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1 BIOÉTICA A bioética, apesar de ser considerada uma ciência relativamente nova, tem seus fundamentos enraizados há milênios na filosofia greco-romana, cujos princípios éticos norteavam a vida sócio-político-econômica daqueles povos. A decisões políticas, nas civilizações greco-romanas, eram sempre discutidas nos conselhos das cidades, junto aos filósofos, cujas análises e decisões geravam subsídeos para as argumentações sobre o que era considerado moral ou imoral, aplicável ou não à sociedade. Etimologicamente, a palavra ética vem do grego ethos que significa costumes. Portanto, ética - a “ciência dos costumes”- é a parte da filosofia que trata das obrigações do homem, com seus princípios aplicados no cotidiano das pessoas. A ética apresenta um caráter temporal e atemporal. A característica da ética atemporal é a sua capacidade de vigorar através dos tempos, estando sempre viva e una na sociedade. Esta tem a habilidade de fortalecer os valores da bondade, dignidade, responsabilidade, altruísmo, entre outros, que enobrecem a alma humana. Por outro lado, a ética temporal lida com questões pertinentes a cada época da história, ou seja, provoca questionamentos filosóficos mutáveis e transitórios. Por exemplo, o movimento feminino na década de 60- 70 levou, não só à mudança da conduta feminina com a conquista de seus direitos sociais, como também influenciou profundamente a mudança de todo um modelo de sociedade, onde as decisões político-econômico-sociais eram antes centralizadas na figura masculina. A ética esteve “adormecida” por um grande tempo na história, na Idade Média, com a perseguição e queima dos filósofos e defensores da liberdade humana. Este foi considerado o período das sombras, no que se diz respeito à cultura, à arte e ao desenvolvimento científico-político-social. Nesta época, muito do conhecimento filosófico/ético se manteve e se desenvolveu com os árabes. Entretanto, o estudo e aplicação dos valores éticos na sociedade ressurgiram a partir do Renascimento, sendo que atualmente, tal ciência objetiva primordialmente adotar as práticas éticas nas decisões dos impasses/questões sociais. A bioética pode ser definida como a ética da vida, uma ciência que hoje ganha cada vez mais sustentabilidade na sociedade e meio científico, através das discussões de cunho pluralista sobre temas sociais contemporâneos. Possui fronteiras amplas, das discussões

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BIOÉTICA A bioética, apesar de ser considerada uma ciência relativamente nova, tem seus

fundamentos enraizados há milênios na filosofia greco-romana, cujos princípios éticos

norteavam a vida sócio-político-econômica daqueles povos. A decisões políticas, nas

civilizações greco-romanas, eram sempre discutidas nos conselhos das cidades, junto aos

filósofos, cujas análises e decisões geravam subsídeos para as argumentações sobre o que

era considerado moral ou imoral, aplicável ou não à sociedade. Etimologicamente, a

palavra ética vem do grego ethos que significa costumes. Portanto, ética - a “ciência dos

costumes”- é a parte da filosofia que trata das obrigações do homem, com seus princípios

aplicados no cotidiano das pessoas.

A ética apresenta um caráter temporal e atemporal. A característica da ética atemporal é a

sua capacidade de vigorar através dos tempos, estando sempre viva e una na sociedade.

Esta tem a habilidade de fortalecer os valores da bondade, dignidade, responsabilidade,

altruísmo, entre outros, que enobrecem a alma humana. Por outro lado, a ética temporal

lida com questões pertinentes a cada época da história, ou seja, provoca questionamentos

filosóficos mutáveis e transitórios. Por exemplo, o movimento feminino na década de 60-

70 levou, não só à mudança da conduta feminina com a conquista de seus direitos sociais,

como também influenciou profundamente a mudança de todo um modelo de sociedade,

onde as decisões político-econômico-sociais eram antes centralizadas na figura

masculina.

A ética esteve “adormecida” por um grande tempo na história, na Idade Média, com a

perseguição e queima dos filósofos e defensores da liberdade humana. Este foi

considerado o período das sombras, no que se diz respeito à cultura, à arte e ao

desenvolvimento científico-político-social. Nesta época, muito do conhecimento

filosófico/ético se manteve e se desenvolveu com os árabes. Entretanto, o estudo e

aplicação dos valores éticos na sociedade ressurgiram a partir do Renascimento, sendo

que atualmente, tal ciência objetiva primordialmente adotar as práticas éticas nas decisões

dos impasses/questões sociais.

