burer

5
Uma exploração rigorosa das origens selvagens: Walter Burkert sobre mitos e ritos (por Glenn W. Most) O homem, em suas faculdades mais elevadas e mais nobres, é todo ele natureza, e traz em si a inquietante duplicidade desta. Suas capacidades terríveis, consideradas inumanas, por acaso são o único solo fértil onde pode brotar qualquer humanidade nas emoções, feitos e nas obras. Assim, os gregos, os homens mais humanos dos tempos antigos, mostram um ar de crueldade, um afã de destruição como os de um tigre (F. Nietzsche – Cinco prólogos a cinco livros não escritos, 5 – A Competição de Homero) Os mitos gregos não são inquietantes apenas para nós; já entre os próprios gregos o eram e não apenas um mito particular que narrava a emasculação ou o despedaçamento de um deus o a loucura e atrocidades de um herói, mas o mito enquanto tal, como explicação que dá sentido às condições da vida humana mediante a narração das façanhas e sofrimentos de personagens sobre-humanos ou demasiado humanos. Desde Homero, todo poeta grego tenha que enfrentar a árdua tarefa de refazer cada vez para um público novo os relatos herdados, as vezes enigmáticos – por causa de uma única mulher uma cidade inteira foi assediada por dez anos e finalmente arrasada; um rei assassinou seu pai e casou-se com sua mãe -, mas sem reproduzi-los asperamente, e tampouco sem alterá-los tão radicalmente que desdissessem a tradição e resultassem pouco plausíveis. Todo historiado que não quisesse limitar-se a sua própria época tinha que ocupar-se das embaraçosas contradições e inverossimilhança dos mitos que, para os tempos mais antigos, eram a única fonte que conheciam. Era preciso reunir, selecionar, transformar e combiná-los. Por mais assombroso que pareça, quase ninguém ousou prescindir-se deles e, mesmo quando Éforo excluiu de sua História Universal os primitivos tempos míticos, sinalizando a impossibilidade de obter conhecimento científico preciso deles, todavia, aceita como ponto de partida seguro as migrações dos filhos de Heracles. Todo filósofo, por mais convencido que estivesse da inferioridade do pensamento mítico, tinha que enfrentar os mitos herdados, fosse refutando-os minuciosamente (entre outras razões, com o fim abrir espaço para os mitos que eles mesmo inventava para o casão, fosse demonstrando cientificamente que suas próprias verdades haviam encontrado já nas lendas mais antigas, uma expressão velada, mas recuperável em sua totalidade mediante a exegese alegórica. No final das contas, nenhuma escola filosófica antiga podia prescindir da interpretação alegórica, procedimento justificado, inclusive, por Aristóteles e praticado por Lucrécio. A plausibilidade poética, a redução histórica e a exegese filosófica foram, por assim dizer, três soluções de emergência mediante as quais os gregos trataram de dominar seus mitos - imprescindíveis, ainda que insondáveis. Se a dificuldade de um desafio se mede pelos esforços

description

kol

Transcript of burer

Uma explorao rigorosa das origens selvagens:Walter Burkert sobre mitos e ritos(por Glenn W. Most)

O homem, em suas faculdades mais elevadas e mais nobres, todo ele natureza, e traz em si a inquietante duplicidade desta. Suas capacidades terrveis, consideradas inumanas, por acaso so o nico solo frtil onde pode brotar qualquer humanidade nas emoes, feitos e nas obras. Assim, os gregos, os homens mais humanos dos tempos antigos, mostram um ar de crueldade, um af de destruio como os de um tigre(F. Nietzsche Cinco prlogos a cinco livros no escritos, 5 A Competio de Homero)

