As Implicações da Cotidianidade na Prática do Assistente Social: Desafios da Intervenção...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ASLAN RODRIGUES DO NASCIMENTO BOGADO AS IMPLICAÇÕES DA COTIDIANIDADE NA PRÁTICA DO ASSISTENTE SOCIAL: DESAFIOS DA INTERVENÇÃO QUALIFICADA NO SERVIÇO SOCIAL São Paulo 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

ASLAN RODRIGUES DO NASCIMENTO BOGADO

AS IMPLICAÇÕES DA COTIDIANIDADE NA PRÁTICA DO ASSISTENTE SOCIAL:

DESAFIOS DA INTERVENÇÃO QUALIFICADA NO SERVIÇO SOCIAL

São Paulo

2012

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ASLAN RODRIGUES DO NASCIMENTO BOGADO

AS IMPLICAÇÕES DA COTIDIANIDADE NA PRÁTICA DO ASSISTENTE SOCIAL:

DESAFIOS DA INTERVENÇÃO QUALIFICADA NO SERVIÇO SOCIAL

Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado, para obtenção do título de

Bacharel em Serviço Social, à Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, na

Faculdade de Ciências Sociais.

Orientadora: Profª Drª Márcia Accorsi Pereira

São Paulo

2012

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ASLAN RODRIGUES DO NASCIMENTO BOGADO

AS IMPLICAÇÕES DA COTIDIANIDADE NA PRÁTICA DO ASSISTENTE SOCIAL:

DESAFIOS DA INTERVENÇÃO QUALIFICADA NO SERVIÇO SOCIAL

Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado, para obtenção do título de

Bacharel em Serviço Social, à Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, na

Faculdade de Ciências Sociais.

Aprovado em ____ de _______ de 2012.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________

Profª Drª Márcia Accorsi Pereira

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

______________________________________

Profª M.ª Márcia Calhes Paixão

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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AGRADECIMENTOS

À minha amada companheira Juliana por me suportar todos os dias.

Aos meus pais Márcio e Tânia por me darem o melhor desta vida, o amor

incondicional.

Às minhas irmãs Tahenee e Náhima por seu amor, companheirismo e apoio nos

momentos de dificuldade.

À minha orientadora Márcia Accorsi por ter acreditado em mim e por ter me

subvertido a cada discussão.

À Márcia Paixão por sua brilhante leitura durante o processo de produção deste

trabalho.

Ao conjunto de professores comprometidos do Curso de Serviço Social da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo e da Universidade Católica Dom Bosco, que se

imbuíram na dura tarefa de me refinar.

Aos meus colegas de curso que me motivam a ser nobre como eles.

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo pela providencial bolsa de estudos.

Ao Curso de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, por

existir.

E, por fim, à Terra da Garoa, que me acolheu e que me tem proporcionado

oportunidades singulares.

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O circo do cotidiano está armado Cobrando ingressos bem na sua porta O moleque na esquina tem idade do seu filho E você nem se importa Como você suporta? (O Cara e a Vela)

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RESUMO

O cotidiano é o espaço onde se dá a materialização do trabalho do/a assistente

social. No entanto, seu ritmo é determinado pelo devir da sociedade capitalista. A

intervenção qualificada requer, por parte do profissional, uma ruptura com as

práticas cotidianizadas e alienantes. Desenvolvemos esta pesquisa, a partir de uma

acumulação de angústias relacionadas a dimensão contraditória existente nesta

profissão, com a finalidade de demonstrar que, de fato, é possível efetivarmos, em

nossos espaços de trabalho – e no âmbito dos desafios cotidianos – uma atuação

competente e alinhada com o projeto ético-político-profissional do Serviço Social.

Mediante a uma entrevista com uma profissional, elencamos alguns elementos

fundamentais para a elaboração de propostas voltadas a intervenção qualificada nos

espaços cotidianos da prática. Depois de dialogar com as considerações da

entrevistada e com as ideias de pensadores da profissão e das ciências humanas,

procuramos refletir sobre como se dá a efetivação de uma prática consistente e

transformadora. Este estudo não possui o ímpeto conclusivo acerca do objeto

discutido, no entanto, procuramos problematizar e dar significado ao debate da

questão das implicações da cotidianidade na prática do/a assistente social. A ruptura

com a rotina requer competências técnico-operativas, teórico-metodológicas e ético-

políticas que podem ser expressas na atividade profissional através da formação

continuada, da prática fundamentada e do engajamento político.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ________________________________________________ 8

Capítulo I: Cotidiano: eis a questão ________________________________ 11

Capítulo II: Prática alienada, sujeito reificado _________________________ 23

Capítulo III: A intervenção qualificada ______________________________ 31

CONSIDERAÇÕES FINAIS _____________________________________ 39

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _______________________________ 41

ANEXOS ____________________________________________________ 43

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INTRODUÇÃO

Este trabalho é muito significativo, pois, representa o esclarecimento de

algumas angústias acumuladas durante o curso de Serviço Social. Nossa graduação

foi abalada por crises cíclicas, existenciais e profissionais. Crises existenciais porque

lidamos com conhecimentos que sacudiram nossos valores morais e modos de

pensar. Estes conhecimentos são considerados anormais pela maioria da

sociedade, tão anormais que, em diversas situações nos últimos quatro anos,

encontramo-nos em situações delicadíssimas nas quais fomos considerados loucos

e patéticos. Quando sentíamos o desejo de mudar os rumos, por estarmos “remando

contra a maré”, lembramo-nos do compromisso político com o qual nos engajamos

ao ver a realidade social com um olhar mais refinado. E, crises profissionais porque,

ao descobrir a contradição presente nesta profissão, pensamos se, de fato, era

possível realizar um trabalho social competente. Felizmente descobrimos que sim!

Mas, antes fizemos grandes esforços para entender que a transformação social vem

pela força da coletividade, e não da individualidade.

No início do quarto ano estava decidido a discutir sobre as implicações das

práticas religiosas em nossa atuação, pois, sou religioso e não podia me negar. E

ainda, ao constatar que há muitos religiosos nas salas de nosso curso, pensamos

que se realizássemos um trabalho no qual defendêssemos a ideia de que é possível

ser religioso e ao mesmo tempo um profissional comprometido com o projeto ético-

político, contribuiríamos com um tema não muito debatido nos espaços de discussão

da profissão. Porém, por meses nos debatemos com este objeto. E, por fim,

decidimos abandoná-lo. No entanto, um novo problema veio à tona: a escolha de um

novo objeto de estudo.

Quase entrando numa nova tensão acadêmica, lembramo-nos de nossas

crises cíclicas relativas à atuação do/a assistente social, e que ainda não sabíamos

ser possível fazer um trabalho qualificado nesta profissão contraditória. Foi então

que demos conta de que há possibilidades reais em nossa práxis, mas para

encontrá-las, primeiramente teríamos de elencar os limites de nossa atuação. A

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identificação dos limites tornaria mais real a visualização das possibilidades. Como o

Serviço Social está repleto de limitações, decidimos identificá-las uma de cada vez.

Portanto, este trabalho trata das implicações das expressões da cotidianidade na

práxis profissional. Deixaremos os outros desafios para serem identificados ao longo

da jornada e trabalhados em futuros estudos acadêmicos.

No primeiro capítulo, Cotidiano: eis a questão, elencamos algumas

dificuldades encontradas no dia-a-dia do/a profissional e discutimos sobre como é

desafiador encará-las. Analisamos o Serviço Social como produto das

determinações históricas e sobre a importância de se efetivar nosso projeto

profissional nos espaços sócio-ocupacionais. Por fim, discutimos brevemente sobre

algumas atribuições do/a assistente social.

No segundo capítulo, Prática alienada, sujeito reificado, tratamos da relação

entre profissional, usuário e empregador. Tratamos da maneira como se dá a

cotidianidade em nossos espaços ocupacionais e quais as implicações de algumas

de suas expressões em nossa prática. Procuramos discutir sobre as características

fundantes do Serviço Social e como elas se dão na intervenção.

No terceiro e último capítulo, A intervenção qualificada, propomos um

aprofundamento na discussão sobre a intervenção profissional em si, dando ênfase

na relação com o sujeito. Indicamos caminhos para uma intervenção consciente,

levando em conta a dimensão genérica da profissão e do ser humano que

atendemos.

Optamos por romper com algumas práticas cartesianas na estruturação de

nosso trabalho, por isso, incluímos fragmentos da entrevista realizada com a

assistente social Haydê Mov1, no próprio desenvolvimento dos capítulos. A

entrevista foi fundamental para a produção deste trabalho, e nos abriu novas

possibilidades de discussão e encaminhamentos.

1 Por motivos éticos a verdadeira identidade da entrevistada foi preservada.

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Propomo-nos também a trazer o pensamento de autores não vinculados às

questões da profissão, como Morin, que trouxe conceitos genéricos que

fundamentaram e enriqueceram a discussão do objeto.

Desejamos uma boa leitura a todos que entrarem em contato com este

trabalho e esperamos que as discussões, considerações e propostas sejam

esclarecedoras e que façam sentido dentro de suas ações profissionais.

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Capítulo I: Cotidiano: eis a questão

Um pouco de aventura liberta a

alma cativa do algoz cotidiano.

Clarice Lispector

Iniciaremos este trabalho com a árdua missão de refletir e analisar – à luz das

teorias dos autores da profissão, de autores das ciências humanas, das experiências

de uma Assistente Social que nos deu um depoimento e das experiências práticas

vividas durante nossa trajetória nos estágios exigidos pela formação – sobre uma

questão de longo alcance, inerente a trajetória do Serviço Social na sociedade e que

perpassa pela intervenção diária dos/as assistentes sociais, como num devir

dialético complexo.

De fato, seria transformador se todo profissional, no âmbito de sua

operacionalidade, a examinasse profunda e continuamente, com seriedade e espírito

de inquietação. A questão é se estamos - em nossos espaços sócio-ocupacionais e

no âmbito da opressora vida cotidiana - colocando (competentemente) nossa

profissão a serviço dos interesses históricos da classe trabalhadora, de modo que

nossas ações nos encaminhem objetivamente em direção a um resoluto

compromisso ético-político com as diretrizes e princípios de nosso projeto

profissional, no seio desta sociedade de classes.

