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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO

TESE DE DOUTORADO

POR AMOR & POR FORAROTINAS NA EDUCAO INFANTIL

Maria Carmen Silveira Barbosa Prof. Dra. Ana Lcia Goulart de Faria

COMISSO JULGADORA ___________________ ___________________ ___________________ ___________________

Campinas 2000

CATALOGAO NA FONTE ELABORADA PELA BIBLIOTECA DA FACULDADE DE EDUCAO/UNICAMP

B144p

Barbosa, Maria Carmen Silveira. Por amor & por fora : rotinas na Educao Infantil / Maria Carmen Silveira Barbosa. -- Campinas, SP : [s.n.], 2000. Orientador : Ana Lcia Goulart de Faria. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educao. 1. Creches. 2. Pr - escola. 3. Administrao do tempo. 4. *Educao infantil. 5. Pedagogia da infncia. I. Faria, Ana Lcia Goulart de. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao. III. Ttulo.

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Olhar outra vez para os mecanismos e nossas instituies educacionais, questionar a verdade de nossos prprios e cultivados discursos, examinar aquilo que faz com que sejamos o que somos, tudo isso abre possibilidades de mudana. Jeniffer M. Gore

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RESUMO

A tese intitulada Por Amor & Por Fora: Rotinas na educao Infantil aborda a questo do uso das rotinas na educao infantil. Esta pesquisa procura verificar como as rotinas chegam ao campo educacional e tornam-se uma categoria pedaggica central na educao infantil. A rotina foi analisada como instrumento de controle do tempo, do espao, das atividades e dos materiais com a funo de padronizar e regulamentar a vida dos adultos e das crianas em creches e prescolas Os argumentos foram construdos a partir de distintas pesquisas: pesquisa bibliogrfica, de materiais empricos variados e pesquisa de campo em escolas para crianas pequenas (0 a 6 anos) no Brasil e no exterior. Finalmente constatou-se que as rotinas realizadas nas escolas de educao infantil esto em profunda relao com a construo da modernidade e que somente a partir de uma reflexo contextualizada que se poder ressignificar o seu uso.

ABSTRACT

The thesis untiled By Love and By Force: routines in early child education considers the use of routines in early child education. This work tries to verify how social routines come to day care center and kindergartens and then became a central pedagogic cathegory. The routine was analysed as an instrument in the control of time, space, activities and materials with the function of standadize and regulate the lives of adults and children in educational center for children. The arguments were constructed from a bibliografic research, several empiric materials and field research in scools for small children located in Brazil and abroad. Finally, we found out that the routines used in children education are deeply related to the building of modernity and that only by means of a contextualized reflection will we be able to give a new meaning to their use as a pedagogic cathegory in children education.

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AGRADECIMENTOS

A escrita de uma tese, apesar de ser uma tarefa solitria e individual, apenas o momento de pr termo a um processo com muitos interlocutores: professores, amigos, colegas, livros, revistas, visitas, relatrios de observao, imagens, fotos, vdeos, enfim todas as experincias profissionais e pessoais que foram sendo constitudas ao longo dos anos. Este estudo, como no poderia deixar de ser, o fruto de uma construo histrica, tendo sido elaborado em um contexto poltico e social determinado. Contexto este no qual a luta poltica parece um pouco acanhada frente tentativa de nos fazer crer que no existem outros caminhos a serem percorridos: momento de profunda crise na educao e, em especial, nos dois setores em que atuo: na universidade pblica e na educao infantil; momento especial para os Cursos de Pedagogia que vem o seu espao como curso de formao de professores sendo retirado pela criao dos Institutos Normais Superiores; momento em que a implementao da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional modifica o cenrio das instituies que educam a pequena infncia, na medida em que as relaciona rea da educao, exigindo uma maior qualificao dos educadores e a elaborao de um projeto de educao infantil, mas, ao mesmo tempo, dificultando a execuo dessa proposta legal ao diminuir o financiamento da educao infantil; momento em que as polticas educacionais para a pequena infncia como: o Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil, o Referencial Pedaggico Curricular para a Formao de Professores para a Educao Infantil e Sries Iniciais do Ensino Fundamental e as Polticas de Financiamento - esto sendo elaboradas de modo extremamente centralizado, burocrtico e, portanto, autoritrio.

Apesar de todo esse quadro, encontrei em minha instituio de origem, a Faculdade de Educao da UFRGS, o estmulo, a solidariedade e o apoio dos5

colegas para realizar o Curso de Doutorado, em tempo integral, contando tambm com a bolsa da Capes. A trajetria deste estudo iniciou-se a partir das reflexes e dos questionamentos sobre as prticas pedaggicas efetuadas no estgio das alunas do Curso de Pedagogia. Transformou-se em uma pergunta que foi sendo apurada, para ser apresentada como pr-projeto de pesquisa para a seleo no Programa de Ps-graduao da Faculdade de Educao da UNICAMP. Agradeo ao Departamento de Cincias Sociais Aplicadas Educao, que selecionou o projeto, e, em especial, professora Ana Lcia Goulart de Faria, que macunamicamente aceitou desafio de orientar este estudo. Para esta pesquisa foram muito importantes as disciplinas, as atividades orientadas1 as leituras, as reunies com a orientadora e as discusses tericas desenvolvidas em sala de aula. As reunies mensais do Grupo de Estudos em Educao Infantil, parte integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educao e Diferenciao Scio-Cultural (GEPEDISC), foram fundamentais para a reflexo crtica acerca das questes da educao infantil. Quero agradecer a Prof. Dra. Ana Lcia Goulart de Faria que apresentoume, apaixonadamente, a bibliografia italiana sobre a educao infantil e teve a pacincia de ler e reler verses provisrias desse texto, levantar questes, abrir novos caminhos e batizar esse estudo. As conversas com professores, colegas, amigos e amigas da Faculdade de Educao da UFRGS tambm foram valiosas, principalmente os participantes do Grupo de Educao Infantil (GEIN), os quais me apoiaram nas discusses sobre o tema no perodo da qualificao e que proporcionaram-me, com sua presena e seu carinho, uma grande vontade de colaborar com a reflexo sobre a infncia e a educao infantil. Quero agradecer a Beatriz Vargas Dorneles que, mesmo no sendo da equipe, discutiu solidariamente partes desse trabalho. Agradeo aos amigos e colegas do Grupo de Educao Infantil da Anped, que, ao longo dos encontros anuais, vem me ensinando a complexidade do estudo e da pesquisa sobre a educao das crianas pequenas.

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Gostaria de agradecer aos professores Moyss Kuhlmann Jr., Elisa Kossovitch, e Neusa M. Gusmo a disponibilidade para as atividades orientadas no ano de 1996.

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Quero agradecer a presena inquieta e inquietante da Jucirema, colega muito especial do Curso de Ps-graduao em Educao da UNICAMP que, aos poucos, foi saindo do lugar de colega para ocupar o de amiga. Preciso tambm agradecer s instituies de Educao Infantil que permitiram o meu ingresso em seus espaos de trabalho para poder realizar as observaes. O convvio com os profissionais e as crianas auxiliou no redimensionamento da pesquisa e na reflexo do tema. A possibilidade de viajar para conhecer formas de organizao da rotina diria da educao infantil em outros pases deveu-se principalmente a Irene Balaguer diretora da Associao de Professores Rosa Sensat em Barcelona, que me propiciou o contato com instituies de educao infantil de Barcelona, Madrid e Granada; a Montse Osta que me abriu portas em Matar, tambm na Espanha; a Tonina e Anna Lia, que me receberam em Pistoia; a Petra, que me indicou escolas em Berlim; e a Jytte, que me mostrou interessantes prticas de formao de educadores e escolas de educao infantil na Dinamarca. Gostaria de agradecer, de modo especial, aos amigos Carminha e Domingos, que me deram a chance de ter uma experincia deliciosa de convvio em So Paulo. E a Jaqueline Moll, grande amiga, companheira de trabalho e parceira de conversas interminveis, que em todos os momentos tem estado presente com sua amizade e carinho. Agradeo a meus pais, Gerardo e Carmen, a minhas irms, cunhados e sobrinhos e a meu companheiro Rogrio a pacincia, o amor e o cuidado que dispensaram comigo. E, finalmente, o meu filho Antnio que, nos ltimos meses, tem confirmado a tese de Carmen Craidy de que os filhos so a mais radical experincia de vida.

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SUMRIORESUMO .........................................................................................................................4 ABSTRACT .....................................................................................................................4 AGRADECIMENTOS .....................................................................................................5 1. PRA COMEO DE CONVERSA..........................................................................10

1.1 A Educao Infantil no Brasil: Um Novo Campo de Estudos e Pesquisas .14 1.2 Fazendo Pedagogia, Fazendo Cincia .............................................................19 1.3 Construindo Pedagogias para a Pequena Infncia ........................................25 1.4 Questes Centrais.................................................................................................27 1.5 Caminhos Metodolgicos .....................................................................................30

2. MAS O QUE SO MESMO AS ROTINAS? ......................................................40

2.1 Rotina e/ou Cotidiano ...........................................................................................42 2.2 Sobre o Conceito de Rotinas: as Rotinas Rotineiras.......................................47 2.3 Sintetizando: Por que Rotinas? Porque Sim!....................................................52 3. A CONSTITUIO SOCIAL DAS ROTINAS ....................................................54

3.1 Rezando pelo Mesmo Catecismo .......................................................................55 3.2 Os Outros: Crianas e Selvagens.......................................................................58 3.3 Sob as Ordens das Leis ......................................................................................63 3.4 Escolas e Fbricas: Na Marcha do Progresso .................................................72 4. O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAO E DE ROTINIZAO DA EDUCAO DA INFNCIA ......................................................................................82

4.1 Infncia, Infncias..................................................................................................83 4.2 Creches, Jardins, Salas de Asilo... ....................................................................90 4.3 Pontos de Alinhavo ...............................................................................................98

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5. AS PEDAGOGIAS DAS ROTINAS ....................................................................102

6. A ROTINA ENQUANTO CATEGORIA PEDAGGICA.................................132

6.1. A Organizao do Ambiente .............................................................................135 6.2 Os Usos do Tempo .............................................................................................155 6.3 A Seleo e os Usos dos Materiais..................................................................174 6.4 A Seleo e a Proposio das Atividades.......................................................188 6.5 A Padronizao....................................................................................................200

7.