A bioética pode ser definida como a ética da vida, uma ciência que hoje ganha cada vez

mais sustentabilidade na sociedade e meio científico, através das discussões de cunho

pluralista sobre temas sociais contemporâneos. Possui fronteiras amplas, das discussões

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atualíssimas sobre clonagem, células tronco, aborto, eutanásia, banco de órgãos, à

utilização de diferentes tecnologias em serviços públicos e apropriado emprego de

recursos financeiros na saúde.

Não há um consenso quanto ao marco para o surgimento da Bioética. Entretanto, as

atrocidades de nazistas no período da Segunda Guerra Mundial, com a utilização de

prisioneiros nos campos de concentração para a pesquisa, incitaram uma revolta na

sociedade frente a tantas desumanidades. O Código de Nuremberg, (1947), com o

julgamento das atrocidades dos nazistas durante a guerra, a Declaração Universal de

Direitos Humanos (1948), promulgada pela recém criada Organização das Nações Unidas

(ONU), formam o resultado do desagrado da sociedade e sua manifestação em prol da

defesa e proteção das pessoas quanto aos seus direitos sociais. Movimentos sociais de

reinvindicação dos direitos individuais - movimentos feministas, contra a segregação

racial, de proteção à criança e à juventude, a revolução sexual, entre outros- fizeram parte

das décadas de 50/60.

O período pós-guerra é também marcado pelo surgimento dos Estados de Bem Estar

Social (Welfare-State), com princípios de garantia de direitos básicos à sociedade, tais

como: saúde, alimentação, habitação e educação. Outros documentos e momentos no pós-

guerra, como o crescimento econômico, a evolução cultural, os avanços tecno-científicos,

a modificação da relação paciente-profissional, a ética nas pesquisas biomédicas,

possibilitaram o desenvolvimento e reconhecimento da ética em saúde.

A Igreja teve (e ainda tem) grande participação nas questões éticas e bioéticas da época.

O Papa Pio XII influenciou muito o movimento da bioética na época, já que o mesmo era

freqüentemente solicitado a responder questões que envolviam a pesquisa e o tratamento

de pacientes. Tinha como conduta reunir religiosos e cientistas para o auxiliar a responder

questões que lhe eram dirigidas de todo o mundo. Surge, desta conduta, os primeiros

Comitês de Ética. Uma das grandes questões levadas ao papa Pio XII referiu-se

primordialmente ao procedimento de eutanásia, a partir do desenvolvimento do

respirador artificial – “é ético retirar o respirador em pacientes que estão no estado de

vida/ morte? Neste caso, quem o tiraria?”

Outra questão levantada nas décadas de 50/60 foi com relação ao desenvolvimento

tecnocientífico para o transplante de órgãos, especialmente no caso do transplante de

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coração, já que, para este tipo de procedimento, o coração deve ainda estar funcionando.

A partir disso, levantou-se a seguinte questão bioética: quando o doador é considerado

morto? O órgão (coração) foi retirado respeitando-se os direitos da pessoa viva? A partir

disso, em 1968, o Comitê da Escola de Medicina de Harvard estabeleceu a morte real

como a encefálica e não a da parada completa da respiração e da circulação sanguínea.

Posteriormente, se estabeleceu como morte a “perda completa e irreversível das funções

do tronco cerebral”.

Ainda nesta época, novos questionamentos bioéticos foram suscitados, como o problema

da disponibilização de recursos escassos ao sistema de saúde, tendo que se restringir a

população ao tratamento básico, a fim de se universalizar a atenção à saúde; outra

discussão foi referente à relação médico-paciente, em que se começava a analisar

criticamente a conduta médica desumanizada, especializada e técnica. Sobre esta última,

é estabelecido nos EUA em 1969 o Código do Direito do Paciente Hospitalizado nos

EUA, em que são respeitados os direitos, a autonomia e a capacidade dos mesmos em

decidir sobre seus corpos e os valores dos pacientes.