Ao ingressar no campo de estágio percebemos o quanto a atuação do/a

profissional do Serviço Social é importante na sociedade, pois, trabalhamos

diretamente no enfrentamento das expressões da questão social, sendo assim:

[...] a questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia [...].2

A questão social é demasiadamente complexa e muitas vezes paradoxal,

tanto que, apesar de estudá-la durante quatro anos na graduação, encontramo-nos

2 IAMAMOTO, Marilda Vilela. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma

interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 1983, p. 77.

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muitas vezes intricados por não compreendê-la em sua minúcia. Além disso,

verificamos, na prática, o quanto a rotina pode ser massacrante e arrebatadora; não

apenas para o técnico, mas também para os usuários que procuram, nas instituições

de caráter público, privado ou nas do chamado terceiro setor, a prestação de

serviços sociais de qualidade, mas acabam encontrando um espaço subliminar de

violação de direitos. Neste caso o/a assistente social torna-se uma espécie de

“violador/a silencioso/a”.

O que estamos afirmando é que, no emaranhado das vicissitudes do

cotidiano, a prática interventiva do/a assistente social pode se tornar

imperceptivelmente nociva; considerando que a rotina possui, por essência, facetas

coisificantes. Quando isso acontece – e de fato esta é uma realidade muito presente

em nosso dia-a-dia – a prática interventiva torna-se indiferente e aquele processo de

empoderamento de consciência do sujeito de direitos, presente na dimensão

socioeducativa da profissão, não é efetivado; acarretando, assim, na concretização

do projeto ideológico da classe dominante.

Portanto, para entender o objetivo central deste trabalho será importante

considerar que esta rotina, em sua natureza, obedece aos ditames da própria vida

cotidiana, e, sem dúvidas, os/as profissionais do Serviço Social – como os das

demais áreas do saber e fazer – não estão incólumes a suas pontualidades. E, quais

são as pontualidades da vida cotidiana e como elas podem incidir negativamente no

trabalho do assistente social? Trataremos de algumas delas no decorrer deste

trabalho e tentaremos elaborar propostas para seu enfrentamento. No entanto, e

para tal, faz-se mister o aguçamento de nossa capacidade analítica de modo a

entendermos que o devir histórico-humano determina as próprias transformações

estruturais da profissão. O que estamos dizendo é que o Serviço Social se modificou

com o movimento dialético do mundo, e assim continuará com o passar do tempo.

A vida de todos nós está em constante movimento, por isso, ao analisarmos a

história da humanidade, certamente compreenderemos a dimensão das

transformações que os homens introduziram nas relações humanas e sociais.

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A história é a substância da sociedade. A sociedade não dispõe de

nenhuma substância além do homem, pois os homens são os

portadores da objetividade social, cabendo-lhes exclusivamente a

construção e transmissão de cada estrutura social.3

Os homens, que são a substância da sociedade, construíram sua própria

história, e, ao transformar o mundo, transfiguraram-se. Não é por acaso que Marx

afirma que é o ser social quem determina a consciência do homem.

Consequentemente – continuando na linha de raciocínio de Heller – “a substância da

sociedade só pode ser a história”.4 Ao homem cabe construir a história humana, por

sua vez a história o situará em seu lugar no tempo. Os homens são produto da

biografia humana que eles mesmos escreveram.

Hoje as relações humanas, demasiadamente sofisticadas, estão travestidas

de complexidades talvez nunca prefiguradas pelos antigos pensadores, tamanha a

sua amplitude e diversidade. Além disso, o universo e a natureza são apreendidos a

partir de novos paradigmas. O avançado conhecimento científico do cosmo permite

ao homem entender-se dentro dos processos naturais, por conseguinte, uma relação

mais sofisticada com a natureza proporciona avanços à humanidade, mas também

retrocessos. A humanidade provou-se hábil na arte da transformação, porém, paga

caro por sua conduta obtusa. Eis um dos grandes contrastes do devir histórico

humano.

Ora, qual a ligação dessa reflexão com o objeto desse trabalho e por que ela

é importante? Morin esclarecerá com a seguinte afirmação:

De modo que a consciência da História deve servir não só para reconhecermos os caracteres, ao mesmo tempo determinados e aleatórios do destino humano, mas também para nos abrirmos à incerteza do futuro. 5

3 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, 7ed., p. 2.

4 Id., 2004, p. 2.

5 MORIN, Edgar. A cabeça bem feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 19ed, p. 61.

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A consciência histórica permitiu aos profissionais do Serviço Social apreender

esta profissão como produto de interesses humanos antagônicos – o que a torna

necessariamente contraditória. Esses interesses estão materializados, desde a

revolução industrial, por uma fatídica disputa de classes na relação conflituosa entre

capital e trabalho. Guerra coloca esta contradição no cerne da gênese da profissão e

localiza sua incidência em seu processo de legitimação:

[...] há que se refletir sobre a contradição que a própria razão de ser do Serviço Social porta, qual seja, o processo de institucionalização da profissão é uma decorrência necessária dos interesses e demandas das classes sociais que se antagonizam no processo produtivo capitalista. Aqui, a contradição se localiza no fato de que o Serviço Social, embora se constituindo em estratégia de enfrentamento do Estado no tratamento das questões sociais e instrumento de contenção das mobilizações populares dos segmentos explorados, tem a sua gênese vinculada à produção deste mesmo segmento populacional. A mesma lei geral que produz a acumulação capitalista, para o que, necessariamente, tem que produzir e manter uma classe da qual possa extrair um excedente econômico, cria os mecanismos de manutenção material e ideológica dessa classe, dentre eles o Serviço Social.6

Guerra ainda aponta que “o processo de institucionalização da profissão vem

na esteira do processo de racionalização do Estado burguês, com o intuito de

facilitar a atuação dos monopólios e, ainda, de manter suas bases de legitimação

ante as classes sociais da sociedade brasileira, para o que intervém na criação de

organizações prestadoras de serviços sociais e assistenciais”.7 Sendo assim, é

importante entender que há uma evidente contradição no cerne desta profissão, e

esta contradição é fruto das relações humanas históricas.

Por sua vez, a história é fruto das ações humanas e, posteriormente, ela

mesma será determinante para o processo de transformação daqueles que a

criaram. Por isso, afirmamos que o homem é produto da história. O Serviço Social é

produto das relações sócio-humanas ou, em outras palavras, é fruto de

necessidades contraditórias das classes sociais. Desta forma, podemos afirmar que

6 GUERRA, Yolanda. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2002, 3ed, p. 153.

7 Id., 2002, p. 152.

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o Serviço Social também é produto dos processos históricos, e, tal como os homens,

transforma-se com o movimento do mundo.

A partir desta análise, podemos chegar a uma questão chave, e talvez óbvia:

os homens mudam com a mudança histórica do mundo. Sendo assim, as

especialidades criadas por eles transformam-se também, dada a dinamicidade da

vida. O Serviço Social é uma especialidade do mundo do trabalho humano que vêm

se transformando com o passar do tempo. Sua trajetória se dá numa proporção

definida pelas próprias determinações sociais. No entanto, quem define os aspectos

de sua caminhada são seus próprios agentes. Por isso, ao analisarmos a história da

profissão no Brasil, vemos que, num determinado momento histórico, ela passou a

caminhar rumo a um sólido compromisso com a classe trabalhadora, rompendo com

seu projeto conservador. Inicia-se, assim, a vigência de um novo projeto profissional.

E isto se deve ao protagonismo de seus agentes.

O movimento de reconceituação do Serviço Social Brasileiro – promovido por

uma parcela vanguardista de nossa categoria, nos anos 80 – permitiu um salto

histórico à profissão quando possibilitou o entendimento de que a relação

contraditória de interesses de classes, tão bem explicitada por Guerra na citação

anterior, introduziu o Serviço Social na sociedade: a história desta profissão acabou

confundindo-se com a própria trajetória da humanidade.

Desde então, abertos às incertezas do futuro, nosso conjunto profissional –

baseado na revolucionária teoria social marxiana que lhes orientou a uma intensa

renovação de suas bases conceituais e políticas – imbuiu-se no desafio de fortalecer

a classe trabalhadora, possibilitando-lhe o entendimento de sua real situação na

sociedade capitalista; auxiliando-a na compreensão de que sua precarização

material, social e de consciência é fruto de diversas determinações histórico-sociais

provenientes de um conflito desigual de classes. Iamamoto afirma:

Nesta medida, as próprias tarefas (prestação, administração de serviços) serão conduzidas sob outra direção social, sob outra

maneira de pensar, no sentido de reverter o efeito ideológico

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dominante, reforçando e acumulando condições para um projeto de classe alternativo e oposto àquele para o qual o assistente social foi convocado. 8

Estabeleceu-se, então, a vinculação da profissão com um padrão democrático

que:

favorece a ultrapassagem das limitações reais que a ordem burguesa impõe ao desenvolvimento pleno da cidadania, dos direitos e garantias individuais e sociais e das tendências à autonomia e à autogestão social. [...]Cuidou-se de precisar a normatização do exercício profissional de modo a permitir que aqueles valores sejam retraduzidos no relacionamento entre assistentes sociais, instituições/organizações e população, preservando-se os direitos e deveres profissionais, a qualidade dos serviços e a responsabilidade diante do usuário.9

Então, orientados por um novo projeto profissional (de cunho democrático e

socialista), os assistentes sociais reiniciaram sua trajetória, mas agora em busca da

emancipação da classe trabalhadora e não de seu enquadramento político e

ideológico na sociedade do capital, tal como os antigos projetos conservadores

apregoaram.