PEDAGOGIAS

DA

EDUCAO

INFANTIL:

DOS

BINARISMOS

COMPLEXIDADE .......................................................................................................... 213

7.1 Pedagogias Antinmicas ....................................................................................216 7.2 Pedagogias Implcitas e Pedagogias Explcitas ..........................................219 8. PARA ENCERRAR ESTA CONVERSA ...........................................................229

9. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................................237

10. ANEXOS ...............................................................................................................257

10.1 Concretizao das rotinas na educao infantil: modelos .........................257 10.2 Fragmentos do dia-a-dia na educao infantil: palavras ............................266 10.3 Representaes das rotinas na educao infantil: canes ......................268 10.4 Fragmentos do dia-a-dia na educao infantil: textos.................................272 10.5 Representaes das rotinas na educao infantil: imagens ......................282

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1. PRA COMEO DE CONVERSA

Tudo que podemos fazer quando decidimos estudar um assunto descrev-lo de uma maneira particular, que vem somar-se a outras descries possveis. Jurandir Freire Costa

Apesar de estar localizada no incio, a apresentao tradicionalmente escrita no final dos trabalhos, e esta tese no pretende fugir regra. No momento de reler e no exerccio de pensar criticamente sobre o que produzi antes de entregar este texto, verifiquei que novas questes surgiram, outros caminhos abriram-se e pude, ento, observar algumas presenas e ausncias. Faltam temas que foram abandonados, faltam dados que foram excludos, faltam algumas idias que no foram lembradas a tempo, faltam outras que s agora so possveis de serem pensadas, pois as perguntas prvias j foram respondidas... Creio que a descoberta das faltas sempre acontece quando, depois de muitas voltas e revoltas, colocamos um ponto final em um texto. Foi por esse motivo que escolhi a citao que inicia o presente captulo e que enfatiza que esta tese apenas um dos modos de (re)descrever2 este tema sei que h muitos outros caminhos, mas foi por este que optei para construir o meu objeto de estudos. 3 A questo que escolhi estudar foi a do nascimento e da consolidao de uma categoria pedaggica: a rotina na educao infantil. Um tema complexo, de difcil abordagem, pois no apresenta uma tradio de estudos e pesquisas no pas nem limites claros e definidos e, alm disso, est em interconexo com vrios outros temas. Apesar de sua amplitude, e talvez justamente em funo da mesma, um tema interessante, pois atravessa a teoria e a prtica da pedagogia da educao infantil.

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O termo (re)descrever usado aqui no sentido empregado por Jurandir Freire Costa quando afirma que no existe uma nica verdade: trata-se apenas de redescries contnuas, de relatos e narrativas renovadas, a partir de perspectivas eticamente aceitveis, defensveis ou desejveis (1994, p.8) 3 Nos itens 1.4 e 1.5 ser apresentado o problema de pesquisa e os caminhos metodolgicos utilizados para percorr-lo.

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A idia de estudar as rotinas na educao infantil est vinculada de alguma forma a uma interrogao central, e profundamente autobiogrfica, que a da escolha entre os dois pontos mais distantes das propostas do ato de educar: a represso e a liberdade. No mestrado j havia me aproximado dessa temtica bipolar ao trabalhar com o confronto ou a possvel interseco entre as teorias liberais e escolanovistas de educao e um governo com polticas educacionais profundamente autoritrias. Porm, a reflexo sobre tal questo iniciou muito antes; ela j estava presente desde a minha prpria vida escolar. Nasci e cresci em uma famlia que tinha na educao dos filhos um valor e, desde pequena, freqentei o Jardim da Infncia. Tenho lembranas da escola das irms, da irm Virgnia (minha professora), dos bordados em cartolina, de brincar na caixa de areia e na casa de bonecas, das msicas, dos versinhos e dos momentos de oraes. Recordo-me, de um modo especial, de um grande painel que havia sido pintado na parede da parte coberta do ptio e que estimulava a minha imaginao sobre seus personagens e lugares. Nessa escola, havia tambm um bosque, o matinho, onde passevamos por um caminho que tinha casinhas com a via crucis, um lugar misterioso, o qual eu adorava e do qual, tinha, ao mesmo tempo, muito medo. Aos seis anos, fiz a pr-escola em uma escola pblica de Porto Alegre. A sala do Jardim ficava no poro de uma casa antiga e tinha mesas redondas, brinquedos, amiguinhas e as fugas. Esse era o fato mais emocionante do pr. Ns tnhamos um grupo, s de meninas, que pedia para ir ao banheiro e fugia para a frente da escola. Ns nos colocvamos entre os arbustos e as grades de ferro para observar o movimento da rua. A tia Valquria j sabia onde ir buscarnos quando sumamos. Em 1968, comecei minha trajetria de aluna em escolas experimentais. Iniciei minha vida escolar no Instituto Educacional Joo XXIII, que havia sido fundado por professoras e era gerenciado conjuntamente com os pais dos alunos. Somente hoje, quando me lembro das coisas que fazamos e das experincias educativas que esto registradas na minha memria, que vejo o quanto essa escola tinha uma proposta avanada para a poca. Nunca tive livro didtico fizemos a nossa cartilha na 1a srie , sempre fiz trabalhos em grupo, tive aulas de teatro, bal, msica, laboratrio de matemtica e de cincias; fazamos

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viagens, excurses, visitvamos exposies de arte, etc. Lembro-me com muito prazer desse perodo. Na 5a srie, fiz o exame para o Colgio de Aplicao da UFRGS, o qual freqentei at a 8a srie. O Aplicao marcou-me no pelas estratgias de ensino, afinal muitas delas j me eram familiares devido experincia na escola anterior mas pelas experincias sociais e culturais que me possibilitou.4 Duas prticas culturais ficaram gravadas para mim. A primeira foi a da participao poltica, pois o colgio tinha cerca de 300 alunos e ficava no meio do Campus da Universidade. Tnhamos uma diretora que era vista como a Ditadora. Ns nos reunamos todas as segundas na CACA5 para discutir questes polticas e escolares com um grupo de representantes entre onze e dezoito anos, uma saudvel integrao entre idades. Durante a dcada de 70, vamos, desde as janelas e do ptio da escola, acontecer muitas coisas; podamos no compreender muito bem o que ocorria, mas essas foram imagens que instituram alguns sentidos para a nossa vida de estudante e cidado. A segunda grande aprendizagem foi a descoberta de diversas formas de expresso cultural: ouvamos msica na hora do recreio Mutantes, Caetano, Gil, Pink Floyd, Emerson, Lake and Palmer (o que, definitivamente, enlouquecia a direo) - promovamos pela CACA peas de teatro, mostras de cinema, publicvamos um jornal, etc. No meio da 8a srie, decidi encaminhar-me para um curso de segundo grau profissionalizante para ter, em pouco tempo, perspectiva de trabalho e independncia. No curso de magistrio, voltei a interessar-me pelas aulas, pelas prticas de miniestgio, e comecei a fazer trabalho voluntrio em teatro para crianas da FEBEM, acompanhar turmas de alfabetizao de adultos e outras atividades scio educativas. Em 1978, a educao infantil entrou na minha vida atravs de um Curso de Formao de Professores em Jardim de Infncia, o qual realizei curso no Servio de Treinamento de Professores do I. E. Joo XXIII, voltando, assim, s minhas origens pedaggicas e decidindo que seria Jardineira.

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Alm disso, em plena adolescncia, eu achava que esta histria de ir para o colgio, e ainda ter de ficar os dois turnos alguns dias da semana, era apenas uma grande chatice. 5 Comunidade de Alunos do Colgio de Aplicao.

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A leitura do artigo do Daniel Revah (1995) foi um reencontro com a minha prpria histria. Foi muito interessante ver como a minha trajetria pessoal, que me parecia to singular, estava permeada de contedos scio-histricos e era tecida de modo muito semelhante ao de vrios educadores daquela gerao. Como a minha escolha de vida alternativa e militncia poltica6 cruzava-se com as escolhas e as decises nas atividades profissionais. Esta constituio contracultural de ser, presente no modo de ser, de vestir e de escolher produtos culturais, acabou influenciando as minhas leituras pedaggicas. Meus autores preferidos eram Paulo Freire, Makarenko, Neill, Freud, Freinet, Piaget e outros autores marginais, na poca, aos cursos de formao de professores. Essa histria social e pessoal acabou por refletir-se permanentemente em minhas escolhas tericas e em minha prtica pedaggica. Segui o caminho de educadora: fui professora de escola pblica e privada (de jardim e sries iniciais), e atualmente trabalho como professora universitria e pesquisadora (iniciei como auxiliar de pesquisa e estou procurando qualificar-me nesta rea com o doutorado). No estudo que agora estou apresentando, senti-me sempre dividida entre o papel de pesquisadora e o de professora, j que papel de pesquisadora o de suscitar as idias e agit-las e a tarefa da professora o de tomar decises7. Creio que tal ambivalncia de papis influenciou profundamente o modo como me aproximei, constru o objeto de pesquisa e escolhi as formas para pesquis-lo. Como j havia afirmado anteriormente, a polarizao das idias e das prticas pedaggicas entre as repressoras e as libertadoras permeou a minha formao e o meu fazer pedaggico. Elas apareceram, e permanecem, desdobradas em mltiplas questes, como: Que tipo de currculo organizar para a educao infantil - um que privilegie a escolarizao ou a livre expresso? Como deve atuar o educador de crianas pequenas - deixando-as livres ou realizando intervenes? possvel educar sem uma rotina? necessria uma rotina para organizar a vida dos espaos educacionais? Seriam as novas propostas de rotina mais progressistas ou apenas um reformismo pragmtico e com intenes de6

Participei, no final da dcada de 70 e no incio dos anos 80, do movimento estudantil, de grupos feministas, da Agapan - Associao Gacha de Proteo ao Ambiente Natural e da Coolmia Cooperativa de produtores e consumidores de produtos naturais. 7 Inspirei-me para esta reflexo no livro de memrias de Norberto Bobbio,

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adaptao aos novos tempos? Pode-se discutir um projeto educativo com categorias universalizantes, mas no-homogeneizadoras, que tenham objetivos comuns, como o de tornar os diferentes capazes de entender-se e fazer as crianas entrarem no mundo existente sem deixar de ter o poder e o desejo de mudar esse mesmo mundo? As pedagogias normalizam, regulam,

institucionalizam e violam as singularidades, mas como seria possvel (con)viver sem estar regulado socialmente? Freud dizia que a educao um impossvel.8.Penso que sim, pois a educao das crianas pequenas tem de, ao mesmo tempo, constituir-se de dois movimentos. Por um lado, socializar os novos sujeitos, engendrando eticamente virtudes como aquelas defendidas pela res pblica a justia, a liberdade, a solidariedade, a tolerncia, a igualdade, a coragem, a prudncia, sem cair numa educao moral conservadora; e, por outro, o de possibilitar a sociabilidade9 dos sujeitos, abrindo espao para a constituio de subjetividades livres, rebeldes, inconformadas.

