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173 , Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 173-197, maio/agosto de 2006. Bullying nas aulas de educação física Bullying nas aulas de educação física Flavia Fernandes de Oliveira * Sebastião Josué Votre ** Resumo: Neste ensaio analisamos ocorrências de bullying como um comportamento “cruel, intrínseco nas relações interpessoais, em que os mais fortes convertem os mais frá- geis em objetos de diversão e prazer, através de brincadei- ras que disfarçam o propósito de maltratar e intimidar” (FANTE 2005). Com Scott (2005), discutimos alternativas no trato com o diferente. Relatamos e analisamos alguns casos típicos deste fenômeno, ocorridos com meninas e me- ninos nas aulas de educação física da escola pública do Rio de Janeiro. Concluímos que esse comportamento está in- serido em conjunturas culturais e sociais e que as aulas de educação física reproduzem o contexto que os favorece. Palavras-chave: Bullying 1 . Identidade de gênero. Ensino. Preconceito. Transtorno de comportamento. 1 Introdução Este trabalho tem como intuito trazer uma discussão acerca do fenômeno bullying nas escolas, como o mesmo se dá e se caracte- riza, em sua inter-relação com a categoria gênero, nas aulas de edu- cação física. O fenômeno bullying ainda é muito pouco estudado no Brasil, e na educação física ainda não se encontra quase nada a respeito do assunto. Com este estudo, queremos dar uma pequena contribuição teórica e empírica sobre o assunto, que sempre existiu, porém de forma ainda não suficientemente visibilizada. O bullying 2 * Mestranda em Educação Física no Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Gama Filho. E-mail: [email protected] ** Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Gama Filho. E-mail: [email protected] 1 Palavra sem tradução em português. 2 Bully, bullied, bullying (registrado a primeira vez em inglês em 1710): to treat abusevely, to affect by means of force or coercion, to use browbeating language or behavior, to intimi- dade (tratar abusivamente, afetar pela força ou coerção, usar linguagem ou comporta- mento amedrontador, intimidar) conforme Merriam-Webster’s Collegiate Dictionary.

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Flavia Fernandes de Oliveira*

Sebastião Josué Votre**

Resumo: Neste ensaio analisamos ocorrências de bullyingcomo um comportamento “cruel, intrínseco nas relaçõesinterpessoais, em que os mais fortes convertem os mais frá-geis em objetos de diversão e prazer, através de brincadei-ras que disfarçam o propósito de maltratar e intimidar”(FANTE 2005). Com Scott (2005), discutimos alternativasno trato com o diferente. Relatamos e analisamos algunscasos típicos deste fenômeno, ocorridos com meninas e me-ninos nas aulas de educação física da escola pública do Riode Janeiro. Concluímos que esse comportamento está in-serido em conjunturas culturais e sociais e que as aulas deeducação física reproduzem o contexto que os favorece.Palavras-chave: Bullying1. Identidade de gênero. Ensino.Preconceito. Transtorno de comportamento.

1 Introdução

Este trabalho tem como intuito trazer uma discussão acerca dofenômeno bullying nas escolas, como o mesmo se dá e se caracte-riza, em sua inter-relação com a categoria gênero, nas aulas de edu-cação física. O fenômeno bullying ainda é muito pouco estudado noBrasil, e na educação física ainda não se encontra quase nada arespeito do assunto. Com este estudo, queremos dar uma pequenacontribuição teórica e empírica sobre o assunto, que sempre existiu,porém de forma ainda não suficientemente visibilizada. O bullying2

* Mestranda em Educação Física no Programa de Pós-Graduação em Educação Física daUniversidade Gama Filho. E-mail: [email protected]** Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da UniversidadeGama Filho. E-mail: [email protected] Palavra sem tradução em português.2 Bully, bullied, bullying (registrado a primeira vez em inglês em 1710): to treat abusevely,to affect by means of force or coercion, to use browbeating language or behavior, to intimi-dade (tratar abusivamente, afetar pela força ou coerção, usar linguagem ou comporta-mento amedrontador, intimidar) conforme Merriam-Webster’s Collegiate Dictionary.

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significa discriminação dos indivíduos por membros de seu grupode convívio, e se manifesta em vários graus de intensidade, podendocausar exclusão dos mesmos. Este fenômeno, na conceituação deFante (2005, p. 29): “É um comportamento cruel, intrínseco nasrelações interpessoais, em que os mais fortes convertem os maisfrágeis em objetos de diversão e prazer, através de brincadeiras quedisfarçam o propósito de maltratar e intimidar”.

O conceito mapeia o universo dessa tirania de forma bastanteprecisa: é um comportamento cruel, portanto marcado pelaintencionalidade em atingir objetivos eticamente condenados; éintrínseco nas relações interpessoais, e que pode verificar-se sem-pre que duas ou mais pessoas interagem, convivem, compartilhamespaço de qualquer natureza: trabalho, estudo, lazer, jogo, esporte,brincadeira; é assimétrico, perpetrado pelos mais fortes, mais ve-lhos, detentores de mais poder, de mais controle sobre os demais;os mais frágeis, mais novos, menos poderosos, são convertidos emobjetos de diversão e prazer, de modo a provocar o riso, a galhofa,a ironia, o sarcasmo; o instrumento de tortura é a brincadeira ver-bal, o chiste, a anedota, o apelido, ou a ação aparentemente ino-cente e sem malícia, que disfarça, esconde, escamoteia o propósi-to de maltratar, desautorizar, humilhar e intimidar.