De fato, construía-se um projeto profissional que, vinculado a um projeto social radicalmente democrático, redimensionava a inserção do Serviço Social na vida brasileira, compromissando-o com os interesses históricos da massa da população trabalhadora.10

Vemos, portanto, que a introdução de um projeto alternativo emancipatório no

seio do Serviço Social redefiniu completamente seu papel na sociedade, pois,

promoveu a

negação da base filosófica tradicional, nitidamente conservadora, que norteava a ‘ética da neutralidade’, e a afirmação de um novo perfil do/a técnico/a, não mais um/a agente subalterno/a e apenas executivo/a, mas um/a profissional competente teórica, técnica e politicamente.11

8 IAMAMOTO et al. Serviço Social crítico: problemas e perspectivas. São Paulo: Cortez, 3ed, p. 60.

9 Código de Ética do/a Assistente Social, p. 21.

10 Código de Ética do/a Assistente Social, p. 20.

11 Código de Ética do/a Assistente Social, p. 20.

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Por que um projeto profissional bem alinhado é significativamente importante

para a nossa profissão? Porque ele é, em outras palavras, a própria intencionalidade

da categoria, portanto, indica os caminhos a serem seguidos. No entanto, pouco

importa o caminho a seguir quando não sabemos onde queremos chegar. Por este

motivo, os projetos devem ser claros e objetivos, e devem, acima de tudo, indicar

caminhos seguros. Netto afirma que os projetos profissionais

[...] apresentam a autoimagem da profissão, elegem valores que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam seus objetivos e funções, formulam requisitos (técnicos, institucionais e práticos) para o seu exercício, prescrevem normas para o comportamento dos profissionais e estabelecem balizas de sua relação com os usuários dos seus serviços, com outras profissões e com as organizações e instituições, públicas e privadas.12

Considerando que os projetos profissionais estabelecem balizas de relação

entre profissional e usuário, cabe-nos indagar sobre a intencionalidade do atual

projeto profissional que parametriza e instrumentaliza a prática no exercício

profissional no Serviço Social. O diálogo com esta questão nos possibilitará

apreender com maior facilidade como o entendimento de sua estrutura pode incidir

diretamente na criação de estratégias para a suspensão da cotidianização da prática

interventiva.

Ao ser indagada sobre a maneira como pensa a relação entre profissional e

profissão na perspectiva do projeto ético-político e no sentido de se criar novas

estratégias para a constante renovação da práxis, a entrevistada assim afirmou:

Temos que subverter o Serviço Social! Aqui, nesta

universidade, todas as nossas professoras fazem isso. Tem

gente que subverte rumo a uma linha mais conservadora.

Reafirmo a importância da liberdade. Nosso projeto está

impregnado de liberdade. Temos que nos amparar nele!

Costumo dizer que ele é um aprisionamento, mas também uma

12

NETTO, José Paulo. A construção do projeto ético-político do Serviço Social frente à crise contemporânea. Brasília: CFESS/ABEPSS/CEAD/UnB, 1999.

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libertação. Procure por aí, qual profissão está baseada numa

perspectiva revolucionária e comprometida com outra forma de

organização social? Embora a sociedade ainda não tenha sido

transformada, nosso projeto traz consigo estes princípios como

categorias fundantes, de luta pela liberdade, de rompimento

com a exploração e com a diferença de classes. E eu acredito

que são estas coisas que produzem a desigualdade social, a

pobreza, a opressão, a discriminação e a violência. A própria

forma como a sociedade está organizada é o que produz tudo

isso. Enfim, estes são fatores que justificam a nossa profissão:

olhe a contradição!

De fato, há um projeto profissional norteador estabelecido nesta profissão,

que é fruto de uma construção coletiva histórica e que continua em constante

amadurecimento, desde a gênese do movimento de reconceituação. É, portanto, um

projeto dinâmico, não estático. Vale lembrar que sua hegemonia não se dá por conta

de uma fictícia singularidade de posições políticas no interior do conjunto profissional

– totalmente ao contrário. Talvez, atualmente, haja mais profissionais

comprometidos com projetos paralelos do que com o hegemônico. Porém, isto não é

de um todo negativo. A não adesão geral de uma categoria a um determinado

projeto expressa o que pode haver de mais importante numa profissão: o respeito

pelas diferenças, liberdades individuais de escolha e pluralidade de concepções

políticas.

Um conjunto profissional que respeita a heterogeneidade de seus agentes e

que valoriza suas diferenças permite, em seu âmago, que haja uma disputa

democrática e sadia de empreendimentos, tendo em vista que um pensamento

unânime geral é um fenômeno quase nunca visto no interior das profissões. Todo

projeto profissional possui uma finalidade, caso contrário não seria projeto, pois, não

se utilizaria de meios para a obtenção de um determinado fim.

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Mas, afinal de contas, qual é a intencionalidade do atual projeto hegemônico

do Serviço Social? Iamamoto afirma que

os princípios éticos norteadores do projeto profissional estão fundados no ideário da modernidade, que apresenta a questão central da liberdade do ser social no coração da reflexão ética; ser social que se constitui pelo trabalho e dispõe de capacidade teleológica consciente, afirmando-se como produto e sujeito da história.13

Nosso projeto profissional, vinculado a um projeto social de cunho socialista,

volta-se para o enfrentamento das desigualdades sociais. Trabalhamos na

perspectiva dos direitos humanos em defesa da classe trabalhadora, pois,

entendemos o proletariado como sujeito protagonista da transformação social.

Também, estamos ancorados num código de ética que nos “remete ao

enfrentamento das contradições postas à profissão, a partir de uma visão crítica, e

fundamentada teoricamente, das derivações ético-políticas do agir profissional”. 14

Perguntamos à entrevistada se ela acredita que o conhecimento adquirido

dentro das quatro paredes da universidade nos dá bagagem teórica para

efetivarmos o projeto ético-político-profissional em nossos espaços de trabalho. Ela

disse:

Precisamos entender a palavra “liberdade”. Foi dentro das

quatro paredes da universidade que pude aprender a sua

dimensão, através de disciplinas como Filosofia que estão

incluídas no próprio currículo do curso. Em meu trabalho,

proponho oficinas de dança, denominadas “dança para a

liberdade”. Este é o princípio que permeia a minha prática

como profissional do Serviço Social, ou seja, utilizo-me de

outros conhecimentos adquiridos para trazer esta ideia de

libertação, e isto eu aprendi aqui, na universidade. A

13

IAMAMOTO, Marilda Vilela. Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais (Serviço Social na cena contemporânea. Brasília: CFESS, ABEPSS, 2009, v. 1. 14

Código de Ética do/a Assistente Social, p. 22.

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participação em núcleos e em discussões mais filosóficas deu-

me maior compreensão da prática do que as disciplinas mais

específicas como oficina de formação profissional. Aqui aprendi

a considerar a dimensão humana, por isso consigo

compreender a dança como uma libertação para o corpo

político. Penso desta forma porque passei por estas

experiências e reconheci que estas são categorias fundantes

dos homens.

Compartilhamos, em parte, da mesma concepção que a entrevistada. De fato,

compreendemos que a relação entre formação acadêmica e projeto profissional

materializa-se nos espaços de trabalho. A academia fornece o conhecimento teórico

conectado com a prática, possibilitando-nos a transformação da visão de homem e

de mundo. O projeto profissional indica o caminho e delimita as ações.

Direcionamento consciente é um dos resultados desta junção. Porém, cada

profissional deve decidir o modo como objetivará esta união, pois, como disse a

entrevistada, e concordo plenamente, a dimensão da liberdade está presente em

nossa práxis.

Sobre a formação acadêmica, perguntamos à entrevistada se a graduação

em Serviço Social proporcionou alguma oficina específica que lhe capacitou e

preparou para trabalhar com arte (ou com qualquer outra atividade) em sua atuação.

Ela disse o seguinte:

Minha formação contou com atividades complementares que

me proporcionaram a oportunidade entrar em contato com o

teatro, por exemplo. Meu entendimento da formação arte-

cultura pelo Serviço Social está relacionado com estas

atividades complementares. Lembro-me de uma visita ao

centro da cidade realizada com a turma no primeiro ano do

curso. Parece-me que estas são dimensões da formação,

embora estejam colocadas dentro do campo da

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complementaridade. O assistente social pode incluir em sua

prática interventiva outras atividades, que, a princípio, não

fazem parte de sua formação específica. Tomo como exemplo

a professora Rosalina Santa Cruz, que trabalhou num projeto

chamado “Refazendo Vínculos”. Naquele espaço ela

trabalhava muito com arte. Havia oficinas de dança, trabalhos

com bonecas de gesso que eram levadas para serem vendidas

na feira, entre outras atividades. Quando iniciei meu estágio

trabalhei numa oficina com atletas e lá estava inclusa uma

dimensão da arte no trabalho. Depois trabalhei com medidas

socioeducativas de prestação de serviços à comunidade; este

era um espaço onde privilegiávamos a pintura e a dança.

Então, estas são dimensões que não estão distantes da

profissão, totalmente ao contrário, caminham lado a lado com

ela. Estes também são nossos papéis como assistentes

sociais, e por que não? Creio que há um discurso controverso

dentro da profissão sobre a questão das práticas terapêuticas.

Hoje, há uma corrente teórica que afirma que toda prática na

área da saúde é terapêutica. O conceito de terapêutico é muito

abrangente. Estamos envolvidos em trabalhos

multidisciplinares na área da saúde, portanto, também

realizamos trabalho terapêutico. Há uma dinâmica de cuidado a

partir do momento em que um indivíduo procura um serviço

que tenha a ver com a questão da terapêutica. Não há como

negar esta dinâmica; depende muito da consciência daquilo

que você está fazendo.

Há um grande debate nos espaços de discussão da profissão sobre o que é e

o que não é atribuição do assistente social. Entendemos que a liberdade é

fundamental, no entanto, há um limite dentro de nossa atuação. Oficinas de dança,

pintura, artesanato e terapia são instrumentos importantes para a condução de um

grupo e podem proporcionar momentos de suspensão aos envolvidos. Mas, somos

Page 22: As Implicações da Cotidianidade na Prática do Assistente Social: Desafios da Intervenção Qualificada no Serviço Social

22

levados a acreditar que o/a assistente social não é contratado/a para dançar ou

cuidar da saúde mental. Vemos, então, o quanto o trabalho multidisciplinar é

importante em nossa prática. O/A assistente social não pode limitar o sujeito às suas

práticas, deve, pois, proporcionar a efetivação de outras atividades aos usuários,

mas, é claro, envolvendo outros agentes que darão conta de trabalhar mais

qualificadamente com outras dimensões profissionais e humanas.

Para rebater esta afirmação, alguns poderiam perguntar: e se o/a assistente

social possui uma segunda formação acadêmica, por exemplo, em artes cênicas?

Bem, esta é uma questão complicada. Não possuímos respostas fechadas. No

entanto, somos levados a pensar que quem exerce dupla função no espaço

ocupacional deve receber duplo salário e, para tal, faz-se necessária uma dupla

contratação. Pensamos desta maneira, no entanto, estamos abertos para a

discussão.