1.1 A Educao Infantil no Brasil: Um Novo Campo de Estudos e Pesquisas

No Brasil, a partir do final da dcada de 70, a educao de crianas de zero a seis anos adquiriu um novo estatuto no campo das polticas e das teorias educacionais. Finalmente, a histrica luta por creches e pr-escolas, engendrada por diferentes movimentos sociais, tomou grandes propores, e os governos primeiramente os de oposio ditadura militar e, posteriormente, aqueles que se instalaram ps-abertura poltica - realizaram investimentos para a ampliao do direito educao das crianas dessa faixa etria. Vrios projetos para educao das crianas pequenas10 foram desenvolvidos, principalmente atravs de aes, envolvendo diversos Ministrios e a Legio Brasileira de Assistncia.11

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Para S. Freud existem trs atividades humanas que so impossveis de ser realizadas: governar, educar e psicanalisar. 9 Para Baumann (1997) estes so os dois processos sociais bsicos. Um a socializao racional, condutiva, relacionada ao que ensinado; o outro, da sociabilidade que espontnea, singular, sendo formado pelas aprendizagens. Esses processos ocorrem contemporaneamente na construo dos sujeitos e esto em permanente conflito. 10 O Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei 8.069/90) considera como criana a pessoa at os 12 anos de idade. A expresso crianas pequenas utilizada nesse texto para falar de crianas de

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A Constituio Federal de 1988 representou um avano no que se refere aos direitos da infncia. Ela considera as crianas e os jovens como sujeitos de direitos e proclama a necessidade da oferta de atendimento em educao infantil12 . Em seu artigo 7, inciso XXV, do Captulo dos Direitos e Garantias Individuais e Coletivas, ela assegura o direito ao atendimento gratuito aos meninos e s meninas, desde o nascimento at os seis anos, em creches e prescolas. Tambm a incluso da Educao Infantil na Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional 9.394/96, como seo autnoma, foi uma importante resposta para as novas demandas e dinmicas da cultura e da sociedade e um passo importante para a valorizao da educao do assim chamado nvel de ensino. importante lembrar que, na nova LDB, a educao infantil est presente no captulo da Educao Bsica, isto , juntamente com o ensino fundamental e o ensino mdio, o que aponta para a necessidade de articulao e no de subordinao entre eles. Uma importante marca foi a diferenciao entre eles ocorrer pelo uso da palavra educao e no ensino, demonstrando uma viso mais ampla dos processos pedaggicos necessrios nessa faixa etria. Nos ltimos anos, o mesmo governo que apoiou a aprovao da lei, e que a divulga vem, contraditoriamente, criando polticas de financiamento da educao que no favorecem a ampliao e a qualificao da educao infantil, sendo esta secundarizada nos investimentos das verbas pblicas. Poderamos0 a 6 anos em contraposio a de crianas maiores entre 7 e 12 anos. Crianas pequenas, pequena infncia, pequenininhas so expresses oriundas da literatura italiana e adaptadas para o portugus. (Ver Prado, 1998, p.10). A pequena infncia abrange dois subgrupos: as crianas bem pequenas ou pequenininhas, de 0 a 3 anos que freqentam turmas de berrio e maternal, e as crianas maiores, de 4 a 6 anos, que freqentam o Jardim da Infncia e o Pr. 11 Para maiores informaes sobre a expanso e o financiamento da educao de crianas de 0 a 6 anos no Brasil ver: Campos,1989; Campos,1993; Craidy,1989; Craidy,1997; Faria,1989; Rosemberg,1989; Ferrari,1980; Ferrari e Gaspary,1980; Ferreira,1988. 12 A diversidade de instituies que atendem as crianas de 0 a 6 anos, no Brasil, faz com que se torne difcil encontrar uma regularidade entre o nome da instituio, a faixa etria atendida, a proposta de trabalho desenvolvida e a modalidade de funcionamento. Alguns autores procuraram explicitar tais diferenas e encontrar categorias estveis, mas no obtiveram sucesso. Neste trabalho, ser utilizado o padro da Lei de Diretrizes e Bases/1996,que define o nome da instituio de acordo com a faixa etria das crianas. Dessa forma, creche a instituio que atende crianas de 0 a 3 anos e pr-escola aquela que atende crianas de 4 a 6 anos. Na lei no est claro, mas creio que essa diviso advm da psicologia do desenvolvimento que diferencia entre a primeira e a segunda infncia. As expresses como Centro de Educao Infantil ou Escola Infantil, que no enfatizam a subdiviso desse perodo da educao das crianas pequenas e mantm uma unidade que a presente na realidade brasileira, ficaram excludas da lei. Pessoalmente, creio que estas so melhores, pois, no apontam para uma nova forma de desarticulao entre os pequenininhos e os pequenos.

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citar, como exemplo, a ausncia da educao infantil nas verbas do Fundo Nacional para a Educao e tambm as polticas de formao docente que, apesar de afirmarem visar ao educador infantil, enfatizam a formao do educador do ensino fundamental. Alm das conquistas legais, a passagem em algumas cidades e estados brasileiros da responsabilidade, pelo o atendimento da populao de 0 a 6 anos da rea da sade e da assistncia social para a rea educacional demonstram uma nova concepo das necessidades e dos direitos das crianas. Acompanhando toda essa mudana legal e organizacional na Educao Infantil, e contribuindo com ela, corresponderam tambm investimentos em termos de pesquisas e publicaes no campo acadmico. Ao fazer um levantamento do acervo bibliogrfico dos livros da Biblioteca da Faculdade de Educao, da UFRGS, constatei que, nas dcadas de 60 e 70, grande parte dos livros correspondia a manuais gerais de pr-escola com predomnio de autores estrangeiros, enfocando atividades e formas de organizar a educao das crianas em turmas de jardim de infncia e pr-escola. O referencial terico destas abordagens metodolgicas eram os autores clssicos da educao infantil, tais como Froebel, Montessori, Decroly e outros. Tambm foi encontrada a presena de um acervo considervel de publicaes dirigidas s reas especificas do conhecimento e suas relaes com a educao pr-escolar ou das crianas pequenas, tais como psicomotricidade, msica, psicologia do pr-escolar, etc. J na dcada de 80, surgiu um maior nmero de autores nacionais e livros com nfase nas questes polticas da educao infantil que denunciavam a ausncia quantitativa de creches e pr-escolas e apontavam formas alternativas de atendimento, indicando a necessidade de criao de polticas pblicas para crianas pequenas. Muitos desses estudos foram produzidos na interseco entre a academia e os movimentos sociais de lutas pela creche como direito da mulher. A ampliao do nmero de programas de mestrado e doutorado no Brasil

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apontam o surgimento de vrias teses e relatrios de pesquisas acadmicas que tratam desse tema13 . Podemos observar que, na dcada de 90, a perspectiva modificou-se ampliando os estudos sobre a pr-escola e iniciando as pesquisas sobre a creche. Foram publicados livros que tratam da histria das crianas no Brasil, apresentadas teses sobre as instituies de atendimento s crianas pequenas e suas propostas educacionais e tambm outras publicaes sob forma de coletnea de artigos. Estas tratavam em especial de assuntos relacionados psicologia do desenvolvimento em uma perspectiva scio-histrica ou psicologia gentica, textos sobre a organizao curricular e as metodologias de ensino que geralmente aprofundam reas de conhecimento - linguagem, matemtica, cincias sociais e naturais e outros - isto , temas que j circulavam nos grupos de pesquisas e nas revistas especializadas chegam aos livros comerciais e de ampla divulgao. Muitas dessas novas publicaes consistem em programaes curriculares elaboradas por rgos estatais ou por organizaes no-governamentais. Professores e professoras publicaram relatos de experincias com reflexes advindas de suas aes cotidianas no trabalho com turmas de crianas em creches e pr-escolas e, em alguns casos, tambm de escolas de arte (Freire, 1983; Haddad,1991; Machado,1991; Wajskop,1995). Rocha (1999), aps a anlise de um conjunto de trabalhos apresentados em diferentes reunies cientficas, nas reas das cincias humanas e sociais na dcada de 90 no Brasil, demonstra como essas reunies vm trazendo contribuies para a construo de uma Pedagogia da Educao Infantil. Para a autora, a produo analisada:revelou construes tericas, permitindo a identificao de um conjunto de regularidades e peculiaridades. As construes identificadas permitem afirmar a possibilidade e o nascimento de uma Pedagogia, com corpo, procedimentos e conceituaes prprias. Identifica-se, portanto, uma acumulao de conhecimentos sobre a educao infantil que tem origem em diferentes campos cientficos, que alm de resultarem em um produto de seu prprio campo, tm resultado em contribuies para a constituio de um campo particular no mbito da Pedagogia (...) (1998, p.160)

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O Ncleo de Estudos em Educao de 0 a 6 anos da UFSC tem realizado trabalhos de investigao sobre as teses publicadas na rea e vem fazendo anlises das pesquisas recentes em Educao Infantil. Ver, em especial, Rocha (1999a).

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Discutindo a relao entre a pesquisa na universidade e a educao das crianas pequenas, Ferreira (1988) apresenta como estava sendo produzida a pesquisa no campo da psicologia da educao e do desenvolvimento infantil na dcada de 80 e, em sua anlise, aponta como problemticos os seguintes aspectos: a) estudavam-se aspectos isolados do desenvolvimento infantil; b) eram feitas experincias em ambiente artificial (laboratrios) e c) trabalhava-se com uma concepo de criana ideal. A autora descreve neste artigo o processo de transformao pelo qual passa seu grupo de pesquisa14 em termos de introduo de novas metodologia de pesquisa e aprofundamento do compromisso social para que as mesmas pudessem adequar-se construo de conhecimentos sobre as necessidades educativas das crianas pequenas nas instituies de educao infantil brasileiras. A Bibliografia Anotada (BRASIL,MEC,1995), apresenta uma sntese dos textos sobre educao infantil publicados entre abril de 1980 e abril de 1995. Atravs dela, podemos observar que, durante esse perodo, temas como histria da educao e polticas pblicas esto presentes desde o incio da dcada de 80 mesmo que com uma produo reduzida e apontam que o final dessa dcada d incio aos estudos sobre o cotidiano. Campos e Haddad (1992) confirmam esse percurso por meio de um estudo que mostra a trajetria dos artigos sobre educao infantil, publicados na revista Cadernos de Pesquisa, da Fundao Carlos Chagas, entre 1971 e 1991. As autoras observam que: a) na dcada de 70, os artigos publicados enfocavam as crianas em idade prescolar, e no a creche ou a pr-escola como instituio; b) as publicaes iniciam tratando o tema da pr-escola (principalmente como preparatria ao primeiro grau) para depois, apenas no final da dcada de 80, inclurem as creches; c) os artigos mostram a politizao papel do Estado, da sociedade civil e dos movimentos sociais dos temas de creche e pr-escola a partir dos anos 80; d) constatam, atravs de levantamento quantitativo, que houve uma ampliao do nmero de artigos publicados com essa temtica a partir da dcada de 70.

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Para conhecer essas mudanas conceituais ver vdeos, teses, artigos e livros publicados pelo CINDEDI da USP - Ribeiro Preto.