Os mitos gregos no so inquietantes apenas para ns; j entre os prprios gregos o eram e no apenas um mito particular que narrava a emasculao ou o despedaamento de um deus o a loucura e atrocidades de um heri, mas o mito enquanto tal, como explicao que d sentido s condies da vida humana mediante a narrao das faanhas e sofrimentos de personagens sobre-humanos ou demasiado humanos. Desde Homero, todo poeta grego tenha que enfrentar a rdua tarefa de refazer cada vez para um pblico novo os relatos herdados, as vezes enigmticos por causa de uma nica mulher uma cidade inteira foi assediada por dez anos e finalmente arrasada; um rei assassinou seu pai e casou-se com sua me -, mas sem reproduzi-los asperamente, e tampouco sem alter-los to radicalmente que desdissessem a tradio e resultassem pouco plausveis. Todo historiado que no quisesse limitar-se a sua prpria poca tinha que ocupar-se das embaraosas contradies e inverossimilhana dos mitos que, para os tempos mais antigos, eram a nica fonte que conheciam. Era preciso reunir, selecionar, transformar e combin-los. Por mais assombroso que parea, quase ningum ousou prescindir-se deles e, mesmo quando foro excluiu de sua Histria Universal os primitivos tempos mticos, sinalizando a impossibilidade de obter conhecimento cientfico preciso deles, todavia, aceita como ponto de partida seguro as migraes dos filhos de Heracles. Todo filsofo, por mais convencido que estivesse da inferioridade do pensamento mtico, tinha que enfrentar os mitos herdados, fosse refutando-os minuciosamente (entre outras razes, com o fim abrir espao para os mitos que eles mesmo inventava para o caso, fosse demonstrando cientificamente que suas prprias verdades haviam encontrado j nas lendas mais antigas, uma expresso velada, mas recupervel em sua totalidade mediante a exegese alegrica. No final das contas, nenhuma escola filosfica antiga podia prescindir da interpretao alegrica, procedimento justificado, inclusive, por Aristteles e praticado por Lucrcio.

A plausibilidade potica, a reduo histrica e a exegese filosfica foram, por assim dizer, trs solues de emergncia mediante as quais os gregos trataram de dominar seus mitos - imprescindveis, ainda que insondveis. Se a dificuldade de um desafio se mede pelos esforos repetidos que suscitou, ento aqui o surpreendente no tanto que os mitos gregos sofreram perpetuamente ataques e reinterpretaes, mas sim que se mantiveram vigentes durante tanto tempo. Evidentemente a ancoragem na religio do Estado e a educao bsica lhes conservava certa proteo, mas por que tantas ncoras persistiram com o tempo e no foram perdendo-se? Sem dvida, justamente as trs estratgias citadas contriburam tambm para assegurar a sobrevivncia dos mitos, no s ao longo da acidentada evoluo da cultura grega, muito mais de seu acaso: como manancial inesgotvel de inspirao literria, como monumento duradouro das pocas mais antigas da histria da humanidade, como aluso misteriosa a ensinamentos fsicos e morais sublimes, os mitos conseguiram sobreviver a Idade Mdia e salvaram-se para a Idade Moderna. To exitosa foi a salvao que nem mesmo a independncia das literaturas nacionais , o desenvolvimento das novas cincias histricas e das novas filosofias na primeira modernidade conseguiram romper o feitio dos mitos gregos. No sculo XVIII sucumbiram as formas tradicionais da poesia barroca e da alegoria, mas os mitos j havia muito no necessitavam de tais procedimentos, que em princpio, deveria salv-los. Seguiam vivos e gozando de boa sade. Logo, no sculo XIX, quase todo poeta romntico podia lanar mo dos mitos clssicos, enquanto a mitologia que de a em diante presumia-se cientfica dos incipientes estudos clssicos o velho everemismo lanava tardias e extravagantes flores s teorias das lendas tribais de K. O. Mller, como nas diversas variantes da velha alegoresis filosfica em Simbolismo e Mitologia dos povos antigos de Creuzer e na Mitologia Comparada de Max Mller.

De fato, o procedimento de todas essas estratgias de interceptao consistia de desacoplar o mito de seu contexto gentico e funcional primitivo para integr-lo aos sistemas literrios, histricos e filosficos europeus. Mas, nenhuma dessas formas de interpretao admitiu isso abertamente; afirmava-se uma vez ou outra que se havia restitudo finalmente o mito ao seu sentido primitivo, perdido h muito tempo. No cenrio das novas necessidades, o mito se apresenta com a mscara do primognito, do absolutamente primitivo: seu suposto contedo, em detalhes exguos, segue sempre acompanhado de uma exuberncia pattica arcaica, que do ponto de vista retrico, contribui com a legitimao do novo sistema mais que aquele. O mito no igual fico: mesmo que sua separao equivalha a uma esterilizao, o mito leva consigo uma referncia inapagvel daquele contexto distante a partir do qual brotou e se formou: vem de l e desde l aponta o deus a chegar (Hlderlin O Po e o vinho). Justamente essa tenso entre o carter primitivo do mito e sua autonomia, entre religio e arte, entre o perdido e o salvo, produz o inquietante do mito: o mito sempre sobreviveu a si mesmo, e todo sobrevivente inquietante.

