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  • 8/13/2019 Breviariodasnarrativasmalcontadas

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    Tadeu Sarmento

    Brevirio das

    Narrativas Mal

    Contadas

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    FLOR NASCIDA CARNE

    O solo dos violoncelos dolorosos, era o grave se estendendo, o suor brotando do molho dos

    pelos, do pau da testa, a lngua encharcada de azedo, os olhos tristes boiando uma guaimunda, era o mesmo que estivesse morta, ali estendida, apodrecendo, necessitada da

    caridade de estranhos, estranhos interminveis que passavam a toda hora, e em todas as

    direes, na calada da rua onde se estendia, doente, aflita, musical, secada no dorso,

    varada por tripanossomos, a febre lhe queimava as vistas, bao e fgado inchado, as chagas

    espumando para fora, ela cobria as pernas com um pano velho, encardido, embolorado. O

    cartaz, garranchada de tintas, dizendo: fui picada pelo barbeiro, e no tenho cura, peo

    aulio. O barbeiro, o vetor causador da doena, sugador de sangue noturno, ele aprecia

    picar na face, da o seu nome popular. ! gramtica do cartaz " perfeita, estranhos passam e

    se admiram... #la no tem cura, e os estranhos preferem assim, pois s$ dessa forma se

    compadecem dela, atiram moedas no alumnio gasto da bacia entre suas coas m$rbidas. %e

    tivesse cura, ah, que fosse curada ento, e no que ficasse ali, alvo da caridade alheia. !s

    pessoas gostam de ser bondosas, mas at" a bondade tem limite. & preciso que no ha'a cura.

    (o havendo, moedas continuaro pingando na bacia uma melodiosa ferrugem de goteiras

    metlicas. Os mais caridosos atiram c"dulas, com o devido no'o e curiosidade. #les eigem

    que ela retire o pano para demonstrar o que se diz no cartaz, a gramtica perfeita, mas

    carente de imagens afinal de contas. & in)til dizer: imaginem as feridas, no h necessidade

    para mais essa humilhao. *ochichem esta frase em seus ouvidos e vero o que dizem:

    feridas no foram feitas para se imaginar, mas para serem vistas. # eles a veem, e se

    espantam, e se condoem, e como a humanidade " santa e higi+nica, e deiam l depositadas

    suas c"dulas de um real, s vezes cinco, o pus pelo lastro, o ingresso pago para o circo dos

    horrores. # rumam para casa, alguns at" almoam depois, e comparam o que viram com as

    chagas de *risto, e dizem: *risto morreu por eles tamb"m. epois pedem: me v+ asobremesa e a conta, afrouando suas gravatas para respirarem melhor.

    Os pr"dios altos da cidade... -mensos monumentos erguidos em homenagem ao omem, /

    sua vit$ria diante das foras da natureza. # eus0 eus " a chagas, mas tamb"m a 1iedade

    que ela inspira. & preciso que ha'am doentes nas caladas da cidade, al"m dos edifcios

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    altos. oentes inspiram confiana nos estranhos, pessoas saudveis pedindo esmola nas

    ruas so perigosas. 2ueremos doentes, eles dizem, para que deles nos apiedemos. #iste

    nos estranhos este insuportvel dese'o em a'udar. *hagas0 (o apenas chagas, d+em3nos

    crianas cancerosas, vtimas da !-%, mulheres faltando pernas, mendigos cegos e

    cantadores, as flores da doena, afinal de contas, nascem na carne. 2ueremos a primavera

    do leprosrio para sempre instaurada na cidade. 4emos trocados para dar, graas a eus,

    dinheiro no " problema. inheiro se ganha diariamente nos escrit$rios que compem os

    edifcios altos. 5elhor do que d3los a prostitutas, a traficantes, a vendedores de rosas.

    2ueremos assistir / degradao do outro, para que possamos nos sentir melhor, bem

    melhor.