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Como afirmam as autoras acima citadas ao refletir-se sobre a produo cientfica em educao infantil:Constata-se claramente que, na produo analisada, o conhecimento de prticas modernas de cuidado e educao da criana pequena ficou em segundo plano, sendo pouco debatidas e aprofundadas (...) as questes que incidem diretamente sobre a natureza das experincias vividas pelas crianas nas creches e pr-escolas. (1992, p.18)

Tambm afirmam que a dcada de 90 exigia que a educao infantil redimensionasse seu papel e ampliasse o seu campo de pesquisa de forma a responder, multidisciplinarmente, s questes pedaggicas que a ela vm sendo colocadas. Esta tese de doutorado pretende inserir-se nessa perspectiva de pesquisa, isto , revisitar um aspecto pedaggico que est sendo utilizados no cuidado e na educao das crianas pequenas, procurando faz-lo de modo aprofundado e crtico. Construir, assim, um olhar acerca dos mecanismos presentes na Pedagogia da Educao Infantil, para perguntar-se sobre seu papel, seus objetivos e verificar como os mesmos, fazendo parte de uma prtica social, vm contribuindo para a produo e a reproduo das crianas, dos educadores, da cultura e da sociedade.

1.2 Fazendo Pedagogia, Fazendo Cincia

Escrever uma tese de doutorado que ser defendida no comeo do ano 2000 um ato acadmico de extremo desconforto. Milenarismos parte, o momento histrico e cientfico em que vivemos causa muitos embaraos aos professores, intelectuais e pesquisadores que tm na educao no apenas um campo de estudos e investigao, mas tambm um compromisso com a melhoria da realidade social e educacional. Muitas das certezas que tnhamos at poucos anos atrs esto sendo revistas, e ainda estamos procurando, atravs da crtica, e da autocrtica e da busca de novos aportes, construir novos sentidos e caminhos para a nossa prtica poltica e profissional e para a construo de novos modos de fazer pesquisa e cincia.

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O paradigma dominante de fazer cincia, que iniciou com a revoluo cientfica do sculo XVI, sendo consolidado nos sculos seguintes, e que tinha como modelo as cincias naturais, foi questionado e entrou em crise. Essa crise no apenas epistemolgica, mas tambm metodolgica, o modo como fazemos cincia e poltica, isto , como a cincia e a tecnologia so utilizadas. Como afirma Santos (1996a), estar em crise, no significa estar mergulhado em um irracionalismo, mas pode ser visto como uma nova aventura para apreender o mundo. A aventura da cincia est onde a razo entra em confronto com o imaginrio, com o esttico, com o no-racional, isto , com tudo aquilo que (des)conhecido, abrindo assim novos sentidos, caminhos e idias. Prigogine e Stengers (1996, p.28), ao refletirem sobre a cincia contempornea, afirmam que esta est em profunda transformao:Em vez da eternidade, a histria; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetrao, a espontaneidade e a auto-organizao; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evoluo; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente.

Na contemporaneidade, verifica-se o engendramento de uma concepo mais flexvel de cincia. Santos (1995) concordando com os autores acima citados, afirma que o novo paradigma para fazer a cincia demonstra que todo o conhecimento cientfico-natural tambm cientfico-social; que todo o

conhecimento local e total; que todo o conhecimento autoconhecimento e, por fim, que todo o conhecimento cientfico visa a constituir-se em senso comum. Isto , a sua existncia pressupe a sua divulgao e democratizao, tornando-se acessvel todos. Toda essa nova compreenso da cincia advinda da reflexo sobre sua crise, que tem na dvida seu trao fundamental, extrapola as fronteiras do pensamento cientfico e impregna grande parte da razo crtica moderna, penetrando na vida de cada dia e na conscincia filosfica e constitui um aspecto existencial do mundo social contemporneo (Giddens, 1995, p.11). Seguindo as pistas de Mires (1996, p.9), vivemos hoje em um momento de profunda mudana nos modos de conhecer o mundo que est relacionada

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transformao igualmente profunda nos modos de viver a vida em sociedade15 . Essa transio que est ocorrendo do/no perodo denominado moderno est sendo configurada por mltiplas rupturas16 que acontecem simultaneamente em diferentes campos do fazer e do pensar humano, modificando a vida de uma maneira que nunca havia sido imaginada (ou sonhada), e as idias e teorias que tnhamos para entender o mundo no esto mais servindo para explic-lo. Neste estudo, a Modernidade pensada como o resultado de um processo de racionalizao experimentado pela civilizao ocidental, desde os fins do sculo XVIII (Adorno, Bruni e Cardoso, 1995, p.7). Em meados do sculo XX, tal processo comeou a ser questionado a partir de uma srie de novos fenmenos, processos e acontecimentos que provocaram um profundo

questionamento e um repensar desse projeto (no concretizado inteiramente). Esse novo perodo que alguns autores denominam ps-modernidade prefiro, juntamente com Adorno, Bruni e Cardoso (op.cit.), denominar como

contemporaneidade. Concordo com Hollanda (1992) quando afirma que o que se v entre esses dois projetos culturais e polticos denominados de modernidade e psmodernidade uma constante negociao com os termos das vrias modernidades. Para a mesma autora, a ps-modernidade pode ser dividida em pelo menos dois grandes grupos: um ps-modernismo de reao, que seria conservador, e um de resistncia, que surge como uma contraprtica e preocupase com a desconstruo crtica da tradio17 . dentro desse campo que procura situar-se este estudo. A complexidade do ato de produzir cientificamente torna-se muito maior quando o campo no qual pesquisamos, no caso a Pedagogia, no considerada uma cincia18 . Neste trabalho de pesquisa, a Pedagogia compreendida como

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Esse autor procura compreender como a transio de paradigmas epistemolgicos nas cincias correspondem a momentos de transio de paradigmas societais. Tal transio da vida e da reflexo contempornea vem sendo chamado, de acordo com diferentes autores de alta modernidade, modernidade avanada, contemporaneidade ou ps-modernidade. 16 Essas rupturas, nem sempre planejadas, organizam-se como um todo a partir de diferentes eventos, como a revoluo sexual, a revoluo da microinformtica e outras que a princpio poderiam parecer isolados, mas conformam um novo todo. (Mirres, 1996, p.151). 17 So autores que procuram fazer um ps-modernismo de resistncia ou inquietante: Harvey a (1992), Santos (1995,1996 ,1996b), Jameson (1994), Anderson (1999), Eagleton (1998). 18 Esse tema - da pedagogia ser ou no uma cincia - gera grandes polmicas e discusses calorosas, e no pretendo entrar com profundidade nesta discusso apenas procuro estabelecer o meu ponto de vista.

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um campo de saber, como uma disciplina que pode ou no ser vista como cincia dependendo do conceito de cincia que for utilizado. Se, no comeo deste sculo, o conceito dominante de cincia era estrito e com caractersticas positivistas e hoje, com as novas concepes de cincia e com as redefinies de metodologia de pesquisa, os paradigmas de cientificidade ampliaram-se e torna-se muito mais fcil dar condies cientficas produo pedaggica. Definir a Pedagogia uma tarefa bastante complexa e, como registra Giroux (1996, p.206), preciso usar esse termo com respeitosa prudncia. Contudo penso que se faz necessrio explicitar os motivos que levam a classificar este estudo como situado no campo da Pedagogia da Educao Infantil e o qu, sinteticamente, ser entendido por esse campo de estudos neste trabalho. As teorias pedaggicas surgiram, ao longo da histria, de diversos modos. Algumas delas foram elaboradas por pensadores ou filsofos na tentativa de propor um modelo educacional a ser seguido, tendo em vista a formao das novas geraes e da sociedade do futuro. Outras surgiram acompanhando discursos polticos e/ou prticas polticas concretas e procurando pr em ao novas estratgias para a educao e a sociedade e modificando o devir dos seres humanos. Outras, ainda, procuraram responder a questes referentes compreenso e anlise das experincias prticas, de atos pedaggicos, desvendando a construo dos projetos pedaggicos, das suas influncias, de seus instrumentos didticos e modelos de gesto. Massa (apud Rocha,1999a) apresenta a pedagogia como tendo um estatuto especfico que tem como objeto os sistemas de ao inerentes s situaes educativas um objeto muito material que permite pedagogia se colocar como uma teoria de estrutura implcita experincia educativa. Neste texto, entendo que sempre onde est presente uma situao de produo de conhecimento, de saber, de aprendizagem, onde h uma prtica social e cultural de construo de conhecimentos h tambm uma Pedagogia.19 A Pedagogia difere-se da teorizao pedaggica, pois implica tanto a reflexo acerca do mundo social, cultural e econmico como tambm estabelece um modo de fazer instrumental, sendo que esse segundo aspecto nem sempre est presente nas teorizaes educacionais. As pedagogias articulam os macro e19

A pedagogia, por ser anterior a qualquer institucionalizao ou escolarizao, pode referir-se tanto educao formal e institucional como s experincias de educao informal.

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os microdiscursos, fazendo uma, explcita ou no, ligao entre o contexto e os processos internos da produo de saberes. Tal aspecto instrumental o que neste trabalho denominado de didtica, e uma mesma pedagogia pode manifestar-se atravs de diferentes abordagens didticas. Nossa sociedade est permeada de discursos pedaggicos que realizam tarefas de controle ou regulao social, afirmando-se como verdades e estando em uma constante luta pelo poder20 . Atravs desses diferentes discursos pedaggicos, grupos disputam permanentemente para influenciar os modos como os sujeitos so constitudos, selecionar os conhecimentos que devem ou no ser acessveis, quais as identidades pessoais e sociais que devem ou no ser formadas, etc. Tais disputas entre os discursos pedaggicos existem

necessariamente, e estamos todos, com maior ou menor conscincia, tomados por esses textos, pois cada uma defende um ponto de vista que entra em choque com outros. Portanto, mais do que falar em Pedagogia no singular, importante pensar o termo no plural, pedagogias, pois elas so diversas e plurais. Geralmente, as pedagogias so acompanhadas de adjetivos que as qualificam como pedagogias tradicionais, crticas, libertadora, progressistas, libertrias, feministas e outras. O mapeamento dessas diferentes pedagogias faz-se necessrio no atual momento histrico, pois as teorizaes mais universalizantes acerca da educao tm-se mostrado ineficazes para responder s questes educativas

permanentemente colocadas pelas sociedades e pelas culturas. Tambm importante lembrar que, se as subdivises das pedagogias podem, por um lado, ser manifestaes de fragmentao e de disputas, por outro, quando permanentemente relacionadas e recontextualizadas, auxiliam no

aprofundamento das discusses e no avano dos conhecimentos. Aqui podemos lembrar que a luta das especificidades e das particularidades uma luta de poder para ocupar um espao mais valorizado no sentido da igualdade na diferena. A Pedagogia, como uma disciplina de fronteira, foi historicamente marginalizada, tendo o seu espao de saber por muito tempo subordinado ou reduzida a outros saberes. Segundo Giroux (1996, 1997), nos ltimos anos, a20