Page 23: As Implicações da Cotidianidade na Prática do Assistente Social: Desafios da Intervenção Qualificada no Serviço Social

23

Capítulo II: Prática alienada, sujeito reificado

Por me ostentar assim, tão orgulhoso De ser não eu, mas artigo industrial,

Peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem.

Meu nome novo é Coisa. Eu sou a Coisa, coisamente.

Carlos Drumond de Andrade

No que concerne às práticas interventivas da profissão, preocupa-me,

impreterivelmente neste trabalho, a relação entre assistente social e usuário, e de

que forma o “algoz cotidiano” pode interferi-la negativamente. Entendemos por

cotidiano “[...] o espaço modelado (pelo Estado e pela produção capitalista) para

erigir o homem em robô: um robô capaz de consumismo dócil e voraz, de eficiência

produtiva e que abdicou sua condição de sujeito, cidadão”.15

Nossa entrevistada expressou a seguinte concepção acerca de sua definição

de cotidiano:

Creio que tenha relação com a reprodução de práticas

repetitivas dentro da dimensão cronológica do tempo. O

cotidiano, na verdade, é o transcorrer das reproduções no

tempo em que elas acontecem. Você deve projetar a ideia de

cotidiano para o tempo, e é neste tempo que as pessoas

vivem. Vulgarmente falando, eu diria que o cotidiano é o “dia-a-

dia”. E o que é este dia-a-dia? São as vinte e quatro horas

transcorridas que sempre se repetem.

Como assistentes sociais, devemos encarar o cotidiano como:

[...] o ‘chão’ onde se dá a produção e a reprodução das relações sociais. E, pois, ele aparece não como ‘diáfano’ em suas reais dimensões, mas encoberto, mistificado por formas sociais através das quais aquelas relações se expressam. Assim, a apreensão do concreto do cotidiano supõe o seu desvelamento. E isto exige que o

15

CARVALHO, Maria de Brant. Cotidiano: Conhecimento e Crítica. São Paulo: Cortez, 1996, 4ed.

Page 24: As Implicações da Cotidianidade na Prática do Assistente Social: Desafios da Intervenção Qualificada no Serviço Social

24

profissional supere os traços empiristas e pragmáticos que têm marcado historicamente a sua ação.16

Pensando na relação entre homem e cotidiano, Heller afirma:

A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem

participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua

individualidade, de sua personalidade. Nela, colocam-se “em

funcionamento” todos os seus sentidos, todas as suas capacidades

intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos,

paixões, ideias, ideologias. O fato de que todas as suas capacidades

se coloquem em funcionamento determina também, naturalmente,

que nenhuma delas possa realizar-se, nem de longe, em toda sua

intensidade. O homem da cotidianidade é atuante e fruidor, ativo e

receptivo, mas não tem nem tempo nem possibilidade de se absorver

inteiramente em nenhum desses aspectos; por isso, não pode aguçá-

los em toda sua intensidade.17

Nosso cotidiano está repleto de pontualidades, as quais precisamos

identificar. Desta forma estaremos mais preparados para compreender qual a

dimensão da cotidianidade em nossa prática profissional. Uma pontualidade comum

pode ser a falta de tempo para atender uma grande demanda de usuários. Porém,

vale ressaltar que cada espaço sócio-ocupacional possui suas especificidades, por

isso, entendemos que a cotidianidade se expressa de modos diferentes, ou seja,

varia de acordo com as determinações de cada local de trabalho.

Solicitamos à entrevistada que comentasse sobre alguma pontualidade

presente em seu trabalho. Ela disse:

Faço atendimentos individuais todos os dias. Não consigo

enxergá-los como iguais entre si porque cada pessoa é

singular e possui suas próprias necessidades. O atendimento é

determinado pela demanda que o usuário traz. Por exemplo,

quase todos os dias faço acompanhamentos do Programa

16

IAMAMOTO, Marilda Vilela. Serviço social crítico: problemas e perspectivas. São Paulo: Cortez, 1991, 3ed. 17

HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, 7ed., p. 17.

Page 25: As Implicações da Cotidianidade na Prática do Assistente Social: Desafios da Intervenção Qualificada no Serviço Social

25

Bolsa-Família. Porém, faço-o porque sempre há beneficiários

para atender. Estes acompanhamentos são uma exigência da

minha gerência. Em nossa região, temos aproximadamente

duzentas e cinquenta pessoas cadastradas neste programa.

Mas, também atendemos demandas espontâneas e, nestes

atendimentos, identificamos pessoas que necessitam de

acompanhamento para o programa. Bem, já que você tocou

nesta questão das pontualidades, eu diria que, na prática,

tenho uma dimensão de rompimento com a rotina. Por

exemplo, não consigo imaginar que um atendimento possa ser

igual ao outro.

Há um grande perigo em se realizar as mesmas atividades todos os dias

porque, se desatentos, acabamos caindo numa rotina massacrante. Neste sentido,

perguntamos à entrevistada de que forma ela percebe isso em sua atuação. A

resposta foi a seguinte:

Não percebo isto dessa forma. Minha colega de trabalho, que

também é assistente social, poderia falar com mais propriedade

sobre esta reprodução. Creio que esta questão tem relação

com a criação de estratégias, em alguns momentos precisamos

ir pelas marginalidades. No entanto, frequentemente preciso

prestar contas dos acompanhamentos que realizo, como o do

Programa Bolsa-Família. Esta ação é feita com a ajuda de um

consolidado, que é uma planilha repleta de números. Isto não

significa que a utilização deste instrumento seja uma forma de

reprodução, ou seja, aqueles números não podem ser apenas

informações que constam num papel. Por exemplo, a

assistente social que trabalha comigo fica concentrada na

busca ativa das gestantes, ou seja, seu trabalho se resume no

monitoramento das gestantes que não comparecem aos

atendimentos. Não sei como ela encara esta situação. Eu não

Page 26: As Implicações da Cotidianidade na Prática do Assistente Social: Desafios da Intervenção Qualificada no Serviço Social

26

me permito cair nessa reprodução. Há um aprendizado

implicado em cada atendimento. Procuro sempre utilizar

minhas experiências, por exemplo: às vezes trabalho com o

corpo, às vezes com as palavras. Em alguns momentos brigo,

e assim vai. Creio que seja por este motivo que estou há quatro

anos neste emprego, ou seja, apesar de todos os desafios

institucionais gozo de liberdade para agir. Na verdade há uma

rotina. Entro no trabalho ao meio dia e saio às cinco horas da

tarde, às vezes mais tarde. Tenho que bater ponto, tenho que

estar lá todos os dias. Existe uma rotina, eu sempre preciso

prestar contas do meu trabalho.

O/A “profissional da cotidianidade” não consegue aguçar nem realizar todas

as suas capacidades porque o próprio cotidiano não lhe dá tempo nem

possibilidades para tal. Em vista disso, há uma grande necessidade de constantes

suspensões, por isso, entendemos que o desvelamento do cotidiano encoberto é um

desafio deveras enredado. No entanto,

[...] o assistente social, pelo seu contato direto com as múltiplas expressões cotidianas da vida dos setores populares, dispõe de condições potencialmente privilegiadas para captá-las, recorrendo a uma bagagem teórica instrumental que o qualifica para o exercício desta tarefa.18

Vemos então que possuímos, em nossa formação teórica e prática, bagagem

necessária para enfrentar as implicações das expressões da vida cotidiana. Como

agente político articulador, o/a assistente social “presta serviços e/ou administra

serviços sociais que são a base material a partir da qual desenvolve uma ação

ideológica, política e educativa.19” E, no que tange as suas relações de trabalho,

entendemos que

18

IAMAMOTO, Marilda Vilela. Serviço Social crítico: problemas e perspectivas. São Paulo: Cortez, 1991, 3ed. 19

IAMAMOTO, Marilda Vilela. Serviço Social crítico: problemas e perspectivas. São Paulo: Cortez, 1991, 3ed.

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27

[...] a prestação de serviços por parte do assistente social é mediada por uma relação institucional, que legitima o Serviço Social e o profissionaliza, incorporando-o ao mercado de trabalho através de um contrato de compra e venda de sua força de trabalho assalariada.20

Portanto, cabe ao/a assistente social capacitar-se para atuar num contexto de

contradições econômico-sociais, tornado-se capaz de efetivar medidas eficientes

para seu enfrentamento, tendo como horizonte norteador os valores e princípios de

seu código de ética. Desta forma, pressupomos que estará preparado para analisar

criticamente e responder qualificadamente às demandas sociais que lhe serão

apresentadas no dia-a-dia em seu espaço sócio-ocupacional, contemplando, de fato,

seu “compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o

aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional”.21

As considerações acima nos dão respaldo teórico, ainda que de modo

sucinto, para uma reflexão que se faz necessária na realidade da atuação do/a

assistente social. Refiro-me sobre o desafio de se romper com a “cotidianização” de

sua prática interventiva, ou seja, cabe ao profissional, comprometido com o

entendimento e apreensão da realidade concreta do sujeito social, tornar suas

demandas objeto de sua profunda curiosidade política, palco de sua ativa interação;

de modo que a relação entre profissional e usuário seja uma sólida ocasião de

reconhecimento de direitos políticos, sociais e humanos, e não uma mera

reprodução das relações sociais. O indivíduo atendido é sujeito síntese de múltiplas

determinações sociais, portanto, deve ser tratado como ser humano e não como

objeto. Carvalho nos fornece algumas pistas que contribuem para a compreensão do

processo de ruptura com a cotidianização na prática. “A intensidade de uma grande

paixão, um grande amor, o trabalho livre e prazeroso, uma intensa motivação do

homem pelo humano genérico resultam na suspensão do cotidiano”.22

“Trabalho livre e prazeroso”, não será ilusão? Numa sociedade capitalista a

luta pelo trabalho prazeroso pressupõe uma ruptura com o trabalho alienante, 20

IAMAMOTO et AL. Serviço Social crítico: problemas e perspectivas. São Paulo: Cortez, 1991, 3ed, p. 55. 21

Código de Ética do Assistente Social, p.24. 22

CARVALHO, Maria de Brant. Cotidiano: Conhecimento e Crítica. São Paulo: Cortez, 1996, 4ed.