    1osso ver suas pernas0

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    TESTAMENTO (28 ANOS DE IDADE)

    #screveu outro dia que no havia construdo nada de concreto na vida. (o " verdade.

    6ovens na casa dos vinte costumam ser trgicos, no sabem ainda que a vida requer certa

    dose de indiferena, e esquecem3se das coisas que fizeram antes. O ho'e, s$ o ho'e lhes

    importa, e no o amanh, ou mesmo o ontem. O sangue do dia de ho'e, " isto, manchando

    de vermelho o horizonte, o cogulo das nuvens sendo desfeito pela fumaa. vrios n$s

    desatando, e " preciso saber quantos. #u, por outro lado, sei de coisas terrveis que fez, mas

    me deterei apenas /s boas obras, afinal, a amizade " uma esp"cie de confraria, ou no "0 &,

    diria o velho poeta, os olhos gastos pelo alumnio da lgrima, e se fosse vivo, estaria com

    um copo na mo conversando comigo agora. 5as as pessoas morrem, este " o fato, partem

    como trens que no embarcamos ainda por no termos nossas passagens / mo.

    7ou dizer: ele construiu r"guas para medir fraturas, dentre outras mnimas coisas, rel$gios

    para contar o tempo dos pssaros, escreveu livros em branco para alimentar a lareira

    quando o inverno chegasse... O milagre concebido pela sa)de das pernas: ele andou a p"

    por quil8metros a fio apenas para cruzar com outras pessoas, pescar uma conversa alheia na

    umidade de lnguas estranhas, a'udando velhinhos a atravessar o sinal verde, velhinhos que

    cruzaram seu caminho como feridas abertas e recentes, velhinhos com est$rias para contar,

    com sorrisos amargos e sinceros, portadores da dureza de pedra da vida. %im, a vida, a vida

    de seus amigos acenando da mesa para que sentasse, bebesse com eles, a vida das mulheres

    que o epulsaram de casa, da bicicleta que enferru'ou na garagem, do vinil que mofou

    dentro do armrio cheio de fotos, os ob'etos morrendo ao seu redor, morrendo para que

    outros nascessem, e assim as pessoas como os ob'etos, como as flores, como os poemas,

    como as pequenas doenas al"rgicas, bei'os fortuitos estalados, luzes presas nas garrafas de

    cerve'a vazias.

    %im, inventou novas formas de suicdio, escreveu cartas de despedida sem destinatrios

    epressos, escrevia e as deiava em orelhes, em banheiros de restaurantes, dentro de

    caias do correio... -nventou novas formas para enlouquecer sozinho, e se manteve intacto,

    dentro do terror da noite que se aproimava. %im, e dedos para ela, novos dedos para ela,

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    dedos que nunca a haviam tocado antes, e lbios e lngua, inventou palavras para diz+3la de

    vrias formas, e chorou quando soube que o pneu da bicicleta do poeta havia estourado.

    1neus murchos de bicicleta em geral so tristes, so sorrisos dados a contragosto rilhados

    de poeira.

    #ra asmtico quando criana, os pulmes pequenos fantasmas arrastando correntes, quando

    cresceu se curou, mas bebia muito. 9icava triste muito fcil, na mesma velocidade com que

    ficava alegre. O mundo era para ele imenso e eterno, to grande que no pode caber dentro.

    4udo era difcil e fcil ao mesmo tempo, a grande poa de sil+ncio onde imergia, as narinas

    afogadas nela, a melanc$lica lembrana de ter dormido na grama h muito tempo atrs,

    agarrado / carne quente da irm, o corao dela pulsando vivo como uma borboleta, at" que

    parou... O dele...

    #ra bom e leal, generoso com todos, menos com ele, menos com o que realizava e atirava

    para trs, como se no valesse a pena qualquer assinatura no mundo. (enhuma assinatura

    no mundo, ' que tudo sobre o mundo passa, compra sua passagem e vai.