O crescimento econômico no período pós-guerra refletiu também no aumento

desenfreado do desenvolvimento de pesquisas e novas tecnologias biomédicas, as

biotecnologias. Entretanto, mesmo na presença de movimentos (e das declarações) em

defesa dos direitos humanos, observou-se a persistência de abusos na pesquisa em

humanos. Alguns casos de pesquisas não éticas são conhecidos no período pós-guerra:

pesquisa sobre a sífilis nos EUA (1932-1972), para se conhecer a história natural da

doença, utilizando-se negros acometidos pela mesma, sem ser oferecido um tratamento

adequado aos mesmos; pesquisa com o uso da talidomida para o tratamento de insônia e

como antiemético para diminuição de náuseas durante a gravidez, tendo levado à

malformações congênitas de 15.000 a 20.000 crianças na Europa. Em 1966, um artigo no

The New England Journal of Medicine denunciou, de uma lista de 50 experiências, 22

foram consideradas não éticas, com o uso de sujeitos da pesquisa como grupos de negros,

deficientes físicos e mentais para tratamento de agravos diferenciados.

Na odontologia, temos a pesquisa clássica intitulada “Estudo de Vipeholm”, de

Gustafsson, 1954, em que se objetivou responder a uma série de questionamentos quanto

à relação entre dieta e cárie. O estudo foi realizado na Suécia, em pacientes de um

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hospital de deficientes mentais em que se testou, durante 5 anos, diferentes dietas a base

de variações em quantidade, tipo e freqüência de carboidratos fermentáveis (açúcares)

para se observar o estabelecimento e progressão das lesões de cárie dental.

Em 1964, houve uma assembléia na Finlândia (Helsinque), com a participação da

Associação Médica Mundial para a revisão do Código de Nuremberg, dada a série de

abusos contínuos quanto à ética na experimentação em humanos. Estabeleceu-se nesta

reunião o protocolo de pesquisa a ser conduzido por pesquisadores qualificados, em que

deveria ser explicitado os riscos previsíveis e possíveis benefícios (não maleficência e

beneficência) dos sujeitos da pesquisa, respeitando-se os seus direitos a consentirem ou

não na participação (autonomia), após os devidos esclarecimentos sobre a condução da

pesquisa - os interesses dos indivíduos devem prevalecer sobre os da ciência e sociedade.

A Declaração de Helsinque sofreu uma série de revisões em vários países, sendo a última

versão realizada na Escócia, no ano de 2000, onde se norteou o uso de grupos placebo.

Além disso, estabeleceu-se que o CEP deve estar de acordo com as leis e

regulamentações dos países onde se localizam as pesquisas.

Como já mencionado anteriormente, não há um consenso entre pesquisadores quanto ao

início da Bioética, alguns alegando ter seu marco referencial o período pós-guerra e

outros afirmando ser na década de 70, especialmente com o lançamento de obras

literárias pelo médico oncologista Van Rensselaer Potter, onde o conceito da Bioética

começou a ser popularizado com a obra The Science of Survival (1970) e no ano seguinte,

com a obra Bioehics: the bridge for the future. A palavra Bioética é uma aliança entre o

saber biológico (bio) com os valores humanos (ética). Por que o autor usa a bioética

referenciando como a ponte para o futuro? De uma certa maneira, o autor foi visionário

ao perceber a importância desta ciência na participação de várias ciências da vida. Daí o

desenvolvimento desta ciência dentro da multi, inter e transdisciplinaridade, nos dias de

hoje-conceitos discutidos posteriomente. Potter defendia a bioética participante de

questões gerais da vida humana, como nos temas da pobreza, fome mundial, ecologia,

vida animal, bem-estar e qualidade de vida das pessoas, pesquisa, paz, política, entre

outros. Entretanto, muitos autores limitavam a bioética às questões levantadas pelo

desenvolvimento das ciências biológicas e sua aplicação nas Ciências da Saúde, como

uma ramificação da ética filosófica, o que lamentava van Potter.

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Em 1974, estabeleceu-se nos EUA, num Congresso em Belmont, com a participação da

Comissão Nacional para a Proteção dos Seres Humanos em Pesquisa Biomédica e de

Comportamento, o Relatório de Belmont, em que foi estabelecido no documento os 3

princípios éticos, hoje amplamente utilizados pela escola principialista: autonomia,

beneficência (não maleficência, incluído posteriormente) e justiça. Tal documento

atualmente é considerado um referencial para a maioria dos códigos, diretrizes e

resoluções que estabelecem as condutas éticas para a pesquisa em humanos.

