Aula 6 - Memória e Cultura - Danilo Santos de Miranda

22
- í, 1 " Por que há tantos leitores de biografias e ¡autobiografias? Por que se multiplicam os "centros de memória" (públicos e privados), os órgãos de ^preservação do patrimônio histórico e as iniciati- vas para conservar bens culturais? índios, negros, "¡Imigrantes e seus descendentes recuperam tra- I ¿lições e reivindicam o direito à identidade. Filas ftm museus são cada vez maiores. E o comércio -•'de antigüidades - ou de seus simulacros - tam- ;:bém. Ondas de "moda retro" se sucedem ano a ano. Novelas de época são campeãs de audiência. } Documentários têm canais específicos na televisão e larga produção no cinema. Famílias digitalizam ; antigos álbuns de fotografia ou se dedicam à mon- tagem de sua árvore genealógica. A memória está em voga. E em crise. En- quanto confere valor ou Qlamour ao passado, a sociedade moderna parece incapaz de perceber que a diferenciação no tempo é indispensável para a compreensão da vida humana. Sem essa percep- ção, "a mudança é ininteligível, é apenas um fator de angústia" - como lembra Ulpiano Bezerra de Meneses. Reunindo vários especialistas e dirigen- tes de instituições culturais, o SESC SP organizou um seminário internacional em 2006 exatamente para discutir as incontáveis apropriações sociais da memória e seu significado na cultura contempo- rânea. O evento contemplou, entre outros, temas como os paradoxos da própria memória, o cinedo- cumentário, a fotografia, a história oral, a cultura ¡material, a memória das empresas e esse "leito da memória cultural" que é a língua. A maioria das participações no seminário está compilada neste livro. Uma reflexão atualizada. Um panorama dessa capacidade ao mesmo tempo tão humana e tão humanizadora. í< h V 3 N^t/ ,y yy v\° HSinORLA li' II •m. m i Í3T A IMPORTANCIA MlílSI^IÍEíílISÍ CULTURAL HUMANA ORGANIZAÇÃO DANILO SANTOS DE MIRANDA V ©LP "t IÇ^SASJV» CQF^t .4J2S^ 2007

description

Memória e Cultura

Transcript of Aula 6 - Memória e Cultura - Danilo Santos de Miranda

  • - ,1" Por que h tantos leitores de biografias e autobiografias? Por que se multiplicam os "centros de memria" (pblicos e privados), os rgos de

    ^preservao do patrimnio histrico e as iniciati-vas para conservar bens culturais? ndios, negros,

    "Imigrantes e seus descendentes recuperam tra-I lies e reivindicam o direito identidade. Filas ftm museus so cada vez maiores. E o comrcio -'de antigidades - ou de seus simulacros - tam-;:bm. Ondas de "moda retro" se sucedem ano a ano. Novelas de poca so campes de audincia.

    } Documentrios tm canais especficos na televiso e larga produo no cinema. Famlias digitalizam

    ; antigos lbuns de fotografia ou se dedicam mon-tagem de sua rvore genealgica.

    A memria est em voga. E em crise. En-quanto confere valor ou Qlamour ao passado, a sociedade moderna parece incapaz de perceber que a diferenciao no tempo indispensvel para a compreenso da vida humana. Sem essa percep-o, "a mudana ininteligvel, apenas um fator de angstia" - como lembra Ulpiano Bezerra de Meneses. Reunindo vrios especialistas e dirigen-tes de instituies culturais, o SESC SP organizou um seminrio internacional em 2006 exatamente para discutir as incontveis apropriaes sociais da memria e seu significado na cultura contempo-rnea. O evento contemplou, entre outros, temas como os paradoxos da prpria memria, o cinedo-cumentrio, a fotografia, a histria oral, a cultura material, a memria das empresas e esse "leito da memria cultural" que a lngua. A maioria das participaes no seminrio est compilada neste livro. Uma reflexo atualizada. Um panorama dessa capacidade ao mesmo tempo to humana e to humanizadora.

    <

    h

    V3 N^t/ ,y

    yy

    v\

    HSinORLA li' II m.

    m i 3T

    A IMPORTANCIA MllSI^IElIS

    CULTURAL HUMANA

    ORGANIZAO

    DANILO SANTOS DE MIRANDA

    V

    LP "t

    I^ SASJV CQF^t . 4 J 2 S ^ 2 0 0 7

  • SERVIO SOCIAL DO COMRCIO - SESC Administrao -Rggionl^ niorEstad^ de-SD^Pulo'''..

    WkWM

    Presidente do Conselho Regional Diretor doDeprtamento Regional

    Superintendente Tcnico Social 'Superintendente, de Comunicao Social.

    '.-.'," Gerente de Aries Grficas : Gerente Adjunto

    Gerente de Desenvolvimento de Produtos :.r ;-: .;; -' . .:.'. ' Get ente Adjunto

    Gerente eUstiidose Desenvolvimento ;. , Gerente-Adjunto

    ,. ,i; Gerente dp SE.SG Vila Mariana '.*.'.' , ,' Andra deArajo.Ngueira Olegario Machado Neto Mihn Wernck da Silva

    Cristianne Lamerinha . 1 Ana Maria GardacHVskirCiTistianne Lameirinh, GilsonTracker, Manelo Bressanin, Maita Colabone, NewtOrt-.Gunha, Nurimr Falei, Oswaldode Alrneid Junior, Vinci^Terra Equipe SSC Vila Mariana \

    Joac Pereira.Furtado Ronald Plito' i Beatriz de ''Freitas Moreir Carmen X' S, Costa, Ana Luciano Marchipi i

    ffl&

    Sm istente, deArte ;Lorp

    _,, v . - S E S C S o P a ^ Tel:; 55 U 660/7 8000-So Paulo - Brasil'. wvzwusescsp

    .Memoria pilf^ cultural ; ' , ' ' iburnana'/'Orgapizacao'derDailQ'^ ^S^ 'Mirandr - SpPauli lMies SLSC SP, 2007 -

    m

    SUMRIO MEMRIA E CULTURA: A IMPORTANCIA DA MEMORIA NA FORMAO CULTURAL Danilo Santos de Miranda

    CONFERNCIAS

    OS PARADOXOS DA MEMRIA ulplano Bezerra de Meneses

    PRESERVAO E MODERNIDADE James Fentress

    A CONSTRUO NARRATIVA DA MEMRIA E A CONSTRUO DAS NARRATIVAS HISTRICAS: PANORAMA E PERSPECTIVAS

    "~ :--!.-: Maria Helena Perelrauoledo Machadc

    A LNGUA COMO LEITO DA MEMRIA CULTURAL E MEIO DE DIALOGO ENTRE AS CULTURAS

    Mrcio Seligmann-Silva

    O E i l A I E S

    SUPORTES E METODOLOGIAS DE TRABALHO COM MEMRIA: HISTRIA ORAL, CINEDOCUMENTRIO E FOTOGRAFIA Histria oral: caminhos e perspectivas Jos Carlos Sebe Bom Meihy As armadilhas da memria - o papel de conservao e divulgao da memria fotogrfica de uma Instituio do Estado M. Tereza Siza Cinedocumenirio: registro de memrias, Inventrio de culturas

    Marilia Franco

    POLTICAS DA MEMRIA: CULTURA E ESQUECIMENTO Da tradio oral tecnologia da ntormlicajerusa Pires Ferreira Literatura e memria caminhos e descaminhos

    Susana KamplT lages

    WMHtai

    "S^S mm

    MEMRIA E CULTURA IMATERIAL Memria e patrimnio material Maria Lucia Montes Patrimnio material e polticas pblicas Mrcia SantAnna

  • OS PARADOXOS DA MEMORIA

    Ulpiano Bezerra de Meneses

    jVluito bom dia! Eu gostaria e no apenas por mera etiqueta de agrade-cer ao SESC. Para mim realmente uma satisfao estar aqui, na medida ern que o convite que me foi feito pressupe que eu tenha algo a dizer que seja do interesse de um nmero to volumostxde pessoas como as deste auditrio.

    Como se trata de palestra que abre um seminrio, eu me perguntei que tipo de tratamento poderia dar a tema to amplo Memria e Cultura com um subttulo A importncia da memria na formao cultural humana. Seria adequado esta-belecer um mapeamento de territrio que depois fosse ilustrado e desenvolvido nas reunies subseqentes do seminrio? Era uma perspectiva muito pretensiosa. Tive, ento, uma iluminao: utilizar o que a prpria palavra abertura significa. E uma palestra de abertura. Qual minha funo? a de um porteiro. Vou abrir a porta. No vou estabelecer nenhuma sistematizao do campo, no vou propor trilhas que valesse a pena seguir na programao posterior que me parece, alis, de excelente qualidade, assim como os nomes dos responsveis. No se trata, portanto, de definir

  • o horizonte em que o evento vai se desenrolar, mas, j tendo estado l dentro, abro a porta para que os convidados entrem. esta a minha funo. Portanto, entendam como a funo de um porteiro esta palestra. E ainda necessito esclarecer outro pres-suposto: no sou especialista em memria . Mas sou historiador e, como historiador, tenho tambm um campo de militncia especfica que o patrimnio cultural. Portanto, necessitei e necessito sempre de insumos relativos problemtica da memria. Sou um consumidor de reflexes sobre a memria, muito mais que um produtor. Dessa maneira, no esperem uma apresentao nem que seja na funo de porteiro com o tratamento de um especialista, mas de quem precisou dominar algo dos problemas da memria para o exerccio de sua prpria atividade profissional.

    Assim, dentro destes parmetros, posso comear a abrir a porta. Vou abri-la em dois lances. No primeiro, que est mais prximo do tema do seminrio, gostaria de fazer uma brevssima exposio, mui to breve mesmo, do processo de hominizao, processo pelo qual os primatas superiores chegaram at o Homo sapiens e hoje na variedade sapiens sapiens que nos caracteriza. Como tambm no sou especialista nessa iea, meu objetivo apenas dar idia do lugar visceral da memoria em nosso processo evolutivo. E necessria, portanto, alguma noo do que prprio de nossa condio humana. No segundo lance de abertura desta porta vou expor cinco paradoxos relativos memria. Paradoxo uma palavra interessante e muito cmoda. O prefixo para em grego significa algo paralelo ou algo que vai em direo contrria, e doxa opinio. Portanto, paradoxo li teralmente significaria uma opinio contraditria. Mas opinio, e no conhecimento. Isto , trata-se de uma opinio contraditria que pode ser desfeita pelo conhecimento. Paradoxo sempre implica uma contradio aparente, mas que pode ser desmontada quando se descobre sua lgica oculta. Vou apresentar cinco paradoxos para mostrar jus tamente como a extenso e a comple-xidade do campo da memria se prestam a certas polarizaes que compensaria desmontar. Apresentarei, pois, estes cinco paradoxos para desfazer algumas idias que polarizaram a memria em torno de certas questes, mas que so apenas falsas aparncias opinies que um procedimento crtico capaz de desfazer.

    114

    Hominizao, memria , cultura

    Ento, o primeiro lance da abertura desta porta: rapidamente, alguma coisa sobre o processo de hominizao e o papel que nele teve a memria. Como eu disse, apenas para uma idia geral repito que no sou especialista em evoluo humana , seja biolgica ou cultural.

