isso acontece de eu ter que matar, eu mato3.

Um ponto de saudação ao Exu Tranca Ruas, importante figura da umbanda,fala a respeito desse assunto:

Oh luar, oh luar, oh luar...Ele é dono da rua, oh luarQuem cometeu os seus pecadosPeça perdão a Tranca Ruas.

É interessante notar que as duas primeiras características dos exus aca-bam por definir uma terceira, isto é, os exus não devem ser vistosnem como bons nem como maus, mas, sim, como entidades espi-rituais neutras:

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Exu não é bom e nem mal. Exu possui uma característica dupla; tantopode ser ativado para abrir como para fechar os caminhos. O que aspessoas precisam saber é que exu é neutro, o responsável pelos atos équem os pratica (Pai-de-santo R. N., entrevista, Brasília(DF), ago.2003).

As pessoas é que usam os exus para praticarem o mal. Se eles pedissemo bem, com certeza os exus fariam o bem porque eles só fazem o que lhesmanda. Então o povo tem que saber disso que o culpado não são osexus, mas as pessoas que pedem as coisas ruins. A maldade maior estáno coração das pessoas (O. B., entrevista, Brasília(DF), ago. 2003).

As características listadas acima definem uma quarta característica: aambigüidade moral dos exus. Um ponto cantado fala sobre essadualidade, em que eles podem tanto fazer o bem quanto o mal,sem nenhum tipo de constrangimento:

Exu tem duas cabeças,Mas ele olha sua banda com féUma é Satanás no inferno,A outra é de Jesus de Nazaré.

Por causa dessa característica, os exus são vistos como bons mediadores,capazes de quebrar “qualquer galho”, além de serem excelentes“abridores de caminho”:

A gente sabe que exu tanto pode fazer o bem quanto o mal. Que elesconhecem muito bem os dois lados, né? Então se você precisa de umacoisa urgente, você tem que pedir é pra exu, porque exu faz tudo rápidoe também porque eles conhecem muito bem tanto o lado da ‘direita’quanto o lado da ‘esquerda’, né? Então se você tá passando por algumadificuldade, você tem que se consultar é com exu, ele é que vai poderabrir o seu caminho (M. J, entrevista, Brasília(DF), ago. 2003).

Uma quinta característica se refere à proximidade dessas entidades com omundo dos homens, justamente por serem os exus a própria re-presentação daqueles que já padeceram dos mesmos sofrimentospelos quais os homens comuns padecem. Talvez daí venha a suagrande força e popularidade:

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Eles [exus] são muito fortes, muito poderosos. Eles sofreram muito emterra. Foram humilhados, explorados como a gente, né? E por isso elessabem muito bem o que nós passamos. Eles podem ter acesso a domíniosque as ‘entidades’ de luz não poderiam entrar (M. G., entrevista,Brasília(DF), ago. 2003).

Os exus são ‘entidades’ muito fortes, de muito poder. Só um exu conseguedesmanchar um mal feito por um espírito sem luz, só eles tem esse dom.Então é muito importante o trabalho deles, porque sem eles a gentenão consegue muita coisa, né? Eles sabem muito bem o que se passa nacabeça da gente, né? Afinal eles passaram por tudo isso e não condenaa gente (O. B., entrevista, Brasília(DF), ago. 2003).

Os dois relatos anteriores demonstram que os exus estão mais próximosdo homem, são entidades mais humanas nesse sentido. Contudo,essa maior proximidade para com as fraquezas humanas é o que oscoloca numa situação de espíritos inferiores, que devem ser sub-metidos, antes de tudo, a uma doutrinação.

Na versão dos exus, prevalece a imagem do subalterno, bárbaro, demô-nio e sanguinário. Aqueles que não são confiáveis e, portanto, de-vem ser evitados.