O conceito amplo da bioética em que Potter defendia ostensivamente retorna e tem sido

adotado hoje em dia, dado o reconhecimento dos pesquisadores e da própria sociedade

quanto à necessidade de sua influência na participação de variados temas que influenciam

direta ou indiretamente a saúde das pessoas. Questões, por exemplo, relacionadas ao

meio ambiente, à escassez de alimentos, à má utilização pública dos recursos financeiros

para o benefício da população, entre tantos outros específicos ou não da área biomédica,

são reconhecidos como de responsabilidade da Bioética. A Bioética hoje é defendida

como ciência multi, inter e transdisciplinar. Multidisciplinar, já que suscita o olhar de

várias disciplinas específicas sobre um mesmo problema, levando à coleta de pontos de

vista diferenciados, produzindo assim, objetos teóricos diferentes; interdisciplinar, pois a

bioética utiliza os vários pontos de vista, mas com a finalidade cooperativa de construir

um objeto teórico comum, ou seja, a Bioética integra as disciplinas; e transdisciplinar, já

que ela leva ao atravessamento das fronteiras disciplinares, unificando conceitos entre as

disciplinas, consideradas estas limitadas para responder, por si só, aos problemas. Há

uma interseção de ciências como as ciências da saúde, com, especialmente, as ciências

humanas (sociologia, antropologia, psicologia, ciência política, psicanálise) e outras

como o direito, a filosofia (ética) e a teologia. Assim, um mesmo tema é discutido e

interpretado a partir de vários posicionamentos.

A Ética na Pesquisa no Brasil

A história mostra que a humanidade sempre almejou a saúde, ou melhor, o

prolongamento da vida. A doença nos povos primitivos era tida como causa mística, fruto

de feitiços e influências espirituais. Curandeiros, pajens de tribos indígenas tratavam-na a

base de trabalhos e ervas, por meio de tentativas, ora curando, ora não.

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A cura também foi foco de interesse na Antiguidade pelos egípcios, babilônicos, persas,

chineses com o desenvolvimento nas áreas médico-farmacológicas. Na história, mesmo

na Idade Média, tentativas de se tratar doenças infecto-contagiosas, pestes, pragas,

calamidades naturais foram também motivos para a experimentação em humanos.

Entretanto, o nascimento da experimentação científica se deu com Galileu-Galilei, no

século XVI/XVII, onde o mesmo afirmava que: “a verdade deve ser buscada por meio da

experimentação e observação”. A partir do século XVII, a ciência experimental cresceu

consideravelmente, com o aumento do número de experimentos e de cientistas e hoje,

atinge o seu auge, com o crescente interesse pelos desenvolvimentos de novas

tecnologias em saúde.

Como já mencionado previamente, documentos e diretrizes nortearam e norteiam hoje a

pesquisa em humanos. A preocupação com o bem estar, com a proteção e com os direitos

humanos se deu somente no final da década de 40, após a segunda guerra, com a

elaboração do Código de Nuremberg (1947), e, posteriormente, com a Declaração

Universal dos Direitos Humanos (1948), com a Declaração de Helsinque (1964) e com o

Relatório de Belmont (1974).

Em 1982, com os escândalos contínuos nas questões éticas das pesquisas especialmente

naquelas realizadas em países em desenvolvimento, o Conselho Internacional de Ciências

Médicas - CIOMS, junto a OMS e a UNESCO elaborou as Diretrizes Internacionais para

Pesquisas Biomédicas. Consideradas um desdobramento da Declaração de Helsinque, as

diretrizes objetivaram indicar os princípios éticos fundamentais que orientassem a

condução de pesquisas biomédicas envolvendo seres humanos, particularmente em países

em desenvolvimento que ainda não possuíam normas bioéticas. Houve assim um maior

controle das pesquisas em humanos nestes países, especialmente aquelas com patrocínio

de capital externo, as quais favorecem freqüentemente aos interesses externos em

detrimento das necessidades locais. As diretrizes foram distribuídas a ministérios de

saúde, conselhos de pesquisa, faculdades de medicina, companhias farmacêuticas, ONGs

(Organizações não Governamentais) voltadas à pesquisa, sendo as críticas e opiniões

destas diversas instituições recebidas, objetivando-se a análise posterior e aprimoramento

das diretrizes. Outro documento foi elaborado em 1993 pelo CIOMS, em Genebra e foi

reatualizado em 2002, abrangendo 21 diretrizes, também objetivando orientar os países

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de recursos escassos na definição de diretrizes nacionais de ética para a pesquisa

biomédica.