Popkewitz chega a afirmar que a pedagogia como parte do cenrio institucional, uma prtica da regulao social que deve disciplinar, administrar e criar capacidades sociais para o indivduo;

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pedagogia vem realizando um esforo para tentar visibilizar sua complexidade e suas relaes com a poltica, o poder, o conhecimento, a histria, a tica e para deixar de ser apenas instrumental, pragmtica, empirista e condutista.Ao recusar reduzir (a pedagogia crtica) pratica da transmisso de conhecimentos e destrezas, o novo trabalho sobre pedagogia foi tratado como uma forma de produo poltica e cultural profundamente implicada na construo de conhecimentos, de subjetividades e das relaes sociais. (Giroux, 1997, p.15)

Para Giruox, uma disciplina no algo previamente determinado, mas um campo que se vai constituindo pelas prticas, pelas pesquisas, pelos estudos que se realizam sobre ela e pelos aspectos sociais que esto profundamente integrados ao seu acontecer21 . Esses estudos devem possuir uma produo rigorosa, tendo em vista a criao terica. Para o autor, uma pedagogia s pode ser constituda dentro de uma especificidade histrica e cultural - situada em um lugar e em um contexto -, pois as pedagogias crticas no surgem de universais, mas de prticas guiadas pela histria e pela tica. Sendo que a tica se converte em um compromisso continuado em que as prticas da vida cotidiana so investigadas em relao aos princpios da autonomia individual e vida democrtica. (Giroux, 1997, p.126). Para Cambi (1995, p.126), as caractersticas da pedagogia como a nounicidade, o discurso aberto no-unvoco, os conflitos, o esfacelamento interno devem ser vistas como um carter de riqueza-singularidade-especificidade e no de marginalidade ou de inferioridade. E ainda afirma (Ibid.) que as pedagogias, quando atentas histria, sociedade e poltica, produzem uma cultura pedaggica - inquieta, incerta, anti-reducionista, metodologicamente plural sendo dessa forma, capazes de formular uma reflexo sobre as questes educacionais e de indicar prospectivas. As pedagogias, quando crticas, sabem que so incapazes de apreender toda a complexidade e no se iludem em pensar ser uma verdade. As pedagogias tornam-se mais polticas quando propem a anlise e a crtica dos modos de fazer, das estratgias de trabalho, isto , quando observam e valorizam como os sujeitos aproximam-se, desmembram e utilizam o

seja essa administrao chamada de pedagogia do desenvolvimento da criana, aprendizado, engenharia social ou reconstruo social (1997, p.237). 21 Rocha (1999a) fala de diferentes graus de acabamento das cincias.

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conhecimento, assinalando que esses processos so to ou mais importantes do que os contedos envolvidos. Tambm faz parte dessa reviso das Pedagogias a discusso sobre as palavras pertencentes ao discurso pedaggico, como planejamento, avaliao, objetivos e outras que racionalizam os contedos pedaggicos, exercendo um profundo efeito na dinmica social, na constituio subjetiva, nos modos de configurar o mundo e nas possibilidades de se pensar a educao. Hoje, a Pedagogia vem enfrentando um srio e decisivo conflito, pois necessita responder s crescentes demandas da sociedade atual em que as situaes que envolvem o ensino e a aprendizagem so fundamentais j que este perodo histrico vem sendo denominado por diferentes estudiosos de sociedade da informao, do conhecimento, precisando, para isso, resolver a sua crise de identidade terica. preciso, portanto, um radical repensar, clareando sua funo social, poltica e cultural que compreenda seu carter complexo e ambguo e que oferea possibilidades de criar um status disciplinar e, quem sabe, cientfico. O presente estudo procura contribuir com uma leitura crtica de um dos principais componentes das Pedagogias da Educao Infantil - a Rotina - e, a partir da sua contextualizao e anlise, desmembrar e dissecar, esse dispositivo pedaggico, podendo assim, ao conhec-lo, ampliar e produzir novos sentidos para o mesmo.

1.3 Construindo Pedagogias para a Pequena Infncia

O campo da Pedagogia da Educao Infantil que emergiu, de forma sistemtica, nos sculos XVIII e XIX, iniciou sua trajetria vinculado filosofia e, posteriormente, distanciando-se desta, foi em grande parte absorvida pela psicologia, pela puericultura e pela assistncia social. Sua ampliao e seu aprofundamento ocorreram principalmente no final do sculo XIX, na medida em que grande parte das culturas ocidentais tornou a educao das crianas pequenas um tema de responsabilidade social e coletiva em contraponto viso de que a educao das crianas pequenas era apenas uma tarefa da esfera privada: a famlia.25

As propostas pedaggicas para a Educao Infantil surgiram quando se tornou necessrio refletir sobre um determinado recorte da pedagogia, abordando as peculiaridades que esto presentes do campo da interveno educacional para a pequena infncia, isto , da educao institucionalizada de crianas de 0 a 6 anos22 . Muitas das temticas fundadoras das pedagogias da educao infantil nem sempre esto presentes em outros campos pedaggicos. Pode-se exemplificar a nfase que essa pedagogia d s relaes entre o cuidado, a educao, a nutrio, a higiene, o sono, as diferenas sociais, econmicas, culturais das diversas infncias, a relao com as famlias, as relaes entre adultos e crianas que no falam, no andam e necessitam estabelecer outras formas no-verbais ou no-convencionais de comunicao, as relaes entre adultos e crianas pequenas na esfera pblica, o brinquedo e o jogo, entre outros podendo dar conta das especificidades e das diferenciaes relativas educao e ao cuidado de crianas bem pequenas. Entretanto, alm das temticas acima citadas, preciso que as pedagogias da Educao Infantil mantenham uma constante reflexo acerca do contexto onde so produzidas, isto , dos temas gerais da cultura contempornea como aquelas relacionadas a gnero, cidadania, raa, relaes educativas com as

comunidades, religio, classes sociais, globalizao e aquelas que influenciam de modo incisivo as questes ligadas educao da pequena infncia. tambm necessrio que se estabelea relaes destas com as outras grandes questes da pedagogia, como a ao educativa e o currculo verificando os efeitos que tais formas de engendrar e ver o mundo causam a um certo grupo de seres humanos que se encontram em uma faixa etria especfica, em um determinado tipo de instituio e em um certo contexto. Portanto, as pedagogias da educao infantil tm como centro de sua teorizao a educao das crianas pequenas, situando-a tanto em sua construo como um sujeito de relaes inserido em uma cultura, em uma sociedade, em uma economia e com formas especficas de pensar e de expressar-se como tambm com proposies instrumentais em relao aos aspectos internos ao funcionamento institucional e aos projetos educacionais, isto22

Neste trabalho, utilizo o termo instituio como referncia para espaos pblicos e coletivos de educao, e no aquela dada pela famlia, apesar de ela tambm ser uma instituio.

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, seus aspectos didticos como, por exemplo, os programas, as estratgias, os objetivos, avaliao, a definio dos usos do tempo e do espao, sua organizao, suas prticas, seus discursos, enfim, sua rotina. As pedagogias da educao infantil, segundo Rocha (1999b), diferem-se das do Ensino Fundamental porque estas baseiam-se principalmente no ensino, e tm como objetivo central a transmisso do conhecimento, e como locus privilegiado a sala de aula, vendo a criana como um aluno. J a educao infantil constituda de relaes educativas entre crianas-crianas-adultos atravs da expresso, do afeto, da sexualidade, dos jogos, das brincadeiras, das linguagens, do movimento corporal, da fantasia, da nutrio, dos cuidados, dos projetos de estudos em um espao de convvio onde h respeito pelas relaes culturais, sociais e familiares.23 As pedagogias da educao infantil tratam de um tipo de educao que em grande parte das sociedades no obrigatria, sendo apenas complementar das famlias. Esse tipo de tarefa pode ser desenvolvido em organizaes institucionais, diferenciadas como creches, jardins de infncia, ludotecas, bibliotecas infantis, etc... no tendo como nica alternativa a escola infantil, nem tendo como objetivo central os aspectos de transmisso cultural que tm sido o tema prioritrio no ensino obrigatrio.

1.4 Questes CentraisCanta meu grilo, como preferires: mas eu sei que amanh, no alvorecer, vou embora daqui, por que se fico aqui, acontecer mim aquilo que acontece todos os meninos, isto , terei de ir para a escola e por amor ou por fora, terei de estudar; e eu, vou te dizer em confidncia, de estudar no tenho nenhuma vontade e me divirto mais perseguindo borboletas e subindo nas rvores para pegar os passarinhos 24 nos ninhos.

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Diferentemente de Rocha (1999b) acredito que a didtica no adequada apenas ao pedaggica no contexto escolar. Penso que, mesmo em estruturas no-formais de educao, estratgias didticas so utilizadas, podendo conceitos didticos, mais convencionais, serem ressignificados e recontextualizados e novos conceitos serem criados de acordo com as especificidades do espao pedaggico. 24 A expresso Por amor ou Por fora usada pelo na histria do Pinquio foi utilizada como ttulo de um livro organizado pela Comuna de Modena, sobre a histria da infncia nos sculos XIX e XX e tambm num texto de Ulivieri (1986).