Já com relação às pombas-giras, estas entidades são vistas pelos umbandistascomo a mulher de Exu ou Exu fêmea. Elas se referem, antes detudo, segundo os umbandistas, aos espíritos de prostitutas, corte-sãs, cafetinas, mulheres sem família e sem honra. Além de possuí-rem as mesmas características que seus parceiros, essas entidadescarregam consigo toda a ambigüidade dos exus aliada a uma ima-gem feminina fortemente sexualizada.

Augras (2000) demonstra que a umbanda deu ensejo ao surgimento dafigura da pomba-gira como a representação da livre expressão dasexualidade feminina aos olhos de uma sociedade ainda dominadapor valores patriarcais. Para a autora, a pomba-gira representa, noimaginário umbandista e popular, uma figura potencialmente pe-rigosa e também carregada de imenso poder, em função da própriacondição em que se encontra e/ou representa:

Pomba-gira, rainha da marginália, tem sua morada no corpo das mulheres,nos lugares de passagem de um ponto para outro ou deste mundo paraalém. Maria Molambo, mais especificamente, assume às claras a ligação

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com aquilo que a sociedade rejeita para a periferia. Chamada tambémde Pomba-Gira da ‘Lixeira’, recebe despachos arriados nas bordas dosdepósitos de lixo, local onde fica rondando. [...] Maria Molambo, talcomo suas irmãs Rosa Caveira, Maria Padilha, Rainhas do Cruzeiro eda Calunga, reúnem em si a escuridão, a sujeira, a desagregação, apresença da morte. Seus trabalhos são de demanda, isto é, de magiadestinada a fazer o mal (AUGRAS, 1000, p. 40, grifo da autora).

As pombas-giras são as figuras da umbanda que talvez mais se vinculamà fantasia, à criação e ao desejo coletivo. Ao ser indagada quemseria ela, como havia sido sua vida na Terra, uma pomba-gira in-corporada em seu cavalo faz a seguinte afirmação:

Você quer mesmo saber quem eu sou? Então eu lhe respondo: Eu sou omistério, o segredo, eu sou o amor, sou a esperança e o desejo. Sou de ti,sou de todos. Sou pomba-gira, sou mulher!4

Em sua maioria foram consideradas como mulheres bonitas e, sobretu-do, sedutoras. Segue a fala de outra pomba-gira incorporada emseu cavalo:

Eu era muito linda, podia com o corpo conseguir tudo e tentava. [...]M5. era muito elegante, muito, muito. M. era morena, mas não eramorena que nem caboclo, M. era cor de pêssego, tinha o cabelo nosombros. M. tinha o corpo lindo, M. sempre foi bonita para os homens6.

Seus pontos de saudação fazem referências a essas características:

Quem não gosta de Pomba-GiraTem, tem que se arrebentarEla é bonita,Ela é formosa,Ó bela vem trabalhar.

De garfo na mãoLá vem mulher bonitaBonita e muito formosaLá vem Pomba-GiraLá vem Maria Padilha7.

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Contudo, a beleza da pomba-gira é também um sinal de perigo. Deve-se, portanto, tomar cuidado:

Meu caminho é de fogoNo meio da encruzilhadaQuem quiser me demandarEu lhe cuspo e vou pisarQuanto inimigo na terraQuerendo desafiarSou Pomba-Gira formosaFormosa pra lhe quebrar.

Por serem consideradas também como “mulheres da noite”, as pombas-giras adoram“festas”:

Eu sou a Pomba-GiraE estou sempre presenteQuem confirma é minha genteEstou sempre nas festançasBrincando com alguémEu saravo minha rainhaE o meu rei também.

Por outro lado, a figura da pomba-gira, ao mesmo tempo, que afirma arealidade da sexualidade feminina como um dos seus atributos depoder, devolve-a ao império da marginalidade: “O povo diz que eusou puta, mas eu sou puta mesmo. [...] Mas qual é o homem,macho de verdade, que não gosta de uma puta?”8.

Eu era promíscua. Podia conseguir tudo com o meu corpo. Mas os homensme exploravam também. Eu também fui muito usada9.