    Apontaria, to-somente, que no processo de hominizao h duas faculdades a palavra que estou usando perigosa porque memria no faculdade, ou no s faculdade, mas vamos simplificar ento, no processo de hominizao eu diria que h dois marcos fundamentais: o surgimento de duas aptides mentais a abstrao e a articulao. Ambas esto associadas, claro, ao desenvolvimento da capacidade craniana, no bojo de um processo extremamente complexo, incluindo mudanas cor-porais e hbitos de vida. A abstrao a capacidade pela qual a percepo (que me permite, por meio dos sentidos, entrar em contato com o mundo emprico e material que me rodeia] pode ser levada ao nvel do conhecimento o nvel onde a percepo de cada ente, coisa, pessoa ou fenmeno me fornece elementos com os quais construo categorias de eventos. Portanto, no me atenho percepo do evento x, y ou z, mas utilizo o que eles tm em comum para definir uma classe na qual os aloco. A ao de furar ou de cortar, por exemplo, ocorre na vida comum sob diversas formas mas no na singularidade do evento de furar ou cortar que eu formulo o conceito de furo e de furar ou de corte e cortar. jus tamente pela abstrao, ou seja, retirando aquilo que no essencial. Portanto, u m processo por intermdio do qual transformo o sensvel em inteligvel, transformo a resposta que dou a cada caso em que sou solicitado pelas condies da vida em categoria inteligvel, em categoria abstrata. Esta faculdade no funciona sozinha, porque, alm de transformar o dado "puramente perceptvel" (entre aspas porque no existe dado puramente perceptvel), procuro estabelecer ar-ticulao entre os fenmenos. Isto , do que aconteceu quando pressionei u m objeto pontiagudo na madeira, na pedra e at na minha mo, construo as categorias abstratas "furo" e "furar" e, alm disso, infiro relaes de causa e efeito entre o furo e a forma em ngulo agudo. O que significa isso? A possibilidade de previso, de projeto, de programao, que ser fundamental para a constituio da cultura e da vida humana .

    151

  • A capacidade de abstrao e a de articulao estabelecem, por assim dizer, uma espcie de base para a instituio da cultura como prpria do comportamento humano . Mas essas duas faculdades no so suficientes, falta alguma coisa. Falta a memria, pois ainda que eu fosse capaz de abstrair e de articular, sem memria teria de recomear as respostas adequadas a cada novo impulso. Seria, portanto , u m processo ininterrupto de estmulos e respostas, sem continuidade e sem a possibilidade de passar a outros patamares. Seria, por isso, apenas uma reiterao e no uma qualidade, que o com-portamento poderia agregar. A memria, entretanto, que permite a recuperao da experincia, que vai possibilitar que as respostas satisfatrias possam ser utilizadas em todas as situaes similares. Mas ainda alguma outra coisa est faltando, pois mesmo que estas experincias pudessem ser recuperadas e definir padres padres, por exemplo, como a tipologia de artefatos , elas permaneceriam individuais. Essa outra coisa que est faltando, que se associa memria, a linguagem. a linguagem que permite que a memria seja um veculo de socializao das experincias indivi-duais. A capacidade de abstrao e a de articulao, portanto, no morrem no nvel individual. No indivduo, elas tm continuidade, mas podem tambm se transmitir a uma comunidade de pessoas. Aqui temos o quadro fundamental em que se percebe a importncia seminal que teve a memria. Seria interessante acrescentar o artefato abstrao, articulao e linguagem. Mas esta uma outra conversa. Gostaria apenas de apontar a importncia desempenhada pela memria na evoluo humana e a da linguagem na constituio da cultura.

    H um grande pr-historiador francs de meados do sculo passado chamado Andr Leroi-Gourhan que desenvolveu a idia de que no comportamento operatorio heremtrio dos primatas superiores predomina uma memria de constituio individual. Pois no necessrio que haja esta comunicao, na medida em que o essencial dos comportamentos previsto em um programa biolgico. No caso humano, entretanto, o problema da memria est dominado pelo problema da linguagem. O que representa, portanto, a possibilidade de escolha, a possibilidade de diversificao: a memria e a linguagem so fatores que permitiram aos homens por causa do horizonte mais amplo que a programao gentica definir escolhas, e, por isso, instituir e difundir significados e valores. (Uma teoria do valor, b o m lembrar, tem de ser encaminhada a partir de uma teoria da necessidade.) De maneira que o homem u m indivduo

    116

    zoolgico, mas ao mesmo tempo criador de memria social, o que significa criador de histria, de variao, de transformao e de mutabilidade. claro que esta preeminen-cia da linguagem na memria muitas vezes traz implicaes para o observador, para o especialista que no so adequadas. H quem tenha qualificado como problemtico o chamado modelo textual da memria. Um dos conferencistas a falar aqui amanh, James Fentress, escreveu, com Chris Wickham, u m livro intitulado Memria social, em que eles apontam, justamente, como a predominncia deste padro de memria criou alguns obstculos para seu entendimento alm do contedo lingstico. E mostraram, inclusive, que quando a memria considerada u m a forma de conhecimento entre os trs tipos de conhecimento possveis: o sensorial e "experiencial" (o conhecimento das coisas), o conhecimento pragmtico (de como fazer as coisas) e o propositivo (por intermdio de proposies sobre as coisas) , este ltimo que domina. Ento, vejam: um tipo de conhecimento aquele direto das coisas, o outro o de como as coisas devem ser feitas ou ocorrem, e o terceiro, o que se perfaz na proposio sobre as coisas. Este conhecimento propositivo de base lingstica. Quando tratamos da memria, nesta perspectiva pelo menos nas sociedades ocidentais que a memria seria vista: como conhecimento de tipo lingstico, de tipo verbal, mas ela muito mais que isso. Portanto, preciso superar esta reduo da memria aos seus contedos lingsticos, mas no disso que vamos tratar aqui.

    J que se falou na linguagem como relacionada memria, bom que se fale, tambm, em imaginao, que outra caracterstica do bicho homem. Porque a lin-guagem no s u m instrumento de comunicao seria muito reles transformar a linguagem em uma espcie de reais entre um emissor e um receptor. A memria no s transmite conhecimento e significaes, mas cria significados. Tem de ser enten-dida, pois, como uma ao, e uma ao produtora de significados. Portanto, estamos em pleno ambiente do imaginrio. Vygotsky, um ilustre psiclogo que trabalhou com questes ligadas imaginao, disse que a atividade criadora da imaginao est em relao direta com a riqueza e a variedade da experincia acumulada pelo homem, pois esta experincia o material com o qual a fantasia erige seus edifcios. A fantasia no est contraposta memria, mas nela se apoia e dispe seus dados em novas e novas combinaes. A imaginao no , portanto, o oposto verdade emprica. A imaginao uma forma de ampliar a experincia do homem alm da sua prpria

    171

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

  • experincia individual. A imaginao a cultura em ao. E a a memria tem, tam-bm, um papel a desempenhar.

    A presena da memria estudada igualmente em outras dimenses como a das neurocincias, de que no vamos tratar aqui, embora elas estejam em desenvol-vimento acelerado e extraordinrio. Nossa perspectiva tratar a memria como fato social, mas seria importante alguma referncia a esta plataforma biolgica. Como os prprios bilogos vm notando, e eu cito um deles, que Steven Rose, em um livro intitulado O crebro do sculo XXI, a neurocincia tem de se definir pelo fato de que, em ltima instncia, o crebro no trabalha com informao, mas com significados. O que equivale de certa forma a dizer que trabalha com dados histricos. No h sig-nificados permanentes, no h significados por essncia. Os significados, como tudo

    >aquilo que histrico, so mutveis. Seja como for, tudo isso queT dizer que impossvel falar de memria como

    se memria fosse um dado que tivesse significao em si, abstrata, sem histria. S possvel falar da memria quando se leva em conta que ela tambm tem uma histria. E quando digo histria da memria, no apenas das teorias e dos conceitos sobre memria. Isso tambm fundamental, claro. Por exemplo, no texto de apresentao deste seminrio se menciona o conceito de quadros sociais da memria formulado na virada do sculo XIX para o XX por Maurice Halbwachs, em que ele diz que a memria somente pode ser entendida a partir das condies preexistentes na sociedade, para que determinadas lembranas possam estabelecer a coeso social. Este conceito s se entende integralmente se levarmos em conta essa virada de sculo, quando o grande problema das cincias sociais Halbwachs era da mesma estirpe que Durkheim, um dos fundadores da sociologia moderna estava naquilo que manteria a sociedade como um todo, ou seja, na busca de coeso, unidade. Hoje, essa problemtica est um pouco fora de horizonte. Hoje, quando se fala em sociedade, a lma coisa em que se pensa coeso, integrao. Nem mais politicamente correto falar de unidade ou coeso social. Hoje, a idia de sociedade a da fragmentao, do conflito, e no o contrrio. Nosso problema : apesar do conflito, como manter laos de interao? Veja-se que no campo da Histria, por isso mesmo, no sculo XIX e incios do XX [isto , poca de Halbwachs), o que dominava era a Histria poltica, das naes, da

    Frana, do Brasil do Estado-nao e a sociedade era a sociedade nacional. Mesmo quando se passa do nvel poltico para o social, ainda uma determinada sociedade que se tem como um conjunto, se no harmnico, pelo menos homogneo e unitrio, apesar das marginalidades e das excees. Em nossos dias, contudo, esta Histria social passou a ser a Histria da cultura, abrangendo a possibilidade das miiltiplas histrias, das mltiplas vozes: dos excludos, das mulheres, das minorias etc. E, hoje, fazer Histria fazer histria de conflitos. E por isso que a Histria da cultura est se orientando para uma perspectiva etnogrfica, como acontece, por exemplo, com a chamada Histria oral. Ento, claro que nesta transformao as disciplinas que procuram dar conta da sociedade, e por isso mesmo procuram dar conta da memria, mudaram, e mudaram radicalmente. Mas no estou falando unicamente das teorias e dos conceitos sobre a memria, e sim, tambm, da prpria operao da memria, da maneira como a memria se institui, funciona e produz efeitos. No entrarei em detalhes aqui, mas seria interessantssimo, por exemplo, comparar uma sociedade de comunicao oral com outra de comunicao ciberntica, como a nossa. No possvel imaginar que um mesmo conceito de memria possa explicar coisas em uma sociedade de comunicao oral e na nossa sociedade de comunicao ciberntica. Mas isso fica para o prximo seminrio.

    Falei da fragmentao da sociedade, que vai interferir tambm at no nvel da memria individual. O que se chama hoje de memria individual no pode ser exatamente o mesmo que antes do sculo XVIII, antes portanto da constituio da idia de sujeito. Alm disso, em nosso tempo, quando se fala em memria individual, alguns psiclogos, como o caso de Kenneth Gergen, dizem que teramos de falar de identidades multiff nicas a palavra horrvel, e vem do grego, onde phrn significa entendimento, conhecimento, tendncia; portanto, multifrenologia significa multipli-cidade de tendncias como objeto de conhecimento. A identidade do indivduo, hoje, se define de formas mltiplas, no interior da prpria subjetividade. A multilfenia se expressa pelo fato de que agora cada um tem tantos passados quanto diferentes empregos ou desempregos, cnjuges, parentes principalmente os parentes por afinidade, os filhos dos novos parceiros , residncias e assim por diante. Portanto, no apenas no nvel coletivo e social que a fragmentao o suporte de operao

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

  • da memoria, mas at no nivel individual. Em conseqncia, seria vo apresentar qualquer conceito unificador da memria.