Os estudos de Walter Burkert sobre a histria da religio grega consistem o intento mais importante de entender o aspecto inquietante do mito grego que aparece no mbito da lngua alem desde a segunda guerra mundial. O ncleo desse intento reside na suposio de uma correlao funcional primitiva entre o mito narrado e os feitos rituais do culto. As variadas fbulas com que se educava as crianas na antiguidade e (ao menos at h bem pouco) s crianas de nosso tempo, eram mais que um aspecto da religiosidade grega: o mundo grego estava repleto de tempos e santurios nos quais, em intervalos regulares e conformes os costumes herdados dos antigos, se realizavam os ritos em honra s respectivas divindades. Cada comunidade possua seus prprios cultos, intimamente mesclados ao modo como as pessoas entendiam a si mesmas. A religio grega foi, em alguns aspectos essenciais, uma religio de Estado: a administrao dos cargos, das cerimnias e do calendrio das festividades figurava entre as tarefas mais evidenciadas da comunidade e fundava sua identidade poltica. Nos deveres dos cidados os atos religiosos confundiam-se com os polticos a tal ponto que a separao conceitual entre religio e poltica, to evidente para ns mesmos, no pode ser aplicada aos gregos sem algumas reservas.

Agora, certo que muitos mitos gregos nos ho chegado nas formas (de todo familiar para ns) que lhes deram os grandes poetas da antiguidade; contudo, para ter notcia sobre a maioria dos ritos dependemos dos textos mais ridos da erudio antiga relatos de viagem, tratados, comentrios de textos, enciclopdias cujas informaes fragmentrias, que em detalhes se contradizem ou do margem para mal entendidos graves, podemos complementar ou corrigir apenas em alguns casos afortunados, graas a dados arqueolgicos. A eles, preciso adicionar que, por mais estranhos que por vezes nos paream os mitos gregos, de fato seguem parecendo-se para ns (como j se pareciam para a maioria dos informantes clssicos da antiguidade tardia) muito mais compreensveis que alguns ritos gregos. Que significa, por exemplo, que em Braurn chamassem de ursas a umas garotas entre cinco e sete anos que, vestidas de cor aafro, ofereciam sacrifcios deusa rtemis? Ou que as Grandes Dionisacas, de Atenas, se levassem na solene procisso do sacrifcio no apenas a efgie do deus e um touro, mas tambm um grande nmero de falos de tamanho sobrenatural? No surpreende que manuais de mitologia precederam em muitos sculos as primeiras colees cientficas de testemunhos sobre os cultos antigos.

H exatamente um sculo, os membros da chamada Cambridge School of Anthropology W. Robertson Smith, Jane Ellen Harrison, James George Frazer acreditaram haver encontrado a soluo de tal enigma fazendo derivar os mitos de muitos ritos e explicando estes ltimos mediante a comparao dos costumes dos povos primitivos daquele perodo. Assim, para Harrison, o mito era a contrapartida falada do ato que se executava no rito: aquele no se entendia sem este. No mbito das lnguas anglo-saxs, tal concepo exerceu uma influncia duradoura sobre a imagem que se tinha da cultura grega, mas nos estudos clssicos alemes nunca chegou a arraigar-se realmente devido, em parte, a um justificado ceticismo ante os paralelismos forados e as generalizaes pouco fundadas e em parte a uma resistncia pouco econmica mera ideia de que os gregos, exemplares de tudo, podiam equiparar-se em algum aspecto relevante aos selvagens povos primitivos. Como resultado de tudo isso, na Alemanha houve uma separao durante um tempo quase insuportvel entre o estudo dos mitos e o estudo dos ritos: o estudo dos mitos se subordinava ao estudo dos poetas, j que estes haviam inventado livremente aquelas fbulas (Wilamowitz escreveu: os mitos so sagrados; os poetas relataram e os transformam), e ficava excludos dos manuais de histria da religio grega; por sua vez, os manuais se limitavam majoritariamente a oferecer uma exposio sistemtica dos resultados da investigao dos ritos. A palavra religiosa e o ato religioso, e em ltima instncia mantiveram-se separados at mesmo o poeta, que inventava a fbula, e seu povo, que executava vez ou outra, os ritos.