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Nesse dilogo com o grilo-falante pode-se ver o conflito vivido por Pinquio quanto a tornar-se ou no um ser humano. O fato de se tornar um menino implica em ser regulado socialmente, regulao esta que se dar por amor ou por fora. Pinquio consegue, com essa expresso, sintetizar aquilo que as pedagogias, e os pedagogos conhecem bem, que a tenso, o impasse, a ambigidade existente no ato pedaggico. De acordo com Philippe Aris (1978,1979) a infncia e os modos como a educamos tm, ao longo da histria, pendulado entre dois extremos que representam dois virtuais pilares sociais, a paparicao e a moralizao. Outros autores reafirmam a existncia desses extremos por meio de outras

denominaes: Turner (1989) fala da oscilao entre as restries e os relaxamentos na conduta moral das crianas; Lerena (1983) fala sobre o grande impasse entre o reprimir e o liberar e Santos (1995,1996) fala da emancipao e da regulao. As pedagogias da Educao Infantil, como no poderia deixar de ser, tambm oscilaram entre tais extremos. Para esses estudiosos, as prticas discursivas sobre a educao das crianas nas famlias e nas instituies educacionais tm estado divididas entre dois grandes grupos. Por um lado, dando continuidade ao discurso religioso do pecado original e vendo as crianas como seres que devem ser controlados, esto as concepes hegemnicas que defendem uma educao com nfase na disciplina, na ordem, na conteno dos impulsos infantis como a forma privilegiada de interveno educacional. Por outro lado, dando seqncia a viso da inocncia intrnseca das crianas e a sua fragilidade, emergem discursos que criticam as formas rgidas de educao e que propem uma educao aberta e livre que no perturbe a natureza das crianas. Para Santos (1995, 1996b), ambos os paradigmas esto inscritos no projeto da modernidade e, citando Habermas, afirma que, at o presente momento histrico, a modernidade assentou-se na contradio entre a regulao e a emancipao, sendo que o pilar da regulao tem conseguido domar as incessantes energias emancipatrias. Epistemologicamente, o conhecimento como regulao obteve tambm a mais completa hegemonia sobre o paradigma do conhecimento como emancipao25 .25

Santos exemplificando esses dois pontos extremos, demonstra que O conhecimento como regulao consiste numa trajetria entre um ponto de ignorncia designado caos e um ponto de

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Segundo o mesmo autor, para poder alterar esse movimento, preciso reconhecer tal assimetria e procurar compreender seu funcionamento rompendoa, reduzindo-a ou suprimindo-a e, dessa forma, mudando o paradigma. E lembra que a grande armadilha reside no:prprio objetivo de vincular o pilar da regulao ao pilar da emancipao e o de os vincular a ambos concretizao de objetivos prticos de racionalizao global da vida coletiva e da vida individual. (Santos,1995, p.78)

O objetivo fundamental desta pesquisa indagar o que so as rotinas na pedagogia da educao infantil e verificar como essa prtica vincula-se aos dois plos acima apresentados - da regulao e emancipao ou da dominao e resistncia - tendo como estratgia a anlise do seu papel como instrumento de organizao institucional da pedagogia e de regulao das subjetividades. Esse objetivo pode ser desdobrado em cinco grandes questes: a) definir o que so rotinas na pedagogia da educao infantil, procurando suas origens e as relaes que guardam com o mundo exterior ao da educao e verificando, ainda, como essa prtica discursiva constituiu-se e consolidou-se na pedagogia da educao infantil; b) comparar e aprofundar as concepes sobre as diferentes infncias e a rotinizao que est presente nas atuais pedagogias da educao infantil e na prpria constituio das instituies de educao e cuidados de crianas pequenas. Verificar de que modo a rotina, como prtica, apesar de sua pouca visibilidade e teorizao, tornou-se um dos eixos centrais das pedagogias da educao infantil; c) dissecar a rotina enquanto categoria pedaggica atravs da explicitao dos seus elementos constitutivos, de suas configuraes internas, dos modos como so vividas e experenciadas nas escolas infantis de hoje, compreendendo assim por que ocupam cada vez mais um lugar de destaque nas teorias e nas prticas de interveno pedaggica. Isto , ver os modos como operam as rotinas enquanto instrumento de constituio e de normalizao de subjetividades (adultas e infantis) nas instituies de educao infantil e tambm como encaminham para a autonomia e independncia;conhecimento designado ordem. O conhecimento como emancipao consiste numa trajetria entre um ponto de ignorncia chamado colonialismo e um ponto de conhecimento chamado solidariedade. (1996b,p.24)

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d) proceder anlise das rotinas, estabelecendo interseces com diversos campos do conhecimento, com o objetivo de possibilitar uma nova compreenso educacional, poltica e cultural. e) finalmente, refletir sobre as pedagogias da educao infantil apontando para as possveis ressignificaes das rotinas enquanto cotidiano das prticas educacionais. Essas so as questes s quais tentarei responder ao longo deste estudo. A contribuio que esta tese pretende dar ao campo de estudos e pesquisas da pedagogia da educao infantil o de refletir e questionar as rotinas, tendo como ponto de referncia as polticas de homogeneizao que esto sendo implementadas atravs de diferentes projetos educacionais na educao infantil, pois, ao comparar as rotinas de diferentes instituies26 , foram encontradas, principalmente, similitudes e homogeneizaes, o que demonstra que na elaborao das rotinas muitas vezes, no esto sendo levadas em considerao nem a diversidade dos marcos tericos, nem a criana concreta com suas diferenas sociais, culturais, tnicas, religiosas, etrias, de classe e outras. Ao contrrio, a organizao da vida diria nas instituies padronizadas, quase uniforme, seguindo normalmente as grandes etapas da psicologia evolutiva, as macropolticas curriculares e as reformas de ensino, as posies hegemnicas sobre a formao de professores e a elaborao de produtos tecnolgicos de comunicao de massas que tm permeado as polticas educacionais atuais.

1.5 Caminhos Metodolgicos

De Certau acredita que fazer uma pesquisa como abrir um canteiro de obras: definir um mtodo, encontrar modelos para aplicar, descrever, comparar, diferenciar atividades de natureza subterrnea, efmeras, frgeis e

circunstanciais, em suma, procurar, tateando elaborar uma cincia prtica do

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Ver no Anexo 1 alguns modelos de rotinas de diferentes projetos pedaggicos.

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singular (1996, p.21). Para construir as aproximaes metodolgicas ao campo de pesquisa deste estudo, senti-me como que imergindo em um canteiro de obras, tentando estabelecer os contornos do terreno, escolher os materiais, fazer as fundaes que assegurem a estabilidade, ainda que parcial, do contedo, fazendo-o resistente e, de preferncia, compreensvel, til e bonito. A experincia de pesquisar em um universo familiar, na sociedade em que vivo, no meu ambiente de trabalho, tem dificultado o afastamento, ou melhor, o estranhamento com o objeto de pesquisa no sentido de desnaturalizar as prticas observadas. Tentei criar um modo estrangeiro de ver as rotinas nas creches e pr-escolas, mas, muitas vezes, isso no parece ser possvel. Tenho, como observadora, uma dificuldade muito grande em no estabelecer julgamentos, em no pensar em solues e em no prescrever alternativas - vcio de professora? Pode ser. Como professora de estgio e prtica de ensino, observo turmas de educao infantil h muitos anos com o objetivo de auxiliar as alunas a refletirem sobre suas prtica. A pedagogia um campo do conhecimento no qual a interveno e a prescrio so a tnica, e tal fato torna, quase impossvel a postura de investigadora, pois me sinto permeada pelos afetos, pelas prticas, pelas tradies e pela constituio profissional. As poucas referncias de estudos anteriores sobre o tema dificultaram sua delimitao e classificao. No pretendi, em nenhum momento, fazer um estudo usando uma metodologia clssica de pesquisa. Decidi, aps a leitura de Morin (1990), partir das questes que me havia proposto estudar e ir, gradativamente, formulando caminhos investigativos. Novos, no-clssicos, hbridos, diversos. Desse modo, esta pesquisa, apesar de contar com contedos histricos, no um estudo de histria da educao, no um estudo etnogrfico, embora trabalhe com alguns instrumentos da pesquisa antropolgica e esteja inspirada nela para o trabalho de campo. Tentaria descrev-la como um estudo que tem como subsdio para sua escrita materiais empricos de variadas origens, isto , uma bricolage, um mosaico formado de elementos empricos, como textos escritos, canes, entrevistas, fotos, relatos de observao que procurei organizar, tendo em vista responder s questes levantadas. Procurei propor algumas estratgias

investigativas que facilitassem a construo do objeto, que pudessem responder31

s questes levantadas e que, no momento de concluso, pudessem ser articuladas para a compreenso global do conhecimento constitudo. Acredito que a construo metodolgica de uma pesquisa esteja intrinsecamente ligada ao contedo abordado e ao percurso de aproximaes sucessivas realizadas pela pesquisadora.Um quadro terico a priori focaliza prematuramente a viso do pesquisador, levando-o a enfatizar determinados aspectos e a desconsiderar outros, muitas vezes igualmente relevantes no contexto estudado, mas que no se encaixam na teoria adotada. (...) [ necessrio] uma posio antropofgica que implica um conhecimento profundo do contexto focalizado, para que se possa avaliar se uma dada teoria ou no adequada - o que no exclui um esforo maior no sentido de procurarmos gerar nossas prprias teorias. (Alves-Mazotti,1992, p.56)

Seguindo as indicaes de Howard Becker (1994), em seu importante estudo sobre a pesquisa nas cincias humanas, ele comenta sobre um modelo artesanal de cincia, no qual cada trabalhador produz teorias e os mtodos necessrios para o trabalho que est sendo feito (p.12). Para esse autor, o importante o pesquisador recompor, recriar ou at inventar mtodos capazes de resolver os problemas das pesquisas, fazendo assim a costura de diversos tipos de pesquisa e materiais disponveis e pblicos (op.cit., p. 22). Apresentarei a seguir algumas das estratgias utilizadas para a construo do campo de pesquisa. Iniciei este estudo com a construo de um inventrio sobre como as rotinas se manifestam e fiz um levantamento em materiais diversos, como livros, revistas, canes, visitas iniciais ao campo, os quais representam as rotinas, isto , mostram como as rotinas como se tornaram visveis na educao infantil, isto , constru algumas estratgias de aproximao emprica.27 Na primeira etapa do processo de construo dessa pesquisa, procurei localizar historicamente a gnese da noo de Rotina nas sociedades ocidentais e no campo da pedagogia da educao infantil, ou seja, quais foram s condies histricas, polticas e culturais para a emergncia e o engendramento de tal prtica e as suas condies de legitimao. Esta parte do estudo foi feita por duas

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Foram consultados para o Anexo 1: Bosch (1963), Abramowicz;Wajskop (1995),Aranha (1993), Oliveira (1994), Frabboni (1990),Marinho (1967), Headley (1968), bi-Sber (1963), Nicolau (1986), Rizzo (1982), Evrard-Finquemont (1958), Groupe Maternel Ligeois (s.d.), Gunnarsson (1994),Bartolomeis (s.d.), Cear (s.d.), So Paulo (1990,1994) Lopez ; Homar (1948).