    O segundo lance da abertura da porta, como j disse, a apresentao de cinco paradoxos. Eles fazem parte de uma escolha a que procedi, uma escolha arbitrria, sem nada de sistemtico ou abrangente. Na minha escolha pessoal so cinco as ques-tes: a voga da memria ao mesmo tempo que h u m a crise da memria; o binmio inseparvel da memria e da amnsia; a memria individual que no se desprende da coletiva; a subjetividade, que no exclui a objetividade; e, finalmente, o passado, que desemboca ou que se produz no presente. So apenas oportunidade de continuar demonstrando esta mutabilidade extraordinria e a diversidade com que a memria se apresenta nos dias de hoje.

    Primeiro paradoxo: voga e crise da memria

    A memria est na ordem do dia, a memria est presente na multiplicao dos museus, nas "instituies de memria", centros de memria, arquivos, memrias de empresas, memrias de partidos, de igrejas, de famlias, de clubes, de ONGs, nos documentrios, novelas de poca, moda retro, movimentos sociais de preservao de bens culturais, reivindicaes de identidade e cidadania etc. so todos recursos mobilizadores de memria. Acrescentem-se a preservao de reas urbanas, o tom-bamento de bairros, a atrao das biografias e autobiografias s ver o nmero e a tiragem das biografias precoces de garotas de programa , o mercado de antigidades, a publicao da correspondncia trocada por intelectuais ou polticos e por a afora.

    Muito bem, essa efervescncia deve significar que a memria est na ordem do dia. Mais ainda, a preocupao com a coleta e o registro de informao e documen-tao atinge s vezes nveis preocupantes. H um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges, segundo o qual u m rei solicitou aos seus cartgrafos um mapa do reino. E que fosse o melhor mapa possvel, o mais preciso. Os cartgrafos comearam por debater o problema da escala. Qual a melhor escala para mapear o territrio real? Depois de muita discusso chegaram concluso de que seria 1/1. Portanto, simples-mente mapearam cada detalhe coincidente com o territrio todo. s vezes tem-se a

    120

    impresso, nessa fria arquivstica, que se pretende obter um duplo do real. Como o duplo coincide com aquilo que ele referencia, nada permite conhecer de novo. U m es-pecialista em arquivos, chamado Michel Melot, fez uma caracterizao absolutamente extraordinria do que ele chama de uma verdadeira pulso documental alucinatria nos nossos tempos. Diz ele:

    Imaginemos cada cidado transformado em colecionador e em conservador, cada objeto transformando-se em seu prprio smbolo e a nao inteira fixada em sua prpria imagem, como nos tableaux vivants [aqueles espetculos teatrais do final do sculo XIX e comeo do XX, com personagens estticas representando situaes]; o plen no escapa mais das flores, mas fica conservado para os futu-ros botnicos, o manuscrito vai arquivado antes da publicao, conservando-se a matriz por segurana, mesmo que ela no produza nenhum exemplar. A histria, enfim, se produz para interesse exclusivo dos historiadores, e por eles mesmos vem bloqueada, como o cirurgio imobiliza seu paciente para poder oper-lo.

    Recentemente tive a prova de que essa situao existe de verdade e at ocorre com conhecidos. Uma colega da USP foi a u m a biblioteca universitria e solicitou u m livro pertencente a uma coleo importante, que fora doada e mantida como um fundo parte. O livro, da dcada de 1940, era uma brochura com as pginas ainda fechadas. A colega teve as maiores dificuldades para conseguir a autorizao oficial de abrir as pginas com uma esptula, porque se alegava que a brochura devia ser mantida em sua situao original que impedia a leitura... V-se, portanto, que Michel Melot no estava alucinado quando escreveu o texto transcrito.

    Mas a pergunta que me fao se essa efervescncia toda representaria alguma consistncia da memria nos dias que correm. Poderia at ser mais especfico: essa efervescncia toda capaz de produzir conscincia histrica? Para mim, uma das funes desejveis da memria seria essa, aumentar a capacidade de perceber as transformaes da sociedade pela ao humana , permitindo que se tenha quase que afetivamente e no apenas cognitivamente a experincia da dinmica social, da ao das foras que constrem a sociedade e que podem mud-la a todo instante.

    Ren Dubos foi u m importante bilogo franco-americano que se interessou muito pela problemtica dos museus, da cultura e do patrimnio, e acompanhou,

    211

  • nos Estados Unidos, a trajetria de adolescentes entre catorze e vinte anos nas d-cadas de 1950, 1960 e at inicio de 1970, e selecionou para estudo uma amostragem daqueles que assistiam TV pelo menos seis horas por dia. Foram dcadas em que os telejornais comearam a se firmar como veculo de informao. E no faltava o que de importante vinha acontecendo no mundo inteiro: a eleio de Kennedy Presidncia dos Estados Unidos, a revoluo cubana, a crise dos msseis, a Baa dos Porcos, o assassinato de Kennedy, a Guerra da Coria, a diviso do mundo pela guerra fria, a ascenso do imprio sovitico etc. etc. etc. Trata-se de fatos fundamentais para entender no s o que foi o sculo XX, mas at sua projeo neste sculo XXI em que estamos vivendo. No entanto, a conscincia dessa realidade toda era absolutamente nula nos jovens observados, pois, apesar do bombardeamento de informaes sobre uma histria em curso, nada ficou: a hiperinformao produz desinformao. Para esses jovens, o passado era apenas u m a anterioridade temporal, mas lhes faltava a percepo do que insubstituvel para entender a condio bsica da vida humana e que a histria fornece, que a diferenciao no tempo. A Histria no a disciplina do passado, mas da diferena. Claro que ela necessita do passado para identificar e explicar a diferena. Porque pela diferena se compreende a transformao, a dinmica que rege nossas vidas. Sem uma idia de passado que assegure divisar os sentidos, os mecanismos, as lgicas, os vetores, os agentes da diferena e da transformao, a mudana ininteligvel, apenas u m fator de angstia. Ora, a noo de passado corrente entre ns e as relaes com ele tecidas que esto em crise.

    H um historiador da literatura chamado Richard Terdiman, que escreveu u m livro intitulado exatamente Passado, presente, modernidade e a crise da memria, em que mostra que a partir do sculo XVIII os t raumas da Revoluo Francesa produziram nas sociedades ocidentais a perda do sentido do tempo como fluxo contnuo e tranqilo. At ento, o tempo era esse fluxo ininterrupto, que t inha anterioridades, sim, mas no rupturas, descontinuidades. Porm, no sculo XVIII o tempo vai se transformar em dado problemtico da vida; e no estou falando apenas da teoria, mas da experincia de vida do prprio homem comum, em que a ruptura e a descontinuidade vo ser fundamentais para definir o passado. J no se trata mais somente de uma anteriori-dade fluindo sem obstculos o fluxo, por exemplo, da histria sagrada, da histria escatolgica, da histria da superao dos tempos at o Juzo Final. E a part ir desse

    122

    rompimento da conexo orgnica com o passado e da descoberta do tempo histrico, pela experincia de acompanhar mudanas em estruturas sociais consideradas eter-nas, que comea, segundo Terdiman, uma crise da memria. Coincidentemente, a partir do mesmo sculo XVIII que surgem formalmente organizadas as instituies da memria o museu moderno data da. Quer dizer, o museu um sintoma da crise da memria, resposta possvel crise da memria, e no fruto da descoberta da memria.

    Segundo paradoxo: memria versus amnsia?

    No nvel mais elementar deste binmio memria e esquecimento , a mem-ria no considerada apenas u m mecanismo de registro, conservao e recuperao. E quando falo em registro no depsito no sentido puramente passivo, mas ativo, no u m almoxarifado; quando falo em reteno, no se trata de reteno pura e simples, mas daquela que implica reciclagem, reformulao e tc , tambm presentes na recuperao. Mas, de qualquer maneira, quando se pensa em memria costuma-se pensar em aspectos de reteno, de registro, de depsito de informaes, conhecimento ou experincias. No entanto, a memria , tambm, um mecanismo de seleo, de descarte, de eliminao. No possvel entender a memria sem entend-la, tambm, e talvez mais ainda, como mecanismo de eliminao: a memria um mecanismo de esquecimento programado.

    J citei Borges, cito de novo, em um outro conto tambm fabuloso e muito conhecido, que se chama Funes, o memorioso. Funes a personagem que, como o prprio apelido indica, incapaz de esquecer. Retinha cada dado de cada circunstn-cia que havia vivido, uma conversa com todas as palavras e todas as reaes de seus interlocutores, o ambiente, o cu estrelado, cada estrela que ele via brilhar, e, nesta progresso em que era incapaz de esquecer, comea a perder sua condio humana , deixa de ser humano pela incapacidade de esquecer. Esquecer, sem dvida, condio de vida humana. O prprio Borges diz ainda em u m terceiro conto que esquecer requisito para pensar. O pensamento se faz por eliminao, por abstrao. Abstrair eliminar, esquecer. S pensa quem capaz de esquecer. O que uma maravilha

    231

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

  • para os desmemoriados! Por certo, no basta esquecer para pensar... Em uma linha semelhante, Michel de Montaigne, o grande pensador do Renascimento, dizia: a bi-blioteca se imagina como o lugar onde se concentram a sabedoria e o conhecimento da humanidade. u m erro, porque o que se pode concentrar a sempre pouco. A biblioteca a marca de que a maior parte desse conhecimento se perder. Nessa mesma direo se deveria reconhecer que o museu, muitas vezes chamado de casa da memria, poderia igualmente ser chamado de casa do esquecimento, pois o que est fora dele muito mais numeroso que o que est dentro e no goza do mesmo privilgio de conservao.

    Mas quando se fala de amnsia bom que se fale, tambm, dos mecanismos repressivos claro que existem alguns bem evidentes, como o que na Roma antiga se chamava de damnatio memoriae, danao da memria, quando o imperador caa em desgraa; seu nome era ento apagado de todos os monumentos , at de documentos oficiais, provocando inmeros problemas, como a invalidao de decises. Veja-se algo comparvel em casos recentes, como no Iraque, com as esttuas de Saddam Hussein sendo destrudas. Mas no este o aspecto mais importante; nem sequer o iconoclas-mo, ou seja, a destruio de imagens por serem portadoras de memria e valores. Em certas circunstncias, como ocorreu, por exemplo, na sociedade bizantina ou ento na Inglaterra do sculo XVII, ou no surgimento do protestantismo, a destruio de imagens desempenhou papel relevante. O historiador francs Serge Gruzinski escre-veu uma obra extremamente interessante denominada A guerra das imagens, em que trata da amnsia provocada pelos espanhis na colonizao do Mxico, por meio exa-tamente da substituio das imagens dos indgenas (entendidas como "dolos") pelas imagens sacras dos europeus. Parece evidente, pois, que o processo de memorizao indissocivel do processo de amnsia.

    Tambm se fala das memrias subterrneas Michel Pollack pesquisou as memrias proibidas, as memrias vergonhosas, as memrias inconfessveis, no caso, por exemplo, dos colaboracionistas franceses na Segunda Guerra Mundial . Ou, en-to, nos casos daqueles jovens que, na Alscia, tiveram de servir o exrcito nazista,

    IZ4

    e assim por diante. A memria do Holocausto constitui uma memria traumtica na qual no o processo do conhecimento, mas suas dimenses tico-polticas e psico-lgicas que esto evidentes e definem o que pode e o que no pode ser memorizado. Costuma-se falar hoje, no campo das cincias sociais, em dizibilidade e visibilidade. Dizibilidade so os critrios, em uma sociedade ou grupo, pelos quais algumas coisas podem ser ditas e outras, no. O mesmo vale para o campo visual h coisas que so invisveis, no porque estejam fora do campo visual, mas porque no devem ser vistas. o secretismo, a interdio do segredo. H uma terceira categoria, tambm, que poderia ser criada ao lado da dizibilidade e da visibilidade: a memorabilidade. E nem sempre o Estado o elemento repressor, so tambm os grupos sociais menores inclusive a prpria famlia que definem o que convm e o que no convm ser objeto de memria.