As primeiras normas nacionais sobre ética em pesquisa no Brasil datam de 1988- a

Resolução 1/88- pelo Conselho Nacional de Saúde, onde se instituiu o Conselho de Ética

em Pesquisa no país. Houve, com esta resolução, a normatização da pesquisa envolvendo

humanos e a obrigatoriedade da criação dos CEPs (Comitês de Ética em Pesquisa) em

cada instituição de pesquisa. Em 1995, instituiu-se o Grupo Executivo de Trabalho, um

grupo multidisciplinar, que teve a função de avaliar o quadro nacional quanto ao

funcionamento e qualidade dos Comitês de Ética no Brasil. Após este trabalho de

pesquisa, o CNS (Conselho Nacional de Saúde) institui a Resolução 196/96, fruto da

revisão do texto da Resolução 1/88 e de uma série de reformulações das diretrizes

internacionais anteriores do CIOMS. A resolução é constituída por 10 capítulos,

abrangendo questões como: criação do CONEP – Comissão Nacional de Ética em

Pesquisa, com a análise da ética dos projetos de pesquisa; instituição do Consentimento

Livre e Esclarecido; abordagem de aspectos de risco e benefício da pesquisa;

obrigatoriedade do caráter pluralista para o funcionamento do CEP.

A Resolução 196/96 segue primordialmente a escola anglo-americana com a corrente

principialista (Relatório de Belmont, 1978), constituída pelos princípios de beneficência,

não maleficência, justiça e autonomia (Beauchamps & Childress, 1989). A beneficência e

não maleficência, princípios prioritários, reforçam a importância de se fazer o bem e/ou

se evitar o mal, exaltando sempre a dignidade humana. A autonomia considera a opinião,

a vontade do outro, levando-o a escolher o que for melhor para si mesmo. Este princípio é

largamente utilizado para proteger os interesses do paciente, como a idoneidade do

profissional, sendo relacionado à valorização do Termo de Consentimento Livre e

Esclarecido, documento este cada vez mais utilizado pelos profissionais de saúde, tanto

em ambiente clínico, como para a finalidade de pesquisa.

Algumas vezes observa-se um conflito inerente entre a autonomia e os princípios de

beneficência e não maleficência, onde estes últimos devem ser priorizados em relação ao

primeiro, já que a defesa da autonomia do indivíduo não pode se sobrepor ao benefício

individual ou coletivo. Para uma melhor elucidação, poderíamos citar, por exemplo, o

caso de um paciente ir a um consultório odontológico para extrair todos os seus dentes, já

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que sua intenção é “resolver seu problema bucal”, com a instalação de próteses totais.

Neste caso, a autonomia deste sujeito em escolher e querer algo tão radical é confrontada

com a autonomia do profissional em se recusar a cumprir com tal solicitação; ou seja, o

profissional recusa-se primeiramente porque sabe que isto não está de acordo com a sua

formação e, especialmente, porque sabe que tal conduta não beneficiaria o paciente. A

autonomia dos indivíduos é também confrontada com o princípio de beneficência em

situações em que o benefício coletivo sobrepõe-se à escolha individual. Por exemplo,

medidas de proteção à saúde como a vacinação, a iodização do sal, a fluoretação das

águas de abastecimento público, são empregadas como estratégias públicas

populacionais, já que o benefício coletivo sobrepõe-se à vontade/autonomia dos

indivíduos em querer ou não. Logicamente que todos devem ter autonomia sobre as suas

escolhas, mas o seu exagero pode levar ao individualismo e ao egoísmo, resultando

também na iniqüidade e injustiça social.

O princípio de justiça defende o direito de cada um com respeito e imparcialidade. Tal

princípio aplica-se também de forma coletiva, em nossa realidade sanitária brasileira, já

que todos têm direito à saúde, de forma igualitária. Neste sentido, o princípio ético da

justiça em âmbito coletivo vai além da autonomia do paciente, frente apenas à relação

dos usuários com os profissionais em um ambiente clínico, dirigindo-se também à

sociedade como um todo dentro de um sistema que respeita os direitos e a cidadania da

população, defendendo a universalização, eqüidade e integralidade na atenção à saúde.