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vias: a primeira foi a etimologia da palavra rotina, a construo de um conceito e a procura da histria social das rotinas. Para esse empreendimento, foi necessrio trabalhar em diferentes dicionrios e em textos clssicos da educao infantil. Procurei, ento, problematizar e construir conceitualmente a rotina como uma categoria pedaggica das pedagogias da educao infantil. E, logo aps, procurar a histria dos processos sociais para tentar entender as questes nas suas continuidades e rupturas e na sua amplitude nos diferentes campos. Foi o exerccio de construo de uma breve genealogia que no uma procura das causas, mas o encontro com os processos de constituio. Portanto a genealogia seria:um empreendimento para libertar da sujeio os saberes histricos, isto , torn-los capazes de oposio e de luta contra a coero de um discurso terico, unitrio, formal e cientfico.(Foucault,1982, p.172)

De acordo com o mesmo autor, no texto Genealogia e poder, a genealogia uma ttica que faz com que saberes locais, fragmentrios, sejam ativados, tornando-se saberes libertos da sujeio e que emergem desta discursividade (op.cit, p.172). uma anlise explicativa que articula poderes e saberes em perodos de tempo amplos. Analisei, prioritariamente, as relaes entre as rotinas e a religio, as polticas do corpo, a legislao, o universo do capital e do trabalho e da escola. Essa parte da pesquisa foi feita atravs de pesquisa bibliogrfica na histria social. Uma breve incurso no campo da histria servir para contextualizar a produo e a afirmao das rotinas verificando como essa prtica cultural constituiu-se. A partir desse trabalho inicial com fontes histricas secundrias, organizei um captulo de reflexo sobre como a modernidade constituiu uma rotina para educar as crianas nas famlias e nas instituies para as crianas pequenas, como creches, jardins da infncia e pr-escolas. A segunda parte deste estudo trabalha principalmente com a discusso pedaggica das rotinas e tem como fontes a pesquisa sobre o conceito de rotina em textos histricos e contemporneos da educao infantil28 e o material

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Quero agradecer a Ana Lcia G. de Faria o acesso bibliografia italiana sobre histria da infncia e educao infantil.

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levantado atravs de observaes feitas no cotidiano dos espaos educativos o Dirio de Campo, escrito nos anos de 1997 e 1998, a partir das observaes feitas em instituies brasileiras, e o Dirio de Viagem, escrito em 1998, durante uma viagem de estudos feita por alguns pases europeus.29 A atrao por fazer um estudo de campo vem de uma paixo pela antropologia. Para mim, era importante mostrar que alguns atos que parecem sem objetivo, prticas inspidas, inodoras e incolores tm, sim, cor, cheiro e gosto. O que est ocorrendo que as mediaes feitas pelo lugar de onde observo parecem-me muito mais fortes do que a possibilidade de construir um estranhamento. Procurei desempenhar o papel de observador participante que, segundo Becker (1994, p.120) aquele que:coleta dados atravs da sua participao na vida cotidiana do grupo ou da organizao que estuda. Ele observa as pessoas que est estudando para ver as situaes com que elas se deparam normalmente e como se comportam frente a elas.

A partir dessas observaes, procura registrar este:material to completamente quanto possvel por meio de relatos detalhados de aes, mapas de localizao das pessoas enquanto atuam e, claro, transcries literais das conversaes. (Becker, op. cit, p. 120)

Juntamente com a pesquisa emprica foram emergindo novas questes e novos pontos de vista que no eram falados nas reunies, nos livros, na formao dos professores. Isto , aparecia o quanto as rotinas constrem a subjetividade das crianas e dos adultos das instituies de educao infantil. Assim que comecei a entrar nas creches e nas pr-escolas via, basicamente, a opresso (ativa ou passiva), a falta de respeito, a hierarquia e a normalizao tendo muita dificuldade em ver os atos de resistncia, em compreender os conflitos e as contradies presentes nas mesmas. A escolha das instituies observadas foi pragmtica: foram selecionadas aquelas que as autoridades locais consideraram representativas do sistema de Educao Infantil e a escola privada foi escolhida tendo em vista a sua proposta diferenciada. No caso das instituies estrangeiras, tambm educadores e

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Os pases visitados foram: Espanha (Barcelona, Madri, Matar, Granada), na Itlia (Pistia), na Alemanha (Berlim) e Dinamarca . Em cada cidade visitada conheci duas escolas pblicas infantis.

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pesquisadores abriram caminho para que as visitas se tornassem possveis. As observaes eram feitas acompanhando-se as jornadas das crianas nas escolas. No computei a incidncia de nenhum tipo de comportamento, no sendo feito nenhum questionrio ou utilizada estratgia de registro de observao. Apenas a escrita feita durante a prpria observao e a realizao de um Dirio de Campo ou Dirio de Viagens a partir do esboo sobre o observado. Tambm foram feitos registros fotogrficos30. Como as observaes no foram discutidas com os profissionais e muitas delas demonstram situaes problemticas, considerei que, pelo teor e objetivo da pesquisa, a identificao das instituies no seria fundamental. A natureza desse tipo de interveno o olhar de fora, passageiro pode congelar um determinado tipo de significado a uma ao observada e, ao tomar isso como uma verdade absoluta, pode ser interpretado como uma atitude pouco tica com as crianas, a instituio e os profissionais. Foram feitas algumas inseres no cotidiano de Escolas Infantis Brasileira. Primeiro, em duas escolas situadas na cidade gacha de Santa Cruz do Sul - uma pblica, A e uma privada, B - onde foram realizadas observaes de turno integral em diferentes turmas.31 O relato das observaes esto registrados no Dirio de Campo, dos anos de 1997 e 1998, e ofereceram dados para a discusso de algumas das questes da pesquisa. Com o intuito de aprofundar o estudo emprico, foi escolhida uma Escola Infantil da Rede Municipal de Educao de Porto Alegre/RS, para a coleta de dados. Nessas instituies, realizei observaes de turno integral e observaes em perodos parciais, acrescendo a estas entrevistas informais (semi-estruturadas) com os educadores e entrevistas com as crianas com o objetivo de obter uma maior riqueza de materiais. O uso da observao, do registro e de entrevistas informais foi inspirado, principalmente, pelos estudos etnogrficos, apesar da Psicologia e da Sociologia tambm utilizarem esses dois instrumentais como tcnicas de pesquisa e de coleta de dados. Sei que esse uso instrumental da Antropologia tem sido muito30 31

A viagem de estudos foi feita em outubro, novembro e dezembro de 1998. Foram feitas duas observaes de turno integral, com duas turmas na creche pblica e trs turmas da escola privada. Nas escolas pblicas estrangeiras, geralmente acompanhei um dia inteiro das atividades em dois grupos de crianas: pequenos e maiores.32

As imagens esto no Anexo 5 e foram feitas por uma desenhista a partir de descries feitas por mim.

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criticado, pois os instrumentos so usados, muitas vezes, fora de um contexto terico. No caso desta pesquisa, a inteno no era fazer um estudo de caso aprofundando uma determinada situao, nem trabalhar com o que ocorre alm das rotinas, mas observar a existncia ou no das rotinas e como se d sua execuo no dia-a-dia das instituies de educao e cuidados. Creio que a pedagogia pode pedir emprestado esses instrumentais, tendo o cuidado de uslos com restries e com clareza acerca dos seus limites. A ida ao campo e a coleta do material emprico no tiveram o objetivo de realizar um estudo de aprofundado das rotinas em uma instituio. As questes que me fazia, enquanto pesquisadora, eram muito precisas, eram estritamente sobre a rotina, e as observaes de campo poderiam ajudar a respond-las. As observaes e entrevistas livres realizadas em escolas de outros pases nos meses de outubro, novembro e dezembro de 1998 sero utilizadas para contrapor, problematizar ou validar aquelas feitas no Brasil. O registro dessa viagem foi feito atravs de registro fotogrfico e de um Dirio de Viagem, em 1998 . Como falei anteriormente utilizei, ainda, como material emprico situaes,

palavras ou frases de livros e teses que tratam do tema, capturadas para exemplificar alguns significados importantes dos diferentes momentos da rotina na educao infantil. Alm disso, coletei algumas canes que auxiliam na organizao das rotinas, isto , canes que introduzem ou concluem um certo momento da rotina. Elas mostram o caminho adequado para a mudana de atividades, marcam as etapas e as transies entre os momentos de rotina. Tais imagens e canes foram coletadas, ao longo dos anos, em vrias creches e pr-escolas pblicas e privadas do RS e em livros sobre o tema. Foram tambm coletadas propostas de rotinas encontradas em livros e em documentos oficiais sobre o modo de construir rotinas adequadas como modelos criados por especialistas em diferentes momentos histricos e em diferentes lugares. As imagens 32 que os educadores criam para poder representar as rotinas e que tm como objetivo a compreenso das mesmas pelas crianas podem variar de uma simples folha de papel mimeografado, colada atrs da porta com a

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As imagens esto no Anexo 5 e foram feitas por uma desenhista a partir de descries feitas por mim.

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seqncia dos horrios e das atividades, at um complexo jogo de montar para as crianas organizarem, junto com a professora, as atividades que sero desenvolvidas ao longo do dia. Para Becker, a imagem mais adequada do empreendimento cientfico o de um mosaico no qual:Cada pea acrescentada num mosaico contribui um pouco para nossa compreenso do quadro como um todo. Quando muitas peas j foram colocadas, podemos ver, mais ou menos claramente, os objetos e as pessoas que esto no quadro, e sua relao uns com os outros. Diferentes fragmentos contribuem diferentemente para a nossa compreenso: alguns so teis por sua cor, outros porque realam contornos d um objeto. e Nenhuma das peas tem uma funo maior a cumprir; se no tivermos sua contribuio, h ainda outras maneiras para chegarmos compreenso do todo.(op. cit., p.104 e 105)

A construo do objeto de estudo realizou um percurso prprio, procurando responder s questes, e no foi feita empregando-se uma metodologia previamente definida. Algumas vezes, isto me pareceu um pouco problemtico, mas o uso de tcnicas diversas, a partir de pressupostos tericos definidos, tem sido uma forma interessante para descortinar as questes da rotina e para fazer a educao e a cincia de um modo mais elstico. Seria mais fcil optar por escrever este trabalho a partir do olhar de uma pesquisadora com muitas certezas, uma pesquisadora que tivesse um referencial terico nico e organizado como referncia e que procurasse, considerando tal referncia, fazer uma leitura de um aspecto da prtica. No quero seguir este caminho, ele no me satisfaz. O papel da pesquisa no o de simplificar posicionando-se a favor ou contra - mas o de olhar a complexidade da realidade e procurar explic-la a partir de uma perspectiva. Para empreender esta aventura terico-prtica, muitas foram as leituras e releituras feitas. Para situar o objeto de pesquisa, procurei ter como interlocutores os dicionaristas que so generalistas e assim nos abrem muitas portas, muitos sentidos. Os dicionrios da rea das cincias humanas contriburam com o maior nmero de interlocutores. Na rea da histria, autores consagrados como Aris (1978,1986) e Norbert Elias (1980) foram fundamentais. Alm deles outros autores como os espanhis como Bajo e Betrn (1998) e Delgado (1998), e principalmente os italianos, juntamente com franceses, Becchi (1994) e Becchi & Julia

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(1996a,1996b) e Catarsi (1983,1994) foram fontes privilegiadas para compreender a formao do conceito de infncia, a histria da educao infantil e das instituies para a educao das crianas pequenas. A histria e a sociologia do cotidiano foram trabalhadas a partir de Anthony Giddens (1995), Agnes Heller (s.d), Henri Lefebvre (1984) e Michel de Certau (1994,1996) e sua equipe de pesquisadores. A discusso entre modenidade(s) e ps-modernidade(s) que permeou o trabalho foi construda, prioritariamente, a partir de Santos (1996), Giddens (1991,1995), Adorno (1995), Harvey (1992), Jameson (1994), Hollanda (1992), Lyon (1998) entre outros. Na pedagogia, procurei primeiro revisitar os clssicos, entre eles Rousseau (1992,1994), Montessori (1937,1970,1994), Froebel (1989), Pestallozzi