Page 28: As Implicações da Cotidianidade na Prática do Assistente Social: Desafios da Intervenção Qualificada no Serviço Social

28

aquele em que não nos reconhecemos. A “ditadura do capital” impõe ao trabalhador

uma rotina de trabalho pautada numa lógica agressiva de produtividade: o lucro é a

meta final – ou primeira, como quiser – e, em busca deste objetivo, “quem o realiza”

não é tão importante quanto “o que se realiza” muito menos quanto a forma “como

se realiza”. Nesta lógica, o grande viabilizador do lucro, que é o trabalhador, torna-se

objeto descartável e o valor de sua força de trabalho, é menor que a própria

mercadoria que ele mesmo produz. Guerra afirma:

Em outras palavras, as dificuldades postas à intervenção profissional, embora adquirindo feições específicas, obedece à lógica de constituição da sociedade capitalista, na qual a inversão da aparência fenomênica em essência, a substituição do conteúdo pela forma, a transformação do essencial em acessório, são condições necessárias à sobrevivência dessa ordem social.23

Estamos incluídos nesta lógica, partindo do pressuposto de que o Serviço

Social também é trabalho. Somos contratados para realizar um trabalho, ou melhor,

para prestar um serviço social de caráter público ou privado. O empregador, que nos

assalaria, espera que nos submetamos às exigências de sua instituição, no entanto,

e na maioria das vezes, tais exigências transversais aos nossos princípios e

diretrizes profissionais. Os usuários dos serviços prestados pela instituição esperam

que atendamos suas demandas por completo, entretanto, os recursos são escassos.

A situação é complexa, pois, precisamos do trabalho para viver, portanto, não

podemos descartar as imposições da instituição, muito menos desconsiderar as

necessidades dos usuários porque constituem nosso próprio objeto de trabalho.

Sendo assim, é compreensível o fato de que muitos de nós acabamos por perder a

sensibilidade profissional: nosso compromisso ético-político é secularizado e a

compreensão da intencionalidade de nosso projeto profissional é esquecida. Nesta

lógica de produtividade quem realiza o trabalho social, ou seja, nós, não somos

respeitados porque o que importa mesmo é que o que se realiza, ou seja, a meta a

ser atingida, portanto, o conteúdo do trabalho é substituído por sua forma. “Como se

realiza” o trabalho é um fator extremamente importante, porém, devemos alinhar

23

GUERRA, Yolanda. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2002, 3ed., p. 158.

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29

nossa prática ao modus operandi da instituição empregadora? Esta é uma

indagação importante. Iamamoto relembra-nos de algumas características fundantes

de nossa prática profissional:

A prática do Serviço Social tem, pois as seguintes

características:

está socialmente determinada em seus traços fundamentais,

é também produto de seus agentes profissionais,

é histórica e mutável,

exige permanentes redefinições frente às mudanças da

questão social – a situação de vida da classe trabalhadora,

sua capacidade de organização e luta –, assim como das

diferentes maneiras de pensar e agir junto dela, definidas

pelas relações de dominação.24

Em meio a estes limites impostos por um mercado de trabalho dinâmico e

exigente e pelas peculiares complexidades das expressões da questão social é que

se torna possível fazer de nossa prática diária um momento de suspensão da rotina.

Porém, não há uma receita pronta para tal. Depende das variações e das

determinações do espaço sócio-ocupacional, dos sujeitos envolvidos e do próprio

desenvolvimento interno da profissão:

As respostas do agente profissional às demandas sociais, embora condicionadas fundamentalmente pelas variáveis sociais objetivas – determinado momento conjuntural, determinada instituição –, dependem também do grau de desenvolvimento interno da profissão. Tais respostas são também um produto criado pelos assistentes sociais, estando condicionadas per estes agentes.25

As condições objetivas impostas pelo empregador, pelo movimento da

sociedade capitalista em que vivemos e por outras determinações objetivas,

materializadas no cotidiano profissional de todos nós, muito determinam nossas

ações, mas o compromisso político com a causa – que não pode ser medido – é

também fator determinante. Ao fazer tal afirmação, não pretendemos individualizar o

problema da falta de comprometimento profissional, pois, como já mencionado, há

24

IAMAMOTO et al. Serviço Social crítico: problemas e perspectivas. São Paulo: Cortez, 1991, 3ed., p. 60. 25

Id, 1991, p. 60-61.

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30

outras determinações, no entanto, a forma como conduzimos nossas ações depende

também do quanto a apreendemos e nos envolvemos politicamente com ela.

Em referência às ações profissionais, vale retificar que “tais respostas são

também um produto criado pelos assistentes sociais, estando condicionadas por

estes agentes”.26 Uma atuação alinhada com o projeto ético-político da profissão

requer o conhecimento e o compromisso com os padrões gerais de atuação que

estão contidos nas leis, códigos e demais ferramentas que fundamentam nossa

profissão, que dão base e sustentação para as ações específicas que cada

profissional aplicará em seu espaço de trabalho. Sendo assim, os padrões

específicos de atuação são definidos pelo próprio profissional, pois, dependem das

determinações específicas de sua realidade ocupacional.

26

IAMAMOTO et AL. Serviço Social crítico: problemas e perspectivas. São Paulo: Cortez, 1991, 3ed, p. 61.

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31

Capítulo III: A intervenção qualificada

Cobre-nos o cotidiano com seu manto pesado Sob o qual nos debatemos

Gesto insano, ato desarvorado. Espelho implacável das nossas desventuras

Das mazelas que temos E das que desconhecemos.

Úrsula Avner

Até o presente momento propomo-nos a fazer uma macro-análise da

finalidade social da profissão na sociedade em função do entendimento de nosso

objeto de estudo que é a prática cotidiana. Para tanto, contextualizamos a inserção

do Serviço Social na atual conjuntura e refletimos sobre os desafios que as próprias

circunstâncias sociais impõem à realidade profissional, com destaque para a relação

empregador-profissional-usuário. Agora, faremos uma análise mais específica sobre

a intervenção qualificada no dia-a-dia do profissional.

A intervenção qualificada requer, por parte do profissional, competências

teórico-metodológicas, técnico-operativas e ético-políticas. Seria imaturo acreditar

que tais competências podem ser apreendidas somente na academia, entre quatro

paredes; tão somente na prática desprovida de conhecimento teórico. A qualificação

profissional é fruto de uma junção coordenada entre todas as competências exigidas

pela profissão, sendo assim, consideramos que o/a assistente social necessita de

esforço diligente e consciente para atingir seu pleno potencial, de modo que cumpra

sua verdadeira função na sociedade, tendo em vista a sua relativa autonomia no

interior das instituições.

O/A assistente social comprometido/a não pode analisar uma situação-

problema com soluções pré-programadas na mente, pois, estará comprometendo a

qualidade de sua atuação que, de fato, é permeada por diversas possibilidades

reais, mas invisíveis a olhos nus. Faz-se necessário, portanto, um exercício diário de

identificação com os sujeitos atendidos. Morin esclarece brilhantemente esta

questão:

Há um conhecimento que é compreensível e está fundado sobre a comunicação e a empatia – simpatia, mesmo – intersubjetivas.

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32

Assim, compreendo as lágrimas, o sorriso, o riso, o medo, a cólera, ao ver o ego alter como alter ego, por minha capacidade de

experimentar os mesmos sentimentos que ele. A partir daí, compreender comporta um processo de identificação e de projeção de sujeito a sujeito. Se vejo uma criança em prantos, vou compreendê-la não pela medição do grau de salinidade de suas lágrimas, mas por identificá-la comigo e identificar-me com ela. A compressão, sempre intersubjetiva, necessita de abertura e generosidade.27

O exemplo das lágrimas da criança é magnífico. Alerta-nos para que não

caiamos na armadilha tecnicista de compreensão do outro. A verdadeira

compreensão requer uma troca entre as partes envolvidas, no entanto, esta troca

requer a identificação. E, como posso ver o “ego alter” como “alter ego”, ou seja,

como posso ver-me no outro e o outro ver-se em mim? Nós, assistentes sociais,

precisamos de maior abertura paradigmática. Isto significa que não é inteligente nos

prendermos as certezas que nos impedirão de perceber que, na maioria das vezes,

nossa visão é impiedosamente incerta.

Ao nos abrirmos para as incertezas da prática entenderemos que as

possibilidades para uma intervenção qualificada não serão enxergadas ao mero

acaso, o profissional deve exercitar sua capacidade cognitiva de apreensão da

realidade a fim de transpor as paredes divisórias do real aparente. O real aparente é

uma armadilha certeira que está pronta para agarrar o agente político descuidado,

desprovido da visão de homem e de mundo (totalizadora), aquela que não cede às

inflexões alienantes da opressora vida cotidiana. Conforme Carvalho:

É característica igualmente da vida cotidiana a sua imediaticidade e o pensamento manipulador. No plano da cotidianidade o útil é o verdadeiro, porque este é o critério de eficácia. O critério de validez no cotidiano é o da funcionalidade.28

Portanto, uma intervenção qualificada requer desprendimento de ações

imediatistas vinculadas a um pensamento restrito e fechado. Nem sempre as coisas

e as situações oferecerão uma utilidade prática ou uma resposta rápida. O

imediatismo é o grande inimigo das atitudes ponderadas advindas da reflexão. No

27

MORIN, Edgar. A cabeça bem feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011, 19ed., p. 93. 28

CARVALHO, Maria de Brant. Cotidiano: Conhecimento e Crítica. Cortez, 1996, 4ed.

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33

entanto, diariamente é requerida ao/a técnico/a, como trabalhador/a assalariado/a, a

tomada de decisões rápidas que atendam as necessidades dos usuários na mesma

medida em que respondam as exigências do empregador.

Dentre tantos desafios, é preciso ponderar urgentemente sobre como

podemos tornar-nos profissionais comprometidos com a qualidade de nossa

intervenção, tendo em vista que a realidade objetiva do usuário apresenta-se de tal

forma que não é percebida como um complexo, um todo dinâmico que perpassa por

sua historicidade e vai muito além do sentido natural das coisas. Barroco afirma:

O indivíduo é um ser que, na sua particularidade, expressa as determinações da sua singularidade e genericidade, mas a relação entre essas determinações nem sempre aparece ao indivíduo como tal.29

É importante salientar que essas determinações também não se mostram tão

facilmente para os sujeitos que precisam compreender estes indivíduos, ou seja, nós

assistentes sociais. Este é um dos grandes desafios de nossa atuação: entender o

sujeito, que (à rigor) não se apreende, para intervirmos em sua realidade objetiva, de

modo a fortalecer seu protagonismo a fim de que se torne o agente transformador de

sua própria objetividade humana, e conceda a si mesmo o direito de decidir os

rumos de sua própria trajetória. Não será num simples atendimento de alguns

minutos que alcançaremos este objetivo.