    Mas h ainda outros aspectos da amnsia social que merecem referncia. Mui-tos pensadores, como o filsofo ingls Thomas Hobbes, na virada do sculo XVI para o XVII, fizeram da amnsia e no da memria social a pedra de toque do contrato social: a amnsia fundaria a sociedade, pois lhe garantiria comear do zero, ao esque-cer os ressentimentos provocados pelos inevitveis conflitos e a violncia que esto sempre na base da sua constituio. J o francs Renan, no sculo XIX, propunha que a histria no era conveniente consolidao do Estado-nao: o esquecimento seria mais til.

    Em suma, falar da memria obriga a falar igualmente do esquecimento. Na Antigidade, na Idade Mdia e no Renascimento a arte da memria procurava ensi-nar o uso e o desenvolvimento dos recursos mnemnicos, e a inglesa Frances Yates escreveu um livro famoso a respeito. Mas a medievalista Mary Carruthers demonstra como a prpria arte da memria ao contrrio do que Yates pensava pressupu-nha o esquecimento porque no se fundamentava exclusivamente na repetio, mas incorporava inovaes e, como arte compositiva, servia-se de eliminaes. Seja como for, hoje circulam obras sobre a arte de esquecer, como a organizada por Adrian Forty e Susanne Kchler.

    251

  • Terceiro paradoxo: indivduo versus sociedade?

    Toda memria social. Tudo bem mas por qu? Porque pressupe interlocu-o. (Embora se deva distinguir a memria coletiva da memria social, tal distino, no momento, no relevante para nossos problemas e foi desprezada aqui.) No existe memria individual, lembrana, rememorao? Claro que sim.! Todavia, ou essa memria inacessvel, ou se socializa e s quando se socializa que ela pode aparecer. Alm disso, por exemplo, o que se chama de memria latente comumente vem tona pela interveno de um interlocutor ativo. A memria que nos interessa prioritariamente aqui a memria coletiva no o somatrio das memrias indi-viduais, mas aquela gue se fundamenta nas redes de inteitaco^redes estriutuindas_e_ imbricadfts-eniuripcuiips de comunicao. De maneira que, ento, mesmo a mem-ria autobiogrfica a que se realiza apenas enquanto reconstruo contextual, em situao como comprovam os especialistas de Histria oral. Toda memria, diz Franco Ferrarotti, uma experincia de comunidade, que nunca se efetiva em um vcuo social. Nessa tica, quando se fala em perda da memria no deveria se tratar da perda de uma substncia vulnervel, frivel, frgil, que precise ser recuperada ou at depurada, mas tal perda deve ser entendida como perda dos elos comunitrios. Esta, sim, a perda efetiva.

    Esta transio ambgua entre o coletivo e o individual talvez fique mais clara com dois exemplos. Um deles o das colees privadas. Todos sabemos que as co-lees privadas so uma forma de construir memria, construir subjetividade, por isso j chegaram a ser consideradas atos autobiogrficos: a coleo privada um ato autobiogrfico. Isto fica visvel em relao a terceiros, quando, por exemplo, a coleo opera como suporte de classificaes sociais: tenho minha coleo e com ela me sinto superior aos demais, ento recebo visitantes. Mais visvel ainda fica a dimenso coletiva na doao de colees privadas doar colees doar memria, memria que desejo permanente de mim ou de minha famlia. por isso, tambm, que os especialistas dizem que a coleo fala muito mais do colecionador que sobre as coisas colecionadas. Mas desejaria mostrar que at no caso do colecionador neurtico, aquele do desfrute solitrio, a relao com o coletivo tambm est presente, mesmo que seja como ameaa,

    126

    e, portanto, precise ser negada. O caso mais extraordinrio que conheo, mencionado por Maurice Rheims, o de um parisiense, colecionador de incunbulos. Era proprie-trio de um incunbulo medieval, belssimo documento semeado de iluminuras e de uma qualidade extraordinria. O proprietrio acreditava que fosse pea nica, at que teve notcia de um incunbulo semelhante nas mos de colecionador em Nova York. Imediatamente fez as malas e foi aos Estados Unidos, acompanhado de um tabelio. O nova-iorquino do incunbulo no queria vend-lo, mas com o preo subindo acedeu proposta do francs. Ato contnuo compra, na presena do tabelio, a pea foi incine-rada. O tabelio, naturalmente, registrou o fato. Nesse caso, seria correto entender que a ao se perfaz nos limites extremos da individualidade? No, porque justamente ser o nico proprietrio de uma pea nica uma forma de se definir perante os demais, os outros, a sociedade. De maneira que ainda que seja por reao, a coleo sempre imagem diante dos outros.

    O segundo exemplo o suvertir. Em francs, souvenir significa lembrar, e subs-tantivado, lembrana. O que existiria de mais pessoal? Mas como pode ser pessoal uma lembrana pr-fabricada, que j vem pronta? Eu no digo ao fabricante: senhor fabricante, estive na Torre Eiffel e quero que me fabrique uma cpia da Torre, Eiffel tal como a percebi. No assim que acontece a torre, em papier mch ou em metal, j estar fabricada, e em srie. a memria individual anterior prpria experin-cia individual. Como funciona? Esto vendo que neste caso se imbricam, de novo, os nveis do individual e do coletivo, este ltimo por se tratar de uma mercadoria feita como so feitas as mercadorias pela alienao dos sujeitos. Mas a memria, neste caso, para funcionar exige a narrao. O suvenir depende, pois, da linguagem. Portanto, o suvenir da Torre Eiffel apenas a referncia de que necessito para a nar-rao da minha experincia individual: Thave heen (t)here. Ento vocs esto vendo como subjetividade e objetividade no podem ser tidas como excludentes, quanto memria. Da mesma forma, a polaridade radical entre memria individual e memria coletiva aparente.

    Isso nos leva a outro problema: Como assumir memrias alheias, memrias de terceiros? No entanto, todos os projetos de construo e reforo de identidade so programas de transferncia de memria. Recentemente, ao estudar polticas pblicas

    271

  • arqueolgicas, deparei-me com uma srie de textos que propunham formas de valori-zar as identidades arqueolgicas na sociedade brasileira. No sei o que tais propostas possam representar. exceo de alguns casos de quiiomboias e dos grupos indgenas em reservas ou de comunidades nativas de descendentes, que ainda mantm vncu-los contnuos e identificveis com seus antepassados pr-coloniais, que identidade global ou que memria unitria pode a sociedade brasileira como um todo pretender das culturas que ocuparam nosso territrio antes da chegada dos europeus? E qual seria o foco de referncia: o tronco mais numeroso e espalhado, os rupis-guaranis? Os franceses que bem conhecem Asterix, podem dizer nos anctres, les gaulois (nossos antepassados, os gauleses). Poderamos, assim, ns tambm, como um bloco, dizer nossos antepassados, os tupis-guaranis? No. E por qu? Porque, como afirmava o antroplogo Darcy Ribeiro, os grupos indgenas esto na nossa histria por excluso, presentes por ausncia, se se pode dizer. De maneira que a identidade arqueolgica pode significar muitas coisas, mas no nessas propostas genricas e homogeneizadoras. Seja como for, o problema em causa a transferncia de memria, crucial nos casos de comemorao. Como sabemos, comemorao um dos eventos de memria que no se fundamenta essencialmente na lembrana, na rememorao dos participantes, mas em uma memria j constituda qual se adere. Este tambm o caso do mo-numento, como forma objetiva de comemorao. Houve momentos em que se podia imaginar o monumento como a cristalizao fsica da memria coletiva. O sculo XIX foi a poca de ouro dos monumentos pblicos, a ponto de se ter falado, em relao Frana, de uma verdadeira statuomanie. Mas hoje, com a reduo das funes e dos sentidos dos espaos pblicos, os monumentos perderam muitssimo de sua natureza coletiva. Afinal, o habitante da cidade passou de cidado a passante aquele que apenas passa pelos espaos, e no os pratica mais e, depois, a passageiro aquele que levado a atravessar os espaos, de um ponto a outro: ele toma o nibus, o metr, anulando o que existe no intervalo. Como, ento, os espaos pblicos poderiam servir eficazmente para mobilizar a memria coletiva? Da concluir que o monumento desa-pareceu? No, mas sofreu importantes mutaes. Veja-se a reciclagem bem-humorada acontecida em So Paulo com o monumento a Borba Gato, na avenida Santo Amaro, que se transformou em um marco pblico de localizao: fala-se "antes" ou "depois" do monumento ao bandeirante (ou "Boneco"), para orientao de caminho.

    128

    =4-

    O movimento antimonumento, que comeou na dcada de 1980 na Europa e nos Estados Unidos, levou a extremos a ambigidade da memria individual/so-cial. O exemplo mais extraordinrio de antimonumento com que j me deparei da cidade de Harburg, na Alemanha, em que se resolveu construir um obelisco dedicado s vtimas do nazismo tema traumtico para uma cidade alem. Do que consiste esse monumento? De um buraco no cho que funciona como uma espcie de bainha para o obelisco. Mas, ao contrrio de todo obelisco que sobe do cho para o ar livre , este, que feito de uma lmina de chumbo, recebe mensagens e inscries e vai sendo enterrado na bainha, medida que as inscries preenchem sua superfcie. No poderia haver melhor ilustrao da simbiose entre o individual

    o social. O espao pblico, o monumento pblico, mas as memrias que ele recebe so individuais. O paradoxo se completa com o fato de que, enterradas, as mensagens nem so lidas por terceiros.