Segundo nossa percepção, é a mais primária forma de violên-cia, que pode manifestar-se por palavras, gestos e ações, e tem nalinguagem gestual e verbal sua concretização mais comum, poisgeralmente começa pela chacota e humilhação verbal, podendo ounão vir acompanhada de ações que discriminam e atemorizam. Re-presenta um perigo constante na família e, mais ainda, na escola.Enquanto em casa é mais comum os pais flagrarem os filhos emcenas de crudelização através de apelidos ou ameaças, na escola équase sempre imperceptível pelos educadores, porque a violêncialinguageira, as ameaças de molestação física e as próprias açõesviolentas se dão longe de seus olhos e ouvidos e, o que é pior,geralmente não deixam marcas no corpo das pessoas molestadas.Tende a ocorrer em contextos relativamente isolados, distantes das

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autoridades educacionais, em ambientes em que a vítima não estájunto das pessoas que poderiam defendê-la, não raro está sozinha, émais frágil e tem menos força do que seus agressores e com isso nãotem alternativas ou recursos para defender-se.

O bullying verbal baseia-se no realismo lingüístico, no senti-do de que as vítimas são apelidadas, normalmente, a partir de umtraço físico, de performance, ou psicológico, que as diferencia dosdemais e que o apelido põe em destaque, de forma caricatural.Esse traço é reanalisado, pelos autores da violência, como umadegeneração, ou ao menos como um desvio negativo, face à nor-ma, de modo que o uso do epíteto ou apelido atinge diretamente avítima, ridicularizando-a, no sentido de torná-la objeto de riso,chacota, mal-dizer e escárnio. Os rótulos discriminadores, de basemetafórica, são criativos, provocam o riso e a diversão dos cir-cunstantes, e se não fossem trágicos, poderiam ser consideradosmanifestações da arte da linguagem na interação cotidiana3.

Bourdieu (1996, p. 61), tomando como base as pesquisasclássicas de Austin e Searle sobre atos de linguagem, e especifica-mente sobre o efeito dos atos ilocutórios, insiste na “análise dascondições sociais de funcionamento dos enunciados performativos”,que funcionam sempre que aquele que os produz tem autoridadeou poder para fazê-lo. Ora, é exatamente o que se passa com obullying. Seus autores sentem-se no direito de assim proceder,porque são os mais fortes, mais bonitos, mais espertos, detentoresde mais poder no grupo, mais influentes, mais ricos. Já as vítimascomungam traços negativos: mais pobres, mais feias, mais afasta-das do padrão de prestígio.

3 A título de ilustração do caráter criativo e imagético do bullying, citamos o caso de umamenina, de boca acima do tamanho normal, que é chamada de vaso sanitário, de umgaroto orelhudo, chamado fusquinha de portas abertas, do garoto gordo e narigudo, queé o tromba de elefante, do menino portador de olheira funda, que é chamado de morreu,dos garotos com trejeitos afeminados, que são chamados de pit bitoca, das meninas comalguns traços masculinos, que são apelidadas sapata, sapato, além dos apelidos clássi-cos, como Maria João.

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2 O fenômeno bullying na escola

Em uma pesquisa realizada pela Abrapia4 em 2002, em onzeescolas situadas no município do Rio de Janeiro, duas particularese nove públicas, de 5ª a 8ª séries, foram ouvidos 5.800 estudantes.Segundo a Nós da Escola (2003, p. 13)5:

Desse total, 40,5% dos estudantes admitiramque estiveram diretamente envolvidos em atosde bullying em 2002, sendo que 16,9% se iden-tificaram apenas como tendo sido alvos; 12,7%,como autores; e 10,9%, autores e alvos. Os57,5% restantes negaram ter participado desituações de bullying.

É notório que este fenômeno, para os alunos, não é vistocomo algo alarmante, pois os autores da molestação alegam queestão apenas brincando; e até mesmo aquelas pessoas que sãovitimas, que sofrem agressão e/ou abusos por partes dos/das cole-gas não os denunciam, provavelmente com medo de represáliasdos mesmos. Para Aramis Lopes, (2003, p. 13): pediatra e coorde-nador da pesquisa, os dados são semelhantes aos encontrados emoutros países e revelam um quadro nada animador “Essa questãoé uma preocupação mundial; mesmo porque não há como prevernem como avaliar a gravidade das experiências de bullying, comoautor ou como alvo, na vida de cada criança ou jovem”.

Segundo os psicólogos sociais, a agressão seria um com-portamento anti-social, que para Rodrigues (2006), tem a inten-ção de causar danos, físicos ou psicológicos, em outro organis-mo ou objeto. “[...] a intencionalidade da ação por parte doagente da agressão, e que só se caracteriza como agressivo oato que deliberadamente se propõe a infligir um dano a alguém”.

4 Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência5 Revista da Prefeitura do Rio de Janeiro – Educação MULTIRIO, que publicou o artigointitulado ‘Lembranças que não deixam saudades’.

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Os psicólogos costumam dividir em dois tipos a agressão hu-mana. Para Myers (2000), a agressão hostil, que para nós estádiretamente associada ao bullying, deriva da raiva e tem o ob-jetivo de intimidar e ferir; já a agressão instrumental, que poderelacionar-se ao fenômeno indiretamente, visa a fazer mal ape-nas como meio de alcançar outro fim, ou seja, para este autor aagressão hostil é intrinsecamente ‘ruim’, enquanto a agressãoinstrumental não o é necessariamente.

Portanto o bullying pode ser caracterizado pelos dois tiposde agressão, sendo que para este caso a agressão instrumentalnão é caracterizada como boa, mesmo que se efetive com intuitode atingir um objetivo supostamente bom, como, por exemplo,apelidar algum colega para chamar atenção dos professores, ouapelidar um colega de ‘Nerd’, ‘CDF’, por ele ser o mais inteli-gente da turma. Porém o tipo de agressão que predomina no fe-nômeno é a hostil, que é como se inicia o fenômeno, como quan-do o agressor apelida alguém, para salientar algum tipo de defi-ciência que o mesmo apresenta, e o chama de ‘Quatro olho’ porusar óculos; este é um caso de comum entre os alunos, que poderedundar em grande comprometimento emocional na pessoa queestá sendo vitimizada.