Está enganado o profissional que acredita poder transformar um indivíduo;

apenas podemos proporcionar-lhes momentos de sensibilização, ou de suspensão

da realidade. Podemos, através de constantes reflexões e mediações – e temos

propriedade para tal –, possibilitar-lhe a revogação da visão subalterna de si mesmo.

E como isto pode ser feito? Não há uma resposta exata. Depende muito das

condições proporcionadas pela instituição empregadora, depende da abertura do

próprio sujeito e, também, da competência do assistente social ao manusear alguns

instrumentos mediadores para a sua intervenção. Por exemplo: um assistente social

atento, ao conduzir uma oficina de reflexão sobre o mundo trabalho para jovens de

29

BARROCO, Maria Lucia Silva. Ontologia Social e Reflexão Ética. São Paulo: 1996, p. 74.

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34

uma comunidade periférica marcada pela violência, poderia levá-los a uma peça

teatral onde as questões do trabalho sejam tratadas de forma lúdica e humorística,

proporcionando interação entre plateia e atores. Esta atividade poderia ser

indescritivelmente mais eficaz do que o despender de horas e horas dentro de uma

sala, na abissal tentativa de explicar a complexidade da função do trabalho na

sociedade capitalista para um grupo de adolescentes dispersos que, se absorverem

um terço de suas explicações fizeram muito. Este profissional utilizou a arte como

mediação para a sua prática profissional. Ele certamente proporcionou um momento

de suspensão da cotidianidade para estes jovens e para si mesmo, pois, permitiu-se

sair de seu “massacrante espaço ocupacional de todos os dias”.

As necessidades objetivas dos sujeitos devem ser atendidas: a cesta básica

deve ser entregue, a carteira de trabalho precisa ser feita etc. No entanto, como

agentes políticos articuladores de conhecimento – e não somente de informações –

podemos propiciar momentos de reflexão aos sujeitos, de modo que consigam ver a

si mesmos e sua própria condição com um olhar mais crítico e analítico.

Solicitamos a nossa entrevistada que apontasse uma maneira qualificada de

conduzir a dimensão socioeducativa de nossa prática profissional, no âmbito da

cotidianidade, de modo libertador e emancipatório. Ela disse:

Há uma dimensão processual nisso. Creio que o verdadeiro

trabalho socioeducativo deve possuir continuidade. Tenho um

vínculo muito forte com os usuários com que trabalho, e isso

faz uma grande diferença, o vínculo é fundamental. Não se

trata de um vínculo institucional, é algo que vem da confiança.

E isto requer disponibilidade por parte do profissional. Por isso,

o trabalho socioeducativo deve ser processual. Você acaba

percebendo as mudanças dos sujeitos dentro dos processos. O

vínculo tem uma inauguração, que é o “encontro”. Este

encontro não pode acabar num atendimento. Precisamos

estabelecer elos de comunicação, de tal forma que, ao assistir

um vídeo interessante na internet, envio para o usuário que

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35

está em constante contato comigo, pois, a mensagem pode lhe

ser útil. Eu sofro às vezes! São muitas pessoas para pensar e

se comunicar. Neste sentido, sentimos a transformação

acontecendo nos sujeitos ao nosso redor, e em nós mesmos.

E, de fato, as pessoas não são mais as mesmas, corporal e

emocionalmente. Acabamos presenciando diversas mudanças:

de divórcios à abertura para novas relações, mudança de

relacionamento entre mãe e filha, reestruturação familiar,

mudança de posicionamento político. Por exemplo, temos um

grupo de dança no qual começamos uma discussão sobre

preferências políticas. Havia muitas posições extremamente

reacionárias por parte dos integrantes. No entanto, no

desenrolar das atividades percebemos uma grande mudança.

Nenhuma ideia foi imposta ao grupo, a transformação veio a

partir de processos reflexivos. O interessante é que estes

processos ocorrem conosco também, mas, é claro, depende de

nossa disposição para a mudança. Sou levada a crer que um

grande desafio é a resistência do outro, e até aonde

conseguimos insistir, reconhecendo seus limites.

Nem todos os profissionais podem proporcionar atividades lúdicas, ou outras

atividades, a seus usuários, ou melhor, são poucos os que gozam deste privilégio.

Por isso, e como dito anteriormente, a efetivação de uma prática significativa e

sensibilizadora é ocasionada por uma confluência de determinações objetivas, que

vão das práticas institucionais à abertura pessoal dos indivíduos atendidos. Netto,

citando Lukács, explica que há algumas formas de objetivação capazes de superar a

cotidianidade, uma delas é a arte. Ele afirma:

As suspensões que engendram estas objetivações, contudo, não

cortam com a cotidianidade (insuprimível e ineliminável) – são,

justamente, “suspensões da cotidianidade”. Elas – que permitem aos

indivíduos, via homogeneização, assumirem-se como seres humano-

genéricos – não podem ser contínuas: estabelecem um circuito de

retorno à cotidianidade; ao efetuar este retorno, o indivíduo enquanto

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36

tal comporta-se cotidianamente com mais eficácia e, ao mesmo

tempo, percebe a cotidianidade diferencialmente: pode percebê-la

como espaço compulsório de humanização (de enriquecimento e

ampliação do ser social). Está contida aqui, nitidamente, uma

dialética de tensões: o retorno à cotidianidade após uma suspensão

(seja criativa, seja fruidora) supõe a alternativa de um indivíduo mais

refinado, educado (justamente porque se alçou à consciência

humano-genérica) [...].30

No exemplo acima citamos a arte – objetivação humana – como mediação

para a nossa prática, porém, há outras. O mais importante é estarmos cientes de

que, como agentes desta profissão, e colocando em pauta a dimensão

socioeducativa de nossa profissão, podemos articular estas “suspensões da

cotidianidade” a que Netto se refere. Barroco afirma:

No âmbito da vida cotidiana o indivíduo se socializa, aprende a

responder às necessidades práticas imediatas, assimila hábitos,

costumes e normas de comportamento. Ao incorporar tais

mediações, vincula-se à sociedade, reproduz o desenvolvimento

humano-genérico, mas as formas dessa incorporação caracterizam-

se por uma dinâmica voltada à singularidade, não à genericidade.31

Este é um dos caminhos para o qual devemos voltar todos os nossos

esforços profissionais: a genericidade humana. No entanto, é muito importante

estarmos cientes da própria genericidade de nossa prática. Quando nos ocupamos

em atividades demasiadamente rotineiras perdemos a compreensão da essência de

nosso trabalho, que é homogeneizador. Homogeneizador no sentido de que a

intervenção qualificada é fruto de objetivações que se convergem para formar um

corpo de atuação sincronizado. Este corpo de atuação é formado por diversos

membros que são igualmente importantes, mas cumprem funções diferentes e

extremamente profícuas para seu bom funcionamento. Citaremos duas.

Uma atuação sincronizada requer, por parte de seu agente, a reflexão ética

ou filosófica. Brites afirma:

30

NETTO, José Paulo. Cotidiano: conhecimento e crítica. São Paulo: Cortez, 1996, 4ed., p. 70. 31

BARROCO, Maria Lucia Silva. Ontologia Social e Reflexão Ética. São Paulo: 1996, p. 74.

Page 37: As Implicações da Cotidianidade na Prática do Assistente Social: Desafios da Intervenção Qualificada no Serviço Social

37

A reflexão ética é um dos instrumentos que permitem a compreensão

dos limites e possibilidades de atuação profissional frente aos

desafios colocados pela modernidade, na medida em que indaga

sobre a realização objetiva dos valores que assumem.32

Um pouco de reflexão ética todos os dias é determinante, pois, alarga a visão

interventiva do profissional e fortalece-lhe o compromisso com a prática

emancipadora. Isto significa que, ao iniciar mais um dia de trabalho, o/a assistente

social voltará seus esforços intelectuais para o desvelamento da condição humana.

Por que o sujeito é o que é? Por que ele age como age? Por que ele pensa

como pensa? Estas são algumas boas perguntas para se realizar a cada

atendimento, visita domiciliar ou em qualquer atividade promovida pelo/a

profissional. Porém, limitá-las a realidade do outro é insuficiente, precisamos aplicá-

las a nós também. Esta atitude filosófica – de desejar compreender não apenas as

coisas como são, mas por que são o que são – pode ser transformadora. Um

profissional comprometido com sua prática entende que cada dia deve ser

encerrado com uma boa autoavaliação, dentro da perspectiva da reflexão ética.

Certamente seu próximo dia de trabalho será mais interessante, porque verá os

resultados de suas ações com olhos mais refinados.

Uma atuação sincronizada pressupõe, também, por parte de seu agente, a

visão crítica. Ainda citando Brites:

A complexidade da dinâmica do real requer do profissional uma visão

crítica que lhe possibilite uma compreensão da totalidade, que

apreenda os limites e possibilidades para uma ação transformadora.

Quando mencionamos a visão crítica e a ação transformadora não

pretendemos assumir a mudança social somente a partir da

profissão, mas enfatizar a competência do assistente social, cuja

prática possui uma dimensão ético-política. Ser competente requer

um domínio teórico-metodológico, visão crítica e compromisso

social.33

32

BRITES et AL. Serviço Social e Ética: Convite a uma Nova Práxis. São Paulo: Cortez, 2005, 6ed., p. 123. 33

Id, 2005, p. 125.

Page 38: As Implicações da Cotidianidade na Prática do Assistente Social: Desafios da Intervenção Qualificada no Serviço Social

38

Por que a visão crítica é uma competência vital para a prática qualificada?

Porque possibilitará ao profissional uma constante indignação que lhe encaminhará

para o rompimento com o status quo institucional. Portanto, reflexão ética e visão

crítica são elementos fundantes para uma ação emancipatória, promovendo assim,

uma sincronia de competências na atuação, o que colocará o/a assistente social em

consonância com a intencionalidade de seu projeto. Brites continua:

Assim, sabemos que não basta a fundamentação teórico-

metodológica para imediatizarmos uma ação transformadora, a

reflexão ética fará justamente a mediação entre esse saber teórico-

metodológico e os limites e possibilidades, decorrentes das relações

valorativas do homem em sociedade, para a prática profissional.