    Quarto paradoxo: subjetividade/objetividade

    O exemplo de antimonumento oportunidade de registrar uma tendncia da memria em nossos dias: a suhjetivao do que j foi memria coletiva o que nos leva questo da aparente incompatibilidade da subjetividade e da objetividade no campo da memria. James Fentress, j mencionado aqui, e Chris Wickham escre-vem que bom distinguir a memria como ao e a memria como representao. Comemorar, por exemplo, uma modalidade da memria como ao, porque um tipo de comportamento e implica performance, um envolvimento de atos. Ao passo que lembrar ou rememorar enquadra-se, por excelncia, na memria como repre-sentao, imaginao do passado, imaginao de eventos etc. Todavia, preciso re-conhecer que prticas e representaes so indissociveis, e que, portanto, memria como ao e como representao no podem ser compartimentadas. Vou dar s um exemplo na minha rea de especialidade para justificar os cursos sobre a Antigidade mencionados na apresentao de meu currculo feita pelo mediador desta sesso. No Peloponeso, importante regio da Grcia, havia na poca arcaica sculo VI a.C. um rito freqente praticado no incio da primavera, que comeava pela seleo

    291

  • de u m a rvore, em u m bosque. Essa rvore era abatida e com o tronco se fazia um simulacro de forma humana , depois usada em u m a cerimnia de hierogamia (casamento sagrado). Finalmente esse t ronco transformado em figura de noiva era queimado. Hoje sabemos que todos esses traos so diagnsticos do que os especialistas denominam rito de fogo novo, associado jus tamente ao rejuvenescer da natureza aps o inverno, fertilidade h u m a n a e importncia do fogo no s o fogo industrial , mas precisamente o fogo alimentar. Da a seleo de um ele-mento da natureza que depois passa por todos esses atos at consumir-se no fogo. Acontece que os gregos cont inuaram a prat icar esses r i tuais ao longo do tempo, mas foram perdendo a lembrana das motivaes e significados originais. Embora as aes continuassem a ser praticadas (memria como ao), seus sentidos foram se apagando (memria como representao) . Como apenas reproduzir gestos, sem saber o que representam, no satisfatrio, procurou-se legitimar essa reproduo gestual com sentidos novos que lhe foram atribudos. No caso, utilizou-se o mito das relaes conjugis conflituosas entre Zeus e Hera. Zeus conhecido como u m deus-pula-cerca na mitologia grega: ele estava sempre na mira de sua esposa Hera. O mito que, como se sabe, muitas vezes u m a narra t iva explicativa pde fun-cionar como representao que explica e justifica as aes praticadas. Assim, tudo giraria em torno de uma dessas escapadelas de Zeus, em que ele foi pego com a mo na botija. Para felicidade geral, logo se descobriu que no havia n e n h u m a rival de Hera, somente u m simulacro, uma boneca: uma brincadeira , que terminava com a alegre fogueira. Fica bem clara a imbricao da subjetividade e da objetividade e a superao do dilema por um tempo criado.

    E por isso que quando h confuses entre a memria como processo e seus suportes, e se fala em resgatar a memria, a resposta s pode ser: se para resgatar, o melhor chamar o corpo de bombeiros. Mas a memria u m processo que depende, sim, de suportes objetivos, porm no se confunde com eles. Ningum chama os bom-beiros para resgatar uma depresso de que esteja sofrendo. Da mesma forma, quando se trata apenas de resgatar, recuperar, trazer tona o que j existia objetivamente, concretamente, s posso resgatar suportes da memria: fotografias, objetos, cadernos de anotaes ou relatos, outros documentos.

    130

    Esta questo leva a uma outra: a oposio que se faz entre a memria vivida, ou memria experincia, e a memria externalizada, completamente objetivada. Uma memria puramente subjetiva e u m a memria objetivada. H uma obra muito importante, muito sria, de um historiador francs chamado Pierre Nora, Os lugares de memria, mas que virou uma espcie de arroz-de-festa: todo mundo a cita e cita mal. Ele mesmo escreveu alguns trechos um pouco retricos demais e que do possi-bilidade ao mau uso de que tem sofrido. Diz ele: a memria nas sociedades anteriores contemporaneidade era u m a memria espontnea, viva, realizada, experincia in-ternalizada. Entretanto, ela vai progressivamente se transformando em uma memria que se d fora das pessoas, fora da experincia. De ambientes de memria passa-se a lugares de memria. Que lugares de memria so esses? So espaos, coisas, pessoas, instituies, cerimnias, smbolos e tc , que condensam memria. Ela no est mais difusa nas pessoas, mas sintetizada em plataformas precisas e limitadas, os lugares de memria. Nora ecoa Plato, que dizia: a memria morreu com a escrita. Antes, ela estava dentro dos homens , habitava suas mentes, mas, agora, as mentes humanas no mais a controlam, pois ela est desterrada na escrita. De certa maneira Nora repro-duz o conservadorismo de Plato, recusando (como juzo de valor) a transformao histrica da memria. claro que determinadas formas de memria das sociedades simples so hoje obsoletas, e a memria comunitria que Nora privilegia no tem mais viabilidade no m u n d o hodierno. Mas ser que por isso tambm se esgotaram os espaos de memria como experincia? So outros, provavelmente, esses espaos, e talvez nem tenhamos ainda condies de perceb-los com nitidez. Quem sabe os espaos de massa, os estdios nas competies esportivas ou nos grandes eventos mu-sicais, ou, claro, a internet . So, hoje, espaos de uma memria nova em construo, memria em circulao, memria ao, memria experincia. A memria "viva" no desapareceu, assumiu outras possibilidades que vo alm dos lugares de memria de Nora. No obstante, a revoluo ciberntica criou uma memria objetiva, totalmente externalizada e de capacidade aparentemente infinita, muito mais do que capaz a memria internalizada. Pode ocorrer, assim, que se tenha um homem totalmente desmemoriado, mas tendo sua disposio uma memria artificial fabulosa. Contudo, no basta ao homem desmemoriado acessar mecanicamente o depsito inesgotvel

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

  • da internet e navegar ao sabor dos hipertextos. H uma epistemologia do hipertexto que ainda no foi elaborada. Uma charge publicada h algum tempo na Revista FA-PESP extremamente elucidadora desta concepo falsamente objetiva da memria externalizada. Em uma ampla sala um computador ocupa todo o espao disponvel. Duas pessoas com guarda-p branco so, portanto, cientistas em um laboratrio esto ao lado do enorme engenho, que expele rolos de fumaa e rolos de papel. Abrindo um largo sorriso, um cientista diz para o outro: "Finalmente, temos agora todas as respostas". Ao que acrescenta o interlocutor: "Que timo, mas quais eram mesmo as perguntas?". Penso que esta, sim, a situao que estamos vivendo e que temos de resolver, deixando de lado a oposio entre objetividade e subjetividade, memria subjetiva e memria objetiva.

    Sem contar o seguinte: essa memria externalizada da informtica ironicamente uma memria em que a objetivao (o hardware) no interfere no contedo, cujo suporte essencialmente lgico, matemtico, imaterial (o software). Nem por isso a objetivao e a subjetivao deixam de se misturar: o Hotel Drouot, famosa casa de leiles em Paris, j vendeu disquetes "originais" com obras de arte ciberntica... Pode-se concluir que a memria um campo de negociao.

    ltimo paradoxo: passado ou presente?

    Qual o tempo natural da memria? Seria o passado? Eu responderia: sem dvida, o tempo da memria o presente, mas ela necessita do passado. O tempo da memria o presente porque no presente que se constri a memria a memria no se constri no passado, se constri no presente. Em segundo lugar, porque so s necessidades do presente que a memria responde, no s necessidades do passa-do nem s do futuro, embora muitas vezes, retoricamente, seja apresentado assim. Finalmente, os usos todos da memria so usos no presente tradio s existe no presente das sociedades. No existe tradio fora do presente da sociedade. "Tradio" vem do verbo latino trado, que significa dar atravs de (trans-do). Portanto, s existe tradio se algo foi recebido, e s recebido no presente. Mas claro, ento, que o contedo da memria envolve, sim, implica o passado, porque a inteligibilidade das

    132

    transformaes da vida (de que tratei no incio) precisa do passado para ser identi-ficada e entendida. Mas vejam o seguinte: qual a natureza do documento, do objeto histrico? E um objeto do meu presente (ele prprio ou por referncia), funciona no meu presente, na minha contemporaneidade. Foi produzido no passado, claro, mas, se interajo com ele, meu contemporneo. A contemporaneidade rene em um tempo sincrnico diversas temporalidades. Para entender melhor talvez valha a pena uma imagem esclarecedora, a foto do lbum de famlia. O patriarca da familia fez noventa anos, ento se reuniu toda a famlia no mesmo espao para uma foto. Nela temos o patriarca, com seus muitos anos, olhar bao, pele corrugada, dorso encurvado, roupa fora de moda. No outro extremo o beb que acabou de completar nove meses, com sua pele de pssego, seus olhos vivos, sua agitao. No intervalo, as diversas idades e suas marcas, Portanto, cada um traz consigo o que de especfico a diversa espessu-ra temporal de suas vidas assinalou. Todos, porm, esto presentes em um mesmo momento cronolgico e, por isso, o ancio e o beb podem interagir. nesse tempo sincrnico com mltiplas temporalidades que opera a memria.

    Para completar e concluir: como prometido, o porteiro abriu as portas quero crer para a multiforme paisagem da memria com suas ambigidades, sua fluidez, sua complexidade, as inmeras articulaes e os paradoxos que escapam priso de teorias uniformizantes ou binmios mutuamente excludentes.

    Creio, assim, ter cumprido meu papel, se despertei ou reavivei em algum o interesse por este campo infindvel de questes algumas muito pertinentes e muito relevantes e que sero certamente aprofundadas na seqncia deste seminrio. Muito obrigado.

    331

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

  • A CONSTRUO NARRATIVA DA MEMRIA E A CONSTRUO DAS NARRATIVAS HISTRICAS: PANORAMA E PERSPECTIVAS

    Maria Helena Pereira Toledo Machado

    V u

    XJom dia a todos. Vou comear minha apresentao com algumas consideraes sobre a construo das memrias e das narrativas histricas, problematizando alguns conceitos de forma mais geral, e depois vou mostrar um pouco do que ando fazendo a partir dessas idias.

    Aqui temos o tema j mencionado: "narrativas da memria e construo das narrativas histricas". Essas narrativas no so a mesma coisa e, provavelmente, no so nem mesmo provenientes do mesmo processo. Nenhuma das duas surge pronta de algum lugar ou instncia, e nem podem ser simplesmente recuperadas a partir dos documentos. Ambas so frutos de processos sociais de construo de identidades, que atuam em diferentes nveis de articulao e insero social. No entanto, somos muitas vezes tentados a acreditar que as memrias de grupos sociais, sobretudo dos subalternos, e a histria formam um mesmo conjunto ou, pelo menos, um contnuo harmnico. Como historiadora, chamo a ateno para o fato de que a narrativa his-trica tem de ser construda, e quando a construmos temos de nos utilizar de estru-

    turas interpretativas, de conceitos e nem sempre os conceitos e formas de pensar a que lanamos mo esto, realmente, adequados quilo que queremos fazer. um problema enorme quando comeamos a nos questionar como que da memria se constri a histria. O que so memrias e qual a tessitura das histrias? Falo em his-trias, conceito que entendo se sobrepondo ao conceito de uma Histria, universal e totalizante, cujas implicaes discutirei mais adiante. Ns sabemos que a Histria tem uma forte filiao positivista o historicisrno afirmava a existncia de uma histria universal, uma nica grande histria. Apesar de, hoje em dia, criticarmos o tempo todo este conceito, porque estamos preocupados em superar a excluso, inserindo grupos dominados e vozes subalternas ou minoritrias s nossas narrativas, muitas vezes ainda trabalhamos com a idia de histria universal. Ela est superarraigada em nossas mentes temos a maior dificuldade de nos livrar dessa idia. Ento, a minha primeira imagem para prohlematizar essa idia a de uma rvore um baniano, a figueira-de-bengala , uma rvore maravilhosa, cheia de razes, que tem um tronco superforte e est cheia de galhos. Quando pensamos em memria social e histria, a imagem que nos vem mente a imagem mais antiga que se tem a da rvore, composta de razes profundas, tronco forte e muitos galhos. A idia que ns acalentamos a da antigidade, da permanncia, da estabilidade. Ento, a idia da rvore nos encanta, ns queremos uma histria-rvore, uma histria que nos d a certeza das permanncias, de coisas que no foram perdidas, de continuidades, de experincias que vo se somando, se multiplicando, as vitrias, as derrotas, os erros mas toda experincia humana caminhando em uma direo s, e se desenvol-vendo, florescendo, e se tornando cada vez mais forte. Essa uma idia altamente idealizada superbonita, no h dvida, mas ser que ela tem consistncia? Ela condiz com os desafios com que hoje, ns, historiadores do sculo XXI, estamos nos defrontando? Esta imagem expressa a histria da humanidade? Existe uma histria da humanidade?