A Resolução 196/96 também recebeu certa influência do modelo europeu, o

Personalismo, de Diego Gracia (1989), onde reconhece a centralidade da pessoa como

fundamento da bioética. Não há o bem ou o mal, pois nada é absoluto na vida, sendo

totalmente dependente das circunstâncias e do momento apresentado. Segundo Gracia, o

critério de decisão de algo seria o resultado provocado por esta decisão, que deve ser o de

felicidade no indivíduo/sociedade. Portanto, a defesa no personalismo seria o de uma

bioética mínima, com princípios defendidos como o da responsabilidade e liberdade, não

podendo um se desvincular do outro. Dentro destes, distinguem-se os princípios de

sociabilidade, em que se reconhece a participação de cada um na sociedade, tendo todos

responsabilidades na sociedade para a garantia da ordem social, e o de subsidiariedade,

referindo-se às responsabilidades dos organismos da sociedade para com cada indivíduo.

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O CEP deve ser organizado por uma instituição de pesquisa, com função consultiva,

deliberativa e educativa, devendo proteger os sujeitos da pesquisa na sua integridade e

dignidade. Julga riscos e benefícios dos tratamentos em teste, verifica a clareza do termo

de consentimento e averigua a competência dos pesquisadores para a execução da

pesquisa. Entretanto, deve-se ressaltar que a avaliação dos projetos de pesquisa se dá

apenas com relação aos aspectos éticos e não aos metodológicos.

Ressalta-se, neste contexto, que o caráter pluralista é primordial ao exercício ético para

se ter todas as visões das várias facetas sobre um mesmo dilema, fazendo-se assim a

melhor opção e decidindo-se o que for mais adequado.

A Bioética e as Escolas Biomédicas no Brasil

A formação em Bioética nas escolas brasileiras biomédicas ainda se encontra em passos

iniciais. Grande parte dos currículos escolares inclui disciplinas da área Deodontológica,

restringindo o conhecimento pertinente a relações profissional-paciente, dentro do

Código de Ética específico a cada área biomédica - documento este impositivo e

“paralisante, no sentido de que impõe uma série de normas de conduta, de forma vertical

e acrítica, do que é “certo ou errado”, “legal ou ilegal”. As grandes questões biomédicas -

aquelas que envolvem a sua responsabilidade na qualidade de vida dos indivíduos e de

sua relação como indivíduo e cidadão, responsabilizando-se também para a contribuição

por um mundo melhor - não são levadas em consideração para a formação do profissional

durante o curso de graduação. Portanto, o estudo da Bioética, que primordialmente

estuda, analisa criticamente, de forma responsável e pluralista as diferentes situações,

atos e condutas humanas, não é conduzido apropriadamente ou nem mesmo é incluído em

grande parte das escolas brasileiras.

Tais assertivas são corroboradas por Sérgio Rego, pesquisador sobre o tema Bioética, em

uma pesquisa com estudantes de medicina, onde se objetivou entender a visão dos alunos

do que deveria ser um profissional ético. Para alguns estudantes, ser ético é compreender

e seguir as diretrizes do Código de Ética, ou seja, obedecer a uma verdade que vem de

fora de cada um, mas que é socialmente aceitável, independentemente da análise de caso

a caso (individual ou coletivo), estabelecendo firmemente a relação vertical paciente-

profissional. Algumas outras categorias foram observadas, tais como: primor técnico, ou

seja, ser ético é executar adequadamente a técnica (ex: restauração, cirurgia); bom senso

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e consciência, a consciência de cada um deve orientar o profissional; não mercantilização

da profissão, ou seja, ser ético é agir corretamente e não usá-la para fins especialmente

financeiros; qualidade de vida, com uma compreensão mais ampla e próxima do real

significado da ética, entre outras categorias. Além disso, o autor avaliou quais valores

que, segundo os estudantes, deveriam estar contidos no Código de Ética - constatou que a

beneficência, a confiabilidade, a honestidade, a humildade, a justiça, a paciência, o

respeito, a responsabilidade e a solidariedade foram os mais considerados.

Este atraso “humanístico” na formação e conduta ética profissional é justificado pelo fato

de que, apesar de toda uma discussão quanto à reformulação curricular, ainda se vigora

nas escolas biomédicas brasileiras o modelo biomédico flexineriano, altamente técnico,

biológico e especializado, centrado na cura ao invés do cuidado ao paciente. Constata-se

uma estruturação universitária setorial e departamentalizada, com currículos baseados no

saber biológico, em detrimento de conhecimentos pertencentes às ciências sociais

(filosofia – ética, psicologia, sociologia, antropologia), indispensáveis para a melhor

compreensão e atuação profissional sobre o processo saúde-doença em indivíduos e

comunidades.