São, sobretudo, as mulheres que se consultam com as pombas-giras, pro-curando solucionar seus males de amor. Como essas, as pombas-giras também foram mulheres que sofreram grandes desilusõesamorosas e ninguém melhor do que estas entidades para saberemtão bem o sofrimento que um amor mal-sucedido pode desenca-dear na vida de um ser humano.

Assim, uma pomba-gira incorporada discorre sobre como era a sua vidana Terra:

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M. teve nove filhos com vinte e três anos. Era um assim, assim, assim...M. foi mãe acho que com onze anos. M. nunca foi feliz com homem.Batiam em M. e eu aprendi a beber e a fumar, isto era um escape. Eununca descobri o que era o amor de verdade10.

Contudo, assim como os exus, as pombas-giras podem ser doutrinadas,moralizam-se. A mesma pomba-gira, incorporada na médium,continua a sua fala:

[...] Hoje eu vejo que o meu problema é o amor. E eu queria investirmuito nos homens e às vezes eu vejo uma coisa que não é, como eusempre vi, entendeu? Eu pensava assim: se você tá bem hoje, você vaificar o amanhã e depois... E não é assim. Eu continuo pensando que oamor é o amor. Mas só que os espíritos mais evoluídos falam que euconfundo o amor com sexo. Eu gosto muito de sexo. Então eu penso queo sexo é amor e eles falam que eu tenho que conseguir definir essascoisas para eu me iluminar e eu ainda não consegui, porque eu pensoque amor é transar e não é. Mas não aquele sexo promíscuo e simaquele com prazer, aquele que você geme, que você chora. Mas eu choravacom todos...11

Em outra ocasião, esta mesma entidade, posta no corpo de seu cavalo,discute a sua posição subalterna e desabafa:

M. hoje está tão triste, porque você pensa que lá [no outro mundo], láé pior do que aqui neste mundo. M. veio pra aproveitar a tristeza prafazer essa entrevista. E outra coisa: tive que ter permissão! E M. falamuito e eles não gostam de M. por isso, e agora desliga... [...] Lá émuito ruim, lá exige. É tudo vigiando pra obter luz as custas do seusofrimento. Eu sei que falando isso com você, eles vão me aprisionar.Me aprisiona! Mas que eu vou falar, eu vou. E M. tá pouco me lixandopra isso, pra eles, pra eles [‘entidades’ de nível superior]. Mas M. têmque agradecer. Mas lá é ruim sim. Eu tive uma exceção daquele espiritual[Deus], mas acho que ele pensa que eu tô falando muito e eu tô. Maseu tô porque, porque eu nunca posso falar e hoje eu posso falar12.

Este relato é bastante sugestivo para se pensar que a representação dapomba-gira, ao manifestar no corpo de seu cavalo, parece atendera muitos aspectos reprimidos que, clamorosamente, pedem passa-

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gem e, nos terreiros de umbanda, seu comportamento permaneceescandaloso. Segue o mesmo relato:

Aqui pelo menos nesta casa [terreiro] eu posso beber, eu posso fumar, eusó não posso transar... Aqui eu sou feliz, eu sou linda, que todos quereme eu quero a todos!13

Com esse fragmento é possível perceber que essa personagem, ao se mani-festar no corpo da médium, posiciona-se, num primeiro momento,como a expressão do marginal que necessita desabafar, que quer serescutado, embora as conseqüências dessa ação possam lhe custarmuito caro. Mais uma vez, aqui se demonstra a metáfora da vozsubalterna que está em constante negociação para ser ouvida ...

Já num segundo momento, esta mesma entidade ao possuir o corpo deseu cavalo, demonstra, em sua fala, que é possível, mediante nego-ciação, manifestar a sua verdadeira identidade ou pelo menos oque se espera que ela realmente seja. A liberdade pode ser conquis-tada, basta querer! Mas é necessário estar atento ao preço a serpago. Contudo, na maioria das vezes, pode custar caro demais...Aqui, mais uma vez, a metáfora da prostituição pode ser utilizadacomo promessa de disponibilidade para o gozo!