    Muitos autores atuais tm criticado a idia de permanncia e estabilidade, su-gerindo que os processos sociais de criao de identidade so muito mais complexos e variados do que costumamos pensar. Alguns autores propuseram novos modelos de interpretao da cultura, marcados pela provisoriedade, fragmentao e constante rein-

    152 531

    li TSSSt,

  • veno. Quando comeamos a pensar na superao das grandes narrativas universais do progresso, das utopias socialistas e na fragmentao dos sujeitos polticos, histricos e sociais, com os quais ns, trabalhadores da cultura, e os historiadores es-pecificamente, temos nos defrontado, somos obrigados a deixar um pouco a rvore de lado e comear a considerar mais adequada uma idia muito menos encantadora, pois se apresenta carregada de tenso e atravessada de conflitos, embora seja mui to mais condizente com a nossa realidade. Esta idia no a da permanncia da rvore, nem a da raiz nica, mas, sim, uma imagem que invoca a provisoriedade, a improvisao, a perda de certezas e de permanncias.

    Uma das imagens que pode exemplificar essas novas formas de interpretar o mundo da cultura no seria a da rvore, mas a do rizoma ou do bulbo. A idia aqui seria a de que as memrias no se organizam a partir de uma raiz comum, no so-bem se abraando conjuntamente, em u m tronco forte, e l em cima tambm no se desenvolvem em galhos. Embora desconfortvel, necessrio que nos livremos da imagem da rvore, uma vez que ela homognea e monoltica, se prestando a bem representar a histria das grandes narrativas e de suas supostas continuidades. A imagem que propomos aqui como mais adequada para expressar a idia da constru-o das narrativas muito menos bonita, mas muito mais dinmica a imagem do bulbo. O que o bulbo? A raiz da samambaia rizomtica, ela se espalha, no tem a hierarquia de uma raiz comum, no tem um tronco organizador e no tem os galhos todos conectados. O que ela tem so bulbos que se estabelecem e se espraiam atravs dos rizomas, das razes. Elas vo se desenvolvendo como em uma rede e vo se reconectando o rizoma se expande e forma outro bulbo, depois se expande para outro lado, em busca do sol, talvez, e forma outro bulbo. Mais tarde, esses pequenos filamentos vo se desenvolvendo em outra direo, talvez em busca de um nutriente, de u m mineral, e formam outro bulbo. Quando os vemos, temos algo que quase como uma rede filamentos e bulbos. O rizoma u m tipo de caule que cresce horizontal-mente; em geral subterrneo, mas tambm pode ter pores areas. A base do rizoma a impermanencia e a mutabilidade. Seu princpio de funcionamento, a conexo e a aliana. Isso quer dizer que os diferentes bulbos vo se disseminando, se espraiando e se reconectando, formando aquilo que ns, trabalhadores da cultura, podemos pensar como pontos de vista. Que no so hierrquicos so conectados, geograficamente

    154

    diferenciados, mas no tm hierarquia. E aqui comeamos a pensar em diferentes vozes, diferentes enunciados, diferentes formas de perceber o mundo social, o mundo da poltica, da cultura, e diferentes processos de construo de identidades sociais. Cada bulbo pode ser u m grupo social em determinado momen to histrico, pode ser uma classe, u m part ido, u m a associao, u m indivduo. Comeamos a trabalhar com uma variedade de vozes no hierarquizadas . Nossa viso, embora mui to mais complexa, talvez comece a ser u m pouco mais democrtica que a da rvore.

    Quando se l Giles Deleuze e Flix Guattari tarefa que muitas vezes evitamos, devido ao carter esotrico dos textos destes autores , em Mil platas. Capitalismo e esquizofrenia encontramos a referncia a u m livro-raiz. Este seria portador de um enunciado que teria a iluso de capturaT toda uma imagem ou uma realidade em sua completude, desde suas razes, ou origens, at seus frutos. A rvore o livro enun-ciado, o livro total, a utopia de que vamos poder recuperar tudo e poder organizar todas as narrativas, todas as memrias humanas em uma filiao como se uma sasse da outra ou dependesse da outra, e o resultado de tudo isso fosse a harmonia . Assim, neste caso, a histria humana apareceria como harmnica, ela teria um caminho. O princpio organizativo do livro-raiz a filiao que o tpico pensamento do sculo XLX , a idia da difuso das lnguas e das culturas, assim como a reflexo da filolo-gia, no sculo XIX, era amplamente baseada na idia da rvore. Toda a antropologia mosaica baseada em Ado e Eva pressupunha a existncia de u m casal humano original que se reproduziu e se espraiou pelo mundo. Jaf, Caim, Abel: um foi para c, outro para l, multiplicando as civilizaes, que, dessa forma, estariam conectadas. Essa idia de conexo implica uma idia de narrativa nica, e esta narrativa nica de alguma forma, em uma instncia final, prope um tipo de harmonia. Mas ser que essa harmonia democrtica ou ser que ela seria alcanada por meio do apagamento de todas as vozes que no cabem nesse tronco Irarmnico que se espraia?

    Como alternativa ao sistema fechado do enunciado-raiz, esses autoies propu-seram um novo sistema de interpretao baseado no rizoma ou bulbo. Afirmam eles que neste sistema a raiz principal abortou, ou digamos, o Ocidente abortou, ou se destruiu em sua extremidade, e vem se enxertar nele uma multiplicidade imediata de razes secundrias, que deflagram um grande desenvolvimento. Ento, seria essa idia

    551

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

  • de no haver mais uma raiz nica, uma narrativa nica da histria. Assim, temos de lidar com a fragmentao, com as muitas possibilidades narrativas. Dizem eles, tambm, que enquanto a rvore e a raiz se fixam em u m ponto, gerando uma ordem determinada, o rizoma se baseia no princpio da heterogeneidade. Qualquer ponto de u m rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve s-lo; ou seja, cada narrativa, cada ponto de vista, cada indivduo pode construir uma conexo com todos aqueles bulbos, aquelas narrativas fragmentadas, e a sua narrativa, a sua conexo seria to vlida quanto a de qualquer outro. claro que os parmetros em que isso acontecer, os parmetros de nossa anlise, tornam-se instncias bastante complexas, das quais temos de ter muita conscincia, mas uma narrativa to possvel de ser recuperada e analisada em suas conexes quanto qualquer outra. No haveria mais essa hierar-quia que afirma que algumas vozes seriam mais importantes, ou mais significativas, e outras, menos significativas.

    Agora vou considerar outro autor. Acho que vocs esto mais familiarizados com John Berger em Ways of Seeing. Ele vai dizer o mesmo, mas de maneira diferente.'O modo como enxergamos as coisas depende do que sabemos e do que acreditamos. Na Idade Mdia, quando as pessoas acreditavam na existncia fsica do inferno, a viso do fogo tinha um significado diferente do atual. A pintura O inferno, parte do chamado "Trptico do milnio" de Bosch, expressa bem essa idia. Portanto, as coisas tm um sentido dependendo do nosso contexto. De J o h n Berger tambm a afirmao de que nossa viso est cont inuamente ativa, cont inuamente se movendo e organizando as coisas como em um crculo em torno de ns mesmos. Neste processo, constituindo o que se faz presente para ns. Portanto, organizamos aquilo que vemos. As coisas se constituem a partir de u m ponto de vista, e no existe ponto de vista neutro. S vemos uma imagem quando nos situamos com relao a ela. Neste sentido, ver re-

    jp lacional. Ento, s vemos o mundo a partir dos nossos parmetros ou do nosso lcus de enunciao, conceito que vou propor daqui a pouco.

    Da mesma forma, s podemos ver as imagens do passado quando nos situamos na histria. A histria sempre se constitui pela relao entre o presente e seu passado, quer dizer, cada presente tem um passado, porque o universo da experincia humana basicamente inesgotvel. Mas por que a histria muda? For que as narrativas hist-

    I5C

    ricas mudam? Por que a histria que foi construda, por exemplo, sobre a escravido que u m dos temas mais discutidos da historiografia brasileira vem mudando o tempo todo? Ser devido descoberta de novas fontes documentais? S isso? No que nosso passado mudou nosso presente mudou. Assim, as perguntas que cada presente faz para o passado so diferentes, e por isso que elaboramos narrativas histricas novas, diferentes, e descobrimos novas fontes, novas formas de falar da histria. Tambm no se trata apenas de uma questo tcnica, que poderia ser ex-plicada pelo fato de usarmos agora o computador, que nos permite elaborar amplos levantamentos quantitativos dos registros de batismo ou de bito e, assim, ampliamos nossos conhecimentos sobre esse ou aquele aspecto. Mas sim porque o nosso presente precisa de um passado. Ento, ao analisar a histria que fazemos, analisamos o pre-sente que temos, por meio da anlise das perguntas que nos interessam hoje sobre o passado. No nos atrai mais a vida dos reis, os concilios papais a no ser reorde-nados para responder a outras perguntas: perguntas sociais sobre o homem comum, sobre a cultura, sobre a agncia humana . E esse tipo de pergunta no est dissociado de todas as perguntas polticas e sociais que temos feito no nosso presente. Por isso que nosso presente tem um passado.

    Portanto, a histria no fixa nem imutvel. Pelo contrrio. A construo da-j histria depende do grupo, do gnero ou da classe social que a tece. E ela sempre mutvel, pois responde s diferentes perguntas que os diferentes grupos sociais fazem a respeito do seu passado.

    E possvel, ainda, falar a mesma coisa de outra maneira. Vou introduzir algumas reflexes da semitica, sugerindo apenas coisas simples, para avanar um pouco e ter uma nova forma de ver esses aspectos.

    A semitica fala em signo, e afirma que este signo composto de significante e significado. O que significante? Antnio Carlos da Silva, em "As teorias do signo e as significaes lingsticas", afirma que o "mtodo semitico tem por conceito fundamental o estudo do signo, que, conforme Saussure, apresenta um primeiro elemento chamado significante, caracterizado no por sua natureza material, mas como imagem acstica, a impresso psquica do som, que pode desencadear u m outro fenmeno psicossemiolgico o significado: o segundo elemento constituinte do

    571

    Ana Paula Caetano Jacques

  • signo". Nossa questo a seguinte: o signo estvel ou mutvel? contextualizado ou tem u m significado fixo? O ponto de interesse o significado. Ele fixo? Mikhail Bakhtin, em Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do mtodo sociolgico nas cincias da linguagem, fala que o signo ideolgico. O que significa isso? Imaginemos que estou conversando com u m indiano, n a mesma lngua dele. Falamos em "sentar". A imagem que me vem cabea a de uma cadeira, ou a de um sof. E para ele, talvez, a imagem que lhe venha cabea seja a de uma esteira no cho, ou a do estrado com palha. Enfim, o significado depende do contexto. Isso, na verdade, bastante simples. Muitos autores complicam u m pouco. Ento, Bakhtin, em Marxismo e filosofia da linguagem, prope que o signo ideolgico, e que depende do intrprete-sujeito. Portanto, estou conversando com vocs, falando algumas coisas, e vocs esto apreendendo segundo o contexto individual de vocs. No apenas individual, obviamente, cultural, social e religioso. O que interessante, ento, que as pessoas so produtos de contextos mas no de u m contexto s, porque elas so produtos do encontro de diferentes contextos. E esse encontro de diferentes contextos que constri o que chamamos de indivduo. Portanto, o signo ideolgico. E quando digo isso, vocs entendem que o signo ideolgico segundo os parmetros que vocs possuem neste momento.