Enquanto inserido no processo de reprodução das relações sociais, o

assistente social competente deve ter claros a conotação política de

sua prática profissional e as possibilidades e limites para uma ação

comprometida.34

A atuação do/a assistente social possui, em sua essência, três dimensões: a

ética, a política e a profissional. A qualidade de sua intervenção é resultante de uma

prática humano-genérica, a qual compreende uma formação acadêmica de

qualidade, o direcionamento de um projeto profissional consolidado e, sem dúvidas,

o compromisso do agente ativo com a causa que se dispôs a defender. O Serviço

Social é uma especialidade do mundo do trabalho humano, mas se engana quem

pensa que é só isso. O Serviço Social é um caminho tortuoso, trilhado por quem

está disposto a andar sobre pedras e espinhos, é uma profissão que requer um tipo

de engajamento fundamentado, direcionado e politizado; requer uma prática

consciente, ousada e, sempre subversiva.

34

BRITES et AL. Serviço Social e Ética: Convite a uma Nova Práxis. São Paulo: Cortez, 2005, 6ed., p. 125.

Page 39: As Implicações da Cotidianidade na Prática do Assistente Social: Desafios da Intervenção Qualificada no Serviço Social

39

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A prática do/a assistente social está permeada por intensos e extensos

desafios, e a sua superação está intrinsecamente condicionada a um preparo

teórico-metodológico, ético-político e técnico-operativo por parte do profissional.

Estas são dimensões que, se bem trabalhadas durante a trajetória individual de cada

agente e valorizadas na coletividade do conjunto profissional, certamente farão do

Serviço Social uma profissão mais efetiva dentro sociedade.

A efetivação de nosso projeto ético-político-profissional se dá na atuação

cotidiana. O cotidiano, o espaço da vida de todos nós, possui uma dimensão

material – que compreende os espaços no qual nossas ações se dão – e uma

dimensão imaterial – que compreende o tempo no qual nossas ações acontecem –.

Não há como fugir da vida cotidiana, ela é inerente a história e a vida humana.

Na sociedade capitalista o cotidiano é massacrante, reificador e

desumanizador. Seu ritmo é imposto pela organização econômica da sociedade e

não pela escolha individual dos sujeitos humanos que o vive. O homem é objeto e

seu valor é determinado pela sua capacidade de produção através da venda de sua

força de trabalho.

Neste sentido, e pensando no modelo social em que vivemos, o cotidiano e

suas expressões nos são apresentados como um chão de trabalho desnivelado. A

rotina é uma das expressões da cotidianidade, e o/a assistente social desatento/a e

despreparado/a pode sucumbir a suas inflexões alienantes. Os desafios se fazem

presentes em nossa atuação. Somos exigidos de todos os lados: pelo empregador,

pelas demandas da classe que nos comprometemos a defender, por nossas

necessidades pessoais, pela necessidade de constante atualização profissional,

pelas lutas de nossa categoria etc. Somos, muitas vezes, renegados por um

mercado de trabalho parametrizado pela lógica da produtividade. Dentre tantas

exigências, alguns de nós sucumbimos de modo a perdermos completamente a

força ética e o compromisso político de nossa atuação. Sendo assim, nossas ações

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tornam-se esvaziadas e insignificantes, pois, na lógica da produção, o trabalho tende

a possuir apenas um valor comercial, e não social.

Há muitas limitações, porém, há possibilidades. A prática reificadora no

Serviço Social pode ser superada. Nosso dia-a-dia profissional, ao invés de rotineiro,

pode ser relevante e significativo. Para isso, precisamos estar em constante

formação e engajados na luta política. Estas atividades são por si só

transformadoras. O encontro com o conhecimento teórico e o embate político

proporcionam momentos de suspensão da cotidianidade, de forma que, ao

retornarmos a ela depois de momentos de sensibilização, estaremos mais refinados

e educados; assim, observaremos o mundo ao nosso redor de forma diferente.

Neste sentido, todo/a assistente social comprometido/a pode proporcionar a si

mesmo/a momentos de autoavaliação. A autoavaliação requer reflexão ética e visão

crítica. Estas são atitudes que nos fazem entender que tanto nosso trabalho quanto

os sujeitos com quem nos dispomos a trabalhar – a classe trabalhadora – são

determinados por uma gama de objetivações sociais. Esta compreensão é vital,

pois, permite-nos desconfiar de nosso olhar profissional e pessoal, e nos faz

entender que as coisas não são como aparentam ser e que não seriam o que são

se, de fato, uma pequena parcela da sociedade – a detentora dos meios de

produção – estivesse disposta a abrir mão de seus interesses individuais e egoístas.

Na medida em que nos permitirmos a aberturas paradigmáticas, romperemos

com as certezas que nos fazem cegos e que nos impossibilitam entender que tudo

está em movimento, portanto, como profissionais do Serviço Social, não podemos

ser os únicos a permanecer estagnados no embate político, na formação acadêmica

e na vida profissional.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CÓDIGO DE ÉTICA DO/A ASSISTENTE SOCIAL. Lei 8.662/93 de regulamentação da profissão. – 10ª. ed. rev. e atual. – [Brasília]: Conselho Federal de Serviço Social, [2012]. 60 páginas “Atualizado em 13/03/1993, com alterações introduzidas pelas Resoluções CFESS n. 290/94, 293/94, 333/96 3 594/11. GUERRA, Yolanda. A instrumentalidade do serviço social. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2002. HELLER, Agnes 1929 - O cotidiano e a história. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

2004. IAMAMOTO, Marilda Vilela. Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009. 760 p. (Publicação: Conselho

Federal de Serviço Social – CFESS, Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS. V. 1) IAMAMOTO, Marilda Vilela et al. Serviço social crítico: problemas e perspectivas: um balanço latino-americano / Centro Latinoamericano de Trabajo Social: [tradução José Paulo Netto]. – 3. ed. – São Paulo : Cortez : [Lima, Peru] : CELATS, 1991. IAMAMOTO, Marilda Vilela; CARVALHO, Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo:

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NETTO, José Paulo. A construção do projeto ético-político do Serviço Social frente à crise contemporânea. In: Crise contemporânea, questão social e Serviço Social. Capacitação em Serviço Social e política social. Brasília: CFESS/ABEPSS/CEAD/UnB, 1999.

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ANEXOS

Entrevista

(30/11/12)

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Aslan: Qual o significado da palavra “cotidiano” para você?

Haydê Mov: Creio que tenha relação com a reprodução de práticas repetitivas

dentro da dimensão cronológica do tempo. O cotidiano, na verdade, é o transcorrer

das reproduções no tempo em que elas acontecem.

Aslan: Neste trabalho definimos o cotidiano como aquele espaço modelado no qual

nossa vida acontece, e não há como fugir disso. No entanto, você está trazendo o

cotidiano numa perspectiva mais cronológica.

Haydê Mov: Isso. Você deve projetar a ideia de cotidiano para o tempo, e é neste

tempo que as pessoas vivem. Vulgarmente falando, eu diria que o cotidiano é o “dia-

a-dia”. E o que é este dia-a-dia? São as vinte e quatro horas transcorridas que

sempre se repetem.

Aslan: O cotidiano do/a Assistente Social está repleto de pontualidades, as quais

ele/a precisa identificar. Desta forma estará mais preparado/a para compreender

qual a dimensão da cotidianidade em sua prática profissional. Uma pontualidade

comum pode ser a falta de tempo para atender uma grande demanda de usuários.

Porém, vale ressaltar que cada espaço sócio-ocupacional possui suas

especificidades, por isso, sou levado a pensar que a cotidianidade se expressa de

formas diferentes, ou seja, varia de acordo com as determinações de cada local de

trabalho. Fale-me sobre uma pontualidade presente em seu trabalho.

Haydê Mov: Atendimentos individuais. Isto é algo que faço todos os dias.

Aslan: Como são estes atendimentos?

Haydê Mov: Não consigo enxergá-los como iguais entre si porque cada pessoa

singular e possui sua própria necessidade. O atendimento é determinado pela

demanda que o usuário traz. Por exemplo, quase todos os dias faço

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acompanhamento do Programa Bolsa-Família. Porém, faço todos os dias porque

sempre há beneficiários para atender.

Aslan: Mas este acompanhamento é uma exigência do empregador?

Haydê Mov: Sim. De minha gerência. Em nossa região, temos aproximadamente

duzentas e cinquenta pessoas cadastradas neste programa. Mas, também

atendemos demandas espontâneas e, nestes atendimentos identificamos pessoas

que necessitam de acompanhamento para o programa. Bem, já que você tocou

nesta questão das pontualidades, eu diria que, na prática, tenho uma dimensão de

rompimento com a rotina. Por exemplo, não consigo imaginar que um atendimento

possa ser igual ao outro.

Aslan: Fale-me sobre outra pontualidade.

Haydê Mov: São tantas! Trabalhamos com o Programa Mãe Paulistana. Fazemos

acompanhamento das gestantes, mas não me identifico muito com este trabalho.

Aslan: Então, percebo que acompanhamento de programas é uma verdadeira

realidade em seu espaço sócio-ocupacional. Esta é a sua principal função?

Haydê Mov: Sim.

Aslan: Há um grande perigo em se realizar as mesmas atividades todos os dias

porque, se desatentos, acabamos caindo numa rotina massacrante. Como você

percebe e lhe dá com isso?

Haydê Mov: Não percebo isto dessa forma. Minha colega de trabalho, que também

é assistente social, poderia falar com mais propriedade sobre esta reprodução. Creio

que esta questão tem relação com a criação de estratégias, em alguns momentos

precisamos ir pelas marginalidades. No entanto, frequentemente preciso prestar

contas dos acompanhamentos que realizo, como o do Programa Bolsa-Família. Esta

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ação é feita com a ajuda de um consolidado, que é uma planilha repleta de números.