    5as fez coisas terrveis tamb"m, como, por eemplo, atirar a v$ paraltica escada abaio.

    5as isto eu no conto os homens so feitos mais do que escondem de si do que se pode

    imaginar. %o feitos de sil+ncios, de pequenos segredos sussurrados no ouvido das amantes,

    a cama macia, o corpo agora morno mas ainda molhado entre as coas. #iste um pro'eto

    do fracasso0 !lgum m"rito em se fazer pequenos atos invisveis que ningu"m ver0 !cho

    que sim, ele no. #stas linhas por eemplo: aparentemente so desleiadas, mas escondem

    algo, algo que no direi agora. !lgo em que coloquei boa parte da minha fora, da minha

    sa)de, da minha mem$ria. %im, ele partiu, finalmente adquiriu sua passagem.

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    A CIDADE PASSA

    & preciso talento para ser ningu"m. ;m talento escuro e doloroso, uma lenta sensao de se

    estar indo rpido demais e a coragem necessria para subitamente parar, bem no meio da

    rua movimentada onde caminhava, dobrar as pernas e agachar3se sentado sobre as pr$prias

    coas, as mos em concha segurando o queio... # parar realmente, como o milagre

    repentino de uma viso, parar e esperar que a cidade passe, e que se apresse / sua frente,

    afinal, voc+ est cansado.

    & preciso talento para abdicar da velocidade com que caminha o mundo, e esperar por trens

    que no viro. !brir nas mos pensativas um livro sobre elas, ou um cigarro aceso, ou

    mesmo a foto distante de um cachorro molhado, e ter saudades. & preciso talento parachegar ao aeroporto sem passagem alguma / mo. !penas sentar l, em um dos seus bancos

    de pedra, e observar a decolagem das pessoas que se despedem. -maginar fuso3horrios

    esquecidos, ilhas remotas com margens de areia encharcadas de sangue, um mar aberto e

    imenso fendido pela agonia das rochas enterradas. & preciso coragem para tanto, para isso,

    para esquecer seu pr$prio nome ali sentado, e com ele o nome de todas as coisas que o

    cercam. #squecer simplesmente, fechar e abrir os olhos e agora os olhos virgens a renomear

    o mundo.& preciso um talento escuro e vigoroso levantar3se e ver uma mulher e apont3la e

    diz+3la # olhar para uma faca e apont3la e diz+3la: uma mulher, ou

    um banho quente, ou apontar para os carros estacionados e dizer: nuvem cinza> ?enomear o

    mundo, como um deus louco e entediado, ser inocente por ser esquecido das coisas e das

    metforas, mas nunca, nunca, do duplo vidro dos olhos dela: um onde queima o fogo, o

    outro onde pulsa o sangue. #ste, nunca poder ser esquecido, ou batizado diferente.

    & preciso talento para ser ningu"m. #ercitar a indiferena todos os dias frente ao espelho.

    Olhar para o refleo no espelho diariamente at" que no ha'a mais nada l para ser visto

    al"m de uma gua, de uma passagem, de um rel$gio pendurado sobre uma parede branca e

    carcomida. & preciso talento para eistir apenas no ato da carcia, ser simult@neo e breve

    durante a respirao dos dedos, estes que te tocam, que te tocam, e voc+ no est morto

    ainda. #les te tocam. # voc+ sente, e a m)sica vibra alta e imparcial.

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    & preciso talento para ser um nada, um zero / esquerda, para apagar3se diante dos outros, e

    ser este o seu trabalho. %eu )nico trabalho. %er figurante no mundo, o elenco das mscaras,

    ser atado a tudo aquilo que no possui profundidade, e cair, cair, vertiginosamente e

    gostar disto. & preciso talento para ver o sangue assim to eposto. 1ara ser, de resto,

    esquecido, at" mesmo em seu aniversrio. # o que " um aniversrio perante o mundo que se

    agita0

    ifcil e sem talento " viver entre as falsas vit$rias dos homens. & ter que gritar: gol... # se

    atirar da 'anela por felicidade.