A obra de Burkert est dedicada a fechar essa brecha. Para ele o mito e o rito se iluminam mutuamente: o fato de tratar-se em um caso de uma narrao paradigmtica, e, em outro, de um ato paradigmtico, no exclui em absoluta uma relao recproca; permite-se uma relao na qual um e outro se complementem e apontem-se mutuamente com maior xito. Nesse sentido, Burkert certamente um herdeiro da Escola de Cambridge, mas distingue-se dessa, no final de contas, pela pretenso universalista de alcanar, mais alm da constatao de determinadas relaes locais entre a formao de mitos e ritos particulares, algumas estruturas fundamentais e isso quer dizer, para ele, primognitas - da convivncia humana. Para Burkert, a mensagem do mito e do rito so a mesma, nas palavras de Nietzsche: as energias terrveis a que se chama mal so os ciclopes arquitetos e engenheiros de caminhos da humanidade. A ordem indispensvel para toda convivncia humana duradoura pressupe no s uma presso aos impulsos inatos da agresso e da destruio, mas tambm a liberao construtiva de suas energias. A violncia no apenas o oposto da ordem, mas seu pressuposto e sua fora portadora. Certamente as perguntas centrais de Burkert como pode a ordem integrar a violncia sem sucumbir a ela? Como pode a civilizao prescindir da barbrie? se inspiraram nas teorias de Nietzsche e Freud, na antropologia e na etnologia dos ltimos 50 anos, mas as aguaram as catstrofes do nosso sculo. Cada um dos ensaios aqui reproduzidos trata de um determinado ponto crtico na vida das sociedades humanas o sacrifcio, a iniciao, a renovao, a purificao, a legitimao e demonstra que sem o rito o mito no superaria a crise em questo, nem poderia sobreviver a sociedade ameaada. Talvez, Burkert, desde um ponto de vista metodolgico, tenha uma predileo decidida e quem sabe um pouco exagerada pelas origens (particularmente no paleoltico); mas sua admirao pelos ganhos da cultura grega, que soube unir o duradouro e o humano, desemboca em uma preocupao, sobretudo, prtica e contempornea: j tarde para que aprendamos com os gregos?

Um encanto singular emana destes primeiros escritos de Burkert; mais de quarenta anos depois no perderam o frescor nem foram cientificamente superados, ainda que muitos dos temas que aqui se anunciam tenham sido aprofundados e refinados pelo prprio Burkert em publicaes mais recentes. Esse efeito, qui, seja devido em parte a que os estudos clssicos alemes no tenham extrado ainda toda a consequncias do descobrimento fundamental da relao recproca entre rito e mito, que vem dando fruto nos estudos estadunidenses, franceses e suos muito mais receptivos, certamente ao influxo da antropologia estruturalista de Lvi-Strauss ainda que seguramente tambm seja devido a que nestes escritos primeiros se manifeste, com maior claridade que nos anteriores e de forma mais detalhada uma tenso genuinamente literria. Por um lado, o tom destes ensaios a todo momento distante e sombrio; o estilo objetivo, a argumentao, sutil; o autor domina soberanamente todo o repertrio das disciplinas auxiliares dos estudos clssicos a arqueologia, a numismtica, a epigrafia, a lingustica indo-europeia e as emprega com tato e preciso. Por outro lado, seus objetos prediletos so o sangue, a morte, a loucura, o asco , o terror. Uma vez ou outra, Burkert conduz o leitor desde o dia luminoso da humanidade grega at a horrenda noite das agresses desinibidas, de impulsos (auto)destrutivos que precedeu aquele dia, que ia assediando e ameaando aniquil-lo a cada instante. Da exploso apolnea de objetos dionisacos que empreender Burkert, de sua contemplao cientfica dos perigos mais aterrorizantes, emana um efeito inquietante prprio e singular.