É comum vermos no espaço escolar a manifestação de agres-são, talvez mais acentuada hoje do que se observava há algumasdécadas, quando a escola era regida com base na ordem e discipli-na, nas sanções e punições. O que se via nas escolas dessa épocaera o que Foucault (2003) chamava corpos dóceis, no sentido deque os corpos eram transformados pelas instituições, através deum disciplinamento sistemático, o que não quer dizer que eramtodos corpos obedientes, como diz Veiga-Neto (2004), pois quenem todos são igualmente disciplinados, embora o poder seja im-posto a todos, sendo que a cada corpo e a cada saber, este poderse manifesta de uma forma particular.

Atualmente a escola está um pouco menos atenta à questão

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da punição e das sanções, pois o sistema educacional se tornoumais sensível aos reclamos da cidadania dos alunos e passou a servigiado, pela consciência dos direitos, mais agudos na sociedadeatual, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, onde se lêque: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquerforma de negligência, discriminação, exploração, violência, cruel-dade e opressão, sendo punido na forma da lei qualquer atentado,por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.

O lado irônico do estatuto é que o mesmo está concentradonas possíveis ações dos educadores, e as maiores barbaridades sedão entre os próprios colegas, mas essa face do problema não écontemplada no texto legal.

Os direitos fundamentais, ora consagrados nas leis de prote-ção à criança e ao adolescente, à família e à sociedade, compreen-dem: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao espor-te, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respei-to, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Com isto, aescola que antes poderia caracterizar-se como repressora,comportamentalista e formadora, hoje, ao menos em tese, é so-mente formadora.

Com esta nova vigilância no sistema educacional ficou maisfácil aos alunos garantirem seus direitos face à instituição e, emcompensação, ficou mais difícil para o professor perceber quandohá comportamentos imorais ou antiéticos entre os alunos, pois alei está centrada em garantir justiça apenas no plano vertical, aexemplo do que se lê no Capítulo IV, do artigo 53 do Estatuto járeferido: “A criança e o adolescente têm direito à educação, visan-do ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exer-cício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes o direito de serem respeitados por seus educadores”.

A convivência dos alunos com situações de bullying poderesultar em danos irreparáveis às vítimas, acarretando, segundoFante (2005), prejuízos em suas vidas futuras, em suas relações no

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trabalho, em sua futura constituição familiar e na criação de filhos,além de prejuízos para a sua saúde física e mental. Há estudos quecomprovam que aqueles que vivem situações de bullying podemter comprometimentos, como o rendimento escolar inferior, e tam-bém o desenvolvimento social, emocional e psíquico atingidos.

Em casos extremos, algumas vítimas preferem suicidar-se acontinuar agüentando tal perseguição. É o caso que vem sendodivulgado pela mídia de suicídio de alunos nas escolas, e até mesmomassacre em massa, como foi o caso da Escola Colombine, emLittleton, Colorado em 1999, onde dois adolescentes mataram 12colegas, um professor e deixaram dezenas de feridos. (FANTE,2005, p. 80)

A escola, além de templo da educação e casa do saber, podedesempenhar também o papel de cenário propício ao surgimentode subcomunidades voltadas ao bullying, à tortura e ao sofrimentode seus pares. Entre tais subcomunidades, avulta a da educaçãofísica, esporte e lazer.

2.1 Bullying nas aulas de educação física

Em trabalho intitulado “Discriminação de Gênero nas aulasde Educação Física”, apresentado no Congresso Brasileiro deCiências do Esporte (FERNANDES, 2005), verificamos manifes-tações deste fenômeno através de pesquisa de campo, realizadavia entrevista com grupo focal, com seis crianças, três do sexomasculino e três do sexo feminino, alunos da 4ª série do ensinofundamental público do município do Rio de Janeiro. A perguntanorteadora foi: - quais são os tipos de violência e discriminaçãoexistentes entre meninos e meninas, nas aulas mistas de educaçãofísica? Os alunos e as alunas discutiram com interesse sobre oque acontecia nas suas aulas no que concerne a esse tipo de abu-so. A principal evidência foi da agressividade dos meninos, mani-festada através de palavras e atos, a ponto de uma menina, durantea fala, se queixar dos apelidos, das ofensas, das atitudes e ações

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dos meninos: “[...] muitas das vezes as pessoas acabam se machu-cando, né, porque os meninos são um pouco mais agressivos”.

Agressividade e competitividade se associaram fortementeaos meninos, enquanto para as meninas predominou a fragilida-de. Para Myers (2000) a agressividade refere-se ao ato de ferir ooutro, física ou simbolicamente, e as pesquisas sugerem que oshomens, mais voltados às atividades tipicamente masculinas,como caçar, lutar e guerrear, são mais propensos à agressividadedo que as mulheres. Isto não quer dizer que o comportamentoagressivo não apareça nas meninas, pois elas também o são, prin-cipalmente entre si.

No estudo aqui referido, o intuito era revelar os tipos deviolência e discriminação de gênero existentes nas aulas de edu-cação física mista, partindo da turma de quarta série, que é ca-racterizada por alunos da faixa etária a partir do 10 anos. Esco-lhemos esta faixa e série porque, segundo Aberastury, (1992, p.84), entre os 10 e os 11 anos tanto os meninos quanto as meninastendem a formar grupos: “Os meninos têm meninos à sua volta eas meninas têm meninas, porque necessitam se conhecer e apren-der as funções de cada sexo”. E é nítido também que é a partirdesta faixa etária que as crianças tendem a desenvolver maisexplicitamente os comportamentos de bullying, ou a serem mo-lestadas pelos agressores.