Já em outra ocasião, respectivamente, numa gira de exus, uma outrapomba-gira, C. S. E., incorporada na mãe-de-santo daquele ter-reiro visitado, dona O., ao se aproximar de mim – neste momentome encontrava filmando aqueles rituais –, discorre sobre a ima-gem que as pessoas têm do seu povo, sobre a importância da dou-trinação dessas entidades e, sobretudo, a importância do trabalhoespiritual que as pombas-giras desenvolvem nos terreiros de umbanda.Segue o diálogo, gravado em fita de vídeo em 13.06.2003, nafesta de encruza, em Planaltina(DF):

C.S.E. [incorporada na mãe-de-santo]: O que está fazendo aqui, moço?S: Estou filmando a festa de vocês, para uma pesquisa.C. S. E.: Pra contar a nossa vida pros outros, né?S.: Sim.C. S. E.: E você tá gostando?S.: Estou.C. S. E.: Nossa vida é assim, moço, é na rua, é sambando, é nascalungas. E nós tamos aí pra ajudar aqueles que diz que não precisa

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de nós, mas aquele grande que manda nisso tudo aí [Deus], ele dáordem pra nós chegar a cá, entendeu? Porque sem a ordem dele, agente não faz nada. Como vocês aqui não são nada sem ele, sem aquelegrande. E nós respeita o grande. Nós não faz nada sem a ordem dele,entendeu? Tá assistindo nós, né? E Nós tamos aí. Nós somos assim,como diz assim: Dizem que nós tem chifre, que nós tem rabo. Se nãofosse nós pra ‘trabalhar’, os filhos dessa terra tava tudo no buraco, semsaída. E nós não, nós abre as estradas pros filhos caminhar. Pode tercerteza que a sua estrada nós estamos seguindo. Eu sou a C. S. E., commuito prazer. Estou aqui pra ‘trabalhar’ pra que você quiser. Boa Noite!S: Boa Noite!

Como mulheres bonitas, atrevidas e impetuosas, as pombas-giras carre-gam consigo toda a idéia de ambigüidade. Elas parecem represen-tar, no contexto umbandista, uma imagem invertida da concepçãoque situa o espaço doméstico como o espaço feminino por excelên-cia e onde os recursos femininos estão definidos complementar-mente aos personagens masculinos. As pombas-giras, ao contrário,são percebidas como uma ameaça a esse espaço doméstico e àsrelações aí legitimadas.

Sendo a imagem modelar da liberdade, da não padronização dos costu-mes, posturas, atitudes e da livre realização do desejo, a pomba-gira coloca-se como a mascarada, a anti-esposa, a negação da mãede família, na medida em que sua imagem é definida na forma nãocomplementar aos homens.

A sua sexualidade, por exemplo, não está a serviço da reprodução. Elausa a sua sexualidade em benefício próprio. Os poderes e perigosde sua imagem estão certamente associados a essa liminaridade.Em outras palavras, a imagem da pomba-gira seria a contraface deuma outra: aquela da mulher associada à casa, à família, às esferasmais controladas socialmente.

CONCLUSÃO

Para se compreender a quimbanda é preciso entender de que maneira elaopera com as representações simbólicas da violência e da trans-gressão que estão contidas em seu universo. Se, de um lado, aumbanda busca se posicionar como uma forma de suavidade, com-portada, filtrada da cultura brasileira, a quimbanda, por outro lado,

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afirma-se como uma contracultura reprimida, que em seus rituaisbusca exprimir sempre o desejo total de libertação.