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    INFNCIA

    eve ser o siso, ela respondeu, segundos depois de ele ter perguntado: qual est doendo0

    5as posso fazer assim mesmo, ela diz novamente, me d+ s$ alguns minutos para o

    antiinflamat$rio fazer efeito. #le respondeu no haver pressa, segundos depois de ela ter

    engolido o pequeno comprimido com um gole dAgua. (a verdade, queria ter dito que no

    precisavam fazer, e que mesmo assim ela poderia ficar com o dinheiro. 1oderiam apenas

    conversar, deitados na maciez da cama, afinal, o quarto era limpo. 5as logo viu que no

    adiantaria dizer isto, ela era uma profissional, e estava ali para fazer o que combinaram ao

    telefone. !s camisas vazias deitavam na cadeira.

    O quarto era limpo, era pobre, por"m asseado, com uma cama apenas, e uma pequenageladeira ruidosa. Outros homens eigiriam possu3la do 'eito que fosse, fazendo questo de

    eercitar a crueldade sobre a pr$pria incapacidade dela de se defender da dor. 5as no ele,

    a dor no o ecitava, antes etraviava nele qualquer impulso violento. #le se tornava d$cil

    com a dor, indulgente, com dese'os de cuidar. eite3se um pouco, ele disse, talvez assim

    faa efeito mais rpido, quer comer alguma coisa0 ! digesto /s vezes a'uda a acelerar o

    efeito do rem"dio. #la sorriu, e se deitou, mas disse que estava sem fome. #ste siso ' vem

    me incomodando faz tempo, ela disse. # por que no o arranca, ele perguntou, imaginando

    que bom seria se eles realmente encetassem uma longa conversa a partir dali. 4enho medo,

    respondeu, no posso ver sangue que desmaio. ;ma s)bita luz irrompeu no quarto, algum

    farol de carro l fora, ele pensou.

    %isos so realmente dispensveis e dolorosos. ;ma herana ancestral que ho'e de nada nos

    serve. %abia que eram nossos caninos, ele perguntou, ela silenciada mas com olhos atentos.

    erdamos eles da "poca em que quebrvamos ossos na presa, serviam para rasgar a carne

    tamb"m. epois veio o fogo, a pedra lascada, a faca, a comida congelada, e eles se

    atrofiaram. #la sorriu. 4riste isso no "0 O qu+0 (o sei, a dor, eu acho. # como.

    #le pensou na palavra BsisoC, depois na palavra BossoC e ficou um tempo em sil+ncio. !s

    palavras o espantavam, o deiavam pensativo. BOssoC e BsisoC, ele disse para si, so duas

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    palavras estranhas. #la gemeu dramaticamente. #le se condoeu dela, mas continuou

    pensando. 2uer fazer bochecho com gua gelada, talvez melhore, ele disse, mas continuou

    pensando. #ra capaz de conversar com duas pessoas ao mesmo tempo sem perder o fio da

    meada com nenhuma. (este caso: ela e ele pr$prio. (o obrigado, ela respondeu, logo logo

    passar. ! cidade logo abaio deles, tamb"m passaria em breve.

    ! dor, ele pensou, " uma esp"cie de tecido que nos protege. 2ue coisa bonita de se dizer,

    seus olhos queimaram de orgulho. (os protege da etino, " um sentimento nobre e

    verdadeiro, silencioso e escuro, embora ela gemesse. aqui a pouco faremos, murmurou.