Esses grupos podem ser prejudiciais ou não à formação dacriança, se nos reportarmos a Scott (2005, p. 15), que diz que“Identidade de um grupo define indivíduos e renega a expressãoou percepção plena de sua individualidade”. A fidelidade ao gru-po pode chegar a tolher ou prejudicar o desenvolvimento pleno doindivíduo. As identidades de grupo são formas de comportamentoe manifestação próprias do mesmo, sem que necessariamente osindivíduos se dêem conta do que está ocorrendo. Por exemplo, seo ato de agressão durante um jogo entre meninos e meninas setornar normal, eles podem, de forma não intencional, mas aciden-

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talmente, selecionar uma vitima, para ser alvo de deboches, deameaças e até mesmo de agressão física; pode ser que esteja ocor-rendo o fenômeno bullying, sem que o professor ou professoraperceba, e mesmo sem que cada membro do grupo, enquanto indi-víduo, tome consciência do ato em que está envolvido.

Devido às diferenças de habilidades entre meninos e meni-nas, é comum vermos então surgirem conflitos de gênero, pois éinconscientemente que as crianças incorporam, através do cotidi-ano escolar, as identidades que, para Louro (2003) são “identida-des de gênero” - aqui retraduzidas como identidades de grupo -quando os sujeitos se identificam, social e historicamente, comomasculinos ou femininos, fortes ou frágeis, corajosos ou medro-sos. Essas identidades são manifestações comportamentais, comoos gestos, os movimentos e os efeitos de sentido que, através docompartilhamento, imprimem, reproduzem e reforçam consciênciadas diferenças e do poder a elas associado.

Quando falamos em lutar por uma sociedade igualitária, temosem vista um contexto em que todos temos direitos iguais, sem quehomens ou mulheres sofram preconceitos por serem diferentes, querna força física, destreza, habilidade, flexibilidade e velocidade, querna pertença a determinada classe, raça, religião ou idade.

2.2 Análise de alguns relatos de bullying na educação física

Inicialmente, vamos apresentar um relato sui generis, citadoem Fante (2005, p. 35). Em suas pesquisas, exemplificando o fe-nômeno, a autora nos apresenta um depoimento de uma aluna daeducação física, atravessado por gênero na variante poder, em quea menina é alvo de bullying duplo, sui generis por incluir profes-sores, na forma de difamação, e por colegas, na forma de múltiplosapelidos: ‘baixinha, frágil, inútil, que não serve para nada’:

Minha vida escolar não é a melhor. Gosto muitodos professores, mas de umas semanas para cáeles andam me difamando, por causa de um

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trabalho escolar. Estou sendo rejeitada por al-gumas pessoas da minha classe. Na aula deeducação física, dizem que sou baixinha e frá-gil, então não sirvo para nada [...] (aluna da6ª série, 12 anos).

O relato é sintomático, pelo nível da avaliação do quadro,pois esta aluna denuncia, explicitamente, a falta de qualidade desua vida escolar: ela está sendo alvo de discriminação por partedos professores, que a difamam por causa de seu desempenho; arejeição de algumas pessoas da classe pode estar associada aoutro grupo discente, que explora a difamação; na educação física,para completar sua desgraça, ela é objeto de bullying dos colegas,seja por ela apresentar características físicas que destoam dosdemais colegas, quer ainda por ser baixinha e frágil; a síntese daavaliação é patética: então não serve para nada . O sentir-se rejei-tada nas aulas de educação física é facilmente explicável, pois adisciplina, até bem pouco tempo (e ainda hoje), se pautava por ummodelo reducionista em que o corpo, a aptidão física e o desem-penho eram os objetivos mais importantes. Nesse quadro, não haviaespaço para as meninas ‘baixinhas e frágeis’, sobretudo quando aessas características somava-se a falta de habilidade; elas nãotinham vez, não jogavam e nem praticavam esportes com suascolegas meninas e muito menos com os meninos. A prática espor-tiva privilegiava aquelas que tinham um bom desempenho e queeram aptas a praticar aquelas modalidades esportivas associadasà velocidade, força, impacto e resistência.

Estudos demonstram que na maioria dos casos de bullyingas agressões são provocadas por rapazes, porém o sexo das viti-mas varia. Como recorte inicial deste estudo, iremos apresentar eanalisar relatos6 de quatro manifestações de bullying na educaçãofísica, em diferentes escolas, duas em que as vitimas são meninase duas em que os meninos passam pelo ritual do sacrifício.

6 Os relatos são da co-autora deste trabalho.

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O primeiro é um caso típico do fenômeno bullying, que ocor-reu com Carol7 em escola pública da Zona Oeste do Município doRio de Janeiro:

Carol é uma aluna calma e tranqüila, que esta-va em uma turma de progressão; os outros alu-nos tinham um comportamento bastante dife-rente do dela, porém estavam todos na mesmaturma, pois tinham dificuldades de aprender.Essa turma, em especial, tinha um comporta-mento bastante agressivo, tanto os meninos,quanto às meninas, e nas aulas de educaçãofísica eles eram violentos e agressivos uns comos outros. Carol, com toda dificuldade de serelacionar com os outros colegas, se prejudi-cava sempre. Quando os membros do grupo -meninos e meninas - descobriram que ela eracalma e tranqüila, e principalmente frágil, co-meçaram todos a implicar com ela. A profes-sora não se deu conta, pois como a turma erabastante violenta, todo o tempo os meninos emeninas estavam brigando, na sala, nos corre-dores e até mesmo nos banheiros da escola. Eela não percebeu o que estava acontecendo coma menina. Foi quando Carol começou a faltaràs aulas, chegando a ficar semanas sem ir àescola. Eu, como professora de educação físi-ca, notei que ela estava faltando às aulas, eperguntei à professora o que havia com Carol,e ela não soube me responder; a única coisaque ela me disse foi que era assim mesmo, nin-guém daquela turma queria nada, era por issoque eles abandonavam a escola. Passadas umastrês semanas, a mãe de Carol veio à escolapara conversar com a direção, para saber oque estava acontecendo, e por que era que nun-

7 Os nomes das vítimas de bullying dos relatos são fictícios.

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ca tinha aula para sua filha. Carol estava cho-rando sem parar e a mãe, a professora e a di-retora perguntavam a ela o que estava aconte-cendo. Foi então que, chorando, ela disse queos colegas de turma em geral não gostavamdela, que a tratavam por apelidos que ela ti-nha vergonha de falar, e que dois colegas, ummenino e uma menina da turma, estavam co-brando dela um real por dia para ela entrar naescola; caso ela não tivesse o dinheiro, ela nãopoderia entrar na escola, e se entrasse na es-cola, todos iriam bater nela. Com isto, todosos dias Carol ia até a porta da escola e voltavapara casa.