Bioética, Odontologia Baseada em Evidência e seus reflexos na Odontologia

Atualmente, a busca por práticas de saúde, coletivas ou individuais, baseadas em

evidências é cada vez maior dentre as áreas de saúde, a fim de se definir protocolos

clínicos e preventivos de melhor qualidade, bem como contribuir para a elaboração de

políticas públicas de saúde efetivas na redução de indicadores de morbi-mortalidade da

população, tornando, conseqüentemente, o cotidiano do trabalho em saúde mais humano

e ético.

A odontologia caminha neste sentido quando se percebe, em poucas décadas, o grande

crescimento de pesquisas científicas nas suas diversas ramificações: dentística, prótese,

periodontia, cariologia, odontopediatria. Reconhece-se um crescimento significativo

também das pesquisas de cunho coletivo em subáreas da epidemiologia, planejamento,

políticas, pesquisas sócio-comportamentais, entre outras. Além disso, a procura por

cursos de pós-graduação em Saúde Coletiva tem sido significativa entre os profissionais

graduados, em vista do estímulo para a formação e capacitação de recursos humanos na

rede pública de saúde, especialmente dentro da ESF (Estratégia de Saúde da Família) .

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A saúde da população brasileira deve ser garantida a partir de práticas de cuidado,

pautadas em um modelo de atenção integral e universalizado. O exercício bioético da

Odontologia em Saúde Coletiva, em que se prioriza primordialmente a definição de

políticas públicas em saúde bucal de qualidade, deve abranger ações de promoção,

proteção e recuperação da saúde bucal de indivíduos e coletividades, baseadas em

Evidências Científicas. A bioética é devidamente praticada num contexto coletivo,

quando, por exemplo, a fluoretação das águas de abastecimento público - medida

sanitária reconhecida internacionalmente para a prevenção da cárie, desde meados do

século XX – faz hoje parte de uma Política Nacional de Saúde Bucal, ou mesmo quando

se reconhece a importância político-social da realização de procedimentos coletivos

(PCs), como a escovação supervisionada, com a distribuição de escovas e dentifrícios a

famílias que muitas vezes possuem “escovas comunitárias”. O uso, tanto individual como

coletivo, de protocolos Baseados em Evidências (por estudo experimentais

randomizados, epidemiológicos, metanálises e revisões sistemáticas) leva a uma

abordagem preventivo-terapêutica de melhor qualidade, além de garantir a utilização

coerente de diferentes recursos, evitando-se assim desperdícios, levando simultaneamente

ao maior benefício do indivíduo-população.

A Odontologia Baseada em Evidência também beneficia eticamente a conduta

profissional em âmbito privado, no sentido de que as escolhas clínicas profissionais, em

termos de materiais e técnicas cientificamente reconhecidos, colaboram para um melhor

desempenho e tratamento aos seus pacientes.

Entretanto, a realidade odontológica brasileira ainda está longe de se alcançar tal

“ideologia bioético-científica”, dentro da “tríade” Bioética, Odontologia Baseada em

Evidência e Vigilância em Saúde, ao se perceber problemas correntes, como: entrada de

materiais odontológicos no mercado brasileiro sem a devida avaliação e autorização pela

ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária); utilização de técnicas

odontológicas pelos profissionais, sem os mesmos terem o seu perfeito domínio, ou

mesmo oferecimento de serviços sem as devidas garantias de qualidade, ‘cura” ou

controle; emprego de políticas públicas em saúde bucal sem o devido reconhecimento

científico, como também desvio de recursos financeiros em saúde bucal para outros

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interesses; utilização de propaganda enganosa tanto no âmbito público ou privado,

individual ou coletivo, entre outras questões.

Desta forma, reconhece-se hoje a importância da retomada da discussão sobre bioética,

não só pelos profissionais de saúde, mas por toda a sociedade, a fim de que haja um

maior controle e julgamento ético das pesquisas em saúde, das condutas profissionais e

mesmo das políticas de saúde e demais políticas pertencentes aos vários setores da

sociedade, já que as últimas influenciam também o processo saúde – doença e a

qualidade de vida da população.

BIBLIOGRAFIA DE APOIO

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nas mãos). Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2003, 183 p.

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