    #le respondeu: no h pressa. (este instante, ele sentiu uma s)bita vontade de chorar, e as

    lgrimas caram como '$ias derrubadas da mesa, ou como insetos asfiiados. #la no o viu

    chorar, adormeceu em seguida, talvez efeito do rem"dio. #le poderia ter ido embora, terpegado seu dinheiro

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    CADERNO DE MEMRIAS ANOTADAS SEGUNDO A ORDEM DO ESQUECIMENTO

    #u sou aquilo que esqueo. %ou feito dessa mat"ria s$lida e invisvel, e das palavras que

    uso para tentar record3la. %ou as anotaes que fiz sobre a pgina muda, estas que abro e

    leio, e as letras como se danassem sozinhas discutem sua respirao comigo. #u me

    esqueo com facilidade, e isto " tudo o que sou. O que lembro no me pertence, no sou eu,

    no me diz respeito. O que lembro no me pode ferir. #stou intacto das minhas lembranas

    bem como aqueles animais pastando na grama. 5eu nome, por eemplo. #u lembro meu

    nome todos os dias, mas isto no me diz nada. #u no sou meu nome, nem a gramtica /

    qual obedece me ordena. 5eu nome, inclusive, poderia ser at" outro, que daria na mesma.

    O que me nomeia na verdade, habita outra raiz, uma raiz fincada no sangue de outras

    coisas. ! lembrana " uma forma dolorosa de cinema. 1alavra que a defina ento0 #sta mefoge. (o sou feito de lembranas, eu lembro: tenho dois pulmes e um corao, mas no

    sou isto. ;m belo par de pulmes alis, rosados, )midos, com pleuras sedosas e bem

    guardadas no t$ra. ;m corao generoso e carnudo, eu digo, um tametro adulterado por

    soluos, ele bate, mas no sou eu, " ele. #le " um outro, " o inimigo infiel /s minhas

    origens. %er arrancado quando a batalha se der por encerrada, e posto em uma bande'a

    ainda fumegando, vsceras e rosas, pequenos e )ltimos batimentos ruidosos apagando3se

    aos poucos, at" que se'a dado a outro.

    %ou aquilo que esqueo, e nem mesmo este rosto no espelho sou eu. #u no sou nada, sou

    aquilo que deiei para trs. O que ficou enterrado na areia e no vidro, sou eu. O que no

    disseram sobre mim e meus pais, sou eu. O sil+ncio que se fez quando adentrei a sala de

    visitas, sou eu. ! id"ia da morte, da sombra, da vela apagada, da noite molhada e ngreme

    inclinando3se com a chuva, sou eu. #u sou a frase que ela se esqueceu de dizer sobre mim,

    nada que conste nos autos, me define. (em mesmo seus dedos me tocando, ou o filho que

    ela carregou um dia e que, disseram, parecia3se comigo, sou eu. 5eu nome, ah meu nome,

    este s$ serve para cintilar nos documentos, na certido, na assinatura do cheque. #u sou o

    vazio, o esboo, aquilo que se tem de mais valioso e que, por isto mesmo, vai apagando3se

    no breve percurso de uma vida. ! vida " breve, muito breve para a ficarmos recordando.

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    HORIZONTE

    %eus movimentos da cama at" o banheiro so regidos por espasmos. #la caminha, e todas

    as manhs a mesma coisa, e nada a det+m. %eu andar " rigoroso. ! mo pensada h pouco

    tempo sobre mim, era a mo dela, mas no houve tempo para complet3la. 2uantas coisas

    deiamos de fazer, afinal de contas, por estarmos sempre atrasados. #la lava o rosto. #u

    ouo o barulho, eu imagino a gua sobre a pele dela como uma chuva caindo sobre o mar.

    9ascas de vidro de vida breve, espatifando3se sobre a l@mina martima. !h seu sangue em

    minha boca, eu poderia tom3la na volta do banheiro e eigir dela a compensao do seu

    corpo molhado. 5as ela diz: " preciso recuperar o teto do corredor e eu me calo.

    O teto do corredor " cheio de infiltraes. ! gua, e suas lnguas de acrlico, lambendo asvigas por dentro. #ssa imagem me ecita, vrias coisas me ecitam, mas eu me calo. 5e

    calo diante de tudo. *alar3se, " meu ato principal. 1alavras na minha cabea formam

    imagens, e imagens so feitas de carne para mim, eis minha doena. !h como sou doente,

    deita aqui e me abraa um pouco...