Devemos salientar que este relato resume uma situaçãoprototípica em nossas instituições de ensino. Trata-se de um qua-dro de constrangimento comum nas escolas, em que as crianças,em forma de brincadeira, discriminam, agridem e principalmenteexcluem colegas. Se para muitos professores, de tão comum pa-rece normal esta prática das crianças, vale ponderar que a maneiracruel como elas agem é prejudicial para a formação da auto-esti-ma de cada indivíduo, para o senso de justiça dos agressores, epara o senso de cidadania, dos agredidos, comprometendo o pro-jeto de uma sociedade justa, pois a violência nas escolas podeacarretar danos irreversíveis aos futuros cidadãos8.

Enderle (1985) diz que a escola representa para a criança aentrada em um mundo diferente da família, onde aparecem as no-ções explícitas de ordem, dever, disciplina e, principalmente, si-lêncio. Isto não quer dizer, segundo a autora, que é somente porcausa da escola que a criança apresentará problemas, pois antesda mesma está a família.

8 O imaginário social está povoado de ditados e frases feitas que denotam a extensãodessa prática e, o que é pior, de sua naturalização na cultura. Ilustramos com a seguinte:“para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”ou: “para os amigos, tudo; para os inimigos,nem justiça”.

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A escola estava introduzindo Carol em novo patamar noprocesso de socialização, durante o qual ela estava começando asentir-se confrontada por um grupo, onde não encontrava sinais desimpatia, e sim imperavam as regras próprias do grupo.

A sociedade infantil, nessa fase, é fechada aosadultos e por vezes tem matrizes de crueldade.As peculiaridades físicas ou idiossincrasias dascrianças constituem objeto de ‘troça’. A críti-ca é pessoal e direta. Além da crítica severa,surge, também, a capacidade de julgamento,estabelece–se a noção de ‘justiça’ que acabapor eliminar o traidor, ou aquele que não obe-dece ao código ético imposto pelogrupo.(ENDERLE, 1985, p. 70)

Ao observarmos o que acontece com Carol, vemos que osseus colegas de turma fazem parte de um grupo fechado, constituídopor uma minoria, que apresentam um código de ética, onde imperaum líder, que estabelece as regras, e quem não o respeitar não podefazer parte deste grupo. Foi exatamente o que aconteceu com Carol,se ela tivesse aceitado pagar o real diário que eles tinham estabele-cido a ela, talvez ela entrasse no grupo. Entretanto, ela poderia tam-bém ser escolhida pelo grupo para ser a ‘bola da vez’, ou seja, apermanentemente excluída, discriminada e ‘chacoteada’.

Como diz Scott (2005), lidar com a situação de desigualdadeé confrontar-se com o paradoxo, que é uma proposição que nãopode ser resolvida pelas operações da lógica convencional, e queé falsa e verdadeira ao mesmo tempo. O caso de discriminaçãocontra Carol é um tipo de bullying que não tem interferência doseducadores, no sentido de que, como a sociedade infantil, confor-me disse Enderle, é fechada aos adultos, eles não se deram contado que estava acontecendo com ela, nem que o comportamentohostil de colegas, centrado no preconceito, estava acarretandoagressões contínuas à menina, a ponto de expulsá-la da escola.

Estamos tomando preconceito no sentido etimológico dotermo, como um conceito previamente formado, de uma pessoa ou

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grupo, contra indivíduos ou grupos.

Preconceito é um pré-julgamento negativo deum grupo e de seus membros individuais. Opreconceito nos predispõe contra uma pessoacom base apenas no fato de identificarmos apessoa a um grupo determinado. O preconcei-to é uma atitude, [...] uma combinação distin-ta de sentimentos, inclinações para agir e con-vicções. (MYERS, 2000, p. 182)

Para Nunan (2003), o preconceito é histórico e socialmenteconstruído, e o mesmo resulta na discriminação, que é o compor-tamento, o modo de agir do grupo social, marcado por raiva, rejei-ção e repulsa. No relacionamento entre os fortes e os fracos, entreos prestigiados e os sem prestígio, entre os meninos e as meninas,estão presentes os conflitos, as resistências e mesmo os mecanis-mos de exclusão, o que acaba causando atitudes negativas dogrupo social ou, até mesmo, dos indivíduos. Segundo Rodrigues(2001), o preconceito pode ser definido como uma atitude hostilou negativa, com relação a um determinado grupo, não levando,necessariamente, a atos ou comportamentos persecutórios.

Quando estamos nos referindo à esfera do com-portamento (expressões verbais hostis, condu-tas agressivas, etc), fazemos uso do termo dis-criminação. Neste caso, sentimentos hostis so-mados a crenças estereotipadas deságuam numaatuação que pode variar de um tratamento di-ferenciado a expressões verbais de desprezo ea atos manifestos de agressividade.(RODRIGUES, 2001 p. 162).

A discriminação contra Carol, por parte das outras crianças,é um caso típico de ação ilocutória, via palavras, gestos e atitudesde desprezo, porém sem agressão física, mas com ameaças damesma, caso ela entrasse na escola sem pagar o que eles queriam.Durante esse período de provação ela, sem alternativas, passou aisolar-se dos outros membros da turma, desistindo de freqüentar aescola. Esta, que seria um espaço de socialização, tornara-se para

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ela um não-lugar, um lugar de exclusão.