(1967,1988), Dewey (1959) e Freinet (1974). Procurei fazer, sempre que possvel, a leitura de textos originais dos autores. Em certos momentos, utilizei tambm textos escritos por estudiosos e intrpretes de suas obras. As Pedagogias Crticas tiveram como interlocutores privilegiados Giroux (1995,1996), Cambi (1995), Frago (1998), Rocha (1999a1999b) e Gore (1996). As questes da pedagogia da educao infantil foram discutidas a partir de autores brasileiros antigos e contemporneos. Escolhi tambm como

interlocutores alguns autores italianos e espanhis como Mantovanni e Bondioli (1998), Tonucci (1988), Bartolomeis (s.d.), Becchi (1995), Bertolini (1996), Cambi (1995), Catarsi (1994), Bassedas (1999), Jimenz; Molina (1989) e outros. Na psicologia, apoiei-me na anlise scio-histrica e na psicanlise, procurando fazer uma releitura crtica de psicologia evolutiva atravs de Burmann (1998) e Figueiredo (1994). O dilogo com campos e posies tericas diversas foi complexo, exigindo a articulao entre os autores e a questo de pesquisa trabalhada. Alm do dilogo com tericos e suas teorias, tambm o dilogo com as pessoas que estavam presentes no campo de pesquisa educadores, crianas,

administradores e aquelas que acompanharam o desenrolar deste estudo colaboraram para fazer-me compreender como operam os discursos e as prticas sociais de educao nas instituies de educao infantil. Como j vimos na apresentao dos caminhos metodolgicos, este trabalho est organizado em trs partes. A primeira procura fazer uma anlise38

sobre o que so rotinas (captulo 2), a emergncia no campo social das rotinas pedaggicas (captulo 3) e o processo de rotinizao da infncia (captulo 4). A segunda parte, com um objetivo mais pedaggico, procura esmiuar a compreenso da rotina como uma categoria pedaggica central nas pedagogias da educao infantil (captulo 5), sua estrutura e modos de funcionamento (captulo 6). E a terceira parte, procura relacionar as rotinas, as pedagogias e a discusso da modernidade (captulo 7) e sugerir modos de (re)pensar a questo das rotinas pedaggicas (captulo 8). Conforme a epgrafe deste estudo, nosso desejo o de construir novos modos de olhar a educao e de poder auxiliar na produo de novos significados sobre alguns atos que esto, de certo modo, naturalizados nas instituies educacionais e, concordando com Foucault, afirmo:Meu papel - e esta uma palavra demasiado enftica - consiste em ensinar as pessoas que so muito mais livres do que se sentem, que as pessoas aceitam como verdade, como evidncia, alguns temas que foram construdos durante certo momento da histria, e que essa pretendida evidncia pode ser criticada e destruda. Mudar algo no esprito das pessoas, esse o papel do intelectual. (1996, p.143)

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2. MAS O QUE SO MESMO AS ROTINAS?

O tema central desta tese, como j foi explicitado nas questes anteriormente apresentadas, o da Rotina, ou seja, uma categoria pedaggica que os responsveis pela educao infantil estruturam para, a partir dela, desenvolver o trabalho cotidiano nas instituies de educao infantil. As denominaes dadas a essas rotinas so diversas: o horrio, o emprego do tempo, a seqncia de aes, o trabalho dos adultos e das crianas, o plano dirio, a rotina diria, a jornada, etc. A importncia das rotinas na educao infantil provm da possibilidade de constituir uma viso das mesmas como concretizao paradigmtica de uma concepo de educao e de cuidado.33 Poderamos afirmar que elas sintetizam o projeto pedaggico das instituies e apresentam a proposta de ao educativa dos profissionais. A rotina usada, muitas vezes, como o carto de visitas da instituio, quando da apresentao desta aos pais ou comunidade, ou um dos pontos centrais de avaliao da programao educacional. Na prtica educativa de creches e pr-escolas, est sempre presente uma rotina de trabalho que pode ter autorias diversas: em alguns casos, so normas ditadas pelo prprio sistema de ensino; outras vezes, so os tcnicos ou burocratas dessas reparties; outras, os diretores, supervisores ou os professores e os demais profissionais da instituio e, em algumas instituies tambm as prprias crianas so convidadas a participar. O modo de funcionamento da instituio - horrio de entrada e sada das crianas, horrio de

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Esse binmio referente educao infantil utilizado por diversos autores da rea, como Kuhlmann Jr. (1996), Barreto (1995) e Campos (1994) e ser abordado no Captulo 6.

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alimentao, turno dos funcionrios so fatores condicionantes34 do modos de organizar a rotina. Nos livros sobre creches e/ou pr-escolas pesquisados35, encontrei a presena das rotinas. Elas aparecem como modelos ou sugestes para a organizao do trabalho pedaggico do educador, mas, em geral, no so teorizadas. Raramente uma sugesto de rotina acompanhada de uma possvel explicao sobre a seleo ou a escolha de atividades ou materiais, ou mesmo justificativas que indiquem os motivos pelos quais se inicia a manh com um determinado tipo de atividade e se finaliza com outro. A rotina torna-se apenas um esquema que prescreve o que se deve fazer e em que momento esse fazer adequado. (ver Anexo 1) O tema da rotinas vem sendo tratado, indiretamente, desde os textos fundadores da educao infantil36, como Rousseau, Pestalozzi, Froebel e Maria Montessori 37, e aparecem, de modo mais visvel, nas propostas contemporneas de educao infantil. Pode-se at mesmo afirmar que as rotinas encontram, atualmente, um maior destaque a ponto de consistir em captulos de livros, fascculo de publicaes independentes, tema na formao de professores, etc. A presena significativa das rotinas, nas prticas da educao infantil, acabou por constitu-la como uma categoria pedaggica central, mas muito pouco estudada e explicitada. Como todas as noes, a palavra rotina surgiu no momento em que parecia ter-se tornado til para nomear prticas que j estavam constitudas socialmente.38 Explicitar a existncia de uma categoria pedaggica e seu modo de operar uma atitude importante, pois, tendo certa visibilidade, ela torna-se mais consistente e passvel de anlise, crtica e transformao. Poucas foram as referncias a pesquisas que conceituam e problematizam as rotinas. Recentemente, foram defendidas duas dissertaes de mestrado

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A palavra condicionar, utilizada nesse caso, quer demonstrar o quanto as questes legais e administrativas so bsicas para a construo das convenes e das regras de funcionamento institucionais, mas no considera que, por isso, sejam determinantes. 35 Livros que traziam exemplos de rotinas como: 36 Esses autores no usam o termo rotina mas idias como as de moralizao, hbitos, atividades da vida diria e socializao que formam as bases dos conceitos utilizados, ainda hoje, para a construo e a justificativa das rotinas. 37 Nos prximos captulos sero apresentadas as contribuies bsicas desses autores ao conceito de rotina. 38 O termo noo utilizado aqui como um conhecimento parcial, que pertence ao senso comum e que aparece, normalmente, no momento em que um problema da sociedade torna necessria e til uma representao mais ou menos vaga (Fourez, 1995, p. 228).

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sobre o tema. A de Ramos (1998) que procura verificar a interferncia da rotina da escola infantil no processo de construo da noo operatria de tempo subjetivo pela criana, e a de Batista (1998), que procura estudar a ao das rotinas institucionais da educao infantil e o movimento de resistncia das crianas padronizao dos tempos e do espao. Tambm foram utilizados alguns estudos que registram as rotinas ao fazerem descries do cotidiano das instituies, tendo, na verdade, outros objetivos e utilizando essa descrio como instrumento de coleta de dados. A deciso de fazer um estudo sobre as rotinas nas pedagogias da educao infantil surgiu a partir da constatao da ausncia de estudos pedaggicos sobre esse tema, tanto no que se refere pr-escola quanto creche.

2.1 Rotina e/ou Cotidiano? Ao longo deste estudo, foi sendo construdo um olhar sobre os conceitos de cotidiano e rotina. Inicialmente, os termos foram usados como sinnimos, mas aps algumas leituras e reflexes procurei estabelecer uma certa diferenciao entre eles. Apesar de partilharem pontos de interseco e convergncia, cada um desses conceitos possui especificidades. A reflexo sobre o cotidiano comea a ser produzida no sculo XVIII quando a literatura conta, atravs de romances, a histria da vida das pessoas comuns e a pintura descobre o encanto de retratar homens, mulheres e crianas em suas atividades dirias, contribuindo para demonstrar a riqueza da vida cotidiana e dos eventos que acontecem todos os dias. A partir dessa abertura promovida pela arte, houve a descoberta pelos cientistas sociais da importncia, da riqueza e da originalidade do cotidiano. E de uma postura na qual apenas tinham valor para a reflexo e para o registro os macroacontecimentos, isto , os fatos de ampla abrangncia, inicia-se uma valorizao dos microacontecimentos como o lugar onde podem ser vistos pequenos retratos do mundo. O estudo do cotidiano foi constituindo-se, neste sculo, como um campo de estudos nas reas da sociologia, da antropologia e da histria nas quais o mesmo visto tanto como objeto de estudos como tambm uma estratgia metodolgica

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de pesquisa. A histria at ento escrita a partir dos grandes feitos, dos grandes nomes procurou incluir o dia-a-dia na anlise de suas questes e a antropologia (com os estudos etnogrficos) contribuiu para reivindicar a importncia do cotidiano na construo terica das cincias sociais. As rotinas podem ser vistas como produtos culturais criados, produzidos e reproduzidos no dia-a-dia, tendo como objetivo a organizao da cotidianeidade. So rotineiras um conjunto de atividades, como cozinhar, dormir, estudar, trabalhar e cuidar da casa, reguladas por costumes e desenvolvidas em um espao e tempo social definido e prximo, como a casa, a comunidade ou o local de trabalho. preciso aprender certas aes que, com o decorrer do tempo, tornam-se automatizadas, pois preciso ter modos de organizar a vida. Do contrrio, seria muito difcil viver se, todos os dias, fosse necessrio refletir sobre todos os aspectos dos atos cotidianos. Em contraposio rotina, o cotidiano muito mais abrangente e refere-se a um espao-tempo fundamental para a vida humana, pois nele que acontecem tanto as atividades repetitivas, rotineiras, triviais, como tambm o locus onde h a possibilidade de encontrar o inesperado, onde h margem para a inovao, onde se pode alcanar o extraordinrio do ordinrio (Lefebvre,1984, p.51). Jos Mac