Isto não significa que a utilização deste instrumento seja uma forma de reprodução,

ou seja, aqueles números não podem ser apenas informações que constam num

papel. Por exemplo, a assistente social que trabalha comigo fica concentrada na

busca ativa das gestantes, ou seja, seu trabalho se resume no monitoramento das

gestantes que não comparecem aos atendimentos. Não sei como ela encara esta

situação. Eu não me permito cair nesta reprodução. Há um aprendizado implicado

em cada atendimento. Procuro sempre utilizar minhas experiências, por exemplo: às

vezes trabalho com o corpo, às vezes com as palavras. Em alguns momentos brigo,

e assim vai. Creio que seja por este motivo que estou há quatro anos neste

emprego, ou seja, apesar de todos os desafios institucionais gozo de liberdade para

agir.

Aslan: Você está me dizendo que não permite cair na rotina, certo?

Haydê Mov: Não. Na verdade há uma rotina. Entro no trabalho ao meio dia e saio

às cinco horas da tarde, às vezes mais tarde. Tenho que bater ponto, tenho que

estar lá todos os dias. Existe uma rotina, eu sempre preciso prestar contas do meu

trabalho.

Aslan: Bem, deixando um pouco de lado às exigências institucionais e falando sobre

a sua atuação específica como profissional do Serviço Social. Você está dizendo

que procura fugir das mesmices do dia-a-dia, certo?

Haydê Mov: Falando sobre o atendimento, que é uma das atividades mais

presentes no meu trabalho; procuro não encará-lo como uma mesmice. Além dos

grupos que formamos que estão dentro do fluxo do trabalho e das prerrogativas do

SUS, diversas pessoas me procuram diariamente; estas são as demandas

espontâneas. São atendimentos de múltiplas expressões.

Aslan: Ótimo! Então me fale sobre as estratégias que você tem criado para fazer

com que estes atendimentos sejam realizados de forma diferente, de modo que sua

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intervenção na realidade objetiva destes sujeitos não seja rotineira. Você me disse

que sua colega de trabalho tem mecanizado sua prática. Em quais pontos a sua

práxis se difere da dela?

Haydê Mov: Percebo o quanto a dimensão política do corpo é importante. Uma de

minhas estratégias é a abordagem do corpo. Outra é o manuseio da palavra como

instrumento de acontecimento. Sempre utilizo poesias. Tenho comigo livros.

Aproprio-me das ferramentas da internet. Por exemplo, atendo muitas pessoas em

situação de rua, elas são provenientes de diversas regiões do país e, em sua

maioria, estão longe de sua terra natal há muito tempo. Durante nossas conversas

pergunto sobre seu local de nascimento, em seguida procuramos, nas ferramentas

da internet, informações sobre suas cidades. Isto toca profundamente suas

memórias emocionais e fortalece vínculos com suas raízes. Pensando noutro

exemplo, já tivemos grupos de contadores de histórias, de dança e de orientação

sobre plantas medicinais. Dependendo do caso, faço encaminhamentos para grupos

orientados por outros profissionais.

Aslan: Estas atividades são atribuições do/a assistente social?

Haydê Mov: Sim.

Aslan: Durante a graduação em Serviço Social você participou de alguma oficina

específica que lhe capacitou para trabalhar com arte nos espaços sócio-

ocupacionais?

Haydê Mov: Minha formação contou com atividades complementares que me

proporcionaram a oportunidade entrar em contato com o teatro, por exemplo. Meu

entendimento da formação arte-cultura pelo Serviço Social está relacionado às

atividades complementares. Lembro-me de uma visita ao centro da cidade realizada

com a turma no primeiro ano do curso. Parece-me que estas são dimensões da

formação, embora estejam colocadas dentro do campo da complementaridade.

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Aslan: Você acredita que o profissional pode incluir em sua prática interventiva

outras atividades que, a princípio, não fazem parte de sua formação específica em

Serviço Social?

Haydê Mov: Sim. Tomo como exemplo a professora Rosalina Santacruz, que

trabalhou num projeto chamado “Refazendo Vínculos”. Naquele espaço ela

trabalhava muito com arte. Havia oficinas de dança, trabalhos com bonecas de

gesso que eram levadas para serem vendidas na feira, entre outras atividades.

Quando iniciei meu estágio trabalhei numa oficina com atletas e lá estava inclusa

uma dimensão da arte no trabalho. Depois trabalhei com medidas socioeducativas

de prestação de serviços à comunidade; este era um espaço aonde privilegiávamos

a pintura e a dança. Então, estas são dimensões que não estão distantes da

profissão, totalmente ao contrário, caminham lado a lado com ela. Estes também

são nossos papéis como assistentes sociais, e por que não? Creio que há um

discurso controverso dentro da profissão sobre a questão das práticas terapêuticas.

Hoje, há uma corrente teórica que afirma que toda prática na área da saúde é

terapêutica. O conceito de terapêutico é muito abrangente. Estamos envolvidos em

trabalhos multidisciplinares na área da saúde, portanto, também realizamos trabalho

terapêutico. Há uma dinâmica de cuidado a partir do momento em que um indivíduo

procura um serviço que tenha a ver com a questão da terapêutica. Não há como

negar esta dinâmica; depende muito da consciência daquilo que você está fazendo.

Aslan: Percebi que, para a descotidianização de sua prática interventiva, você tem

se apropriado de atividades que vão para além daquelas que estão dentro de nossa

própria bagagem profissional, que, a meu ver, não abrange todos os conhecimentos

e práticas das outras áreas do saber; e nem deveria.

Haydê Mov: Eu diria mais. Esta é a única forma pelo qual podemos sair destes

mecanismos quadrados da profissão.

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Aslan: Você acredita que o conhecimento adquirido dentro das quatro paredes da

universidade nos dá bagagem teórica para efetivamos o projeto ético-político-

profissional em nossos espaços de trabalho?

Haydê Mov: Precisamos entender a palavra “liberdade”. Foi dentro das quatro

paredes da universidade que pude aprender a sua dimensão, através de disciplinas

como Filosofia que estão incluídas no próprio currículo do curso. Em meu trabalho,

proponho oficinas de dança, denominadas “dança para a liberdade”. Este é o

princípio que permeia a minha prática como profissional do Serviço Social, ou seja,

utilizo-me de outros conhecimentos adquiridos para trazer esta ideia de libertação, e

isto eu aprendi aqui, na universidade. A participação em núcleos e em discussões

mais filosóficas deu-me maior compreensão da prática do que as disciplinas mais

específicas como oficina de formação profissional. Aqui aprendi a considerar a

dimensão humana, por isso consigo compreender a dança como uma libertação

para o corpo político. Penso desta forma porque passei por estas experiências e

reconheci que estas são categorias fundantes dos homens.

Aslan: Você acredita que há uma dimensão socioeducativa em nossa práxis

profissional?

Haydê Mov: Sim.

Aslan: Ambos entendemos que as necessidades objetivas dos sujeitos devem ser

atendidas, ou seja, a cesta básica deve ser entregue. No entanto, como agentes

políticos articuladores de conhecimento, e não somente de informações, podemos

propiciar momentos de reflexão aos sujeitos, de modo que consigam ver a si

mesmos e sua própria condição com um olhar mais crítico e transformador. Então,

no âmbito da cotidianidade, diga-me de que forma podemos conduzir a dimensão

socioeducativa de nossa prática de modo libertador e emancipatório.

Haydê Mov: Há uma dimensão processual nisso. Creio que o verdadeiro trabalho

socioeducativo deve possuir continuidade. Tenho um vínculo muito forte com os

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usuários com que trabalho, e isso faz uma grande diferença, o vínculo é

fundamental. Não se trata de um vínculo institucional, é algo que vem da confiança.

E isto requer disponibilidade por parte do profissional. Por isso, o trabalho

socioeducativo deve ser processual. Você acaba percebendo as mudanças dos

sujeitos dentro dos processos. O vínculo tem uma inauguração, que é o “encontro”.

Este encontro não pode acabar num atendimento. Precisamos estabelecer elos de

comunicação, de tal forma que, ao assistir um vídeo interessante na internet, envio

para o usuário que está em constante contato comigo, pois, a mensagem pode lhe

ser útil. Eu sofro às vezes! São muitas pessoas para pensar e se comunicar. Neste

sentido, sentimos a transformação acontecendo nos sujeitos ao nosso redor, e em

nós mesmos. E, de fato, as pessoas não são mais as mesmas, corporal e

emocionalmente. Acabamos presenciando diversas mudanças: de divórcios à

abertura para novas relações, mudança de relacionamento entre mãe e filha,

reestruturação familiar, mudança de posicionamento político. Por exemplo, temos

um grupo de dança no qual começamos uma discussão sobre preferências políticas.

Havia muitas posições extremamente reacionárias por parte dos integrantes. No

entanto, no desenrolar das atividades percebemos uma grande mudança. Nenhuma

ideia foi imposta ao grupo, a transformação veio a partir de processos reflexivos. O

interessante é que estes processos ocorrem conosco também, mas, é claro,

depende de nossa disposição para mudar. Sou levada a crer que um grande desafio

é a resistência do outro, e até aonde conseguimos insistir, reconhecendo seus

limites.

Aslan: O que você pensa sobre a relação entre profissional e profissão, no sentido

da criação de novas estratégias para a constante renovação da práxis?

Haydê Mov: Temos que subverter o Serviço Social! Aqui, nesta universidade, todas

as nossas professoras fazem isso. Tem gente que subverte rumo a uma linha mais

conservadora.

Aslan: Precisamos recriar constantemente a profissão?

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Haydê Mov: Reafirmo a importância da liberdade.

Aslan: O que você tem a dizer sobre nosso projeto-ético-político?

Haydê Mov: Ele está impregnado pela dimensão da liberdade. Temos que nos

amparar nele! Costumo dizer que ele é um aprisionamento, mas também uma

libertação. Procure por aí, qual profissão está baseada numa perspectiva

revolucionária e comprometida com outra forma de organização social? Embora a

sociedade ainda não tenha sido transformada, nosso projeto traz consigo estes

princípios como categorias fundantes, de luta pela liberdade, de rompimento com a

exploração e com a diferença de classes. E eu acredito que são estas coisas que

produzem a desigualdade social, a pobreza, a opressão, a discriminação e a

violência. A própria forma como a sociedade está organizada é o que produz tudo

isso. Enfim, estes são fatores que justificam a nossa profissão: olhe a contradição!

Pensando em todas estas afirmações, creio não estar contra os princípios e

diretrizes de nosso código de ética.