O segundo exemplo de bullying com meninas aconteceu comAline em uma turma de quarta série de uma escola pública, tam-bém situada na Zona Oeste do município do Rio de Janeiro:

Aline é uma aluna tipicamente diferente dasoutras alunas de sua turma, ela adora fazeraula de educação física, sempre me ajudou nadivisão dos grupos, na disposição dos materi-ais, quando havia jogo era sempre a primeiramenina a ser escolhida, pelos meninos e pelasmeninas, porque é uma aluna que apresentauma excelente habilidade motora, especifica-mente é ótima jogadora de futebol. Aparente-mente, tanto nas aulas de educação física, quan-to nas outras disciplinas, não havia nenhumproblema com ela. Até que Aline começou aaparecer na escola de cabelos cortados, umcorte bem masculino, e então as meninas nasala começaram a chamá-la de Maria João,Aline Sapato, entre outros apelidos, até mesmoporque Aline é uma menina bem diferente dasdemais da idade dela, pois não possui vaida-de, não gosta de usar brincos, e muito menosde se maquiar. Na minha aula de educação fí-sica era a mesma coisa, sendo que ela come-çou a aparecer na escola com uma toca na ca-beça, para não aparecer o corte, foi aí entãoque eu comecei a perceber que algo de erradoestava acontecendo com ela. Quando separeios alunos para escolherem os times, para jo-gar, nenhum dos alunos a escolheu, e ela aospoucos foi saindo da quadra e indo para ar-quibancada. Foi então quando eu a chameipara conversar e perguntar o que estava acon-tecendo. Antes de começar o jogo, pergunteiaos alunos por que eles não a escolheram parajogar, e sem me responder, um dos meninos queestava escolhendo o time disse: - vem, AlineSapato, e todos riram, uns até em tom de debo-che; foi aí que eu percebi que ela estava sendo

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vitima de bullying na turma, e foi quando euinterferi e conversei com eles a respeito. De-pois todos jogaram e no final da aula retorneia conversar com Aline, perguntando a ela seela estava se sentindo incomodada com o cortede cabelo, e quem cortou o cabelo dela e elame respondeu que ela que quis cortar daquelaforma, foi a mãe dela quem cortou o cabelodela, porém ela estava se sentindo envergonha-da, com os apelidos e as brincadeiras dos co-legas, e era por isso que estava indo de tocapara escola. Conversando com ela e com a pro-fessora dela de sala de aula, mostrei o exem-plo da própria professora dela, que usa o ca-belo curto, e a professora de sala de aula, jun-to comigo, dissemos a ela que daquele dia emdiante ela não iria mais sofrer humilhaçõespor parte dos colegas.

A leitura do relato torna evidente que a menina foi vitima debullying, pois embora no começo ela parecesse aceita pelo grupoa que pertencia, sempre apresentou alguns aspectos que a distin-guiam das demais meninas de sua turma, a exemplo das habilida-des motoras excepcionais, semelhantes ou mesmo superioras àsde alguns meninos. A impressão é que, progressivamente, Alinefoi se tornando alvo de gozação e de brincadeiras maliciosas, queestavam levando a ser rejeitada e, por fim, excluída do grupo, comos inevitáveis danos emocionais, esportivos e educacionais.

Este segundo exemplo configura um caso complexo e mesmocomplicado de rejeição, porque Aline já tinha um perfil poucofeminino, em termos de habilidades, e agora, com este traço exter-no do corte de cabelo, a coisa piorou, mas talvez o apelido jáestivesse ativo antes, por ela ser uma menina que sempre realizavaas atividades esportivas com ótimo desempenho. Segundo Saffioti(1987, p. 37): “Mulher despachada corre risco de ser tomada comomulher-macho”.

Como os estereótipos sexuais são culturalmente dados, pas-

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sa a ser considerado normal vermos o menino jogando bola, emeninas brincando de boneca, porém isto não quer dizer que asmeninas só vão se interessar pelas atividades que lhes são pré-determinadas pela sociedade. Existem crianças com preferênciacultural cruzada, o que se pode dar por várias causas, entre asquais registra-se o reforço em desempenhar os papéis do sexooposto, as sugestões e insinuações da família:

Algumas meninas ganham caminhõezinhos eferramentas e jogam futebol ou aprendem car-pintaria com o pai (ou mãe). Eles também po-dem desejar que elas fossem meninos [...] ocomportamento masculinizado na menina émuito mais aceito e reforçado do que o com-portamento feminilizado no menino. (BEE,1985, p. 321).

Acreditamos que se percebeu a tempo o que estava aconte-cendo com ela, porque Aline é uma aluna dedicada e que se inte-ressa por todas as atividades físicas, tantas as que são predetermi-nadas como sendo masculinas como as consideradas femininas,porém o que a diferencia de modo singular das demais colegas éque ela apresenta habilidade superior às outras meninas. Se Alinecontinuasse a ser alvo dessa perturbação, poderia rebelar-se con-tra os comentários pejorativos, passar a mostrar falta de interesseem freqüentar a escola. O seu desempenho na escola diminuiria, asua auto-estima seria ainda mais prejudicada, e ela poderia atéabandonar a escola, ela que foi uma aluna que nunca causou pro-blemas às professoras.