    Essa idia de que existe um contexto que promove o significado do signo recebe tambm a denominao de lcus de enunciao. Aquele bulbo do incio o nosso lcus de enunciao. Em rede, sempre em rede. Assim, segundo u m diagrama, o encontro entre Cultura 1 e Cultura 2 o que acho que "sentar" e o que um indiano acha que seja "sentar". Ou entre Histria 1 e Histria 2, digamos, a histria da escravido escrita do ponto de vista dos senhores e a escrita do ponto de vista dos escravos e de seus descendentes; ou Ideologia 1 (liberalismo) contraposta a Ideologia 2 (marxismo). Ou ainda situaes de encontro de diferentes classes sociais, culturas e ideologias, que geram algo novo, no uma sntese dos dois termos em jogo, mas um terceiro espao. E o que isso? Ns tambm tendemos sempre a pensar em tese-anttese-sntese, sendo a sntese o produto dos dois termos anteriores. As coisas se sintetizam. A sntese a nossa rvore, na qual podemos colocar mais u m pedacinho, mais uma raiz. A origi-nalidade do esquema que estou procurando introduzir reside na idia de que desses

    158

    encontros no surge uma sntese, mas u m terceiro espao, que no produto dos ou-tros dois. Ento, por exemplo, converso com algum que est ao meu lado, e da nossa conversa no sai uma sntese, mas um terceiro espao: nem as minhas idias, nem as desse algum, nem a soma das duas. Surge uma terceira instncia: que no n e m uma, n e m outra, u m terceiro ponto. Este terceiro ponto chamado de hibridismo. Quem emprega o signo bak th iano e in t roduz a idia do hibr idismo o muito comentado, porm evitado autor, Homi Bhabha. Quem pode nos in t roduzir nos meandros da prosa difcil de Bhabha Lynn Mrio Tr indade Meneses de Sousa, estudioso deste autor. Usando a idia de hibr idismo, quero in t roduzir tambm alguns novos tipos de conceito. Primeiro, o prprio conceito de Homi Bhabha, discutido em O local da cultura, de narrat ivas h br idas . E considerar a inda outros dois conceitos, ret irados de Mary Louise Prat t em Os olhos do imprio. Relatos de viagem e transculturao: o de zona de contato e o de auto-etnografia.

    Vou fazer u m pequeno apanhado desses conceitos, que tm a ver com os pro-cessos de construo das narrativas pelos excludos, com toda a histria comprome-tida com a recuperao das camadas sociais subalternas, interessada em fazer uma crtica dos discursos de poder, e com a idia de que a recuperao dessas memrias e a construo das narrativas se enraizara, na possibilidade de autonomia. O que isso? As camadas subalternas so capazes de produzir espaos de autonomia, e esses espaos so recuperveis mas como devemos proceder se os discursos construdos pelos subalternos, via de regra, no produzem materiais que contenham suas pr-prias verses? Pois so as fontes construdas pelo olhar do poder, pelo olhar do outro, que contamos quando vamos pesquisar a histria dos excludos. E a entramos em u m terreno que nos interessa demais, que o da construo das narrativas. Porque ns, trabalhadores da cultura, estamos, atualmente, mais interessados em descobrir formas de recuperar a histria de grupos subalternos do que corroborar os discursos normativos do Estado. No entanto, enquanto agentes organizatrios dessas narrativas subalternas, somos uma instncia do poder, querendo ou no. Isso no faz com que a histria oficial, normativa e burocratizada, baseada na verso das fontes comprome-tidas pelo poder, seja a nica histria possvel. Mas como vamos fazer para recuperar essas outras vozes? Os historiadores constrem suas anlises na certeza de que os

    5 ! ) |

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

  • textos comprometidos pelo poder so habitados por outras vozes, a dos excludos. Na verdade, u m pouco estranho, mas vou explicar. A idia seria que os discursos hegemnicos que so as histrias burocratizadas, as histrias escritas do ponto de vista do Estado so sempre as histrias da dominao, amarradas ao ponto de vista da rvore e da sntese, comprometidas com a assuno de que todos os grupos sociais esto subsumidos na nao. Porm, o que quero dizer que, apesar do carter autoritrio de sua proposio, os discursos dos Estados no conseguem alcanar o total apagamento de vozes dissonantes, rebeldes, no integradas. Acredito que mesmo nesses discursos podemos achar outras vozes, que habitariam esses textos, talvez, enquanto fantasmas. Bhabha fala de vozes fantasmagricas, que so os silncios, os lapsos. Seriam estes os no-ditos, como fala a professora Maria Odila Leite da Silva Dias no artigo "Hermenutica do cotidiano na histria contempornea".

    Bhabha afirma que a penetrao de indcios das vozes dos excludos do poder nas narrativas hegemnicas pode ser to ntima e profunda que estas passam a ser aterrorizadas por presenas fantasmagricas. Bhabha est aqui se referindo a diversas possibilidades interpretativas complexas, mas, acredito, esses fantasmas, essas vozes descarnadas so aquelas que se fazem ouvir apenas nas ausncias e nos lapsos. Um dos grandes pensadores que influenciou Bhabha na construo desta idia foi Lacan, quando afirma que o inconsciente se estrutura como u m a linguagem,-e, como tal, faz supor u m cdigo, no qual ela adquire significado. No ensino de Lacan, o outro o lugar do tesouro de todos os significantes. Ou seja, ns nos estruturamos em relao ao outro. Como as narrativas de poder excluem o outro, ele retorna e aterroriza o

    _^discurso de poder como u m fantasma, e ns, historiadores sociais e agentes culturais, deveramos estar atentos a este rudo e buscar recuperar essas outras vozes nessas narrativas de poder, as narrativas produzidas a partir de fontes comprometidas com o Estado, s quais Bhabha chama de narrativas pastorais ou pedaggicas. Ento, por exemplo, vamos trabalhar com registros de alfabetizao, mas estamos trabalhando com fontes do Estado, que tm uma viso sobre alfabetizao, que tm uma maneira de discriminar quem alfabetizado e quem no , quem tem direitos de cidadania e acesso palavra escrita e quem no os tem. E se tomamos aquelas fontes, que parecem meramente seriais e objetivas, de registros de aprovao na escola fundamental, e no

    160

    fazemos a crtica da fantasmagora, vamos comprar a viso do poder, bvio. Qual a nossa responsabilidade? E ir buscar naquilo que ficou como lapso, como presena ausente, a estrutura de excluso daqueles que no se alfabetizaram, dos que se alfa-betizaram mais ou menos, dos que foram excludos, abandonaram a escola, e refazer esse discurso de outro ponto de vista. As nossas fontes muitas vezes so as fontes do' poder, a no ser quando trabalhamos com as narrativas orais que outro caso, o qual abordarei em seguida sob a rubrica de auto-etnografia.

    Alm disso, Lacan acredita e Bhabha de alguma forma incorpora essa idia que o sujeito do inconsciente sempre descentrado, ou seja, ele no est no centro ele no rvore, ele tambm bulbo, e se estrutura o eu, o self em relao a. Ora,-no texto colonial e ps-colonial, o discurso de poder se estrutura em relao ao subal-terno, ao excludo, ao no-dito. Ento, essa seria a grande jogada: saber, sempre, que este discurso relacionai. Embora se diga hegemnico e produtor de algo significativo a respeito da "verdade", ele, na realidade, relacionai e se estrutura pela excluso do outro. Quando trazemos o outro para a cena descobrimos que este discurso de poder pedaggico, quer dizer, ideolgico.

    Nesse sentido, o que Bhabha afirma que o subalterno nunca e importa percebermos as conseqncias.disso excludo do discurso, do poder, mas parte integrante. O discurso do poder s se estrutura a partir do excludo; o excludo est exatamente na base da construo do discurso do poder. Isso o hibridismo, a nega-o p u r e z ^ U m a coisa que somos sempre tentados a fazer quando trabalhamos com grupos subalternos, mas sobretudo quando lidamos com grupos tnicos ou tradicio-nais, buscar a pureza. Porm, este discurso, o da pureza, tambm um discurso do poder. Se no tivermos o cuidado de nos acautelar contra essa dimenso idealizada,

    l o que faremos nesta conjuntura algo assim: julgamos que o discurso do poder tem \ de ser eliminado, jogado fora, passado pela crtica ideolgica; mas os subalternos, es-I tes tm de ser totalmente preservados, incensados, mantidos, pois tanto eles quanto seus registros seriam puros. A idia de pureza ideolgica tambm. No existe um discurso social puro, fechado e intocado qualquer discurso est sempre lutando por espao enunciativo, portanto, a part ir de dentro do discurso de poder, sendo este, sempre, uma produo hbrida.

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

  • Vou especificar melhor o que penso abordando o conceito de zona de contato. O que zona de contato? De novo, vamos pensar no hibridismo: seriam as zonas no-geogrficas, espaos de encontros culturais, nas quais se estruturam discursos, formas de saber, tecnologias sociais, modos de produo todas instncias hbridas. Elas se estruturam em espaos de contato, e o processo que as gera, as promove e lhes d razo de existir a transculturao. O que isso? Quer dizer que, nesse espao chamado zona de contato que tanto pode estar nas Amricas, na escravido, na selva dos viajantes, nos portos escravistas da Inglaterra, ou ainda no mundo ps-co-lonial em qualquer pas central , na verdade no so gerados dois saberes ou dois poderes opostos dos dominadores e dos dominados , mas um saber de zona de contato. E como gerado este saber? Em primeiro lugar, os saberes nativos, subalter-nos, so apresentados ao sujeito colonial e so apropriados. Mais tarde, estes so devolvidos aos subalternos ou aos espaos coloniais como um saber ocidental, domi-nante, estatal, para no dizer masculino. Isto significa o qu? Exemplo simples: um viajante vai pela Amaznia tomemos Humboldt, redigindo livros baseados em uma esttica do sublime, da descoberta da natureza primordial. Ele se apresenta como o prprio Ado descobrindo novas terras, similares ao paraso terreal intocado. S que ele obviamente no sabe falar lnguas indgenas, est sendo conduzido por ndios "civilizados", por autoridades coloniais locais, por fazendeiros, por escravos. O que faz supor que, na realidade, a posio do viajante muito mais dependente da estru-tura colonial do que ele quer nos fazer crer. Nada disso aparece no texto dele. No processo da viagem, ele se apropria dos saberes coloniais que lhe so apresentados. Ele pergunta para o seu guia: o que essa plantinha? A resposta: essa o senhor pode comer, ela cura dor de barriga. Assim, ele se apropria da informao de diferentes maneiras coletando espcimes daquela planta, desenhando-a minuciosamente, e, finalmente, inscrevendo-a no sistema lineano e, mais tarde, reivindicando a "des-coberta" das plantas da Amrica. Em outras palavras, todo o conhecimento gerado na zona de contato levado para a Europa, reorganizado, reestruturado na forma de urna narrativa cientfica ou cientificista como o caso da discusso das raas e, mais tarde, devolvido para os Estados nacionais americanos que estavam surgindo a partir da primeira metade do sculo XIX. Estes saberes so devolvidos a ns como