Os representantes da quimbanda são os exus e as pombas-giras, referidoshabitualmente, nos terreiros afro-brasileiros, como o povo da rua.Esses personagens representam facilmente a massa anônima quecircula pelas cidades, os trabalhadores, os vagabundos, os malan-dros, os gigolôs, as prostitutas etc. enfim, as pessoas comuns queocupam o espaço público nas suas idas e vindas. Eles são, sobretu-do, as marcas da marginalidade, do anonimato e das relações im-pessoais que permeiam o cotidiano urbano.

A rua apresenta igualmente um valor de metáfora: significa o que se põe àmargem dos valores familiares, mas do quais também dependem paraque possam subsistir com firmeza e vitalidade (a sexualidade, por exem-plo). São acusados, sobretudo, de ser espíritos violentos e transgressores,visto que expressam as vontades e os anseios de seus clientes, tornan-do possíveis os desejos mais ilícitos mediante oferendas rituais.

Talvez venha daí, segundo os adeptos dos cultos afro-brasileiros, a fontemaior dos poderes dessas entidades. Esta condição implica em perigoe poder, conforme assinala Douglas (1976, p. 20): “ter estado nasmargens é ter estado em contato com o perigo e ter ido à fonte depoder”. As margens são, assim, perpetuamente o santuário dosconflitos sociais e também o lugar do trânsito. É evidente queessas duas lógicas se cruzam, interpenetram-se, chocam-se.

É esse sugestivo poder simbólico das margens que é tão plenamente exer-citado pelos que participam dos rituais de quimbanda. Exus epombas-giras convidam ao público à diluição das regras, da or-dem e à entrega total aos desejos emocionais e à sexualidade de-senfreada numa forma simbólica.

Notas

1 Baseando-se em Durkheim (1996), na sua obra Da divisão do trabalho social, vemosque a “divisão do trabalho espiritual” existente no imaginário umbandista apre-senta características em comum com aquela estudada por Durkheim em nossasociedade. A “divisão do trabalho espiritual” na umbanda é vista também comofonte de coesão entre espíritos de diferentes categorias, dando origem a um certotipo de solidariedade que produz, ao mesmo tempo, uma moral, onde cada divin-dade, ao desempenhar um determinado papel, marca o seu lugar dentro da hierar-quia espiritual.

2 Exu N., “incorporado”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M. R. femi-nino.

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3 Exu P. P, “incorporado”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium R., mascu-lino).

4 Pomba-Gira da P., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), ago. 2003, Médium L.,feminino).

5 Embora pareça estar falando de uma terceira “pessoa”, a pomba-gira M., “incor-porada” em seu “cavalo”, faz menções a acontecimentos que teriam sido de suasuposta vida terrena.

6 Pomba-gira M., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M.R., feminino).

7 Para uma versão individualizada do mito de Maria Padilha e sua configuraçãocomo pomba-gira da umbanda, consultar: Meyer (1993).

8 Pomba-gira C., “incorporada”, entrevista, Brasília/DF, set. 2003, Médium O.,feminino.

9 Pomba-gira M., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M.R., feminino.

1 0 Pomba-Gira M., “incorporada”, em entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, MédiumM. R., feminino.

1 1 Pomba-Gira M., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M.R., feminino.

1 2 Pomba-Gira M., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M.R., feminino.

1 3 Pomba-Gira M., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M.R., feminino.

Referências

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NEGRÃO, L. N. A construção sincrética de uma identidade. Ciências hoje, SãoPaulo, 1991.

Abstract: the article part of the premise of that all known symbolic ‘devilish’and the transgressor of exus and the dove-turns – entities spiritualsthat belong to the universe of quimbanda – constitute main essencethat it gives to sustenance and legitimacy to the rituals of quimbandathat they make use of definitive symbols of inversion and transgressionthat finish for if opposing and subverted the those that they are clearlyassociates the universe christian.

Key words: violence, transgression, quimbanda

SULIVAN CHARLES BARROS

Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Especialista em Antropologia

e Mundos Contemporâneos pela UCB-DF. Professor no Centro Universitário Unieuro

e nas Faculdades Espam.