O terceiro exemplo é de um menino, Carlos, de 11 anos, deescola pública municipal da Zona Oeste do município do Rio deJaneiro:

Carlos é um aluno aplicado, educado e muitointeligente. É conhecido pelos colegas como oCDF da turma. Durante as aulas, quando asua professora de sala de aula atribuía tarefaspara os alunos, ele era sempre o primeiro a

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começar a executá-las, e a terminar as tarefas,com perfeição, antes dos demais; como um bomamigo, também ajudava os que têm mais difi-culdades. A única coisa que o incomodava éque ele não gostava de jogar futebol e acabavaconvivendo pouco com os garotos; com isso,os meninos da turma passaram a caçoar dele,porque além de não jogar futebol, ele se afas-tava dos meninos e andava mais com as meni-nas. As brincadeiras agressivas que os meni-nos da sua classe faziam que não lhe agrada-vam. Nas aulas de educação física, Carlos sem-pre participava, tantos nos jogos como nas brin-cadeiras. Mas quando o tema da aula era fute-bol, ele pedia para ser o arbitro do jogo, ouentão para não participar do jogo. Os colegasde classe, na entrada ou na saída da aula, sem-pre se organizavam para jogar futebol, na qua-dra, ou no gramado, mas ele nunca participa-va, com o argumento de que seus colegas, du-rante o jogo, sempre brigavam e acabavamagredindo-se uns aos outros, e Carlos não gos-ta de briga. Os meninos perceberam que eleera diferente deles e colocaram-lhe apelidosque o atingiam no tocante à masculinidade,chamando-o de Pit Bitoca, Boiolinha,Veadinho, Biba e Bicha. Um dia na aula deeducação física, em que a professora propôsaula livre, para que eles próprios escolhessema atividade ou o jogo que iriam realizar, osalunos decidiram jogar um grande queimado.Na hora da escolha dos times, após o ‘par ouímpar’, os meninos começaram rir dele em vezde o escolherem, porque era um jogo de queele gostava, pois sempre que tinha oportunida-des, jogava com as meninas. Como os meni-nos não o escolheram, as meninas o chama-ram, dizendo: ‘vem Pit’, e ele foi jogar comelas e não contestou, mas como todos estavamcaçoando, e xingando muito, ele saiu do jogoe sentou-se na arquibancada. Quando eu per-guntei por que ele não estava jogando, e por

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que ele não reagia, ele disse que era assimmesmo. Então eu parei a atividade, sentei coma turma, e comecei a discutir, argumentandoos apelidos e a discriminação a eles associa-da. A turma disse: - mas ele é mesmo, não rea-ge. Se não reage, é porque é isso mesmo. En-tão eu falei a eles que parassem, e que duranteas suas aulas não queria mais ouvir apelidos enenhum tipo de discriminação, nem com Carlose nem com ninguém.

A estratégia utilizada pela professora, em discutir com a turmaas questões das diferenças e tentar convencê-los através do diálogosobre a obrigação do respeito, da não discriminação do outro duran-te as aulas, ajudou a minimizar as exclusões nas aulas de educaçãofísica, e a desconstrução dos valores dominantes na sociedade deque homem, macho, tem que jogar futebol. A professora levou osalunos a perceberem que era uma injustiça e um abuso de poder oque acontecia com Carlos, e que é injusta expectativa social de quetodo menino goste de futebol, embora, desde pequeninos, os meni-nos sejam estimulados a ficar em vários espaços públicos, jogandoem grupo e até mesmo sozinhos, chutado a bola.

Verificamos que a intimidação e agressão ao Carlos chegouao extremo, pois até meninas o discriminavam; o bullying, nestecaso, está relacionado à pratica esportiva. Segundo Vaz (2005) ofutebol – no Brasil - é um jogo identificado como sendo masculi-no, porque as qualidades sociais atribuídas aos homens, comovirilidade, agressividade e competitividade, entre outras, são tole-radas e estimuladas no jogo de futebol, que é muito praticado,quase exclusivamente por garotos, nos espaços públicos e nasruas. Segundo o autor:

No caso da prática esportiva, especialmentedo futebol, não são apenas as mulheres as dis-criminadas, mas qualquer um, mulheres e ho-mens, que não se desempenhem satisfatoria-mente no jogo tal como é esperado pela lógicadominante, predominantemente masculinizada

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no Brasil. O que quer dizer que as mulheresque apresentam uma performance razoável paraos padrões masculinos, não serão discrimina-das, ao contrario, serão recebidas e enaltecidaspela sua participação. Ao mesmo tempo, ho-mens que não apresentam este desempenho se-rão vitimas de práticas discriminatórias. Mui-tas vezes essas discriminações os levam aoabandono das aulas de educação física ou aoenvolvimento com outras modalidades esporti-vas como voleibol e natação, entre outras, oumesmo a uma outra manifestação da culturacorporal como dança, as lutas ou, ainda, asartes cênicas. (RODRIGUES, 2005, p. 32)

Fante (2005) chama a atenção do profissional de educação,para que fique atento a alunos agressivos ou violentos, zombado-res e maldosos, porque em alguns casos o que se poderia interpre-tar como brincadeiras próprias da idade pode ser fonte de grandeconstrangimento e sofrimento a colegas mais tímidos, calados oumais fracos, normalmente mais novos, com prejuízo sócio-educa-cional e emocional.

O quarto exemplo é relacionado à inclusão de dois meninos,Marcos e Paulo, portadores de deficiência mental leve, numa tur-ma ‘normal’:

Marcos começou a fazer aula normalmente emuma turma com alunos da idade dele. Ele é daclasse especial da escola; os demais alunos daturma, ditos normais, já o conheciam, pois eleé irmão de uma das alunas da turma. A aula deeducação física iniciou bem, mesmo porque fizquestão de dizer a todos que na aula daqueledia havia dois colegas da classe especial queiriam fazer aula junto com a turma. Aconteceuque o Marcos não fez questão de participarnas atividades junto com os outros da turma.No momento em que propus um jogo para aturma, vi que todos jogaram, menos Marcos,que não quis jogar. Vi também que sua irmã

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parou de jogar e resolveu brincar de corda comele e mais uma colega. Paulo, por outro lado,interessou-se pelo jogo, do qual tentava parti-cipar ativamente. Mas a situação de normali-dade no jogo durou pouco, porque assim que otime percebeu que Paulo era diferente, e quedurante o jogo não conseguia respeitar as re-gras, constatou que ele é portador de deficiên-cia mental. Os alunos começaram a rir dele echacoteá-lo, e como no time em que ele estavajogando os colegas estavam perdendo e nãoconseguiam jogar, começaram a provocar-me,sem esconder a rejeição e o preconceito, di-zendo: - a senhora trouxe um maluco para cá?Põe o maluco pra fora! A aula não é para ma-luco. Foi então que Paulo, que tem um grau dedeficiência quase imperceptível, veio queixar-se a mim, dizendo que eles, longe das profes-soras, só o chamavam pelos termos maluco edoidinho.