    5as a maior parte do dia estarei sozinho e em sil+ncio. *omigo, dicionrios e cigarros

    apenas. (o estou reclamando, so boas companhias, a @ncora do que sinto " o que me fere

    e me pua para baio. (o so eles, mas a gravidade que imprimo em cada gesto meu sobre

    a casa, quando vazia. #u a toco a casa o substantivo casa " tocado por mim: paredes e

    cho, eu lambo os azule'os imaginando por onde caminhou. *aminhou ela, ela a quem

    conheo todos os caminhos. # penso seu corpo, e a mo pensada me tocando, mas eu sou

    que toco agora. & minha a mo. 5as fao de conta que " dela.

    # espero. # me calo e espero. 5as s$ espero porque sei que voltar. #m breve. #nquanto

    isto, escrevo. #screver " minha segunda funo, depois de calar3me. Es vezes quebro um

    pouco a monotonia passeando de guarda3chuva dentro da casa. !inda bem que ningu"m me

    v+, as 'anelas esto sempre fechadas. O que escrevo0 (o sei ao certo, mas a cor do guarda3

    chuva " cinza. 7oc+s sabem, h infiltraes no corredor.

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    2uando estou sozinho, " a id"ia da morte o que se estreita sobre mim. 5as eu a combato.

    (o, no, no quero morrer agora, pelo menos por enquanto.

    O que ela diria se me visse assim, desse 'eito0

    (o sei ao certo. 5as se ela estivesse aqui e agora, pediria que nunca mais tivesse que

    partir.

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    PASSEIO NOTURNO

    (o passeio, a felicidade o visita e o atravessa, toca uma composio de notas ternas

    eecutadas em sua carne, para orquestra ou piano. (o passeio do dia o ar " denso e quente,

    enquanto v+ fbricas nascendo do solo como pragas silenciosas. (o da noite, o ar " leve e

    melfluo, )mido porque as rosas choram / noite, imersas no p@nico que avizinha a

    madrugada. !s 'anelas dos apartamentos vo acesas ladeando as vistas. #le " o visitante

    dessas luzes, o homem que caminha mergulhado nas sombras, nas arestas que as rvores

    produzem. !cima dele, queimam estrelas, todo o universo suspenso por um mist"rio

    gravitacional. !s cordilheiras no mar, as montanhas, os arrecifes fincados na l@mina azul, o

    horizonte habitado por pssaros, em tudo isto ele pensa e prev+: logo amanhecer.

    ! cidade no sabe, mas ele a atravessa inteira com rara disposio. e uma ponta a outra,

    como um son@mbulo trancado fora de casa. ! cidade produz os bens que ele devora com os

    olhos da palavra, mas no suspeita dessa fome dele, ou de sua ins8nia. (o passeio noturno,

    todos os g+nios da cidade que dorme esto com ele, e acordados: o dramaturgo que escreve

    poemas em guardanapos, o escritor separado da mulher que mora no hotel do centro, a

    prostituta e sua bolsa repleta de est$rias tristes batom e navalha, o travesti, animal

    visionrio, com seu corpo de mrmore talhado / mo, o taista com o rev$lver no porta3

    luvas do carro, o menino que vende flores, a menina que vende balas, a cidade que dorme

    sem saber disso, da respirao lenta dos cachorros com fome, e dele. O caminhante gosta

    dos passeios noturnos, e gosta porque so raros, e raros porque teme a viol+ncia santa dos

    assassinos, dos criminosos / espreita, dos pequenos monstros da noite. O passeio do dia "

    mais seguro, por isto " mais freqFente, com suas fbricas acesas produzindo o plstico, a

    bicicleta, o autom$vel, com seus semforos acesos e suas pessoas sempre atrasadas. #le

    caminha com elas, seus irmos, ouvindo seus passos em volta.