    Ifi2

    conhecimentos cientficos sobre o mundo colonial, gerados na Europa, os quais de-vemos respeitosamente absorver, uma vez que somos incapazes de produzir nossos

    . prprios saberes, dado nosso estado de barbrie e atraso. O interessante que a Mary | Louise Pratt fala que no s o viajante que viaja existe um viajante e existe um [ viajado. Quem o viajado? Aquele que apresenta o saber ele diz: esta plantinha o

    senhor pode comer, essa no; esse bicho peonhento, este no. Ento, existe um viajante que viaja no viajado. O viajante e o viajado. Porm, o viajado no passivo quando aparece o conceito de auto-etnografia, que importantssimo: o viajado no um sujeito em disponibilidade, como nos fazem crer os relatos de viagem; no exis-te o sujeito disponvel para dizer qual plantinha boa e qual no . O que existe um sujeito ativo, que possui agncia. E como ele tem agncia? O divertido que se ns pensarmos bem, o viajante viaja no viajado, e o viajado viaja no viajante. O que isso? O viajado que, segundo os registros coloniais dos viajantes, se apresentaria como o elo passivo na construo do conhecimento cientfico , na verdade, quem oferece o conhecimento, ele tambm tem agncia. Se considerarmos que ele imagi-na aquilo que o viajante pode entender, e que cria um discurso relacionai ele diz para aquele sujeito colonial, ocidental, masculino e cientificista aquilo que ele acre-dita que aquele sujeito pode entender ou quer ouvir. Portanto, esse saber do viaja-do contextualizvel e relacionai esse processo Pratt denominou auto-etnografia. Esse um processo clssico de produo do testemunho. Suponhamos que eu chegue para fazer uma entrevista com remanescentes de determinado quilombo, imaginando que eles vo narrar memrias de vida totalmente puras, no conspurcadas pelo Oci-dente, pelo poder, pelos interesses do capitalismo, e que faro isso por meio de um cdigo cultural prprio. Finalmente, acredito que vou recuperar isso. O meu entre-vistado que eu poderia denominar viajado olha para mim e vai me contar aqui-lo que ele acredita que eu sou capaz de entender, ou que eu quero entender. E, como plataforma poltica, aquilo que eu posso fazer por ele. A partir desta estrutura relacio-nai, ele produzir uma identidade que obviamente parcial, provisria, interessada, da qual vou me apropriar de outra maneira, segundo outros parmetros, e devolverei a ele na forma de uma narrativa escrita, estruturada a partir dos cnones aceitos pela acade-mia, pela mdia ou pelo Estado. E os grupos que recebem essas narrativas vo recri-las

    6! i |

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

    Ana Paula Caetano Jacques

  • mais uma vez enquanto bulbos, plataformas; portanto, no existe pureza, esta im-possvel, uma idealizao. Mary Louise Pratt estudou muito o gnero chamado testemunho, que esteve em moda n a Amrica Latina nas ltimas dcadas. O livro mais conhecido, Meu nome Rigoherta Mench. E assim nasceu minha conscincia, traz o testemunho da prpria Rigobcrta Mench, a guatemalteca que ganhou o Prmio Nobel em 1992. Porm, traz como autora Elizabeth Burgos. O tes temunho de Rigo-berta fez sucesso mundial. Ela uma mulher indgena da etnia quiche, das terras altas da Guatemala, que narra para uma mulher europia, em Paris, as memrias da sua vida, tecendo u m testemunho. E o livro aborda de maneira direta a histria da vida desta mulher camponesa, mostrando o despertar da organizao de resistncia po-ltica na vida no s de Rigoberta, mas de toda a sua comunidade como fio condutor do tes temunho: par a par com a fidelidade dela e de seu grupo tnico observncia dos costumes ancestrais, aparecem a fora da famlia indgena camponesa e a che-gada da conscincia poltica a part i r de baixo. O livro acaba gerando uma disputa enorme nas universidades norte-americanas dos finais dos anos 1980 e incio dos 1990, disputa esta que girava em torno da delimitao dos livros que os garotos nor-te-americanos deveriam ler nos cursos bsicos das universidades se deveriam ler, ao lado dos clssicos ocidentais, livros como o de Rigoberta, se ele poderia ser classi-ficado enquanto literatura ou no, se possua alguma qualidade intrnseca nos cno-nes ocidentais ou se o motivo de sua insero seria apenas ideolgico. Finalmente, se este tipo de livro possua algum valor artstico. O debate tornou-se muito acirrado, provocando a ira dos defensores da preservao de uma suposta alta cultura ocidental contra a invaso de livros desprovidos de valor intelectual, escritos ou "balbuciados" para outrem por pessoas desprovidas de qualquer valor cultural. A este respeito o escritor Saul Bellow chegou a declarar em uma entrevista de jornal: "Quando os zulus tiverem um Tolstoi, ns o leremos". A disputa em torno do que Pratt chamou pardicamente de "lucha-libros" entrou em sua fase mais aguda quando u m jornalis-ta e escritor David Stoll realizou uma pesquisa minuciosa na Guatemala, cujo resultado apareceu em livro de volume enciclopdico, mostrando que o depoimento de Rigoberta no era verdico com relao a diversas passagens de sua vida. O detalhe mais importante que, em seu testemunho, Rigoberta afirmara que s havia apren-

    164

    dido o espanhol na idade adulta, quando, na verdade, ela havia sido alfabetizada por freiras catlicas ainda na adolescncia. Portanto, no havia na vida daquela militan-te indgena a pureza e a autonomia que o seu leitor almejava. Em outras palavras, desde cedo Rigoberta havia incorporado experincias e saberes ocidentais e deles havia se beneficiado, tornando-os pontes para a construo de sua conscincia pol-tica e tnica. Outros incidentes de sua vida tampouco puderam ser comprovados ou surgiram como fabricaes da autora, como os relativos s circunstncias da morte de sua me nas mos dos militares da contra-insurgncia, que naquela altura mos-travam sua face mais sinistra da guerra civil guatemalteca. Enfim, h uma srie de detalhes que vieram tona a par t i r da pesquisa de Stoll e que colocavam em dvida a verdade do tes temunho de Rigoberta. Isso gerou uma enorme disputa sobre o estatuto da verdade. Existe u m livro superinteressante, que muitos devem conhecer, organizado por Georg M. Gugelberger, intitulado The Real Thing, em referncia a um dos artigos do livro, de autoria de John Beverley, e que discute este tipo de testemunho. As perguntas que atravessam os muitos artigos do livro so: O gnero do testemunho implica a existncia de um sujeito, u m indivduo narrador prprio ao romance oci-dental, ou ele o indivduo narrador , neste caso, se torna u m sujeito social e coletivo? Seria pert inente aplicar o conceito de verdade ao gnero do testemunho? Isto , o testemunho tributrio da verdade ou da literatura? Quais so os cnones que me ajudam a discriminar o que seria um e o que seria o outro? Todas estas questes referem-se ao problema da definio de u m indivduo-autor quando tratamos de nar-rativas sociais e histricas elaboradas pelos grupos subalternos, enquanto plataformas polticas de defesa de direitos e construo de identidades sociais. O que a disputa em torno do testemunho de Rigoberta tambm aponta a necessidade de ns, intelectuais, nos despirmos de expectativas de pureza para podermos compreender a prpria din-mica da construo dos discursos dos subalternos, j que o recurso auto-etnogrfico, no caso em tela, a construo da narrativa de Rigoberta como produto relacionai de seu contato com Elizabeth Burgos, foi construdo de forma a preencher as expectativas que, ela avaliava, preencheriam as expectativas de seus potenciais leitores.

    Os conceitos de zona de contato, auto-etnografia e hibridismo acabam por nos levar a concluir que os discursos gerados em ambientes coloniais e ps-coloniais so

    651

  • relacionais; e que mesmo os discursos de poder gerados nesta zona so habitados por vozes subalternas. Isto nos levaria a concluir que no existem duas culturas a dos dominados e a dos dominantes. Pelo contrrio, os produtos culturais surgem de forma relacionai, entremeados de vozes dissonantes, assim produzindo agncias polticas e plataformas identitrias, sempre provisrias.

    Por fim, vou mencionar rapidamente o trabalho que estou fazendo. Em pri-meiro lugar, cito o livro Brazil Through the Eges of William James: Letters, Diaries, and Drawings. E uma edio bilnge, contendo, alm de um ensaio de minha au-toria, as cartas, os dirios e a narrativa de viagem de William James, que se tornou famoso enquanto filsofo e fundador da psicologia nos Estados Unidos. Fundador do pragmatismo uma das correntes filosficas que mais influenciou o pensamento norte-americano a partir dos finais do sculo XIX , William James, como estudante e coletor-voluntrio, participou da Expedio Thayer que percorreu o Brasil em 1865-1866. A Expedio Thayer que era altamente racialista e cientificista produziu uma coleo de fotografias racialistas, nas quais encontramos sries intituladas de africanos e raas mestias, formadas por homens e mulheres vestidos, semidespidos e despidos, que pretendiam documentar a inferioridade da raa negra e a degenerao provocada pela mestiagem. Obviamente, uma das primeiras reaes que a coleo desperta o desconforto de nos defrontarmos com a objetificao e o envilecimento dos fotografados. Alm de muitas possibilidades analticas que a coleo enseja, uma delas seria a de procurar analis-la em busca dos indcios ou rastros deixados pelos fotografados, por meio dos quais estes reivindicariam uma agncia radical: afinal de contas, ao olharmos estes corpos apropriados pelo discurso da cincia e da raa, dispostos em poses degradantes, o nosso mal-estar imediato indica que a condio de humanidade dos fotografados, apesar de toda a negao subjacente prpria coleo, uma realidade inescapvel.

    Muito obrigada.

    106

    Referncias bibliogrficas

    Bhabha, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. Bakhtin, Mikhail M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do mtodo sociolgico nas cincias da linguagem. So Paulo: Hucitec, 1986. Berger, John. Ways of Seeing. Londres: British Broadcasting Corporation/Penguin Books, 1972. Burgos, Elizabeth. Meu nome Rigoberta Mench. E assim nasceu minha conscincia. So Paulo: Paz e Terra, 1993. Deleuze, Giles e Guattari, Flix. Mil platos. Capitalismo e esquizofrenia. Trad. Aurlio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. So Paulo: Editora 34, 1995. Dias, Maria Odila Leite da Silva. "Hermenutica do quotidiano na historiografia contempornea". Projeto Histria: Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e do Departamento de Histria da PUC de So Paulo, n. 17, nov. 1998, pp. 223-258. Gugelberger, Georg M. (org.). TheReal Thing. Testimonial Discourse and Latin Ame-rica. Durham: Duke University Press, 1996. Leite, Mrcio Peter de Souza. Psicanlise lacaniana. Cinco seminrios para analistas hleinianos. So Paulo: Iluminuras, 2000. Mench, Rigoberta. Crossing Borders. Londres: Verso, 1998. Pratt, Mary Louise. Os olhos do imprio. Relatos de viagem e transculturao. Bauru: EDUSC, 1999.

    . "Lucha-libros: Me llamo Rigoberta Mench y sus crticos en ei contexto norte-americano". Nueva Sociedad. Democracia y Poltica en America Latina, Buenos Aires, n. 162,jul.-ago. 1999, pp. 24-39. Silva, Antonio Carlos da. "As teorias do signo e as significaes lingsticas". Dispo-nvel em http://www.partes.com