Diante daquela situação a professora, parou a aula e convo-cou todos para discutir as questões de inclusão de Marcos e Pau-lo, portadores de deficiência. Sentou os alunos e solicitou queconversassem sobre o que estava se passando em relação a Paulo,que se esforçava por participar e era rejeitado. O grupo discutiulongamente, e tirou uma decisão de tentar ajudar o garoto. Nasaulas seguintes, diminuiu a manifestação de rejeição para comPaulo. Podemos perguntar se a estratégia de dialogar, argumentare denunciar a injustiça da atitude dos colegas mudou de fato asrelações entre os alunos, se alterou o quadro para valer, ou se foisó naquele contexto, na frente da professora, que se fez justiça. Éimpossível responder a esta pergunta, mas a estratégia merece sertestada e aperfeiçoada, dado o poder da argumentação e do debatefranco para a revisão de atitudes e práticas sociais. Habermas(2001) prevê, em sua teoria da ação comunicativa, que os queestão prontos e com disposição para serem convencidos tenderãoa mudar de atitude e prática após participarem de eventosargumentativos sérios, em que são convidados a refletir sobre a

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justiça, justeza e ética de seus comportamentos.

Os quatro casos atestam que o fenômeno bullying transita otempo todo nesses comportamentos de discriminação, com chaco-ta e agressão seja ela verbal e/ou física. As vítimas da intimidaçãonormalmente enfrentam a molestação sozinhas. Os outros meninose meninas tendem a ficar do lado dos agressores, temendo ser ospróximos da fila, ou fingem que nada viram e permanecem quie-tos. O abuso pode afetar todo o ambiente da escola, e não apenasos autores da ofensa física e psicológica e seus alvos.

2.3 Observações preliminares e proposta de intervenção

Através deste estudo percebe-se que alunas e alunossão vitimas do fenômeno bullying, porém que nem sempre omesmo é percebido, pelos membros do corpo docente ou peladireção da escola e (arriscamos a afirmar, sem provas) nemmesmo pela família.

O gênero atravessa esta questão nas aulas de educação físi-ca, pois, no recorte deste estudo as meninas se tornam um alvofácil da crueldade linguageira, devido à pequena ou nula partici-pação das mesmas, até bem pouco tempo, nas aulas de educaçãofísica. Os meninos, por sua vez, são desqualificados se não mos-trarem desempenho à altura da expectativa. A desqualificação erejeição se dão pelos estereótipos esperados de cada sexo,construídos pela sociedade, segundo os quais as meninas têm queser graciosas e frágeis, e não devem participar de jogos de impactoou viris, e os meninos devem ser agressivos.

Bullying é a ponta do iceberg da discriminação, e um indíciode o quanto as pessoas estão envolvidas com os estereótipos cul-turais, que são produzidos conjuntamente por homens e mulheresna sociedade familiar e, sobretudo escolar, em que as crianças e osjovens os acabam reproduzindo. Representa um desafio único paraos educadores, que são convidados a afiar o olhar, a melhorar aescuta, atentos aos sinais de injustiça e crueldade e, na linha do

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que aqui se fez em cada caso relatado, a interferir pela conversaem grupo, em que se oferecem oportunidades para a reflexão, atomada de posição e a superação do problema pela ampliação docírculo do nós, pelo alargamento da consciência. Na linha de açãoeducativa de Stoer e seus colegas, cabe à escola a tarefa de serecontextualizar para favorecer o debate franco, corajoso e objeti-vo das questões que afligem sua comunidade.

Pensamos que, segundo a orientação de Bernstein (2001) édever da escola recontextualizar-se e reposicionar-se face a estegrave problema, e tirar uma linha firme de conduta moral e ética demodo que fique explícito, no código de ética da escola, discutidoe acolhido por professores e alunos, que nenhuma criança ou adoles-cente pode ser desrespeitada, agredida, ameaçada ou negligencia-da, nesse espaço de convívio e formação. Deve-se fazer com queos meninos e as meninas sejam mais tolerantes, e aprendam acompreender as diferenças, para não utilizarem a suas habilida-des, dentro da aula de educação física, como meio de violência.

Bullying in Physical Education ClassesAbstract: In this essay, we analyze the phenomenonof bullying, as a behavior which is “cruel, intrinsicin interpersonal relationships, by which the strongestones convert the fragi le ones in object ofentertainment and amusement, through jokes thathide the goal of mistreat and threat (FANTE 2005)”.Following Scott (2005), we discussed alternativesin the deal with the different, report and analyzesome prototypical cases of the phenomenon,verified with girls and boys in physical educationclasses, in the public school of Rio de Janeiro. Weconclude that this behavior is inserted in cultural andsocial contexts, and that the classes of physicaleducation reproduce the context favoring them.Key words: Bullying. Gender identity. Teaching.Prejudice. Conduct disorder.

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Bullying en las clases de Educación FísicaResumen: En este ensayo analizamos el fenómenode bullying como un comportamiento “cruel, intrín-seco en las relaciones interpersonales, en que losmás fuertes convierten a los mas frágiles en objetode diversión y placer, a través de bromas quemascaran el propósito de maltratar e intimidar”(FANTE 2005). Con Scott (2005), discutimos alter-nativas en el trato con el diferente. Relatamos eanalizamos algunos casos típicos de ese fenómeno,ocurridos en clases de educación física con niñasy niños de la escuela pública de Río de Janeiro.Concluimos que ese comportamiento está inseri-do en contextos culturales y sociales, e que lasclases de educación física reproducen el encuadreque los favorece.Palabras-clave: Bullying. Identidad de género.Enseñanza. Prejuic io. Trastorno delcomportamiento.

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Recebido em: 07/11/2005

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