    ! cidade se esquece das pessoas que a atravessam assim como ele. (a solido do

    pensamento, a cidade est fora, apartada, im$vel. ! tristeza do trompete que a toca, o

    m)sico no metr8, pede trocados. 5as ele no vai de metr8, vai a p", entrou na estao

    apenas para cortar caminho, e viu o m)sico. (o precisa de carros, nem de metr8, seu corpo

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    " a mquina que lhe obedece, seus rins, imensos tanques cheios de gasolina. %eu corao, o

    tametro adulterado para cobrar menos. 4anto, que lana moedas ao chap"u do m)sico,

    que agradece. !s pequenas, as mnimas coisas, so o que importam de verdade.

    #le caminha porque h um sentimento de perda em tudo, de futilidade, de pouco

    comprometimento. *aminha porque o mundo gira, levando as pessoas que sero esquecidas

    em breve. #m breve, muito breve, ele tamb"m ser esquecido.

    2uando mergulhar os p"s na terra, e morrer. %er o mesmo que voar.

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    HBITO

    %ou um homem de hbitos simples, ele pensou. Gosto de livros, por eemplo, e de

    mulheres com cabelos longos. *oisas fceis de achar como essas. Gosto de acender meu

    cigarro quando estou de $culos. %im, uso $culos, mas s$ para ler de perto. %e o coloco para

    acender cigarros " pelo prazer de ver a chama do isqueiro riscar a ferida do vidro, e

    derramar sua luz em meus olhos. %im, tenho olhos, mas gosto mais da minha boca, e de

    tomar banho frio. ;m bom banho frio e voc+ relaa, as veias da garganta pulsam um leve e

    cardaco pulsar. & o sangue irrigando tudo. 5inha boca " relativamente bonita, tenho lbios

    grossos como minha irm. %im, eu tive uma irm, e fui apaionado por ela. 2uando

    criana, as pessoas nos feriam, e "ramos a )nica coisa um do outro. # nos abravamos

    para chorar 'untos, e dessa proteo m)tua, nasceu o amor. %im, o amor " esta troca devulnerabilidades, " a proteo que se d a quem est perdido, e estvamos perdidos os dois,

    por isso, amos para debaio dos cobertores e nos lambamos. ! lngua dela era quente, a

    minha um pouco salgada. ! noite, esta sim era fria.

    Gosto de caminhar, outro hbito simples. ?aramente forneo dinheiro para o transporte

    p)blico. Os motoristas de 8nibus me odeiam, assim como os barbeiros, as prostitutas, e os

    traficantes. 5eus bolsos furados e meus quinhentos livros me adoram. *omo pouco, penso

    muito, e falo menos ainda. 2uando posso, escrevo. 2uando no, deio pra l. Gosto de

    beber, mas acompanhado, e ouo h mais de dez anos sempre o mesmo disco. (o preciso

    de quase nada: um mao de cigarros por dia e o Hlbum Iranco dos Ieatles. %e der, duas

    garrafas de cerve'a.

    (o tenho ambies, sou homem de poucas ambies. 4enho uma mulher linda que me

    ama, ela tem cabelos longos, e ela me lambe, e isto me basta. #u a lambo tamb"m, e escrevi

    mais de quinhentos poemas para ela. #la me aquece, no preciso de casacos de frio. 5inha

    ambio " morrer esquecido. # conhecer eus, para tratar com ele certos assuntos ntimos.

    2uero pergunt3Do:

  • 8/13/2019 Breviariodasnarrativasmalcontadas

    17/17

    1or que, quando eu estava a'oelhado no milho e obrigado a dizer seu (ome, o %enhor no

    me salvou0 #u tinha uma cadeira sobre a cabea, e meus 'oelhos sangravam, sabia0 #

    ento0

    5as vou perguntar s$ de birra. #u ' O perdoei. 5eu corao " pequeno demais para

    guardar o rancor de eus.